William Waack
William Waack: A falta que faz liderança
Generais e ministros do Supremo estão às turras, sem solução à vista
Vamos pegar o bastão deixado pelo general Hamilton Mourão, que se converteu na voz política pública entre os militares. Ele encerra seu mais recente artigo, aqui no Estadão, dizendo agora ser mais importante do que nunca a “necessidade de uma convergência” em torno de uma agenda mínima de reformas. Mas, para isso, é preciso refletir sobre o que está acontecendo no Brasil.
Neste exato momento, fora a tripla crise de saúde, economia e política, o que está acontecendo é um seriíssimo embate entre a farda e a toga. O pessoal da farda (incluindo os que acabaram de trocá-la pelo paletó e gravata ou pelo pijama) está convencido de que, se houve “extremismos”, “exageros retóricos” e “falas impensadas” contra instituições, isso empalidece diante do que o pessoal da toga no STF impôs para cercear os poderes do presidente da República – uma usurpação acompanhada igualmente por falas irresponsáveis e desonestidade intelectual.
No mínimo desde o julgamento do mensalão o pessoal da toga andava dividido, mas se uniu ao entender que o pessoal da farda dá suporte a um presidente que pensa dispor de poderes imperiais, desrespeita limites entre Poderes estabelecidos na Constituição, age por interesses políticos próprios e pessoais para solapar instituições e só não jogou o País ainda numa irrecuperável crise institucional pois eles, os da toga, baseados em princípios e doutrinas, foram capazes de esclarecer e impor limites (como no caso de medidas de combate à covid-19).
Não há saída à vista para esse embate pois ele é a expressão de duas fortes forças políticas que ocuparam duas instituições. Não é só entre o pessoal da farda no palácio que reina a sincera convicção de que o pessoal da toga expressa um “establishment” (sim, é essa palavra meio fora de moda que se usa para falar do STF) que se articulou para defender privilégios que vão de ganhos da magistratura a benefícios fiscais e proteções a setores empresariais, passando pelo funcionalismo público. A luta do “establishment”, portanto, é para impedir a reforma do Estado representada por Bolsonaro e sua eleição.
No outro lado, figuras do STF sempre atentas aos ventos das redes sociais e opiniões publicadas encaram Bolsonaro e o que ele significa como um perigo real para as instituições democráticas e o estado de direito. Consideram suas ações políticas e o endosso explícito que concede a movimentos contra o Congresso e o Judiciário como ações políticas que não são apenas arroubos retóricos. São, nesse entendimento, parte do aberto intuito de destruir as normas mínimas do confronto político, da civilidade e do próprio jogo democrático.
Os bombeiros de sempre, de um lado e de outro, conseguem debelar incêndios pontuais. Mas não têm a capacidade de resolver a situação de fundo que resulta agora num precário equilíbrio. A saber: a “via jurídica” para destronar Bolsonaro, uma possibilidade com a qual uma parte do STF flerta, passa por uma PGR que não vê condições técnicas de denunciar o presidente. A rota para derrubar o presidente via TSE depende desse órgão alterar jurisprudência – fora o tempo que isso leva.
Bolsonaro e sua turma de aloprados não dominam as ruas, não dispõem de apoio nas Forças Armadas para levar adiante uma “revolução” que só existe na cabeça de malucos nos quais o entorno do presidente presta muita atenção. Talvez entendam que vociferar contra o STF nada vai produzir de prático, a não ser dar tempo para alternativas políticas “de centro” (que podem incluir facilmente o Centrão) se articularem e solidificarem.
Em outras palavras, ninguém tem forças para vencer ninguém. As crises econômicas e de saúde demonstraram fartamente a “necessidade da convergência” à qual o general Mourão se refere, mas também como diminui o espaço político para essa convergência. O maior efeito da demonstração da crise está, porém, em outro aspecto.
Para a tal “necessária convergência” precisa-se de liderança. Quem?
William Waack: Para onde levam os inquéritos
Onde hoje mora o perigo para Bolsonaro não é no Congresso, é no STF
Onde hoje mora o perigo para Bolsonaro não é no Congresso, é no STF. E não é no inquérito que resultou das acusações do ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro ao sair do governo. É no inquérito das fake news, também no Supremo, que começou há mais de um ano atirando nos “procuradores de Curitiba” como principais suspeitos de articulações contra o STF e acabou acertando no esquema bolsonarista de pressão e propaganda que, suspeita-se, é articulado em parte desde o Palácio do Planalto.
Não cabe aqui discutir todos os aspectos jurídicos relacionados ao inquérito, que começou impondo censura a órgãos de imprensa (logo derrubada), corre em sigilo e transforma o STF em investigador e juiz ao mesmo tempo. Integrantes da corte acham que o tal inquérito virou uma metralhadora giratória nas mãos do ministro Alexandre de Moraes – o mesmo se ouve na PGR, que foi contra, depois a favor, e agora contra de novo, mas são coisas que ninguém admite em público.
Em outras palavras, o mundo correto jurídico acha o inquérito abominável, porém ainda mais abominável o que representam as redes bolsonaristas. Uma vez que essa ação dirigida pelo Supremo tem como alvo quem se organizou para destruir a institucionalidade, o inquérito é amplo o suficiente para, eventualmente, levar a uma acusação política grave, além de criminal contra seus alvos. Difícil de calcular são as consequências do tipo de ambiente que provoca.
Os alvos da vez são personalidades das redes bolsonaristas, empresários amigos do presidente e parlamentares que o apoiam. Na lista figura também um ministro, o da Educação, que deverá ser ouvido pelo que disse na já célebre reunião ministerial do dia 22 de abril não no inquérito relacionado a Moro, mas no inquérito das… fake news contra o Supremo. No Legislativo o mesmo inquérito do Supremo reforça uma CPMI para apurar… fake news nas eleições.
Outra voz que ganhou destaque nos últimos dias, a do empresário Paulo Marinho, ex-adepto convertido em inimigo do presidente, também deve ser incluída no que o TSE tem investigado, via corregedoria (considerada mais contundente pelos especialistas) como abuso de poder econômico e político nas eleições de 2018, incluindo disparos em massa de mensagens em redes sociais e, claro, fake news.
Por um lado, o empenho dos atingidos por operações da PF deflagradas por Alexandre de Moraes em caracterizar os ministros do STF como meros adversários políticos, fora o resto, vai em boa parte ao encontro do que pensam militares graúdos que manifestam (tão somente nos bastidores) descontentamento com os rumos gerais do governo, mas não escondem a fúria com o que consideram ingerência indevida do Judiciário nos negócios do Executivo. A reação ao STF forja um tipo de “união”.
Por outro, o que as redes bolsonaristas em geral e o presidente em particular conseguiram com os sucessivos ataques às pessoas dos ministros foi levar o STF a uma inusitada convergência de posturas entre ministros divididos por querelas pessoais ou pelas sérias dúvidas quanto ao inquérito das fake news. Em outras palavras, em que pesem as divergências internas, a resposta do STF tem sido mais institucional do que “pessoal”.
Os ministros do STF reiteram em uníssono que o Judiciário está sendo atacado pelos que não aceitam fiscalização ou limitação de poderes, não respeitam o pacto federativo, interferem em órgãos do Estado (como Polícia e Receita Federal) por motivos pessoais ou políticos, agem contra a saúde pública ao desrespeitar critérios técnicos e científicos no combate ao coronavírus, desprezam a educação e mobilizam setores do eleitorado contra instituições como Legislativo e Judiciário. Em resumo, Jair Bolsonaro.
Nos bastidores do mundo do direito em Brasília admite-se que não surgiram até aqui evidências contundentes para basear eventual denúncia da Procuradoria que “automaticamente” encurtaria a permanência de Jair no Planalto. Tal desfecho só poderia surgir de um julgamento político no Congresso, reitera-se. É exatamente o que um grupo dentro do STF espera conseguir.
William Waack: As razões dos militares
Eles suportam um governo que embarcou numa perigosa aventura
Os militares que estão no governo aparentemente não comandam. Por motivo simples: uma coisa é a aptidão técnica e a formação intelectual para planejar e executar considerando meios e fins. Para isso os militares foram muito bem preparados em suas academias, que equivalem a escolas de business comparáveis às melhores lá de fora.
Outra coisa é o exercício da política, aprendizado que não está nos currículos dessas academias. Tem sido mais fácil para os militares no governo se apegar a seu padrão ético de “cumprir a missão”, “obedecer ao comando hierárquico” e “não abandonar o barco em dificuldades” do que enxergar que prestígio e respeito pacientemente recuperados pelas Forças Armadas após o regime que instauraram e conduziram por 21 anos estão naufragando pelo suporte que emprestam ao que hoje, sob Bolsonaro, deriva numa aventura rumo ao abismo.
O que os levou a pular para a carruagem do atual presidente, que estava longe de ser a primeira escolha deles, foi a noção de esgarçamento do tecido social e de desagregação institucional ilustrada por dois episódios significativos ainda no início da campanha eleitoral de 2018. O primeiro foi o fica ou sai de Lula da cadeia em Curitiba, devido a uma sequência de canetadas do Judiciário. Bagunça que por um triz não levou à desordem. O segundo foi a bagunça mesmo criada pela greve dos caminhoneiros.
A um candidato sem planos, além de frases de efeito, os militares levaram seriedade, confiabilidade e gente experiente em logística, gestão de recursos, planejamento, disciplina e hierarquia. Acharam que a onda disruptiva que destruiu a reputação de políticos, partidos, imprensa e várias instituições se traduziria num “momento” político capaz de fazer prosperar mesmo num Legislativo hostil a reformas, à transformação do Estado e por aí vai. Não estavam sozinhos nessa mescla de fé e esperança, combinadas a um pouco de cálculo.
Faltou o lado político, pelo qual Bolsonaro enveredou da pior forma possível. Preferiu renunciar ao exercício de seu maior poder, que é ditar a agenda. Preferiu concentrar-se no afago à suas parcelas de seguidores incondicionais, que estão diminuindo. Jogou fora várias oportunidades de se tornar uma voz pregando convergência, união, pacificação, concentração de esforços. Perdeu tempo e, com a pavorosa crise do coronavírus, perdeu também a moral.
Na mais recente grande crise do governo, a da saída de Sérgio Moro, os militares encontraram como conveniente justificativa para tolerar um governo no mínimo errático a postura do STF de limitar as prerrogativas do Executivo. Além de legislar, o Judiciário em alguns casos até governa, ou não deixa governar. Há um forte debate jurídico e acadêmico sobre o tema, mas militares e políticos, e não só os do Centrão, avaliam esse fato como usurpação de prerrogativas.
Portanto, sob essa ótica, é até “compreensível” o flerte nada discreto do presidente com a crise institucional que os militares não querem que aconteça. O problema político que eles não resolveram é traçar a linha entre o que é “suporte institucional” a um governo destrambelhado e o que é cumplicidade com o destrambelhamento. É o tipo de coisa, porém, que só fica bem clara depois.
Parece evidente neste momento que está além da formação técnica e doutrinária dos militares resolver um nó que é político na mais pura essência. O símbolo de tudo isso é um general, que não é médico, liberando no Ministério da Saúde um documento contendo protocolo de tratamento que médicos que o antecederam não quiseram assinar – e se recusaram a fazê-lo por razões técnicas, e o general o fez por razões políticas do presidente da República.
São razões que passaram a ser, por conivência, conveniência ou inércia, as razões também dos homens que vestiram ou vestem fardas.
William Waack: Equilíbrio precário e perigoso
Uma combinação de fatos não deixa prosperar, por enquanto, ações para derrubar Bolsonaro
A rigor, o que já se sabe do que está no vídeo da reunião ministerial trazido à tona por Sérgio Moro não surge ainda como prova, mas comprova. Criminalistas experientes lembram que até provas materiais do tipo “conclusivo” são, nos procedimentos judiciais, passíveis de “interpretações”. E são poucas aquelas “provas técnicas” que, neste momento, poderiam produzir a “interpretação” necessária para sustentar uma denuncia pelo procurador-geral da República contra o presidente da República.
Do ponto de vista político, porém, o vídeo é uma comprovação didática de que o governo é comandado sem foco e preso ao que o chefe do Executivo acha que lhe é vantajoso dos pontos de vista político de curto prazo e pessoal. Além daquilo que ele vocifera como se comandasse um bando, as vozes mais eloquentes nesse vídeo são de ministros incompetentes, apegados a teorias malucas, dispostos a pronunciar frases de lacração na internet do tipo “prendam ministros do STF”, “prendam governadores”, como se decidissem na mesa de um bar quem brada estupidezes de forma mais contundente.
Sozinho, o vídeo não é uma bala de prata e, para compor a “interpretação” que levaria a uma denúncia da PGR que levaria a Câmara a aprová-la e afastar o presidente, é preciso avaliar se e como se daria um rompimento do precário equilíbrio com o qual hoje Bolsonaro se mantém no poder. Esse equilíbrio é dado, por um lado, pelo Congresso, obviamente desinteressado no momento em um processo de impeachment – mas disposto a lucrar no sentido literal da palavra com a fragilização política de um presidente cujas opções de ação e popularidade vão diminuindo, mas que mantém um núcleo duro de cerca de 20% do eleitorado.
De outro, está ação motivada institucional e politicamente por integrantes do STF, hoje o principal perigo para Bolsonaro. O presidente conseguiu unir integrantes da cúpula do Judiciário, notoriamente divididos entre si, na convicção de que ele, Bolsonaro, é o maior perigo institucional por se recusar a aceitar que não é detentor do “poder imperial” para fazer o que bem entender. Alguns desses ministros viram no inquérito solicitado pelo PGR para investigar interferência ilícita do chefe do Executivo na Polícia Federal – um evento que não estava no radar de ninguém apenas um mês atrás – a oportunidade de desencadear um processo político a partir de um procedimento judicial.
Do jeito que as coisas estão, esse impulso não vai prosperar, por conta da combinação dos fatos de que o Congresso, por enquanto, não quer, os ministros militares continuam dando suporte ao presidente e a PGR não vê, ainda, motivos para oferecer uma denúncia. De onde eventualmente viria, então, o empurrão que alteraria o precário equilíbrio atual? Um grande risco para Bolsonaro é Bolsonaro mesmo, como demonstra a situação que criou ao demitir Moro ou, por exemplo, ao levar governadores e desafiá-lo e desobedecê-lo abertamente, tornando ainda mais difícil falar de “pacto federativo” na já gravíssima crise econômica e de saúde pública.
Esses dois últimos fatores (crise econômica e de saúde pública), que estão fora do controle de qualquer agente político, têm condições de alterar o equilíbrio e criar ambiente propício para “interpretações” de provas que levem rapidamente a juízos políticos. A evolução da crise de saúde pública indica que o País viverá em prazo breve o triste placar de mil mortos por dia pelo coronavírus, conta que será associada a um governo que passou os momentos iniciais da tragédia afirmando que ela não aconteceria. Os efeitos negativos da recessão virão em “time delay”, isto é, a devastação trazida pela inédita retração da atividade econômica deve se fazer sentir com mais força a partir do segundo semestre.
É difícil imaginar que Bolsonaro e seu governo saiam intactos do outro lado dessa dupla catástrofe.
William Waack: Um 'novo' governo
Mas as pessoas só querem saber quando vão acabar a crise e a desagregação
O governo dono da plataforma com a qual foi eleito Jair Bolsonaro terminou no começo de maio, aos 16 meses de vida. Seus dois fortes apelos eram a campanha anticorrupção, associada à mudança da forma de se fazer política, e a grande reforma do Estado, ali incluída uma ambiciosa agenda de reformas econômicas de cunho estruturante e “liberal”.
O homem visto como campeão da luta anticorrupção, o ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, desceu da carruagem dizendo que o fazia por não acreditar que a campanha prosseguiria como tinha sido nos tempos da Lava Jato. Bolsonaro o chama agora de mentiroso e traidor. Em seu depoimento à Polícia Federal, Moro deixou claro como pretende seguir o roteiro: chamando Bolsonaro para a briga no campo da ética e da política – suas acusações não surgem até aqui capazes de levar o procurador-geral da República a oferecer denuncia contra o presidente.
Mas está claro que um pedação significativo da bandeira anticorrupção foi arrancado das mãos de Bolsonaro, e essa não é uma disputa que se encerra no curto prazo. Ela vai para 2022, e o motivo é como Bolsonaro decidiu fazer política agora: do mesmo jeito que seus antecessores fizeram, ou seja, oferecendo cargos em troca de apoio. Não importa como Bolsonaro justifique essa mudança de rumo a seguidores capazes de acreditar em qualquer palavra de ordem, nem se ele agiu por medo, cálculo, pressão, desespero ou burrice. O fato incontestável é o da presença ainda mais dominante da “velha” política.
É dela que passou a depender agora o outro pilar com o qual Bolsonaro foi eleito, o das reformas estruturantes e liberais. Perdeu-se tempo e o imponderável sob a forma da dupla catástrofe do coronavírus alcançou Paulo Guedes no meio da terra de ninguém – no mata burro, para usar a linguagem de quem aprecia o jogo de tênis.
A necessidade de socorro de emergência a estados e municípios arrancou a âncora fiscal, com os piores golpes vindo de dentro do Palácio do Planalto. Continua ali na gaveta o plano da gastação desenfreada em infraestrutura mas foi o sinal de abandono do congelamento dos salários do funcionalismo dado pelo próprio presidente que melhor traduziu o que sempre se intuiu: o corporativismo mora aqui.
A combinação de farra fiscal em ano eleitoral com severa recessão econômica é horrorosa para qualquer governo, mas o Bolsonaro 2.0 começa sob uma generalizada desagregação política e institucional, cuja expressão mais evidente é a forma como o STF decidiu reiterar limites à atuação do chefe do Executivo. “A judicialização da política em si já é ruim”, resumiu uma das grandes figuras do mundo do direito em Brasília, “pois o Judiciário não deveria legislar, mas o que estamos vendo é o pior dos mundos: é o Judiciário governando”.
Essa erosão está sendo acelerada pelas mortes diárias, pela apreensão das pessoas com seu futuro imediato, pela perda de confiança de consumidores e empresários, pelo medo do desemprego, da doença e da morte. São fatores “subjetivos” e “emocionais” de enorme e imprevisível peso na política, diante dos quais Bolsonaro tem insistido em aumentar a comoção. Exatamente como tudo isso vai se desdobrar é impossível dizer neste momento. Como também é difícil fugir à constatação de que a tripla crise – de saúde pública, economia e política – só tornou tudo ainda pior.
Aos 16 meses, Bolsonaro reinaugura seu governo num ambiente de angústia profunda e prolongada, com as pessoas se perguntando, aflitas, quando tudo isso vai acabar.
William Waack: Dentro do alçapão
A crise tripla que Bolsonaro enfrenta é inédita e não permite dizer o que vai acontecer
Com a vivência de 28 anos de política em Brasília, provavelmente Jair Bolsonaro sabe ou pelo menos intui que está, agora, nas mãos de profissionais. Os do Centrão e os do STF. Na linguagem militar, trata-se de um formidável movimento de pinça, do qual o presidente tem poucos recursos para escapar.
O alçapão armou, Bolsonaro está dentro dele e ali ficará debatendo-se em limites muito estreitos, salvo o imponderável (o número de mortos da crise de saúde pública e um impeachment são hoje os imponderáveis). Mantida a situação atual de precário equilíbrio, suas opções são reduzidas.
Ele criou a armadilha para si mesmo agindo por medo e com muita pressa. Bolsonaro é um personagem político autêntico e de extraordinária transparência. Faz questão de reiterar publicamente que se sente sempre o alvo de uma grande conspiração, integrada por membros da velha política, imprensa, juízes e ministros do STF, comunistas, ministros com alta popularidade, governadores – a lista é longa.
Por algum tempo o “cerco” urdido por conspiradores era apenas uma distorcida percepção da realidade. Hoje, de fato, o presidente está cercado. Pelos profissionais do Centrão, que dispõem de tempo e de circunstâncias inesperadamente favoráveis para extrair do presidente o preço máximo em troca de apoio político.
E pelos profissionais do Judiciário, sobre os quais Bolsonaro tem pouco ou nenhum tipo de controle. A judicialização da política na era Bolsonaro assumiu contornos muito semelhantes aos da era Dilma, quando uma liminar proferida por um integrante do STF a impediu de nomear Lula como ministro. Desvio de finalidade – o mesmo tipo de figura jurídica da liminar que bloqueou a nomeação por Bolsonaro de um novo diretor-geral da Polícia Federal.
Os perigos para Bolsonaro estão hoje no STF – uma instituição contra a qual seus apoiadores foram mobilizados com a ferocidade e irresponsabilidade típicas de redes sociais nas quais o presidente acredita residir seu maior capital político. A figura do presidente já seria lateralmente atingida por investigações em curso nas quais se pretende apurar quem e como organizou e financiou campanhas contra o Judiciário, mas, agora, está no centro do inquérito que o procurador-geral da República requereu “sem apontar A ou B”. O STF apontou para o B de Bolsonaro.
Salvo imponderáveis, o Centrão não tem o apetite para tocar adiante um processo de impeachment. Os parlamentares não enxergam nenhuma vantagem prática em derrubar o presidente neste momento, e se consideram bem situados do ponto de vista político em assegurar “governabilidade” que, nestes dias de enorme crise de saúde pública, significa sobretudo abrir os cofres públicos para ver como é que fica depois. O movimento para moer Bolsonaro está vindo do STF.
A preciosa intuição que Bolsonaro exibiu na campanha eleitoral faltou-lhe agora. Sem que nenhum de seus opositores precisasse se esforçar, ele mesmo acabou solapando os pilares da sua imagem e está perdendo rapidamente o apoio em camadas de eleitores que não são tão numerosos, mas têm peso na propagação e formação de opinião. E, em vez de evitar comoções, Bolsonaro se esmera em criá-las constantemente. Seu jeito “autêntico” de ser (como ao dizer “E daí? Que quer que eu faça?” diante de um recorde de mortos pelo coronavírus) é visto com repulsa em círculos cada vez mais amplos.
Como tudo na atualidade, a situação que Bolsonaro enfrenta também é inédita. Dilma tinha de lidar com uma dupla crise, econômica e política. A situação de Bolsonaro é de uma tripla crise: a terceira é a pandemia. Mas não há parâmetros históricos para dizer o que vai acontecer.
William Waack: A sofisticação de Bolsonaro
Presidente está negociando cargos em troca de apoio aos que, no sistema brasileiro, são por definição os representantes do povo: os deputados
Jair Bolsonaro bradou que o “povo está no poder” ao discursar numa manifestação abertamente golpista em frente do QG do Exército, e se empenha em provar o que disse. Está negociando cargos em troca de apoio aos que, no sistema brasileiro, são por definição os representantes do povo: os deputados.
Para seus padrões, é a mais sofisticada jogada política desde que assumiu. Tentar arrebanhar uns 200 deputados da confusa e amorfa massa de parlamentares identificada como “Centrão”. Em busca do que até agora dizia não ser necessário para governar, ou seja, uma base razoavelmente ampla e coordenada na Câmara dos Deputados.
Os motivos para proceder de forma que prometeu jamais empregar – trocar cargos por apoio político – são dos mais diversos, inclusive a vontade pessoal de “punir” quem considera chantagista, conspirador e traidor, o atual presidente da Câmara, de quem Bolsonaro pretende tomar parte efetiva do controle do “Centrão”. Um dos mais relevantes motivos para a ação do presidente, porém, é o reconhecimento tácito de que o poder do chefe do Executivo diminuiu desde que ele assumiu.
Outro motivo é o efetivo cerco que esferas políticas e institucionais impuseram ao presidente via STF. Bolsonaro tem razão em apontar para o outro lado da Praça dos Três Poderes ao se dirigir por redes sociais a apoiadores e dizer que “eles” (ministros do STF) o impedem de fazer o que quer. Reconhece que, sem o Supremo e o Legislativo, nada vai.
A outra operação política sofisticada (para padrões bolsonaristas) encabeçada pelo Planalto lembra fortemente o que se fez nos tempos da tal “velha política”, que, teoricamente, teria deixado de existir. É sacar praticamente a fundo perdido dos cofres públicos, investir em grandes obras e ver no que dá.
A possibilidade surgiu com a tal ajuda de emergência a governadores e prefeitos que o próprio ministro da Economia chamou de “farra fiscal aproveitando-se de uma crise de saúde pública”. As modalidades desse socorro estão em negociação, mas já abriram uma avenida que permitiria ao Executivo utilizar um “orçamento de guerra” praticamente sem limites e sem restrições do tipo Lei de Responsabilidade Fiscal.
Claro, enquanto for tudo “temporário”, isto é, enquanto durar o estado de calamidade. Sabe-se que, no Brasil, “temporário” em questões fiscais é termo elástico – desonerações “temporárias” de folhas de pagamento, por exemplo, já duram uns 10 anos. E a julgar pelo que se ouve falar no Planalto, o “temporário” entraria pelo próximo ano (para provável desespero do secretário do Tesouro) e abriria a janela para execução de um plano de recuperação baseado em investimentos públicos com foco central em infraestrutura.
É um tipo de intervenção estatal que requer centralização e coordenação e a tarefa foi atribuída a um oficial de Estado-Maior, general Braga Netto, ministro da Casa Civil. Talvez uma pitada de oportunismo político (quem não tem?) tenha levado o ministro Paulo Guedes, um dedicado aluno de Milton Friedman, a cooperar estreitamente nessa empreitada e abraçar-se a John Maynard Keynes. Famoso pela frase, entre outras, de que “se mudam os fatos, eu mudo de opinião” (Guedes, tal como os clássicos Friedman e Keynes, gostaria que os políticos o ouvissem mais).
Os fatos que mudaram são de enorme magnitude. A crise do coronavírus tornou imprevisível o tamanho da tragédia de saúde pública e econômica no mundo e no Brasil. Ela escancarou a falta de liderança no topo do Executivo, a profunda disfuncionalidade do sistema de governo brasileiro e agravou a situação de um país já prisioneiro da armadilha da renda média, com produtividade estagnada – e sem ter conseguido levar adiante o essencial das reformas estruturantes.
Sim, não há manuais prontos para lidar com uma crise dessas. Que já é uma lição prática do esqueçam o que eu disse antes.
William Waack: O vírus vai decidir
Ninguém lidera em qualquer direção no principal cisma da política
O grande racha no governo e fora dele ocorre entre os que acreditam que a crise do coronavírus já está passando e os que acreditam que mal está começando. Não é simplesmente uma questão de opinião de quem confia possuir os melhores dados ou a melhor avaliação de riscos.
O conflito entre as duas linhas é de ampla natureza política e já tem severas implicações no relacionamento entre entes da Federação (presidente versus governadores, por exemplo), no sistema de governo (Executivo versus Legislativo) e no arcabouço jurídico mais abrangente (quais os poderes constitucionais do chefe de Estado, por exemplo). Além de ter profundo impacto nas medidas emergenciais para enfrentar a recessão trazida pela crise do coronavírus.
O presidente da República tem fé na versão de que o impacto econômico poderia ter sido bem menor não fosse o interesse de adversários políticos (governadores, a esquerda, “elites políticas” nebulosas, o “sistema”) em criar caos social para tirá-lo do poder. Está convencido de que a cloroquina não deixará o custo em vidas humanas ser tão alto como, por exemplo, nos Estados Unidos do ídolo Trump, que imita até nos erros.
Portanto, a principal linha de ação política do presidente no momento consiste em evitar que governadores e prefeitos transformem as medidas de ajuda emergenciais numa grande operação que teria como objetivo – claro, qual outro? – prejudicá-lo diretamente. “Reabrir” a economia virou sinônimo, para Bolsonaro, de sobrevivência política muito além de mobilizar sua base de seguidores.
Nisto entrou em sintonia fina com a equipe de Paulo Guedes, para a qual a Câmara dos Deputados criou um “seguro” contra a inevitável perda de arrecadação por parte de Estados e municípios que, na verdade, incentivaria a irresponsabilidade de prefeitos e governadores e, perversamente, os induziria a prorrogar medidas de isolamento que prejudicam a economia. Fala-se no gabinete de Guedes em “farra eleitoral” por parlamentares, governadores e prefeitos aproveitando uma crise de saúde.
Para a equipe econômica, “isolamento social” virou sinônimo de abuso fiscal e probabilidade alta de depressão após a recessão, apesar de destacados integrantes dela reconhecerem que a experiência internacional recente recomenda medidas restritivas (que prejudicam a economia) como única opção garantida para diminuir a proporção da tragédia de saúde pública.
Uma tragédia anunciada, antecipada e que a ala do governo menos comprometida com postulados ideológicos assume que é um risco iminente.
O resultado desse racha é uma perigosa paralisia política. O embate em torno das medidas emergenciais mobiliza setores do Executivo em busca de provocar uma divisão no Congresso (entre Senado e Câmara), enquanto setores do Legislativo buscam vantagens no que identificam corretamente como rachas dentro do Executivo. O presidente enfrenta os governadores e prefeitos em vários campos de atuação, levando o fracionado STF a arbitrar disputas políticas que arranham a Constituição, enquanto o poderoso corporativismo do funcionalismo público se defende nos três setores para não perder numa crise que empobrecerá o País inteiro.
Os graves contornos dessa crise indicam que ela é bem maior do que a capacidade dos principais atores políticos de manter qualquer controle dos acontecimentos de fundo, ou de liderar efetivamente em qualquer direção dos dois lados do “racha” apontado acima. Ficou para o vírus decidir.
William Waack: Quando fechar, quando abrir
Bolsonaro não é o único chefe de Estado que não sabe como sair do dilema
A realidade se encarregou de lembrar Jair Bolsonaro de que ele pode trocar de ministro quanto quiser, mas não pode trocar quanto quiser de política de saúde. Os limites aplicados às vontades do presidente – não importam méritos ou motivações – foram antes de mais nada institucionais. Em princípio, não é mau sinal.
Entrou como freio uma estrutura federativa que, no caso do combate ao coronavírus, concede aos operadores do SUS uma grande margem de ação. E os operadores são, em primeira linha, governadores e prefeitos. Além da eterna crise fiscal, eles se ressentem hoje sobretudo de falta de coordenação política, e estão assustadíssimos com a nada remota probabilidade de colapso de partes do sistema de saúde. Clamam por liderança.
É outro problema que veio junto de Bolsonaro e que a crise do coronavírus apenas escancarou. O presidente acha que seu poder vem da caneta, que ele diz não ter pavor nenhum de usar (mas não pode). Na verdade, o poder presidencial no Brasil vem de algo que o atual ocupante do Planalto renunciou a aplicar ou o faz de forma inconsistente, errática e subordinada exclusivamente ao curtíssimo prazo de redes sociais: ditar a agenda política.
Sob o avanço da doença, a postura de Bolsonaro consiste o tempo todo em “salvar” seu governo, que ele enxerga exclusivamente pelo prisma de uma ameaça de crise social urdida por adversários reais ou imaginários mancomunados para destruir a economia e criar o caos. As manobras que faz para neutralizar inimigos (governadores, por exemplo) e afastar obstáculos ao que considera necessário realizar (o ministro da Saúde e o isolamento social, por exemplo) são perfeitamente racionais dentro desse quadro mental que beira a paranoia.
O problema é muito maior e, mesmo em seu jeito tosco (Bolsonaro sobre Bolsonaro), o presidente fala diariamente de um dilema para o qual os principais chefes de governo nas democracias liberais ainda não encontraram saída. Em termos bastante brutais, trata-se de saber até quando precisa durar o fechamento de economias antes que a devastação delas se torne irrecuperável. Na outra ponta, reabrindo as economias, trata-se de saber qual é o limite tolerável do número de mortos, a partir do qual a falência de qualquer carreira política é irrecuperável.
Projeções e análises de curvas estatísticas sobre economia e saúde pública permitem no máximo contornos de cenários nebulosos, sem horizonte de tempo e qualquer “certeza”. Em outras palavras, dirigentes políticos ao redor do mundo democrático liberal estão sendo obrigados a “sentir” o dia a dia de temperaturas políticas e situações de degradação econômica e social que parecem ser, neste momento, muito mais abrangentes e que aparentemente estão reagindo timidamente ao inédito volume de medidas de estímulo e combate à recessão.
Para os que se sentem fascinados por entender qual papel exercem personalidades na História, a atual crise e sua imprevisibilidade oferecem alguns contrastes eloquentes. Donald Trump, por exemplo, ziguezagueia exibindo seu narcisismo (ele se proclamou um “gênio muito estável”). Angela Merkel, na outra ponta, demonstra uma postura próxima ao estoicismo (filha de um teólogo protestante em país comunista). E Jair Bolsonaro?
Chegou ao Palácio do Planalto na crista de uma onda política e social que ele apenas em parte entendeu e controlou, onda que vai ficar parecendo apenas uma marola diante das proporções da crise de saúde e economia que começamos a enfrentar agora. Nela, Bolsonaro não aprendeu a nadar, e está se afogando.
William Waack: Um outro país
Bolsonaro precipitou mudanças institucionais, algumas contra ele
Entre os vários medos à disposição parece claro que as pessoas permaneceram apegadas ao medo de morrer, o mais natural de todos. A grotesca forçada de barra dos “gênios” de comunicação de Bolsonaro – a falsa dicotomia entre empregos ou saúde – voltou-se contra o próprio presidente. Em geral, ficou demonstrado que se confia mais no que dizem médicos e técnicos em saúde pública do que nas palavras do presidente.
O resultado, bastante previsível dada a correlação das forças políticas, foi mais um encurtamento da caneta presidencial. A diminuição do seus poderes vem de uma combinação de restrições institucionais que dificilmente desaparecerão quando a urgência da questão de saúde pública amainar, e ninguém sabe quando. Tem como mais recente exemplo a articulação para a aprovação do tal “orçamento de guerra”, que não é outra coisa senão a definição de responsabilidades políticas e administrativas na utilização de recursos para enfrentar uma situação de calamidade nacional.
Para ter acesso aos fundos com os quais pretende combater a inevitável recessão, o próprio ministro Paulo Guedes assinalou que precisa de uma PEC (sim, tudo no Brasil passa por mudar algum artigo da Constituição e, portanto, pelo Congresso) que regula rigidamente como o Executivo atuará, dando amplas prerrogativas ao Legislativo e ao Judiciário. Na prática, o chefe do Executivo não faz nada na gestão de crise sem consultar previamente os outros Poderes.
A chave para entender o que se convencionou chamar de “isolamento” do presidente está em dois fatos concomitantes, um de fundo e o outro bem escancarado. O de fundo é o Legislativo atuando diretamente em entendimento com governadores e prefeitos, além de uma série de entidades representando setores da economia, ao largo do Planalto. O Judiciário entrou nessa articulação desde o primeiro momento, há mais de 15 dias. O presidente ficou de lado.
O segundo foi o escancarado comportamento institucional do “dream team” de ministros (Sérgio Moro, Paulo Guedes e Henrique Mandetta), além dos militares. Prevaleceu entre eles a reiteração de que obedeceriam à norma técnica – para todos os efeitos práticos, deixaram Bolsonaro falando sozinho contra o isolamento social. Chegava a ser constrangedor assistir ao contorcionismo verbal com o qual esses ministros tratavam de “traduzir” bobagens ditas ou feitas pelo presidente ao mesmo tempo em que se esforçavam para não apoiá-las.
Os tais famosos “bastidores” (pedacinhos de informação a respeito dos quais nunca se sabe exatamente o que é fato e o que é fofoca) em Brasília indicam que Bolsonaro esteve, sim, à beira de provocar grave crise ao considerar decretos que suspenderiam medidas restritivas tomadas por governadores, preso à paranoica noção de que é alvo de conspirações e superestimando a claque de apoiadores que chama de “povo”. Ao mesmo tempo em que deflagrava campanha política usando também recursos públicos.
Tomou uma freada brutal em público e em privado. O STF o proibiu de seguir adiante com a campanha “O Brasil não pode parar”. Em conversas reservadas, mais de um ministro garantiu que o Judiciário derrubaria qualquer decreto de Bolsonaro que fosse contrário ao isolamento social. E, em privado, ele ouviu o seguinte recado de uma importante autoridade da qual dependem várias investigações de interesse direto também do presidente: “Não vou ser coautor de um genocídio”.
O fenômeno da contestação da autoridade presidencial, como aconteceu agora, pertence à categoria “gênio que não volta para dentro da garrafa”. Ou seja, trata-se de consequências políticas duradouras.
Mas há outros gênios que não voltarão para a garrafa: em prazo recorde houve flexibilização de leis trabalhistas, suspensão do teto de gastos, alterações em regimes de contratação, desengessamento do Orçamento. Teremos um outro país.
William Waack: Sopa para o azar
Bolsonaro escorregou feio na falsa disputa entre saúde da economia e saúde das pessoas
No Brasil, a ideia de morrer pela coletividade é um conceito distante. A complacência com a morte e a violência é o que expressa melhor um traço da nossa sociedade – basta observar como nós, brasileiros, conseguimos conviver com taxas horrendas de criminalidade há tanto tempo. Enquanto nos orgulhamos e exaltamos a nossa cordialidade, bom humor e alegria de viver.
Com decisiva ajuda do presidente Jair Bolsonaro, mas não só dele, o debate sobre a crise do coronavírus e suas consequências aqui descambou para um ácido maniqueísmo entre saúde das pessoas versus saúde da economia. Debate que, no fundo, mal encobre uma falsa dicotomia. Não dá para separar uma coisa da outra.
No extremo lógico do argumento abraçado por Bolsonaro vamos chegar a uma questão ética que ele provavelmente nem percebe, e que está contida na expressão “darwinismo social”. Simplificando bastante, significa tolerar que os mais frágeis sucumbam, pois assim determinam as “leis” da evolução social – além da noção (pouco difundida na nossa sociedade) do “bem comum”.
Bolsonaro e a defesa que faz da “saúde da economia” (simploriamente, ele deixou-se identificar com um lado na falsa dicotomia) espelham o fato de a sociedade brasileira tolerar a convivência com brutalidade (e desigualdade e miséria), mas, como cálculo político, traduz um perigoso erro de leitura da realidade. Pois, em política, mesmo com nossas notórias hipocrisias, ninguém conseguirá sobreviver associado à noção de que os mais frágeis precisam perecer pelo bem comum da economia.
Bolsonaro não é um jogador de xadrez e, por isso, é difícil assumir que seus atos sejam uma sequência de lances. Ele é um ser político intuitivo que reage a estímulos dados por um grupo restrito de “conselheiros” obcecados por posturas ideológicas que pouco passam de fantasias perigosas, à paranoia das “conspirações” e ao cálculo prático de quais vantagens políticas se oferecem no prazo mais imediato. Além de copiar o deus Trump, que viu os índices de popularidade subirem quando começou a falar que as pessoas querem voltar a trabalhar.
No caso da crise do coronavírus, ele a enxerga como uma ameaça pessoal trazida pela deterioração provável (só se discute o tamanho) da economia e, consequentemente, dos seus índices de aprovação e chances eleitorais. Ocorre que, nessa competição para superar adversários eleitorais reais ou imaginários – governadores de Estado –, ele abriu uma fissura institucional de consequências políticas difíceis de serem antecipadas (só se discute o tamanho).
É o fato de que passaram a existir várias autoridades no enfrentamento da crise, em vários níveis da Federação. Sem que exista – além da formalização de comitês vários – uma liderança central que seria essencial para enfrentar o que vem por aí, em qualquer sentido. Ao contrário do que parece supor Bolsonaro, o público dificilmente fará uma distinção entre quem disse o quê neste momento sobre como combater a crise.
“Quem tinha razão” vai importar muito pouco lá na frente, pois o País – parte-me o coração ter de dizer isso – já entrou na dupla catástrofe de saúde pública e de economia devastada. A questão da liderança surge mais uma vez como um peso negativo no enfrentamento de nossos problemas – faltaram lideranças consequentes em todos os graves episódios e, sobretudo, lideranças com visões além dos seus interesses políticos mais próximos.
Terminei o texto da semana passada afirmando que o coronavírus era uma ameaça grave para Jair Bolsonaro. Entendido, como ele foi, como uma liderança surgida numa onda disruptiva, a onda de 2018. Não calculava, porém, que a crise pudesse diminuí-lo com tanta rapidez. É o que acontece, como se diz em gíria, quando alguém se empenha em dar tanta sopa para o azar.
William Waack: O vírus pegou Bolsonaro
Espalhou-se como um vírus a noção de que o governo corre atrás dos fatos
O vírus atingiu o coração do governo. A expressão é literal, considerando a situação do general Augusto Heleno e do almirante Bento Albuquerque, mas seu sentido é político. Um caso clássico de como a realidade dos fatos se impõe de forma arrasadora a quem se recusa a enxergá-la.
Ou o faz – enxergar os fatos – sob uma perspectiva completamente equivocada. Foi o que aconteceu com Jair Bolsonaro e alguns de seus conselheiros mais próximos, especialmente os filhos. Presos à versão, estapafúrdia e maluca, como agora se vê, de que o coronavírus seria uma conspiração chinesa aqui utilizada por “elites políticas” para isolar e depor o presidente.
As forças políticas que entendem melhor a realidade (como o “Centrão”) ocuparam rapidamente o espaço que Bolsonaro vem deixando livre desde que assumiu a Presidência. Como já se disse aqui, o presidente acha que sua força vem da caneta que assina cheques e nomeações quando, na verdade, está na sua imensa capacidade de ditar a agenda política. À qual ele pouco se dedicou.
Pode-se até falar de um autoimposto isolamento diante de um “sistema” que, por um lado, de vez em quando, servia ao presidente e a cujas regras obedecia. Por outro, era pelo presidente mencionado como alvo a ser destruído – o mandato que ele afirma ter recebido das urnas.
O isolamento ganhou contornos nítidos e de claro perigo para a autoridade presidencial quando Judiciário e Legislativo, com a participação de órgãos de controle e investigação (TCU e PGR), montaram por dois dias um “gabinete paralelo de crise” que incluía, pelo Executivo, um competente ministro da Saúde cujo destaque causa no presidente ciúmes em vez de orgulho.
É essa perda de autoridade, mesmo entre grupos favoráveis ao presidente, que causou consternação entre alguns de seus ministros mais importantes, que duvidavam da tática determinada por Bolsonaro de ir às ruas para pressionar Congresso e STF. Há ministros militares preocupados com o que chamam de “belicosidade” do presidente. “Ele apanhou muito, quer revidar”, diz um deles, que dá expediente no Planalto, “e ninguém consegue segurar”.
O corrosivo processo se acentua diante de uma percepção generalizada de que o governo está correndo atrás dos fatos. Essa noção se intensificou por dois fatores: a reação inicial do presidente de minimizar a gravidade da doença (erro que Trump se apressou mais rapidamente a corrigir) e a intensidade e vigor com que as principais economias lançaram medidas para enfrentar uma previsível recessão, enquanto no Brasil a conversa inicial foi “aprovem as reformas e a gente segura o tranco”.
A crise do coronavírus apanha o Brasil num momento vulnerável. Se é verdade, como reitera Paulo Guedes, que o País estava decolando e foi surpreendido pela crise, também não se pode ignorar que a lição de casa em termos fiscais mal tinha começado a ser feita. O Brasil, como país emergente, será sempre julgado pela sua saúde fiscal, e a nossa não é boa de forma alguma. E vamos ter de enfiar a mão fundo nos cofres públicos já encrencados em todos os níveis.
As consequências para a economia consegue-se antever, e não são das mais róseas. As consequências do vírus para a política indicam que o inimigo impessoal, como o vírus, pode servir de justificativa até aceitável para resultados pobres num setor definidor de simpatias políticas, como o bem-estar econômico geral da população, mas é mais difícil de ser combatido no habitual esquema bolsonarista de “nós” contra “eles”.
Há paralelos entre a propagação de um vírus e a criação de um “momento” na política. Começa com pouca gente notando, mas, a partir de certo ponto, a propagação do vírus do descontentamento ou aberta antipatia com um governo e sua figura de proa foge ao controle. O coronavírus é uma ameaça grave para Jair Bolsonaro.