William Waack

William Waack: Os homens fortes dos presidentes

Em relação a subordinados os presidentes dos Estados Unidos e Brasil se parecem muito

Jair Bolsonaro e Donald Trump são muito parecidos em deixar claro que é bem reduzido o espaço para homem forte muito perto de político que faz o papel de homem forte. Mas as aparências enganam.

Donald Trump demitiu seu assessor de Segurança Nacional, John Bolton, o terceiro em três anos, por divergências em relação à maneira como Trump passou a conduzir duas crises internacionais, a do Irã e a da Coreia do Norte, para as quais Bolton receitava dureza máxima e mesmo o emprego de força militar.

Trump passou a agir (no caso de Irã e Coreia do Norte) em contraste com a visão linha-dura que Bolton propunha – e, no caso da Venezuela, achou que Bolton o iludiu ao dizer que o ditador Maduro cairia facilmente.

Pelo jeito, Bolton esqueceu-se de que o político que segue o figurino de homem forte no poder gosta sobretudo de ouvir o que quer, como quer e quando quer. E que só o político eleito como homem forte é o dono de todas as verdades, especialmente eleitorais.

Bolsonaro já se despediu de dois homens fortes ao seu redor: os ex-ministros Gustavo Bebianno e general Santos Cruz. Aos quais vozes nas quais Bolsonaro confia (como seus filhos) atribuíam coisas ditas que Bolsonaro não gostou.

É bem mais complexa a relação com dois outros homens fortes de seu governo, os ministros da Economia e da Justiça. A cada um Bolsonaro confiou parte relevante de seus projetos: consertar uma economia que ainda não saiu de profunda recessão e combater crime e corrupção.

Confiou é modo de dizer. Paulo Guedes já teve de apagar pequenos incêndios, como o do presidente na Petrobrás para não aumentar preço de combustíveis ou no Banco do Brasil para baixar juros. Minúcias, comparado ao que vem: já que não parece possível cortar despesas (por questões intrincadas de política, coisa que Bolsonaro não aprecia muito), ao liberal Guedes não vai sobrar outra coisa senão tacar um novo imposto.

Sérgio Moro e o tratamento que Bolsonaro na prática lhe dispensou se configuram até aqui como único fator a provocar estragos na imagem do presidente entre seus próprios seguidores. Moro é o principal símbolo da luta anticorrupção, problema que imensa maioria da população identifica (erroneamente ou não, nem importa) como o maior do País. Sejam quais forem os motivos – pessoais, políticos ou os dois misturados – Bolsonaro deixou claro que não vai viver à sombra de Moro, e sim o contrário.

Mesmo os generais, normalmente identificados com “força”, foram atacados por gente que Bolsonaro admira e decidiram recolher-se em público a um prudente jogo de espera. É o reconhecimento tácito de que os verdadeiros homens fortes de Bolsonaro são três: seus filhos. Com total licença para falar.

Em relação a eles, não há medida que o presidente poupe para proteger ou incentivar, mesmo que isso implique utilizar considerável capital político em negociações que ele sempre disse abominar – como as que se tornaram necessárias no Senado para aprovar a nomeação de um filho como embaixador em Washington, por exemplo.

Mesmo a nomeação do novo PGR deixou em círculos jurídicos a impressão de que algum cálculo protetivo a um dos filhos esteve em jogo (embora não apenas) – enquanto a aberta interferência em órgãos de investigação sugere atender dois objetivos: resguardar o círculo pessoal e dar um sinal ao homem forte Moro sobre quem, na verdade, detém o poder de mando.

Mas o jogo político do homem forte Bolsonaro é infinitamente mais delicado do que o do homem forte Trump, por isso as semelhanças entre os fortões em Brasília e Washington enganam. O demitido John Bolton consegue no máximo criticar o “fracoide” Trump em programas de televisão. Talvez lhe tire alguns votos nas eleições do ano que vem.

Guedes, Moro e os generais são de enorme relevância pela natureza das tarefas que detêm. Bolsonaro talvez resista à tentação de copiar Trump e achar que pode perfeitamente viver sem nenhum deles.


William Waack: A boca do inferno

A nova batalha política será como flexibilizar as restrições a gastos públicos

O governo Bolsonaro está sendo obrigado a pensar em gastar – além dos limites legais, obviamente. A equipe econômica acredita, acompanhada por importantes segmentos da economia, que a agenda de concessões, desburocratização, melhoria do ambiente de negócios e desregulamentação trará crescimento num horizonte de médio prazo.

O problema é o que fazer até lá, pois economia andando devagar, renda familiar comprimida e desemprego persistente nunca trouxeram dividendos políticos a governo algum.

Esse é o pano de fundo das conversas já em tom alto de voz para levar ao Legislativo propostas que flexibilizem de alguma forma as restrições impostas pelo teto dos gastos públicos, aprovado sob Temer. “Pela primeira vez estou escutando com insistência amigos dizendo que a PEC do teto dos gastos é muito dura, está inviabilizando o setor público”, admitiu o competente secretário do Tesouro, Mansueto Almeida. E fuzilou: “A realidade dos fatos é que a gente tem um país que tributa muito, gasta muito, não tem capacidade de investimento e ainda tem ajuste fiscal a ser feito”.

O muro com o qual Paulo Guedes e sua equipe se chocaram é formidável e impõe consequências políticas. Por causa da limitação do teto, os gastos obrigatórios (saúde, educação, aposentadorias) corrigidos pela inflação aumentam todo ano, enquanto os discricionários (“livres”) diminuem todo ano. É a tal da “matemática” à qual se referiu o presidente. Ministérios já estão parando, sufocados por contingenciamento de verbas, o mesmo acontecendo com programas que vão do Minha Casa Minha Vida ao combate a queimadas na Amazônia.

Esse é o pano de fundo também da insistente conversa sobre um novo pacto federativo, que Guedes tem oferecido aos governadores nos seguintes termos (simplificados): vocês nos ajudam a desindexar no Legislativo despesas e a desengessar o Orçamento, nós ajudamos vocês a melhorar a situação fiscal já no curto prazo com divisão mais favorável da arrecadação obtida com leilões do pré-sal, além de repasses diversos como fundos para educação, entre outros. A aprovação da cessão onerosa no Senado (com a qual o governo espera arrecadar mais de R$ 100 bilhões, dos quais R$ 21 bilhões vão para Estados e municípios) foi parte relevante dessa negociação.

O tal “pacto” tem sido visto por algumas agências de classificação de risco e por economistas com certo ceticismo. Por um motivo principal: o tamanho da bomba fiscal que paira sobre os Estados e, por consequência, sobre a própria União. De fato, os governadores não poderão gastar o dinheiro do megaleilão do pré-sal com itens como pagamento de pessoal ou custeio da máquina administrativa. Mas eles têm recebido poucos “incentivos” para proceder os ajustes fiscais.

Ao tal “novo pacto federativo” está ligada a reforma tributária, à qual alguns governadores associaram a falsa esperança de melhoria de arrecadação (enquanto o público em geral está confundindo simplificação tributária com redução de carga tributária, perigoso engano). Ao contrário, vai piorar para alguns, e não dá para reduzir impostos diante do tamanho dos gastos sociais no País – simples assim.

O STF não está ajudando, ao bloquear a redução de carga horária e salários para servidores públicos, cuja folha já consome em 14 Estados mais que o teto de 60% fixado pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Contingências políticas (como perda de popularidade) e também econômicas (dar um impulso na economia) provavelmente levarão a algum tipo de entendimento para flexibilização do teto de gastos. Pode ser simplesmente a não criminalização de quem não cumpri-lo, por exemplo. Os puristas dirão que mexer no teto de gastos é abrir a boca do inferno. Os cínicos observarão que dali sai até algum calorzinho, fora o fato de estar cheio de conhecidos.


William Waack: A próxima campanha de Sérgio Moro

Para efeitos práticos, neste momento Jair Bolsonaro está freando o lavajatismo

Ao anular uma condenação proferida pelo ex-juiz Sérgio Moro no âmbito da Lava Jato – a que atingia o ex-presidente da Petrobrás Aldemir Bendine –, a Segunda Turma do STF apenas deu uma mãozinha no que já é uma tempestade perfeita para os principais expoentes da campanha anticorrupção.

A primeira anulação de uma sentença de Moro abre possivelmente caminho para outras contestações jurídicas, embora prever resultados de disputas no campo do Direito no Brasil seja tão difícil quanto prever a política – a determinante em boa parte do que se decidiu nesse grande embate simbolizado pela Lava Jato. Ocorre que a atmosfera atual tem marcada presença da noção de que se tornou necessário fiscalizar o fiscal, controlar o controlador, frear os procuradores.

Portanto, é um momento claramente contrário à Lava Jato entendida aqui como a capacidade de atuação coordenada de um grupo de juízes, procuradores, delegados e investigadores para manter o ímpeto e a eficácia de suas ações políticas (não quer dizer que tenham perdido a capacidade operacional de investigar, prender e punir corruptos).

Moro já entrou num paradoxo relativamente comum na política: o de que excelentes resultados relativos de popularidade nas pesquisas não garantem resultados práticos à mesma altura dessa popularidade. No campo escorregadio da política Moro não tem sido capaz de ditar agenda, peitar adversários ou levar adiante o que considera essencial, como seu pacote anticrime, por exemplo.

Pior ainda, é uma espécie de refém do presidente da República, que, por razões pessoais e familiares, está empenhado em cortar as asas de órgãos de investigação e controle – exatamente os mesmos que Moro sempre considerou essenciais para combater os crimes de colarinho-branco.

As manifestações do último fim de semana contra a lei que pune abuso de autoridade deram aos políticos no Legislativo e a vários ministros no Supremo a clara ideia de que a “indignação popular” não é tão grande assim, e começa a padecer do cansaço trazido pela incessante efervescência de redes sociais.

Há uma clara convergência entre parte dos seguidores de Bolsonaro e as forças políticas no Legislativo e no Judiciário, empenhadas em colocar freios e impor limites à atuação sobretudo POLÍTICA dos expoentes da Lava Jato – uma disputa que, nunca é demais repetir, tem natureza jurídica apenas superficialmente. Juristas respeitados dizem, por exemplo, que o formalismo (correto) ao qual se recorreu para anular a sentença de Moro contra Bendine mal disfarça o intuito da “freada de arrumação” dada pelo STF (que, por sinal, ninguém controla).

Moro está diante de uma trilha complicada. É impossível para ele acusar abertamente o governo Bolsonaro de prejudicar a Lava Jato (dependendo do que Jair Bolsonaro NÃO vetar na Lei de Abuso de Autoridade) e continuar fazendo parte desse mesmo governo. Há claros sinais de mal-estar entre outros seguidores de Bolsonaro e existe por parte deles uma cobrança explícita dirigida ao presidente, de quem se exige postura inequívoca em favor do lavajatismo, do qual foi um dos grandes beneficiados.

É uma atmosfera volátil na qual Moro tem tido dificuldades em se movimentar. Ela espelha em boa medida o fato de que forças que convergiram para liquidar um adversário – o PT, mas não só – e que fizeram parte da onda disruptiva das eleições de 2018 hoje estão entrando em choque numa luta pelo poder dentro do poder. Quaisquer que sejam os motivos do presidente (instinto político ou interesse pessoal), Bolsonaro parece hoje achar que o lavajatismo rendeu o que podia e, como ele mesmo declarou, “Moro não esteve comigo na campanha” eleitoral.

A pergunta é: em qual campanha política Moro estará em 2022?


William Waack || Bolsonaro e os dentes da Lava Jato

O presidente está no meio da principal disputa política do momento

O instinto de Bolsonaro de proteger a família e a prole o está levando a ajudar um lado na formidável briga sobre quem vai controlar as decisões das esferas políticas. No caso, atuando contra os pedidos explícitos de organização que foi tão importante na eleição dele, a Lava Jato.

A ira inicial do presidente é voltada contra órgãos como Receita ou Coaf que ele mesmo colocou sob a suspeita de motivação política ao investigar familiares dele. É isso mesmo, dizem ministros do Supremo. Sob o ímpeto investigatório (jacobinista, inquisitorial, autoritário ou ilegal, dependendo do ministro do Supremo) da Lava Jato, órgãos de fiscalização e controle excederam seus limites constitucionais.

Diálogos hackeados de expoentes da Lava Jato reforçam ainda mais essas percepções sobre a atuação política da força-tarefa – não importa mais se os diálogos são autênticos, se servem como provas, se configuram ou não abusos ou mesmo crimes por parte dos investigadores. Eles são percebidos como a cereja no bolo quando se afirma que juízes, procuradores e delegados se converteram numa espécie de “partido político” com o intuito declarado de influenciar os rumos gerais da política brasileira (seja qual for a justificativa deles).

Partes relevantes do Supremo e do Legislativo se reorganizaram para enfrentar o que consideram ser uma ação política, por parte da Lava Jato, que estava levando (na visão desses atores) ao “emparedamento” dessas instituições, controladas desde fora pela campanha anticorrupção. É muito relevante o fato de o Legislativo ter chamado a si a tarefa de coibir a atividade dos investigadores, por meio do PL do Abuso de Autoridade, e o STF está sentado no material com que pretende (as conversas hackeadas) encurralar seus críticos entre os aguerridos procuradores.

Bolsonaro tem de sancionar ou vetar itens da lei do abuso de autoridade, descrita pela Lava Jato como uma reação das “forças das trevas” que querem escapar incólumes de investigações. Lei que, de outro lado, é caracterizada por nutrido grupo de políticos e juristas como necessária “freada de arrumação” para recompor um mínimo de respeito à norma jurídica ao se combater crimes. A situação coloca o presidente como árbitro de assunto que o interessa diretamente do ponto de vista pessoal (ele acusa a Receita e o Coaf, por exemplo, de abuso), mas também dono de uma poderosa ferramenta política para enfraquecer a única sombra no momento sobre a própria popularidade, a do ex-juiz Sérgio Moro, herói da Lava Jato.

É uma situação de precário e perigoso equilíbrio. Os órgãos de Estado de fiscalização e investigação acham que a lei do abuso contraria o combate ao crime organizado, que depende da troca de informações sigilosas protegidas por lei ou que só podem ser acessadas por ordem judicial (que procuradores se esmeraram em driblar). Legislativo e parte do STF acham que os instrumentos para combater ilícitos são suficientes, e o resto é abuso.

Neste exato momento Bolsonaro está conseguindo simpatias do Legislativo e da classe política, da qual depende para a aprovação de qualquer legislação relevante, sem que o público o perceba ainda como uma figura da qual a Lava Jato já está exigindo postura decisiva em seu sentido. Moro já formulou quais vetos gostaria que o presidente exercesse ao apreciar a lei do abuso de autoridade, ou seja, o prestígio do ministro da Justiça está em jogo. Bolsonaro não tem como agradar a todos.

Está criado um interessante paradoxo na política brasileira: eleito em boa parte como efeito da Lava Jato, Bolsonaro se sente hoje tão mais forte quanto menos dentes afiados ela tiver.


William Waack || A semelhança entre Brasil e Argentina

Governos de esquerda pioraram os problemas, os de direita precisam provar que vão resolvê-los

É quase irresistível a tentação de dizer que Argentina e Brasil são espelhos de si mesmos. Os dois vizinhos tiveram seus populistas históricos cujas sombras políticas se projetam até hoje (Peron e Vargas). Desenvolveram Estados balofos que extraem desproporcional parte da riqueza gerada nos respectivos territórios – sem terem sido capazes de conduzir as respectivas economias para crescimento em bases sustentáveis. A Argentina era rica e ficou pobre, e o Brasil não conseguiu ficar rico.

Há notórias diferenças, até anedóticas. O argentino tende a assumir que o melhor ficou no passado, enquanto o brasileiro acha que o melhor estará no futuro. Ainda assim há grandes paralelos na linha do tempo entre os dois países. Brasil e Argentina experimentaram rupturas políticas em épocas muito próximas, passaram por ditaduras militares e “guerras sujas” de feições similares (ainda que de diferentes intensidades de trauma e violência), voltaram a regimes civis em períodos simultâneos, arcaram com graves crises de endividamento, recessão e, mais recentemente, com regimes de grotesca irresponsabilidade fiscal, em boa parte culpados diretos pelas dificuldades econômicas que ambos enfrentam.

Significa que o fracasso do governo argentino em implementar reformas econômicas estruturantes e, como consequência, a provável derrota eleitoral de uma proposta de liberalização da economia – e a volta pela urna ao descalabro de um regime populista de “esquerda” – é o espectro que ronda o Brasil? Claro que jamais se pode excluir o que ainda não aconteceu, assim como não se pode confiar na inevitabilidade do que virá, mas há algo que torna os destinos de Brasil e Argentina tão parecidos: é um desafio comum que não conseguiram resolver.

O ciclo que enfrentam os dois gigantes sul-americanos, abundantemente dotados de recursos naturais e em confortável posição geográfica, é de como driblar o que economistas chamam de “falta de convergência” da grande maioria dos países emergentes em relação aos países mais avançados. Por “falta de convergência” entende-se a incapacidade de economias de renda média de reduzir a diferença que as separa há décadas do rendimento per capita de países avançados.

Quando os Brics surgiram, há quase 20 anos, parecia que os emergentes iriam, finalmente, alcançar os países do topo. Mas hoje se afirma que a “convergência” era sobretudo o efeito China (e Índia também) e do superciclo das commodities – dois fatores que não se repetem em prazos históricos curtos. Números cruéis estão aí para indicar que Brasil e Argentina continuam tão distantes dos mais ricos como estavam há uma geração, e pior: estão sendo alcançados por vizinhos, como Peru e Colômbia, que sempre foram consideravelmente mais pobres.

É vastíssima a literatura que se ocupa dessa questão, a da superação da pobreza. Tirando o submarxismo típico de baixa produção intelectual que atribuía o atraso relativo de Argentina e Brasil a alguma malvada “imposição” de interesses externos, consolidou-se nos últimos anos o consenso de que escolhas políticas, travas internas, problemas domésticos e, principalmente, ausência de líderes comprometidos com um horizonte de longo prazo é que ajudam a entender as dificuldades de ambos para sair da presente estagnação econômica e resolver problemas tão básicos como pobreza e gritante desigualdade – as mesmas mazelas de sempre, agora agravadas por índices inéditos de violência.

A história recente demonstra que governos da chamada “esquerda” na Argentina e no Brasil não resolveram nenhum dos problemas fundamentais desses países – ao contrário, contribuíram para piorá-los. Os de “direita” precisam provar que conseguem.


William Waack: Falsa esperança

Depois da reforma da Previdência, aumentou ainda mais a necessidade de base no Congresso

Todo mundo com razoável ideia do que precisa acontecer para a economia brasileira sair da estagnação repete que a reforma da Previdência é necessária, mas não suficiente. Com ela quase aprovada, cresce em vários setores a esperança na repetição do quadro que, mesmo aos trancos e barrancos, mesmo sem base sólida do governo no Congresso, acabou conduzindo à tramitação no Legislativo de medida impopular de ajuste fiscal.

A lista represada do que se pretende aprovar é imensa. Apenas no que se refere diretamente à atividade econômica, começa com a reforma tributária, prossegue pela MP da liberdade econômica (vai caducar dia 27), passa pelo programa de parceria de investimentos, recuperação fiscal dos Estados, autonomia do Banco Central, cobrança de dívidas previdenciárias, marco legal do saneamento. Para não falar em itens como posse de armas de fogo, educação infantil em casa, cadastro ambiental rural, pacote anticrime, previdência militar...

Tudo isso está no colo do Legislativo ao mesmo tempo em que os deputados terão de estabelecer neste mês as linhas para o orçamento do ano que vem. É a hora na qual suas excelências costumam pedir, por exemplo, mais recursos federais para empresas públicas regionais em que elas mantêm grande influência, ou namoram furar o teto de gastos públicos aprovado por Temer para permitir investimentos – coisa que não deixa de ter seu encanto quando um governo acha que terá de voltar a gastar (Bolsonaro vai chegar logo a essa situação). Eventuais atrasos na aprovação da reforma da Previdência empurram para adiante algumas destas medidas acima, ou todas elas.

O grau de complexidade dessas diversas negociações é altíssimo. Tome-se por exemplo a reforma mais desejada do momento, a tributária. Ela envolve todos os entes da Federação. Em princípio os Estados concordam em unificar cinco diferentes impostos em um só, contanto que haja mecanismos de compensação para os que vão perder arrecadação com a simplificação de tributos (haja negociação). Quem vai fixar as alíquotas? A proposta que mais avançou no Legislativo é conhecida como PEC 45, mas o Executivo anunciou que viria com outro projeto. Qualquer que seja, sem uma bem organizada e disciplinada coligação política (isto é mais ainda do que base no Congresso) vai ser muito árduo superar a inevitável oposição de setores que se sentirão mais atingidos pela nova tributação.

Em outras palavras, e levando em consideração o ambicioso conjunto de nova tributação, as privatizações, a desregulamentação e os novos marcos legais – a tal melhoria do péssimo ambiente de negócios no Brasil – cresceu exponencialmente a necessidade do governo de buscar uma base eficaz e sólida no Congresso. Tarefa à qual se dedicou até aqui de maneira errática, para se dizer o mínimo, ou mesmo desprezou.

Porém, pergunta-se, se mesmo sem essa base, vai sair a reforma da Previdência, não é razoável a esperança de que o mesmo quadro atual permita a tramitação de todo o resto? Dificilmente, por um motivo político simples. Os deputados votaram na reforma da Previdência e decidiram enfrentar eventuais protestos (que não ocorreram) em suas bases eleitorais motivados em grande parte pelo medo de uma crise econômica ainda maior. O tamanho da bomba fiscal e seu potencial de destruição foram poderoso incentivo.

É diferente a classe de incentivos necessários agora para se dedicar à agenda do aumento da produtividade e da competitividade – aquela que o Brasil tem de implementar já, e sem a qual não foge da armadilha da renda média da qual é prisioneiro há três décadas pelo menos. Neste momento, o fator-chave é uma bem organizada, conduzida, coordenada e aguerrida sólida base de votações no Congresso. Quando ela vai existir?


William Waack: Estratégia e momento

Jair Bolsonaro tinha uma estratégia para 2018. Agora, não

Jair Bolsonaro é um personagem transparente. Assegura que pensa o que diz. Assim, em relação à sequência de frases revoltantes que insiste em pronunciar, não há razão para duvidar quando ele afirma “eu sou assim, não tenho estratégia”.

De fato, aparentemente Bolsonaro deixou o Exército antes de frequentar as aulas de Estado-Maior sobre o que é estratégia. Na acepção clássica, adotada por militares, políticos e empresários, estratégia é a adequação dos meios aos fins levando em consideração tempo e espaço.

Esse ajuste dos meios (sempre finitos) aos fins (às vezes infinitos) funcionou muito bem na vitória eleitoral de 2018. Estava bem delineado o que ele queria (ganhar o pleito), quem era o principal adversário (o lulopetismo), o horizonte de tempo (o calendário eleitoral), qual comportamento tático (conteúdos políticos e estilo) funcionaria, quais recursos estavam ao alcance (redes sociais).

Mas, acima de tudo, o personagem político Bolsonaro atendia exatamente à demanda do eleitorado naquele momento de um ano atrás: alguém que convencesse milhões de indignados de ser capaz de chutar o pau da barraca do “sistema” (político, midiático, econômico). Tinha a seu favor uma onda popular muito maior do que ele – e foi ajudado pelo imponderável (a facada).

Ocorre que governar um país que se deteriora à espera da arrancada para sair da mais profunda recessão da memória viva é outra grandeza na ordem das coisas. Quando diz que não possui estratégia, o transparente Bolsonaro apenas torna evidente, com as próprias palavras, que neste momento não sabe aonde quer chegar – excetuando, talvez, permanecer onde está além de 2022. Portanto, não sabe também como quer chegar.

Mudar o Brasil com Deus acima de todos é um fim infinito, mesmo que louvável. Para alcançá-lo, o comportamento presidencial da xingação, do disparate das declarações, da ofensa a grupos diversos e desprezo pelos postulados (incluindo a articulação política) que o presidente entende como contrários aos fins surge como meio cada vez menos adequado. Bolsonaro tem mesmo razão quando diz que não possui uma estratégia.

Além disso, dois fatores importantes mudaram desde as eleições. O Legislativo e as diversas forças políticas ali representadas têm tido êxito em limitar o poder da caneta Bic do presidente. O ímpeto da Lava Jato – entendido aqui como a capacidade de um grupo organizado de exercer controle externo ao mundo da política – refluiu mesmo considerando a enorme popularidade de Sérgio Moro. A insegurança jurídica e suas consequências políticas permanecem fortes, e fogem ao controle do presidente.

Parece que Bolsonaro não entende assim os dados da realidade, ou acha que vai dobrá-la ao seu gosto. A “política institucionalizada”, por meio de chefes de partidos, legislativos, governadores, grupos corporativistas, interesses econômicos e sociais, está engolindo a falta de estratégia do presidente. A questão é saber até onde o levará o tipo de comportamento que insiste em exibir. Por enquanto, a fragmentação das correntes políticas e a inexistência de uma oposição com credibilidade e respeito tornam muito reduzido o perigo de ser apeado no meio do caminho.

Goste-se disso ou não, o sistema de governo brasileiro sob o qual Bolsonaro opera obriga o presidente a agregar forças políticas e o presidente está obtendo o efeito contrário ao gastar energia política em embates irrelevantes frente aos gigantescos desafios sociais e econômicos que precisa resolver. Estagnação econômica e frustração com o ritmo de mudanças acabarão alterando mais ainda o clima político, que está se degradando para o presidente.

Até surgir, como foi Bolsonaro em 2018, alguém com uma estratégia para o momento.


William Waack: Bolsonaro e os xiitas

É ampla no Brasil a percepção de que agronegócio e meio ambiente não combinam

O governo Jair Bolsonaro, especialmente o presidente, tem uma rara capacidade de ajudar seus críticos e adversários. A mais recente demonstração é a briga de Bolsonaro com os dados do Inpe, acusado por ele de favorecer campanhas internacionais contra o País ao divulgar informações sobre desmatamento obtidas por satélites. É tão ridículo quanto brigar com o termômetro ou o barômetro.

O material elaborado pelo Inpe é o resultado de considerável esforço científico nacional e internacional em entender as dimensões da questão – e se esse material indica que o desmatamento persiste em proporções preocupantes, o ponto central é a incapacidade demonstrada pelo Estado brasileiro ao longo de décadas de fazer valer suas próprias leis. Teria sido fácil dizer isso a correspondentes estrangeiros, não tivesse Bolsonaro permanecido preso a um (para usar a linguagem militar) teatro secundário de operações.

Xiitas ambientais, diz o presidente, são os responsáveis por uma enorme campanha contra o Brasil lá fora. Por xiitas ambientais Bolsonaro entende em parte ONGs internacionais – algumas, sem dúvida, com agenda claramente ideológica (combater o agronegócio capitalista) e/ou comprometidas com interesses comerciais de competidores (pela proximidade com partidos políticos que representam segmentos eleitorais com grande influência em governos de outros países). Sim, esse tipo de campanha existe, e atinge parte da imprensa tradicionalmente responsável e objetiva.

Mas, a rigor, é no Brasil mesmo que persiste há muito tempo a ideia de que o negócio agropecuário e o meio ambiente são grandezas irreconciliáveis. E que o lucro e a rentabilidade (a principal razão de existir do grande negócio) seriam obtidos pela sistemática destruição da natureza e apropriação privada de recursos divinos como a terra. Há também um ranço clerical na noção bastante popular de que um bem para todos não pode ser repartido entre alguns poucos. E que a tarefa de alimentar as pessoas cabe a quem trabalha a terra com o próprio suor, e não a entidades gananciosas que transformam centenas de milhares de quilômetros quadrados em monoculturas destinadas à exportação.

Em termos abrangentes, a moderna sociedade “urbanoide” brasileira não desenvolveu em torno do produtor rural a mesma aura positiva que se registra em países como Alemanha, França ou Estados Unidos (nossos competidores). O imaginário da sociedade brasileira não se alimenta de números sobre a relevante contribuição do agronegócio para o PIB (portanto, para a economia nacional). Não dá muita bola para coisas como inovação tecnológica – o público continua achando, em geral, que o Brasil se tornou uma grande potência agrícola pois tem água, terra, clima e expulsou de seus territórios os povos da floresta junto com as árvores. Aumento de produtividade é um conceito pouco discutido ou compreendido, aliás.

Também a representação política desses segmentos econômicos e sociais ligados à produção agropecuária no Brasil (fortemente regionalizados e muito distintos entre si) é vista com desconfiança. “Bancada ruralista” costuma ser sinônimo de um grupo de parlamentares controlados por interesses econômicos que se dedica a acobertar crimes ambientais, arrebentar direitos trabalhistas, abrir cofres públicos para subsídios e facilitar a utilização de substâncias tóxicas que deixarão resíduos em alimentos.

É secundário se os fatos objetivos da realidade suportam essa percepção bastante difundida no Brasil. Em alguns pontos essenciais, não suportam – ao contrário. Mas o choque de poderosas narrativas, como são as da relação entre meio ambiente e agronegócio, se dá no palco da política, no qual o grande determinante dos “fatos” são as percepções. Seria tão mais fácil se o problema fossem apenas os xiitas.


William Waack: Países não pertencem a presidentes

Bolsonaro e Trump enxergam as relações internacionais como relações pessoais

Ao se empenhar em colocar o filho Eduardo como embaixador do Brasil em Washington, o presidente Jair Bolsonaro decidiu ignorar um dos mais antigos princípios nas relações entre Estados. É o princípio segundo o qual países não têm amigos, têm interesses.

Pode-se discutir as qualificações do indicado ou a falta delas para o exercício do cargo, a idade ou o fato de ser filho do chefe de Estado, mas não é o que mais importa. Relevante é algo que o presidente brasileiro destacou ao justificar a escolha: Eduardo tem acesso direto à família do colega americano Donald Trump.

Em outras palavras, relevante para a indicação é a proximidade com uma família entendida como amiga. Quaisquer que sejam esses laços, a noção de que negócios de Estado poderiam ser melhor resolvidos na base do entendimento pessoal expressa desprezo por fundamentos básicos de relações internacionais – além de pouco apreço pelo “staff” profissional das respectivas diplomacias, característica comum a Bolsonaro e Trump.

A “química pessoal” funciona menos do que se pensa. Tome-se o exemplo recente do ditador da Coreia do Norte – por quem Trump “caiu de amores”, segundo disse, mas o baixinho que Trump ridicularizava continua sentado nas suas bombas atômicas. Ou considere-se a postura de Vladimir Putin, por quem Trump expressou sincera admiração pessoal – a mais nova versão de um czar russo peita os EUA onde pode, e está se articulando com a grande rival americana, a China (onde uma espécie de líder vitalício pensa em sistemas e não em pessoas).

As relações pessoais entre mandatários do Brasil e dos Estados Unidos já sofreram grandes oscilações. Ernesto Geisel detestava Jimmy Carter, Fernando Henrique e Bill Clinton viraram amigos pessoais, Lula não foi muito com a cara de Obama, mas, à luz da história, o que explica melhor os períodos de maior ou menor convergência dos interesses de ambos os países são fatores políticos bastante abrangentes. São a chave para compreender a razão de o Brasil não ter tido nesse último meio século um duradouro “alinhamento automático” com a política externa de Washington nem uma duradoura “oposição sistêmica”.

É para lá de óbvio que nem tudo que agrada ao amigo Trump interessa ao Brasil. Para ficar com apenas um exemplo, Trump adora a imagem que cultiva de dirigente dedicado a frear a China (nesse ponto, além da questão pessoal, existe uma rara coincidência de postura com os adversários democratas americanos). Para o Brasil, seria um pesadelo ter de escolher lado neste momento na briga dos elefantes.

É seguro supor que Brasil e Estados Unidos vão redescobrir convergências em campos como Defesa e Segurança Hemisférica. O Brasil está fadado a ter de lidar com a crise da Venezuela, não importa o que pense Trump. E obrigado a modernizar-se por meio do acesso que conseguir a setores de tecnologias sensitivas – preparando-se para enfrentar resistências (tradicionais, aliás, não importa quem é amigo de quem) em Washington.

O mesmo jogo complexo de interesses contrários e divergências vai prosseguir no campo do comércio bilateral e mundial, no qual americanos e brasileiros são, simultaneamente, parceiros e competidores, dependendo do setor e do momento, e no qual o protecionismo a la Trump, e seu desprezo pelas regras multilaterais, passa longe do que possa beneficiar o Brasil. São temas que dificilmente amigos conseguem decidir entre si, por mais sincera que seja a amizade.

As imagens de líderes mundiais se encontrando, seus cumprimentos, abraços ou caretas e suas poses para as câmeras confundem. Tomado no seu conjunto, o campo das relações internacionais é, por definição, o campo da impessoalidade. Os Estados Unidos não são de Trump, nem o Brasil é de Bolsonaro.


William Waack: A marcha da complacência

Bolsonaro está diante da oportunidade de tirar o País da estagnação

A tramitação da reforma da Previdência foi um exemplo de marcha da complacência. A provável aprovação se dá no limite do insustentável, quando as contas públicas já estão há tempos no alarme vermelho, o Estado perdeu qualquer capacidade de investimento e nem mais sustenta o próprio custeio.

Complacência é uma característica da sociedade brasileira. Foi assim com a inflação, tolerada até o limite do insustentável – a hiperinflação. Depois de duas décadas a resposta veio com o Plano Real, resultante do consenso de que a inflação corrói mais do que a moeda, corrói o tecido social.

Outro exemplo notável de complacência tem a ver com a corrupção. Ela nunca foi novidade. Mas o já conhecido pântano de roubalheira precisou de mais de uma década de aprofundamento e abrangência durante sobretudo (mas não só) governos do PT até provocar a onda de indignação e revolta populares conhecida como Lava Jato.

Vem daí a capacidade dos principais expoentes da Lava Jato de sobreviver com até certa facilidade às denúncias (não são a menor novidade para advogados de defesa) de que violaram as normas do direito ao combater os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Para ser bem entendida nas suas origens, alcance e significados presentes, a Lava Jato precisa ser vista como um símbolo político de enorme relevância. É o símbolo de um enorme “basta” – do fim da complacência com a corrupção (se ela realmente acabou é outro capítulo).

A questão da Previdência repetiu a mesma trajetória. Especialistas como Fabio Giambiagi vinham alertando há DUAS DÉCADAS para o caminho insustentável das contas públicas brasileiras, devastadas sobretudo pelo crescimento real de gastos sociais, com destaque para o sistema de aposentadorias. Sem desmerecer o trabalho do especialista, os parâmetros fundamentais para esse tipo de previsão não eram segredo algum. Bastava considerar as taxas de crescimento da economia brasileira (incapaz de sustentar o nível de gastos sociais) e o fechamento da janela demográfica (a população brasileira ficando notadamente mais velha).

O fim da complacência com a miséria das contas públicas já estava desenhado na saída do impeachment de Dilma e foi claramente um foco central do governo Temer. Mas os acidentes da política agravaram a conta que a sociedade inteira está apenas começando a pagar. Em vez de lidar com a Previdência, o governo Temer usou o que restava de energia política para sobreviver a uma inepta denúncia de corrupção (talvez o maior gol contra da Lava Jato), sustentada em parte pela postura de grandes grupos de comunicação.

Qual é o “pai” da atual reforma da Previdência é uma discussão que serve apenas aos objetivos de curtíssimo prazo de diversas correntes políticas. Executivo como Legislativo tiveram igualmente seus méritos e defeitos ao tratar da reforma, com o Legislativo impondo uma agenda própria. A mentalidade e o cacoete corporativo continuam partes integrantes dos dois Poderes, e são condicionantes relevantes das ações de indivíduos e grupos político-partidários (cada um pensando só no seu).

Mas o fato histórico a ser registrado é o surgimento no Brasil de razoável consenso social e político sobre uma reforma que é necessária, mas, de forma alguma, suficiente. Jair Bolsonaro é o presidente quando ocorre fato que pode encaminhar uma fase capaz de tirar o Brasil da estagnação. Na esteira do mais recente período de bonança – o do superciclo das commodities e a descoberta do pré-sal – o então presidente Lula comportou-se de forma que muito contribuiu para transformá-lo num desastre do qual o País ainda não saiu. Vamos ver que uso Bolsonaro fará da sua oportunidade.


William Waack: Os números que não mentem

O Brasil tem lições a dar em questões ambientais, mas está na defensiva

Números e narrativas não necessariamente coincidem e o Brasil é vítima de uma delas, com relevante repercussão internacional, sobretudo diante do anunciado acordo de livre-comércio entre União Europeia e Mercosul.

Exemplo clássico de números absolutos que não conseguem “narrar” corretamente uma situação é o da criminalidade. No Atlas da Violência do Ipea, verifica-se que São Paulo, com 4.631 mortos, figura entre os primeiros na lista de homicídios de 2017. Com menos da metade desse número – 2.203 casos – o Rio Grande do Norte está “confortavelmente” lá no meio da lista. Mas, em termos relativos, o Rio Grande do Norte apresentou uma taxa de 62 mortos (arredondando) por 100 mil habitantes em 2017. A mesma taxa para São Paulo era de 10, brutalmente inferior à do Rio Grande do Norte.

Vamos agora a um dos pontos nevrálgicos da discussão que o governo brasileiro terá de enfrentar ao tentar convencer europeus – governos e, especialmente, consumidores de produtos agrícolas brasileiros – de que o País atende aos padrões internacionais para o emprego de agrotóxicos. A narrativa consolidada é a de que o Brasil é o campeão mundial de uso de agrotóxicos, e o número absoluto não mente. Agrotóxicos são commodities, cotadas em dólares, e o valor do consumo brasileiro é o maior do mundo (indicando, portanto, a quantidade de toneladas compradas).

Mas, considerados em relação à área cultivada, ao tamanho da produção e à média de produtividade em função do uso desses agrotóxicos (um cálculo que leva em conta o consumo em dólares de pesticidas em relação à produtividade média por hectare de agricultura), os números da FAO, a agência da ONU para alimentação e agricultura, colocam o Brasil em situação incomparavelmente mais confortável do que potências europeias como França, Alemanha, Itália e Reino Unido (para curiosidade, os grandes vilões nessa comparação são Japão e Coreia).

Em outras palavras, é o Brasil que deveria acusar e não ser acusado de abusar do uso de agrotóxicos. Mas o País está acuado no debate internacional e não foi capaz ainda de encontrar uma fórmula para provar que os números que não mentem e contam como são os fatos relevantes deveriam favorecê-lo nas negociações duríssimas, com intrincados interesses cruzados (objetivamente, ambientalistas e protecionistas, por exemplo), que estão apenas começando.

Nessa questão específica, a do uso de agrotóxicos, sucessivos governos brasileiros perderam a batalha de comunicação doméstica também.

Projeto de lei tramitando no Congresso para atualizar normas legais e permitir acesso a agrotóxicos mais modernos (menos tóxicos e venenosos, e que podem ser aplicados em dosagem menor) virou “PL do veneno”. O debate já se afastou dos argumentos científicos, suplantados pelo berreiro ideologizado.

De fato, o Brasil tem exemplos a dar para o mundo em energia renovável, biocombustíveis, aumento da produtividade na agropecuária e é uma formidável potência produtora de alimentos – sem, para isso, ter aumentada a área cultivada. Mas não é esta sua imagem externa, uma situação apenas em parte criada por grupos organizados vinculados ou não a interesses governamentais estrangeiros e comerciais. Diante das avenidas que podem se abrir com o acordo entre Mercosul e União Europeia, o governo brasileiro está diante da urgente necessidade de desenhar uma estratégia que o tire da atual postura defensiva.

Proferir frases contundentes em reuniões internacionais de cúpula, como o G-20, energiza e mobiliza o público cativo interno. Mas é pouco.


William Waack: Terra arrasada

A Lava Jato está sendo arrastada pelo caos político-institucional

A rigor, o que se publicou até agora de conversas hackeadas de expoentes da Lava Jato confirma o que já se sabia. As figuras principais da Lava Jato percebiam como hostil à operação parte das instituições, incluindo o Supremo. Entendem decisões no STF como resultado de intrincadas lealdades políticas e pessoais por parte dos ministros – ou mesmo inconfessáveis. Portanto, raramente de natureza “técnica”.

O material publicado até aqui sugere que Sérgio Moro e Deltan Dallagnol tinham clara noção de que seu entrosamento, coordenação e atuação eram passíveis de forte contestação “técnica” pela defesa dos acusados e, como se verá, pelo STF. Esse mesmo material hackeado deixa claro, porém, que a preocupação maior deles ia muito além da batalha jurídico-legal.

Consideravam-se participantes de um confronto político de proporções inéditas no qual o adversário – a classe política em geral e o PT em particular – comandava instrumentos poderosos para se proteger, entrincheirado em dispositivos legais (garantidos na Constituição) que os dirigentes da Lava Jato e boa parte da população viam como privilégios.

Não se trata aqui do famoso postulado dos fins (liquidar corrupção) que justificam os meios (ignorar a norma legal). Se Moro e Dallagnol de alguma maneira se aconselharam com Maquiavel, então foram influenciados pelo que se considera na ciência política como a originalidade do pensador florentino do século 16 (que acabou dizendo o que todo mundo sabe, mas ninguém gosta de admitir). É a noção de que ideais nunca conseguem ser alcançados. Em outras palavras: não há um confronto entre política e moralidade. Só existe política.

Arguir a suspeição de Moro e, por consequência, a “moralidade” da conduta da figura central da Lava Jato soa correto para quem pretende que o respeito à norma e à letra da lei é que garante o funcionamento da “boa” política e das instituições. A esta visão, a do “idealismo” da norma legal, se opõe a visão do realismo da ação que busca derrotar o adversário político corrupto tido como imbatível. É a visão da Lava Jato, narrativa hoje sustentada por substancial maioria da população.

Os diálogos sugerem a interpretação de que Moro e Dallagnol, apoiados pelos fatos concretos das avassaladoras corrupção e manipulação políticas, sempre estiveram convencidos de que “idealismo”, legal ou moral, eram só pretextos esgrimidos pelos adversários (inclusive STF). De qualquer maneira (e isso é Maquiavel) não haveria nesse contexto histórico como equilibrar idealismo e realismo. O que existe é a competição entre realismos – de um lado a Lava Jato e, do outro, o “sistema” político e seus tentáculos.

O resultado imediato dessa batalha é conhecido: desarticulou-se um fenomenal império de corrupção e foram expostos o cinismo, a mentira e a imoralidade de seus participantes. As enormes consequências econômicas, políticas e sociais estão apenas no início. Mas também a Lava Jato não parece ser a vitória do “bem” contra o “mal", como pretendem alguns de seus defensores pouco críticos. Ao se lançar na luta política ela foi apanhada pelo mesmo caos político-institucional que ajudou a produzir, mesmo não tendo sido esse o objetivo.

O material hackeado não sugere que os expoentes da operação tivessem intencionalmente se empenhado em destruir o edifício do estado de direito. Na verdade, os dirigentes da Lava Jato se sentiam operando em terra já arrasada. Em cima dela a sociedade brasileira terá de encontrar um novo caminho, por enquanto indefinido. Difícil é imaginar um “retorno” ao que não existia: instituições funcionando dentro do devido marco legal.