William Waack
William Waack: O preço do churrasco
De volta ao básico: a economia permanece sendo o principal risco para Bolsonaro
Há um cálculo político transparente na decisão de Jair Bolsonaro de deixar para o ano que vem reformas mais ambiciosas que a da Previdência, consideradas essenciais não só pelo time de economia dele. Nada tem de original esse raciocínio político e se parece exatamente com o que foi tentado por Michel Temer. É simplesmente uma aposta no famoso “feel good factor”, assumindo que uma melhora na renda à disposição das famílias e uma retomada ainda que modesta da economia tirem nuvens de tempestade da política.
Para quem projeta os cenários de risco para além de 2020, a economia é o principal deles – é assim que pensam, por exemplo, as consultorias internacionais. Elas consideram que os principais fatores favoráveis a Bolsonaro para manutenção de apoio político-eleitoral continuam sendo Sérgio Moro e o combate ao crime, mas a economia será o grande teste para além das eleições municipais do ano que vem.
Existe aqui uma divergência de percepções entre o público em geral e as elites de vários segmentos econômicos, e essa diferença está se ampliando. Moro e o que ele significa continuam encantando plateias pelo Brasil inteiro, que abominam qualquer freio à Lava Jato, sobretudo por parte do STF, entendido como um ninho de tramoias a favor de criminosos e corruptos. Pelo seu lado, as elites pensantes estão horrorizadas com as posturas de integrantes do governo Bolsonaro na chamada “guerra cultural” e o peso ideológico dos olavistas em nomeações feitas pelo presidente. Boa parte delas considera não só que a Lava Jato cometeu crimes para combater crimes, mas também que está na hora de colocar um pé no freio nisso tudo – até para que a economia funcione com menos sobressaltos armados por procuradores e juízes de primeira instância.
O que une ambas as percepções é a expectativa de que a melhora nos indicadores acelere e se torne sustentável, e nisto (no entendimento de elites) essencial são as reformas. É nesse ponto que entra a aposta política do governo, explicitada pelo próprio Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes. Implicitamente (não mencionam isso de forma clara) reconhecem que a falta de uma coligação governista organizada no Congresso torna qualquer reforma ambiciosa ainda mais difícil, estão assustados com o espectro de manifestações de rua (até aqui inexistente) e que esse fator seria compensado pela melhora da economia.
De fato, desde que assumiu o governo há praticamente um ano, a caneta do presidente foi encolhida pelo Legislativo, e não o contrário – o que ficou evidente, mais uma vez, na série de vetos presidenciais que os parlamentares eliminaram recentemente em diversas matérias. A agenda econômica em apreciação pelo Legislativo é monumental, e vai do saneamento básico à lei de falências, passando por autonomia do Banco Central, PEC paralela da Previdência e uma série de medidas para lidar com a sufocante questão fiscal, entre elas a regra de ouro que estabelece gatilhos para conter o avanço de despesas correntes e um novo pacto para redistribuição de recursos entre os entes da Federação.
Como é notório, o grosso das reformas ficou para o ano que vem, que será um ano legislativo curto pela dedicação dos parlamentares à eleição municipal. O cálculo deles é primitivo e óbvio: para empurrar qualquer agenda significativa, um presidente com índices razoáveis de popularidade (como os que Bolsonaro mantém), mas com pouca capacidade de articulação no Congresso, vai continuar enfrentando dificuldades além das “normais”, que são a resistência das corporações e de interesses de segmentos econômicos, além da oposição das esquerdas.
Se índices pioram por culpa da economia, dificuldades “normais” viram obstáculos insuperáveis. É por esse motivo que vamos todos para longas férias até fevereiro do ano que vem pensando no preço do churrasco.
William Waack: Dólar e os nervos do Jair
Fatores estruturais explicam a subida do dólar, mas o raciocínio político do presidente também
Investidores tentam agir de cabeça fria. Portanto, é pouco útil associar a subida do dólar ao nervosismo de operadores de mercado diante de frases inapropriadas, confusas, indignantes, desconexas e que apenas geram barulho, bem ao gosto das frenéticas redes sociais, uma marca já estabelecida por integrantes do atual governo em seu repetitivo empenho em criar dificuldades políticas para si mesmo. Na superfície, os recentes recordes nominais do dólar contra o real são um “paradoxo”. Afinal, nos atuais 121 a pontuação do risco Brasil é a mais baixa desde 2012, quando começou a subir e beirou os 500 no auge da recessão e derrubada do PT em 2016. Da saída de Dilma em diante, o risco caiu, oscilou para cima na incerteza pré-eleitoral e, desde a vitória de Bolsonaro, só desceu – enquanto o dólar, nesse período de 12 meses, só subiu.
As raposas de mercado adiantam uma explicação para esse “paradoxo”. Olhando friamente a trajetória da dívida bruta brasileira, os investidores concluem que ela encostou nos 80% do PIB e que, mesmo com a relevante reforma da Previdência, ali continuará pelos próximos dez anos pelo menos. E conferem nos números do Banco Central que o desempenho das contas públicas entre 2018 e 2019 não está brilhante como se poderia pensar, para não falar da deterioração da balança comercial e das contas externas.
Há outro fator também levado em conta, este mais subjetivo: o índice de incerteza compilado pela FGV. Alguns podem alegar que se trata de uma falsa correlação, mas comparando-se os últimos 18 anos desse indicador de incertezas ao desempenho anual do PIB, salta aos olhos que, quanto maior a incerteza, pior é o desempenho da economia. A incerteza atual “calculada” pela FGV está nos mesmos patamares de 2015 – a mais alta dos últimos 10 anos – e o PIB ainda cresce pouco.
Nesse raciocínio, é a combinação da permanente crise fiscal com o nosso péssimo ambiente de negócios (o Brasil ocupa a posição de número 124 no ranking mundial) – no qual tem enorme destaque a insegurança jurídica – que esclarece a parte mais relevante da subida do dólar, mesmo sendo o Brasil um credor externo líquido. É neste ponto que entra o fator “os nervos do Jair”, já assinalado em editorial do Financial Times, publicação fora da suspeita de ser esquerdista/comunista.
O ministro Paulo Guedes confirmou que o presidente preferiu deixar para o ano que vem as reformas que constituem o eixo estratégico das ações com as quais se pretende alterar a estrutura e até a natureza do inflado e perdulário Estado brasileiro, tido como pior entrave à economia do País. A razão declarada é o temor – sim, temor, a partir de raciocínio político – que protestos como ocorridos no Chile, Equador, Colômbia e Bolívia se repitam por aqui, ainda mais com Lula solto. A ênfase em obter o “excludente de ilicitude” (na verdade, uma licença para matar) para combater eventuais distúrbios generalizados, que se seguiriam ao ambicioso programa de reformas, traduz medo de um adversário que, para o governo, surge como muito mais poderoso do que se registra na realidade. Para usar linguagem militar, se ao analisar a correlação de forças políticas o capitão foi acometido de excesso de prudência ou se faltou-lhe audácia, o resultado é o mesmo.
O Financial Times, essa bíblia dos investidores internacionais, recomendou ao presidente brasileiro não perder os nervos para não desperdiçar o que lá fora e aqui dentro se identifica como a “janela histórica” – o “momento” político – favorável para seguir adiante com reformas de grande alcance, mas que provocarão formidável resistência de setores bem organizados, como o funcionalismo público, o Judiciário, e segmentos importantes da economia. Não é difícil entender o nervosismo do dólar.
William Waack: O STF e o senso comum
Transformado em instância política, o STF enfrenta o descrédito da própria instituição
Dias Toffoli deu prosseguimento ao que o Supremo vem fazendo há anos – tratar de identificar o que é a repercussão política e popular daquilo que decide – quando praticamente instou o Congresso a alterar normas para permitir a execução de sentença condenatória antes do famoso “trânsito em julgado”. É o que o Congresso está fazendo, motivado sobretudo pelo próprio voto de Toffoli, segundo o qual não se trata de alterar (na pretendida modificação do Código Penal) uma cláusula pétrea da Constituição.
A questão jurídica é fascinante pois, como assinalou aqui Ives Gandra Martins na edição desta quarta-feira as duas teses que se opõem na discussão são consistentes. A saber: a) como alguém que, até o trânsito em julgado, é inocente, pode ser levado a cumprir pena? b) tribunais superiores não tratam mais das questões fáticas decididas nas duas instâncias iniciais de um processo, portanto recursos à terceira e quarta instâncias não se destinam mais a provar inocência.
O que está em jogo, no fundo, é uma questão sobretudo política, de central relevância para qualquer sociedade que pretende viver num Estado de direito, pois envolve o trato de princípios fundamentais como o da presunção da inocência. No campo da disputa política a discussão (como tudo que acontece hoje) descambou segundo a caracterização de uns como “fanáticos punitivistas” (os que defendem a execução de pena após a segunda instância) e de outros, seus oponentes, como “garantistas que favorecem corruptos e criminosos”.
No campo dos grandes fatos da política não se pode ignorar que a sociedade brasileira demonstrou um enorme apoio à Lava Jato, sobretudo pelo consenso de que nossos códigos processuais (indecifráveis para leigos), nosso sistema recursal (incompreensível para leigos) e a própria Justiça (com sua obscena morosidade) em vez de punir corruptos tornam a vida deles mais fácil e tranquila.
Diante desse reconhecimento, sustentado por fatos, se os expoentes da Lava Jato extrapolaram ou não suas funções e ignoraram ou não normas legais é irrelevante – do ponto de vista da compreensão dos fatos por vastas camadas da sociedade – diante dos resultados apresentados: a descoberta da inédita roubalheira e a punição de seus principais responsáveis. Para uma imensa quantidade de pessoas o que está em jogo não são princípios jurídicos, mas uma correção de rumos inaceitáveis.
É uma espécie de “senso comum de justiça” (costuma ser em si muito perigoso, dada a possibilidade de manipulação por populistas) amplamente disseminado que empurra Congresso e, como Toffoli permitiu, o próprio Judiciário a dar um jeito de fazer o que uma parte relevante dos participantes na discussão sustenta que a Constituição diz que não se deveria fazer (a execução da pena após segunda instância).
Simplificando bastante, a reiteração categórica desse princípio na Constituição obedecia lá atrás a um forte “desejo” da sociedade, na saída do regime militar, de estabelecer garantias contra arbítrios do Estado. Mas, agora, passados 30 anos e o País tão desigual, pobre e injusto como antes, e a política tão depreciada como sempre, prevalece no público a noção de que as garantias contra arbítrios passaram a beneficiar o que a sociedade entende (até erroneamente) como sendo o principal problema a se resolver, a saber, o da ação dos corruptos.
É real e justificável o lamento dos que assinalam que no embate das forças políticas para tirar do poder os responsáveis mais recentes pela corrupção institucionalizada foram pisoteados princípios fundamentais para o funcionamento de sociedades abertas, principalmente o respeito ao que está escrito na Lei.
Mas é o que acontece quando uma sociedade perde confiança no funcionamento de suas instituições, a começar pelo Judiciário, no topo dele o STF.
William Waack: No canto da foto
Potências dos Brics estão no pesado jogo mundial de poder, e o Brasil?
Quando apareceu a sigla Brics, em 2006, pensava-se na redistribuição do poder global para além das potências como Estados Unidos e o bloco europeu. Avaliava-se o novo peso e importância dos “mercados emergentes” ali representados, mas dentro da ordem vigente. De fato, a redistribuição de poder ocorreu e está avançando, mas não pelo que os Brics fizeram como “bloco” de atuação, e não da forma benigna como se imaginava.
É interessante notar que a ênfase recente nos encontros dos líderes do Brics tem sido na cooperação tecnológica e comercial entre eles mesmos, e menos nas fascinantes questões geopolíticas. Nem poderia ser diferente: no retrato dos cinco reunidos em Brasília estão três países (China, Índia e Rússia) centrais na luta atual pela redistribuição de poder global, cada vez mais conflituosa, e dois (África do Sul e Brasil) que jogam na periferia.
Cada um por si, China e Rússia são as grandes forças revisionistas que contribuíram decisivamente para liquidar a “paz profunda” internacional do período de 25 anos que começou em 1989 com a queda do Muro de Berlin e terminou em 2014 com a anexação da Crimeia por Moscou. As posturas agressivas dos “revisionistas”, com forte conteúdo nacionalista, sugerem uma continuidade entre o mundo da Guerra Fria (de 1946 a 1989) e o mundo que ressurge depois desses 25 anos de “paz profunda”, período já batizado de “pós-Guerra Fria”.
Assim como no mundo da Guerra Fria, no atual predomina a acirrada competição entre as principais potências por aumentar sua segurança. No período que se inicia em 2014 as potências voltam a conduzir as relações entre si sob a perspectiva de eventual conflito armado. Ou seja, após um período de pouca competição por segurança as relações internacionais se parecem de novo com o que sempre aconteceu.
Os “revisionistas” enxergam os Estados Unidos como bem menos formidável, sobretudo depois da grave crise financeira de 2008. Na Europa e na Ásia (e, recentemente, no Oriente Médio), Rússia e China foram testando os limites e a solidez das alianças até aqui conduzidas pelos americanos, cada vez mais desafiados abertamente (de certa maneira, Trump os ajudou). Não que a relação entre China e Rússia seja tranquila – ou entre Índia e China –, mas eles convergem na contestação de dois pilares da ordem americana dos últimos 70 anos: um conjunto de regras internacionais e a defesa da democracia como valor universal.
É nesse mundo multipolar muito mais perigoso, instável e imprevisível que África do Sul e Brasil têm de encontrar como fincar o pé. A África do Sul enfrenta competição da China por influência na sua própria área de atuação mais próxima. Além dessa, divide com o Brasil outra característica: o grau da crise doméstica, que parece fazer com que esses dois gigantes do Hemisfério Sul olhem apenas para dentro de si mesmos.
No caso do Brasil, a perda de importância e liderança regional registrada sobretudo a partir do segundo mandato de Dilma – agravando a estapafúrdia ideia do confronto “Norte-Sul” – ficou clara em todos os episódios recentes de turbulência e confusão entre os vizinhos, sobre os quais a antiga influência brasileira praticamente deixou de existir. Putin parece ter mais peso sobre o que acontece na Venezuela do que o Brasil.
Na foto do jogo do qual participam os integrantes do Brics o Brasil aparece no cantinho. Não é palco, parte ou tem atuação decisiva em qualquer dos principais conflitos que estão redistribuindo o poder global. Frases de efeito em redes sociais ou “alinhamento automático” que o próprio governo sugere em relação a Washington não são pilares de política externa. O Brasil não só corre atrás da liderança perdida: diante da velocidade das mudanças lá fora, parece ainda perdido na busca de seu papel.
William Waack: Bolsonaro e os demônios
Os fatos que atrapalham o presidente não são excepcionais, não fossem demônios
Jair Bolsonaro sente-se e age como homem cercado. Em parte, os motivos para essa autopercepção são práticos e “palpáveis”. Em parte, sente-se acuado por demônios de criação própria – em geral, a combinação dos dois leva os personagens da política a cometer erros. É real o cerco que sofre no Judiciário. O filho Flávio é investigado pelo conhecido esquema das “rachadinhas”, uma série de inquéritos faz menções a ligações do clã Bolsonaro com milícias no Rio, o TSE está tratando da acusação do envio de mensagens durante a campanha eleitoral de 2018. Porém, tratam-se de dores de cabeça que, tomadas isoladamente, até aqui não são arrasadoras.
Como é perfeitamente normal em sistemas políticos abertos, atribulações com o Judiciário são fartamente utilizadas por adversários. Que agem segundo o habitual método (nem foi a Lava Jato que inventou isso) dos vazamentos de inquéritos ou, nos últimos dias, de divulgação de áudios de figuras como Fabrício Queiroz, essa espécie de assessor “faz-tudo” que é muito útil no dia a dia dos políticos e muito perigoso pelo o que podem dizer.
Note-se que adversários, nesses casos mais recentes, não são apenas a oposição composta por correntes políticas antagônicas, empenhadas como em qualquer outro lugar em atrapalhar o governo.
Os ex-companheiros de luta do próprio presidente são hoje seus mais ferozes críticos, e os mais raivosos ao prometer vinganças. É o resultado comum de ondas disruptivas como a das eleições de 2018: depois da vitória, os diversos componentes dela vão disputar o poder entre si, e Bolsonaro sempre favoreceu seu clã em detrimento do resto. Fatos concretos levaram o “mito” a criar fortes laços de dependência em relação a duas instâncias políticas que ele, como candidato, jurou que desprezaria ou transformaria radicalmente.
A primeira é o âmbito do STF, através sobretudo da figura de seu presidente, ministro Dias Toffoli, visivelmente empenhado em aliviar dores de cabeça políticas e pessoais de Bolsonaro. Mas, se quiser, pode aumentá-las substancialmente. A segunda é a esfera da “política tradicional”, à qual Bolsonaro se dedica agora de forma tácita, porém não declarada, pois admitiu com perigosa lentidão que não governa sem ela.
O desarranjo de suas próprias forças, ilustrado no episódio das brigas do PSL, tem como óbvia consequência a necessidade incontornável de se apoiar e depender de outros grupos, a exemplo do que já acontecia com a liderança do governo no Senado. Com um pouco de distanciamento, percebe-se que esse contexto acima nada tem de excepcional, muito menos as brigas de Bolsonaro com setores da imprensa (pode-se dizer que há décadas a história política do Brasil está recheada desse tipo de conflito entre governantes e grupos de mídia).
Ocorre que os verdadeiros donos de sabedoria política tratam de exercitar a serenidade e o cálculo frio, essenciais para se navegar em águas turbulentas – mas o que Bolsonaro está exibindo é a caricatura de um personagem consumido no caldeirão fervente de seus próprios demônios, às vezes chamados de “hienas”. Ele prefere enxergar sobretudo conspirações e inimigos ocultos (seu ídolo, Donald Trump, fala sempre de um “deep state”) mancomunados para derrotá-lo em sua missão divina e tornada possível por um milagre (sobreviver à facada), num tipo de visão de mundo que inclui mesmo o resto do mundo (conspirações ou forças do mal arquitetando-se no Chile, Argentina, óleo nas praias, Amazônia, etc.).
Lutando contra seus demônios, vai sendo engolido pelo “buraco” (a expressão é do próprio Bolsonaro) no qual está um País estagnado, recuperando-se muito lentamente da mais brutal recessão da sua história, habitado por milhões cujas expectativas não atendidas crescem tanto quanto sua impaciência – isto sim, é diabólico.
William Waack: O ciclo da frustração
As crises nos vizinhos sul-americanos têm poderoso e perigoso denominador comum
Não é difícil encontrar um denominador comum para as sucessivas e paralelas crises que tomaram conta (por ordem alfabética) de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela, para ficar apenas com a América do Sul. O “ciclo” atual desses países é o da “era do descontentamento”. Ou da era da frustração, como preferir.
Em seu conjunto, os países desta região só se comparam aos do Oriente Médio quanto ao número de seus habitantes que declaram ter vontade de seguir a vida em outro lugar (no Brasil, alcança a faixa dos 30%; fonte é o Gallup). São os países nos quais existe a mais aguda percepção no planeta de que seus regimes políticos são tomados pela corrupção. E os de mais baixo desempenho econômico na comparação com todas as outras regiões.
Tomados individualmente, cada um desses países teria razões próprias, locais, culturais e históricas para os períodos de crise econômica, turbulência e instabilidade políticas. Mas há algo comum a todos: um sentimento difuso de frustração trazido pela demora em romper a perceptível estagnação que caracteriza um conjunto de nações preso à armadilha da renda média, e cuja distância em relação aos países mais avançados continua praticamente a mesma de uma geração atrás.
A punição a quem está no poder é quase imediata, não importa se de esquerda ou direita. Na Argentina, no Chile ou no Brasil, recentes resultados eleitorais dividem um mesmo pano de fundo: um acentuado desejo de mudança trazido menos pela esperança num futuro melhor e muito mais pela indignação com a corrupção, medo com a criminalidade e profunda desconfiança na capacidade do “sistema” de resolver problemas agudos – “sistema” passa a ser tudo, da administração pública à imprensa, passando (claro) pelo Judiciário. Ganha quem prometer derrotar o “sistema”.
Acabam sendo literalmente catapultados para o centro de decisões figuras de políticos de personalidades e biografias bastante diversas (como são Bolsonaro, Macri e Piñera, para ficar apenas nos casos de Brasil, Argentina e Chile), mas todos herdeiros de contextos políticos caracterizados, de um lado, por ausência de claras maiorias parlamentares. E pela presença, por outro lado, de bem constituídos grupos de interesses e corporações dentro da máquina do Estado (Brasil e Argentina), por delicadas situações fiscais que obrigam os governos a reduzir ou acabar com subsídios em setores como combustíveis ou transporte (Chile), no que acaba sendo entendido como afronta a uma população já atravessando graves dificuldades.
Todos apresentam um quadro muito semelhante de desequilíbrio, concentração e desigualdade de renda. É consideravelmente distinto o apego de faixas da população a postulados ideológicos quando se compara o Chile (onde há um espectro clássico de “social-democracia” versus “democracia cristã”), Argentina (e seu peronismo, que dificilmente encontra comparações) e o Brasil (no qual impera uma maçaroca ideológica). Em geral, porém, parcelas significativas da população, embora não detenham conhecimento exato das respectivas taxas de crescimento de suas economias, têm uma noção clara do fato do prometido futuro tardar tanto a chegar.
A questão, portanto, não é a do “contágio” ao qual vozes do governo brasileiro se referiram quando, finalmente, perceberam a gravidade do que acontece em vizinhos como Argentina e Chile. Muito menos se trata de alguma “conspiração” (o “esquerdista” Evo Morales está sendo contestado assim como os “direitistas” no Chile e Argentina). A questão é levar adiante reformas amplas e profundas que rompam um ciclo de estagnação.
Que, ao se transformar em ciclo de frustração, cobra altíssimo preço político.
William Waack: Inspiração da Espanha
Ao contrário do que acontece no Brasil, partidos e Judiciário enfrentaram a grave crise
Poderosas, as memórias de olfato nas noites desta semana na esplêndida capital da Catalunha jogam a gente de volta para junho de 2013 em São Paulo. É o cheiro de lixo queimando nas ruas, plástico se derretendo no calor das chamas, sirenes das tropas de choque correndo de um canto para o outro das ruas atrás de bandos de mascarados que improvisam barricadas, provocam a polícia, mandam selfies e stories nas redes sociais enquanto “lutam”, dispersam, correm e se juntam no próximo quarteirão.
Um bocado de gente está ali nas ruas do centro só para olhar. Há alguma simpatia com a causa geral, ainda que o público se mantenha a prudente distância do fogaréu e dos jovens encapuzados brigando com a polícia. No caso de Barcelona, as manifestações foram convocadas para protestar contra as penas de prisão impostas segunda-feira última pela Justiça espanhola a nove líderes e articuladores da tentativa de separar a Catalunha do resto do país, há uns dois anos. A independência da região, afirmam os juízes na condenação, nunca passou de uma “quimera”, criada e explorada por políticos.
Talvez seja uma boa descrição do que aconteceu, mas o ponto relevante é o fato de que o “independismo”, como é chamado aqui o separatismo catalão, já tinha sido derrotado politicamente antes da sentença condenatória. O principal fator que circunscreveu a aventura política articulada na Catalunha foi o funcionamento do sistema político partidário espanhol, a grande participação popular em várias eleições subsequentes apesar da crise fiscal e de representatividade que esfacelou forças políticas tradicionais e seus grandes nomes.
A Justiça espanhola precisou de menos de dois anos para o “processo”, como ficou conhecido no país a perseguição, julgamento e condenação dos acusados de violar a constituição ao promover o separatismo da Catalunha. E foi tudo, a julgar pela grande maioria dos comentaristas espanhóis, dentro da lei, do devido processo legal e com a participação direta dos líderes dos principais partidos. De fato, é só mesmo o cheiro do lixo queimando nas ruas, ateado por jovens encapuzados, que lembra São Paulo de 2013.
No Brasil, o esfacelamento do PSL numa disputa entre o presidente e os “donos” da agremiação é antes de mais nada um retrato perfeito da deterioração do sistema partidário brasileiro, seu fracionamento em siglas de aluguel, sua incapacidade de representar diretamente interesses legítimos de grupos definidos (profissionais, regionais, econômicos, culturais, etc.), sua dedicação em converter pedaços da máquina pública em ferramenta para uso próprio. Difícil esperar impulsos políticos de horizonte amplo de agremiações partidárias desse tipo, populares ou não. É um aspecto no qual o Brasil está muito atrás de uma Espanha.
Considere-se também o julgamento “definitivo” que o STF faz da confusão que ele mesmo criou sobre a prisão de condenados em segunda instância. É a expressão acabada do fato da mais alta corte do País ter se transformado numa das grandes fontes da insegurança jurídica. A percepção que se generalizou de um lado (o da Lava Jato) e de outro (quem cobra da Lava Jato respeito aos preceitos legais) é a de que as decisões do Supremo são sempre políticas, ao sabor do momento – como aconteceu em 2016, quando respondia ao ímpeto da Lava Jato, e agora, quando responde ao ímpeto de frear a Lava Jato.
A Espanha andou relativamente rápido no tratamento de um problema político difícil mesmo enfrentando severa crise fiscal e de desemprego. Foi pelo funcionamento de partidos, sistemas políticos e judiciário respeitado. Os mais veteranos vão se lembrar que a experiência espanhola de saída de um regime ditatorial para uma democracia já havia sido uma inspiração para um general presidente do Brasil em 1977 – Ernesto Geisel e sua abertura lenta, gradual e segura. Quem sabe a Espanha acaba sendo uma inspiração mais uma vez.
William Waack: A grande ofensiva
O governo Bolsonaro diz querer atacar seu mais perigoso adversário
Pelo menos na economia o governo de Jair Bolsonaro parece ter achado um centro de gravidade, a julgar por parte do recente noticiário. Os generais que acompanham o capitão conhecem bem o conceito, que estudaram nas escolas de Estado-Maior: é a escolha de um eixo central de ação (vem do alemão “Schwerpunkt”). Trata-se da proposta, divulgada com bem menos alarde do que brigas sobre costumes, de uma ambiciosa reforma administrativa.
Ela mira num dos mais poderosos aparatos burocráticos do mundo, o universo de servidores públicos do Brasil que, de acordo com o Ministério da Economia, saltou de cerca de 500 mil em 2003 para cerca de 712 mil em 2018. Na média, é uma força de trabalho que desfrutou de aumentos de salários (já bem melhores dos que são pagos para funções similares na iniciativa privada) muito superiores à inflação. Segundo o Banco Mundial, acionado pelo próprio Ministério da Economia, o número de funcionários públicos no Brasil não é extraordinariamente elevado na comparação internacional, mas o gasto do País com o funcionalismo como proporção do PIB é muito maior do que o registrado em países ricos.
Programas de concessões e privatizações, desburocratização e desregulamentação empalidecem diante da ambição dessa ação – a reforma administrativa – que pretende reduzir salários, reenquadrar funções, baixar números de servidores e atacar privilégios. Ela seria coordenada com duas outras: a tributária (acoplada a um novo pacto federativo para distribuição de recursos entre Estados e municípios) e a demolição da rigidez dos orçamentos. A reforma da Previdência, ainda em curso, não era uma proposta ambiciosa: era uma medida fundamental sem a qual nem se poderia examinar qualquer outra coisa.
Ainda na linguagem militar, esse conjunto de ações formaria a maior ofensiva contra o tamanho do Estado jamais tentada desde a redemocratização. Enfrentaria a mais poderosa resistência política que se conhece no Brasil – a dos (na antiga linguagem sociológica) estamentos burocráticos que ocupam o alto das carreiras públicas, dispõem do controle sobre os assuntos do próprio interesse e são capazes de paralisar qualquer ação que considerem prejudicial a eles mesmos, sem grande apreço pela noção de conjunto da Nação (basta lembrar como o Judiciário se trata).
O mesmo Banco Mundial, que fornece a artilharia de flanco para o Ministério da Economia, reitera a “janela histórica” oferecida pela biologia: nos próximos dez anos, calcula-se que 26% dos servidores se aposentam até as próximas eleições presidenciais. Quarenta por cento vão para a inatividade nos próximos dez anos. É a oportunidade, argumenta-se na equipe de Paulo Guedes, de lidar para valer com um sistema inchado, ineficiente, que preserva graves distorções dentro dele mesmo (em termos salariais e de carreira) e, em termos relativos, custa muito em relação ao que devolve à sociedade que o sustenta. E que bloqueia qualquer governo.
É incalculável a quantidade de energia política, além de liderança e articulação dentro e fora do Legislativo, necessária para levar adiante uma ofensiva tão ambiciosa. Mas o que mais chamou a atenção no noticiário dos últimos dias foram as brigas do presidente com a cúpula do partido que deveria ser dele, mas, aparentemente, não é. O indiciamento de um ministro pelo cultivo de laranjais em campanhas eleitorais. Disputas sobre as credenciais de um líder de governo no Senado apertado pela Lava Jato. Para não falar na evidente desorientação do governo quanto ao que ele mesmo quer na discutida reforma tributária, ou no pacote anticrime.
Diante do desafio a ser enfrentado, organizar-se com sentido de urgência, foco e direção pode parecer óbvio para qualquer um. Menos para o pessoal da lacração para o qual o presidente dá tantos ouvidos.
William Waack: Virou a maré
Como fenômeno político e social a Lava Jato perdura, mas dentro de novos limites
A Lava Jato foi colocada na casinha, com coleira e tudo. Perdura como fenômeno político e social, mas o ímpeto, o alcance e a abrangência foram severamente limitados. Não se trata de aplaudir ou detestar esse fato. Apenas, reconhecê-lo.
Os limites são sobretudo políticos, assim como a atuação da Lava Jato foi, desde sempre, uma atuação política. O embate jurídico e doutrinário sobre a conduta de juízes e procuradores – se cometeram crimes ao combater crimes – é um importante capítulo em si. Ocorre que a complexidade e o lado “técnico” desse relevante debate às vezes ofuscam o principal.
O fundamento político da atuação da Lava Jato nasce de uma ideia: a de que a sociedade brasileira é hipossuficiente, isto é, não consegue se defender sozinha dos abusos cometidos contra ela por corruptos, malfeitores ou mesmo agentes do Estado. Ela precisa da proteção exercida por gente “de fora”, pois o sistema político é intrinsecamente corrupto, seus integrantes têm escassa representatividade e só pensam em seus interesses próprios, ainda que lícitos.
Essa narrativa descrevendo a sociedade brasileira já circulava há décadas, mas foi sobretudo a ascensão do PT ao poder que deu a ela um caráter evidente e objetivo nos fatos da realidade. Outros partidos corruptos já haviam ocupado posições de mando e controle, mas foi a pretensão hegemônica do lulopetismo que reforçou nos expoentes da Lava Jato a convicção de que estavam diante não só de crimes pontuais, mas, sim, da perpetuação da podridão.
E o que é pior, na visão desses agentes de Estado: as forças no poder, especialmente as políticas, tinham instrumentos inesgotáveis para se defender e manter seus privilégios, especialmente os instrumentos jurídicos e parte de uma importante instituição, o STF. Junto de uma inédita crise econômica e social, a Lava Jato cresceu como expressão de revolta e indignação dirigidas ao centro das instituições da esfera política que formam o sistema de decisões e o próprio governo.
Combinados, os vários elementos (conversas hackeadas, entrevistas, participação em redes sociais, livros de memórias) de que se dispõe sobre como os expoentes da Lava Jato avaliavam a própria atuação deixam claro que eles se julgavam participantes de uma luta política no seu sentido mais amplo. E que se não destruíssem as figuras de proa do adversário – Lula, por exemplo – apenas deixariam aberta a possibilidade de que os oponentes se reaglutinariam.
Isto acabou acontecendo, mas não pelas razões que os procuradores da Lava Jato temiam. O limite político imposto à atuação deles veio em primeiro lugar do fato do principal objetivo ter sido alcançado: o PT foi apeado do poder. Em segundo, pelo fato de forças políticas que não são corrompidas nem estão precisando escapar de investigações terem se convencido de que não são os “de fora” que vão tomar conta das decisões das esferas políticas. Essas forças estão em partidos (portanto, no Legislativo), nas Forças Armadas, no STF, no mundo das elites empresariais, no Palácio do Planalto, em correntes nas redes sociais, na academia (especialmente ligada ao Direito), até mesmo na figura do novo PGR.
Significa que Lula e seus comandados vão se beneficiar desses limites políticos à Lava Jato? Dificilmente. Como nenhuma outra ação, a Lava Jato escancarou o roubo e seu impressionante alcance, revelou as entranhas do patrimonialismo, do capitalismo de Estado à la brasileira, expôs o cinismo de seus dirigentes nos setores público e privado e, como declarou o novo PGR, Augusto Aras, as formalidades processuais que foram respeitadas ou não em julgamentos “não podem substituir a verdade dos fatos”.
É possível que o “ímpeto” punitivo da Lava Jato se “institucionalize” – um freio à atuação “política”, para desgosto de autointitulados revolucionários em várias colorações. Mas é inegável que a maré é outra.
William Waack: Ministros normais
Conduta errática do Executivo ajudou a reduzir o tamanho dos superministros
Jair Bolsonaro foi eleito para enfrentar dois superproblemas do Brasil: dívida e crime. Para fazer a economia crescer (o melhor jeito de enfrentar a dívida trazida pela tragédia fiscal) e para inverter as trágicas taxas de criminalidade (com lei, ordem e combate à corrupção), o capitão escolheu dois superministros, Paulo Guedes na Economia e Sérgio Moro na Justiça.
Atualmente, os desafios continuam na categoria “super”, mas os dois ministros, nem tanto. De fato, eles lidam com problemas de enorme e profundo alcance, que não se resolvem da noite para o dia nem há uma só medida isolada capaz de dar conta do recado. Além disso, os ex-super enfrentam um sistema de governo que funciona muito mal, e que a crise fiscal (acabou a grana) contribuiu para tornar ainda mais paralítico.
Mas seria injusto com os fatos da realidade atribuir a perda de status dos superministros ao Legislativo (e à tal “classe política”). Uma parte importante dos problemas políticos que os dois – agora normais – ministros enfrentam está no fato de o chefe do Executivo utilizar de forma precária e errática uma de suas maiores ferramentas de poder: a de determinar a agenda da própria política.
Dois exemplos recentes ilustram esse fato. Na seara de Guedes trata-se da reforma tributária, uma espécie de grito que se ouve ecoar em todos os níveis da Federação, em todos os segmentos da atividade econômica. A Câmara dos Deputados examina há pelo menos quatro anos uma proposta de simplificação. O Senado também. Surgiu mais um projeto de reforma, que seria do Executivo. Mas qual é ele, exatamente?
A volta de um imposto sobre transações financeiras? Um projeto acoplado à negociação política para abrandar a terrível crise fiscal de mais de uma dezena de Estados da Federação? Quem vai convencer o setor de serviços a pagar mais impostos? Como acertar com governadores, prefeitos e representantes de vários segmentos da economia compensações por diminuição de arrecadação ou fim de subsídios, desonerações e incentivos? E o que quer o presidente da República, afinal?
O segundo exemplo é o pacote anticrime de Sérgio Moro. A discussão política sobre o pacote acabou presa à reação de boa parte do Legislativo, ao próprio Moro, ao movimento apelidado de lavajatismo e à ação da PF contra o líder do governo no Senado, reação que se expressou na aprovação de uma lei contra o abuso de autoridade e posterior derrubada, pelo Senado, de vetos presidenciais à lei – vetos, em parte, negociados com o próprio ministro da Justiça. Fora o clima de comoção nacional em consequência da morte da menina Ágatha no Rio, um contexto no qual acabou prevalecendo no Legislativo (e em boa parte do público) a percepção de que a aprovação do pacote anticrime levaria a mais tragédias daquele tipo.
Também em relação a este segundo exemplo a conduta do Executivo levanta indagações. Afinal, Moro e os agentes anticorrupção têm carta-branca ou a conduta de Bolsonaro sugere, ao contrário, a imposição de limites aos órgãos investigadores, em parceria informal com o que parece ser uma nova maioria hoje “garantista” e “antilavajatista” no STF, algo que traria ao presidente conforto pessoal ainda que nem tanto conforto político?
Quando se trata de examinar como o Legislativo se conduziu frente aos dois grandes superproblemas – crime e dívida –, impõe-se sozinha a constatação de que uma base sólida e bem coordenada do governo teria facilitado a tarefa dos ex-superministros, dos quais se sabia de antemão que lhes faltava a experiência da costura e da articulação nos termos em que se dá a política em Brasília. Essa falta de experiência política estava em todos os cálculos. O que não se calculava é que o Executivo fosse ser supererrático.
William Waack: Apostas que deram errado
Política externa baseada em laços pessoais causa mais problemas do que resolve
No momento em que esta coluna vai para publicação está ainda indefinido o resultado das eleições gerais em Israel. Não se sabe se Binyamin “Bibi” Netanyahu irá para o quinto mandato como chefe de governo em Jerusalém (um impressionante recorde) ou, ao contrário, se ele acabará até mesmo na cadeia, acusado de corrupção. Ou se dividirá de alguma forma o poder com amigos transformados em adversários, ou inimigos transformados em amigos.
Para o governo Jair Bolsonaro, a eleição israelense oferece uma eloquente lição, que até agora ele e seus assessores têm se recusado a admitir. Não é o fato de que apostas políticas podem dar assustadoramente (para quem aposta) errado – Netanyahu apostou que convocar uma nova eleição depois da apertada vitória nas últimas, em abril, o consolidaria no poder, o que não parece estar acontecendo.
Apostas que causam mais problemas do que resolvem são aquelas feitas em política externa nas pessoas, na relação pessoal entre governantes, uma evidente marca da maneira como o atual governo enxerga boa parte dos laços com o mundo lá fora. Os atuais entre Brasil e Israel foram descritos como resultado da “amizade pessoal” entre Bibi e Jair. Também o que seria a “reorientação” do Brasil em relação ao complexo quadro do Oriente Médio surge nessa descrição como consequência desse entendimento pessoal.
Ao que tudo indica, do ponto de vista político, o Bibi depois das eleições não será o mesmo Bibi de antes. Efeito semelhante foi registrado há menos de dois meses na Itália. Condutor (no sentido mesmo de “condottieri”) de uma vigorosa campanha política da direita italiana, Matteo Salvini fez uma arriscada manobra política e perdeu. Foi apeado do poder, o país foi para uma improvável coligação de grupos antiestabelecimento com a esquerda e Bolsonaro ficou sem um de seus mais eloquentes amigos dentro da Europa – uma aposta pessoal com a qual se pensava numa rearticulação de movimentos semelhantes que incluiria o Brasil.
Nesse sentido, ao que tudo indica o pior vai acontecer no país cujas relações são historicamente as de maior importância para o Brasil: a Argentina. Bolsonaro apostou que seu empenho pessoal em dar respaldo político ao atual presidente, Maurício Macri, consolidaria não só o entendimento com um vizinho tão relevante, mas, muito além disso, ajudaria a coordenar uma “onda” política em torno de um eixo liberal-conservador (para utilizar uma nomenclatura do debate político brasileiro) numa região notória pelo apego a populistas, sobretudo de esquerda.
Está dando muito ruim para quem apostou. Pessoalmente odiados por Bolsonaro (a recíproca é verdadeira), peronistas responsáveis em ampla medida pelo mais recente fracasso econômico de um país extraordinariamente rico em recursos naturais voltarão ao poder em cerca de um mês. Por ter pessoalmente se empenhado, não há como negar que Bolsonaro terá sido pessoalmente derrotado.
Ainda assim é possível prever que as relações entre vizinhos tão dependentes entre si, como é o caso de Brasil e Argentina, não vão se deteriorar a ponto de uma hipotética ruptura ou paralisia. A abrangência dos assuntos e os interesses envolvidos vão muito além de amizades ou inimizades pessoais entre mandatários políticos. O mesmo vale em grande medida para Brasil e Estados Unidos, país no qual Bolsonaro aposta fervorosamente na reeleição do amigo Donald Trump em 2020.
Significa, então, que o “lado pessoal” nas relações entre países não tem importância? É óbvio que ajuda – ou atrapalha. Depende de entender que países não têm amigos, têm interesses. Saber quais são e promovê-los sem submetê-los às tais relações pessoais é o que, de fato, permite ganhar sempre, não importa qual a aposta.