William Waack

William Waack: As riquezas dos maricas

Bolsonaro é o pior inimigo de si mesmo quando se trata de ridicularizar sua autoridade

Era óbvio e esperado que, ao perder a aposta feita em Donald Trump, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro fosse incluído na coluna “perdedores” em todas as listas de governantes que se deram mal com a vitória de Joe Biden. Não são poucos, e incluem países tão diferentes entre si como Israel, Arábia Saudita, Turquia, Reino Unido e Hungria. Mas o que a língua solta do presidente está produzindo é uma rápida perda da própria autoridade

A popularidade que resulta de auxílios emergenciais é tão efêmera quanto a duração desses auxílios, e até aqui o governo não conseguiu dizer como vai incluir uma renda básica no Orçamento do ano que vem (que, aliás, não foi votado). Sim, é popularidade que pode ser reconquistada, ainda que a custo literalmente alto para os cofres públicos – e enquanto a economia não sofrer desarranjos maiores, fantasma que o próprio ministro Paulo Guedes anda alimentando.

Com autoridade é diferente. Um presidente não precisa necessariamente ter grande autoridade para ser popular, mas precisa ser levado a sério para governar. A autoridade de Bolsonaro está sendo diluída por ele mesmo ao cair no ridículo, um ácido capaz de corroer qualquer pedestal. Personagens que dizem coisas “folclóricas”, toscas, ofensivas, desvinculadas da realidade, abusivas ou mentirosas avançam até o ponto em que afundam nas próprias palavras.

A briga de Bolsonaro com a vacina “chinesa” conseguiu gerar desconfiança em qualquer vacina, justamente quando os especialistas alertam para o fato de que o Brasil provavelmente enfrentará uma segunda onda de covid-19, tal como acontece no momento na Europa e nos Estados Unidos. E a politização afeta a confiança em duas instituições essenciais para saúde pública: as que produzem a vacina (como o Instituto Butantan) e as que regulam sua aplicação (como a Anvisa). O resultado geral é péssimo para todos os governantes e causou séria apreensão nos governadores.

Da mesma maneira, pode-se argumentar indefinidamente sobre quem atrasa mais a aprovação das reformas que lidem com a questão fiscal, se é o Congresso ou se é a equipe do Ministério da Economia. Mas, no sistema político brasileiro, é o presidente quem tem o poder de ditar a agenda política, e a pergunta cada vez mais pesada no ar é se alguém sabe o que Bolsonaro pretende além de manter popularidade a um custo que a passagem do tempo só torna mais caro do ponto de vista fiscal.

O grau de isolamento internacional do Brasil por conta das apostas de Bolsonaro é inédito, ainda que lhe reste o consolo de estar na companhia de países como China, Rússia e México, que até aqui se recusam a parabenizar Joe Biden pela vitória nas eleições presidenciais. Ocorre que esses três países tem contenciosos importantíssimos com os Estados Unidos, enquanto Bolsonaro está aparentemente ávido para encontrar um: a Amazônia.

Biden mencionou US$ 20 bilhões de possível ajuda, o agronegócio tecnológico e nossa matriz energética têm tudo para ganhar num impulso rumo à economia “verde”, mas o presidente prefere falar de “pólvora” quando esgotar a diplomacia em relação à pressão americana em questões ambientais. No caso brasileiro, nossa diplomacia esgotou-se ao exercer a ridícula opção preferencial de se subjugar a Donald Trump. Os que realmente possuem “pólvora”, como China e Rússia, não ficam falando disso.

De qualquer forma, faltou Bolsonaro esclarecer como pretende usar eventualmente pólvora para enfrentar os malandros de olho nas nossas riquezas, se ele considera que preside um país de maricas.

*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN


William Waack: Trump não perdeu

A política americana, tal como personificada por Trump, continua intacta

Donald Trump não foi repudiado nestas eleições. Não se trata da pessoa Donald Trump, mas do que ele expressa em suas ações políticas, nesse intrincado jogo no qual o indivíduo é ao mesmo tempo sujeito (em pequena medida, dirão os historiadores clássicos) da História e apenas seu mero resultado. 

E o que Trump expressa? O fato de que foram destruídos em larga medida os hábitos de moderação – debate aberto e tolerante, a oposição leal – em cima dos quais prosperou o liberalismo americano e seu espírito de comunidade e Nação. Essa destruição ocorreu vigorosamente nos dois “grandes lados” do espectro político.

As elites de negócios conseguiram transformar o governo e suas agências de regulação em instrumentos que favorecem interesses paroquiais ou setoriais, em detrimento de outros. Em parte como resposta a crises financeiras, aprofundaram desigualdades e desequilíbrios que tem se perpetuado em função de movimentos demográficos e, principalmente, pelo “big divide” que é o acesso à educação (um dos grandes definidores de “elite”).

De outro, cresce a força de um tipo de idealismo utópico (que tem expressão mais recente no “woke”) que substituiu direitos individuais por “direitos de grupos”, e pretende substituir igualdade de oportunidades por igualdade de resultados. O termo nasceu como jargão de rua em comunidades negras significando “fique alerto, se liga” frente à brutalidade policial e racismo, mas ampliou-se e atualmente é empregado para designar uma enorme abrangência de ideologias e políticas com foco em justiça social.

Essa breve descrição de polos antagônicos na “guerra cultural” é necessariamente crua e simplificada, mas ajuda a entender essa percebida “irracionalidade” no debate político americano (mas não só). É o fato de que o oponente é visto como inimigo a ser destruído, como adversário irreconciliável, e isto num ambiente no qual grande afluência e consumo ligados à enorme progresso tecnológico causam paradoxalmente insegurança e desconfiança nas instituições (como acreditar em princípios e valores comuns, por exemplo) que deveriam servir de freio para o escorregão rumo à insensatez coletiva.

Nesse contexto é que Trump virou a personificação e figura de identificação para milhões que se sentem perdidos e sozinhos, com a solidão ironicamente reforçada pelo apego a redes sociais. O que não diminui de maneira alguma suas “qualidades”, como a de fazer do espetáculo um capital político. Como toda figura política de amplitude nacional, Trump tem significados diferentes para grupos diferentes em função de motivações diversas – mas nenhum o escolheu por apego a “virtudes civis”, como os clássicos gostavam de elogiar as qualidades da democracia americana.

Ficou escancarado como na presente corrida eleitoral os concorrentes descreveram resultados em favor do adversário como “abismo” e “precipício” sem volta. Não é mera retórica eleitoral. É como segmentos importantes da sociedade americana se encaram, e se estranham. São universos vivendo ao lado e ao mesmo tempo em enorme distância um do outro. Esse “nacionalismo branco” representado por Trump aflorou como uma característica que não desaparece com um resultado eleitoral.

Nesse sentido, Trump não foi repudiado pois não é possível repudiar uma sociedade histórica. Ela simplesmente existe. As eleições não deram sinal claro de que os americanos estejam reconstruindo a confiança nas suas instituições, que rejeitem política baseada na mentira e na distorção e que reencontrem o tal “espírito coletivo” capaz de sobreviver a divergências e se alimente da diversidade. 

Em outras palavras, o retorno às tais “virtudes civis” não depende só de derrotar uma figura política.


William Waack: Trump não é o culpado

Presidente é muito mais a expressão do que a causa de isolacionismo, divisão social (e polarização política) e a perda de apetite por ser a potência líder do planeta

As incertezas em torno do que acontece com uma quase segura vitória de Joe Biden são de curto prazo. Têm a ver com possível grau de violência e até que distância no drama pessoal um narcisista como Donald Trump pretende caminhar. Dito de outra maneira: de que forma ele será obrigado a conceder. A grande certeza em relação a um presidente Joe Biden é a de que os EUA, tal como conhecemos até aqui, não voltam a existir. Trump é muito mais a expressão do que a causa de isolacionismo, divisão social (e polarização política) e a perda de apetite por ser a potência líder do planeta.

Note-se que não há diferenças entre como democratas e republicanos – nem entre Biden e Trump – pensam que é o papel histórico da ascensão da China e como enfrentá-la. Há muito que Washington considera a adversária na Ásia como seu mais importante desafio. Demoraram para chegar ao consenso de que é necessário contê-la, mas essa convicção prevalece.

Como todo longo período na história, a da hegemonia moral (e tecnológica e, ao que tudo indica, militar também) dos EUA como a nação “da luz na cidade no topo da colina” está terminando. Uma definição cruel, porém muito apropriada para se visualizar o que aconteceu nos EUA, é a de que houve uma ruptura na costura. É um processo de mais de 30 anos, pelo qual as diferenças entre grupos sociais aumentaram devido ao acesso à educação. “Elites” e “não elites” perderam o sentido de entender ou “sentir” o que o outro grupo pensa.

Trump contribuiu para incendiar um estado de coisas no qual trabalhadores brancos sem formação superior se sentem “deixados para trás” e percebem que todos os fatores trabalham contra eles, a começar pelo demográfico. O que surge de forma tão clara, no mundo tribalizado das redes sociais, é a perda do espírito de comunidade e de nação, um lento e amplo processo que não se iniciou com a vitória de Trump em 2016.

Do ponto de vista do papel dos EUA nas relações internacionais, há um curioso paradoxo. Aos períodos de “isolacionismo” se contrapunham os períodos de “engajamento” na solução de qualquer conflito, militar ou não. O grande pêndulo do “isolacionismo” se acentuou – aí está o paradoxo – com a vitória na Guerra Fria. Que deixou nas elites dirigentes americanas a noção de que não havia muito mais para se fazer. Olhar para a Ásia como grande desafio estratégico já havia sido formulado sob Obama; retirar-se de guerras, também. O que Trump acelerou brutalmente foi o desmonte do substrato “psicológico” do apoio em alianças duradouras com gente que pensa em linhas gerais a mesma coisa (a tal ordem liberal internacional).

Talvez não fosse difícil de se corrigir, assumindo que os outros participantes do jogo internacional estejam dispostos a ver de volta os EUA no seu papel “tradicional” desde o fim da 2.ª Guerra. A resposta se evidencia como um “não”. Trump foi a expressão de males muito mais profundos e antigos e hoje o mundo para o qual todos se preparam é o de um sistema multipolar mais perigoso. E, mesmo sem Trump, muito menos previsível.

*É JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN


William Waack: Bolsonaro decepciona os generais

O desabafo do ex-porta-voz do presidente não é a voz isolada de um fardado

Foi já para lá da metade de 2018 que os altos oficiais das Forças Armadas encantaram-se com a popularidade de alguém que surfava a onda disruptiva, que oferecia a oportunidade de se alterar os rumos do País. Hoje levanta-se a tese se houve mesmo uma alternância entre “esquerda” e “direita” em 2018, pois o que se percebe é a prevalência de um sistema pelo qual os donos do poder descritos já há tantos anos continuam acomodando interesses setoriais e corporativos às custas dos cofres públicos, sem visão de conjunto ou de Nação – tanto faz o nome ou o partido.

Além da bem amarrada ou não agenda econômica proposta por Paulo Guedes, foram os militares formados em academias de primeira linha que trouxeram para Bolsonaro o que se poderia chamar, com boa vontade, de “elementos de planejamento” num governo que, logo de saída, titubeou entre entregar a coordenação dos ministérios para uma ala “política” (enquanto se recusava a praticar a “velha” política) ou depositá-la no que era a esperança dos generais: um dos seus como chefe de “Estado-Maior” (a Casa Civil). Hoje se constata que era o primeiro sinal inequívoco do que acabou virando a marca do governo: sem eixo, sem saber como adequar os meios aos fins (supondo que “mudar o Brasil” seja o objetivo final) num espaço de tempo definido (um mandato? Dois mandatos?). Portanto, sem estratégia.

Os militares de alta patente no governo carregaram consigo uma aura de respeito e credibilidade e, em alguns ministérios, de eficiência e competência, mas não estão usufruindo disso. Ao contrário, a reputação deles como grupo está sendo moída em casos como o da Saúde, área na qual o presidente interfere como se entendesse alguma coisa disso, e da Amazônia, com um “governo do B” entregue a quem conhece a área (o general Hamilton Mourão) enquanto o enciumado Bolsonaro deixa que Meio Ambiente e Relações Exteriores pratiquem o “fogo amigo”.

Dois fatores políticos levaram os militares à “confortável mudez” à qual se refere o ex-porta-voz do governo, general Rêgo Barros, na destruidora descrição que fez do esfarelamento da autoridade dos militares num governo que eles nunca controlaram. É “subserviência”, diz o ex-porta-voz, que impede a prática da “discordância leal” (coisa de fato complicada para quem cresceu em hierarquias). O primeiro fator político era a consolidada noção de que governar o Brasil se tornara impossível por culpa de outros Poderes, como Legislativo e Judiciário. Caberia ao grupo militar “defender” o Executivo.

O segundo componente político é mais amplo e difuso. Tem a ver com 2018 e o medo do esgarçamento do tecido social. Os militares “compraram” em boa medida o mantra repetido por Bolsonaro, segundo o qual “as esquerdas”, sorrateiramente postadas atrás da esquina, só estão esperando maus resultados econômicos, crise ainda maior de saúde pública e aumento de criminalidade para promover a baderna que colocará de joelhos o governo e, portanto, o projeto de “mudar o Brasil”. Fugiria tudo ao controle.

Ironicamente, Bolsonaro acabou encontrando seu porto seguro não tanto nos militares, de cuja coesão e capacidade de articulação desconfia (como desconfia de tudo ao redor). O presidente acomodou-se no conforto do Centrão e na capilaridade que esse conjunto de correntes políticas, desde sempre empenhadas em controlar o cofre e a máquina pública, exibe em todas as instâncias decisivas no Legislativo e também do Judiciário, onde acaba de ser colocado no topo um ministro para o Centrão chamar de seu.

“Jair preocupou-se mais com seus filhos e reeleição do que com o País”, queixou-se, confidencialmente, um dos militares que chamam o presidente pelo primeiro nome. O desabafo do general Rêgo Barros não é simplesmente o de um indivíduo decepcionado. É de um grupo desarticulado.

*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN


William Waack: A cor da vacina

Bolsonaro ignora que o eleitor é mais pragmático do que ele pensa

Por ter muita raiva da China ou de João Doria, o rompante de Jair Bolsonaro prometendo que não vai comprar a vacina chinesa – desautorizando o general da Saúde – ajuda a entender a razão de capitães comandarem uma companhia, enquanto generais comandam divisões, exércitos, grupos de exércitos. É a falta de visão de conjunto.

Bolsonaro submeteu tudo ao projeto de reeleição, confundindo seu destino político com o do País. É postura comum a políticos de várias colorações, mas, no caso de Bolsonaro, a obsessão com o ganho eleitoral de curtíssimo prazo paradoxalmente ameaça seu próprio projeto de reeleição. A popularidade desse presidente, como a de outros, está diretamente ligada ao desempenho da economia, e esse desempenho (até o fim de 2022, digamos) é função de uma série de decisões políticas difíceis que ele está protelando – em nome do conforto da popularidade no curto prazo.

Da mesma maneira, mais atrapalha do que ajuda a economia brasileira, que depende em grande parte do agronegócio, que depende em grande parte da China, alinhar-se à agenda pessoal do atual presidente americano, Donald Trump. Nem é o caso de se perguntar se esse personagem estará ainda na Casa Branca daqui a menos de duas semanas. Mesmo que Trump produza um excepcional milagre eleitoral e se reeleja, ao abraçá-lo da forma subserviente e bajuladora, Bolsonaro comete um erro básico de política externa: ignorar o fato de que países não têm amigos, só têm interesses.

Ao que tudo indica, está perdida a aposta bastante simplória de que o “laço pessoal” com o homem mais poderoso do mundo presidindo o país mais rico do mundo traria ao Brasil imediatas vantagens em acesso a tecnologia, mercados, instituições multilaterais e projeção no cenário internacional. No caso específico da China (que hoje é quem tem o homem mais poderoso do mundo e a maior economia), a pressão de Trump sobre o Brasil evidentemente leva em conta apenas os interesses dos Estados Unidos, enquanto Bolsonaro sacrifica um vantajoso ponto de partida, que é a possibilidade de jogar entre os dois no grande confronto do século.

Aqui entra também a questão da “diplomacia da vacina”, na qual os chineses já demonstram notável vantagem sobre os americanos. Ao contrário dos Estados Unidos, a China está anunciando “acesso preferencial” à vacina produzida pela Sinovac a países em desenvolvimento. Washington tem à disposição produtos semelhantes desenvolvidos por empresas privadas de sólida reputação mundial, mas demonstrou pouco interesse em distribuir vacinas fora dos EUA.

O Brasil é parte dessa abrangente ofensiva chinesa, com a qual Xi Jinping pretende ampliar ainda mais peso e influência do país, mas o que parece motivar Bolsonaro a falar mal da vacina comandada pelo governo comunista chinês não é o espectro (sim, esse absurdo transita em franjas do bolsonarismo) de uma “inoculação” de ideias esquerdistas via vacina. Ele teme uma candidatura para competir com ele “pela direita” e, seja qual for a razão, enxerga em Doria esse personagem.

Essa visão de túnel considerando apenas a reeleição é o que faz Bolsonaro ignorar um provérbio… chinês. Usado, aliás, de maneira célebre por um importante dirigente comunista, Deng Xiaoping, iniciador das reformas que fizeram da China o que ela é hoje, e que virou lição de pragmatismo. “Não me importa a cor do gato, contanto que pegue o rato”, respondeu, quando indagado sobre o melhor sistema econômico.

Para uma parcela importante do eleitorado também no Brasil, assustada com pandemia, pouco importa a origem da vacina, contanto que ajude a resolver uma questão literalmente de vida ou morte. Bolsonaro parece ignorar que o eleitor é mais pragmático do que ele pensa.

*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN


William Waack: Não faltou aviso

Banco Central adverte: populismo faz mal para saúde fiscal

Jamais terá sido por falta de aviso. Caso o governo brasileiro abandone o rigor fiscal em troca de popularidade – possibilidade que mercados passaram a considerar real –, ficará provado que, no Brasil, não só a História pouco serve de lição. Ainda por cima se repete como farsa cada vez mais trágica.

Parece até mesmo um ciclo maldito. Sarney se encantou com a popularidade trazida pelo Cruzado e prorrogou medidas “temporárias” até cair na hiperinflação. Lula abandonou os superávits primários depois da vitória de 2006, derrotando as consequências do mensalão. Na doce conversa das medidas contracíclicas para combater a crise de 2008, e atrás de dividendos políticos, Dilma expandiu o intervencionismo fiscal até cair nas pedaladas.

“A história se repete agora” foi uma frase muito usada entre agentes de mercado nos últimos dias, chegou aos andares de comando em grandes corporações e esfriou consideravelmente ânimos de investidores. Esse estado de espírito se consolidou no alerta feito na terça à noite pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que foi contundente (para os padrões convencionais de um “central banker”) ao admitir que a credibilidade da política econômica do governo está arranhada, que a fragilidade fiscal contribui para a desvalorização da moeda brasileira e que o País já perde fluxo de capitais por conta das políticas ambientais.

A questão para quem toma decisões na economia, prosseguiu Campos Neto, não são tanto os prazos de reformas e o calendário eleitoral, mas qual a trajetória que se pretende seguir além do fim do ano. É um ponto de interrogação respondido até aqui com a reiteração de um conjunto de intenções (“privatizar”, “desburocratizar”, “avançar nas reformas”), no momento dependentes das eleições municipais e da sucessão das duas Casas Legislativas. Ou seja, “mañana”.

Nos círculos bem dentro do governo o aviso estridente do presidente do Banco Central foi entendido como um recado ao próprio Bolsonaro. Teme-se no Ministério da Economia que o presidente se sinta em prazo não muito distante na contingência de ter de ligar para Campos Neto e pedir para ele não subir os juros. Pois é o “sentir” de Bolsonaro em relação à política – nada fazer que arrisque perda de popularidade – a principal causa da apenas aparente dificuldade de se aprovar matérias relevantes: “até as eleições vamos para uma agenda de baixo custo político”, resume um dos homens mais próximos ao presidente.

Custo político é fácil de definir: qualquer decisão em qualquer das áreas que tem impacto direto na questão fiscal (tributária, administrativa e do pacto federativo) causará prejuízos a grupos organizados (econômicos, políticos, corporativos), a entes como municípios e Estados e a agrupamentos como igrejas. Não tomá-las também, com o agravante de que a conta fiscal não está esperando que o peculiar mundo do poder em Brasília se mova em qualquer direção.

A única direção clara é Bolsonaro ter subordinado tudo ao projeto de reeleição. Alguns de seus ministros mais próximos admitem em conversas particulares que as agendas de reformas e transformação poderiam ter sido tocadas de forma mais rápida, que esperar pelas eleições municipais era desnecessário para tratar de renda básica, que o presidente, ao “dar uma virada na política” e conseguir “domar o establishment” (qualquer que seja o significado disso), entregou a chave do cofre para o Centrão e que agora ele precisa de mais um mandato para realizar o que prometeu antes de ser eleito em 2018.

Autoengano, indicam episódios da nossa História, é coisa contagiante e, às vezes, vira fenômeno coletivo.

*Jornalista e apresentador do Jornal da CNN


William Waack: Política da miséria

O dilema que a direção política em Brasília não consegue resolver é simples e grave

Vamos simplificar a política brasileira. Ela cabe hoje em poucos números, que não são bonitos. Um deles: em 1,5 mil municípios brasileiros a ajuda emergencial de R$ 600 por conta da pandemia DOBROU a massa de salários do setor formal. É um retrato cruel da miséria brasileira.

Essas localidades se espalham pelo País inteiro com notável concentração no Norte e Nordeste. Mesmo no Sul e Sudeste, porém, em mais de 1 mil municípios a massa de salários do setor formal aumentou pela metade com o auxílio emergencial. Ocorre que esse efeito tem data para acabar: dezembro, com o fim do coronavoucher.

A essência do debate político pós-pandemia concentrou-se apenas nesse aspecto: como financiar um programa social que faça a transição da “emergência” para uma “renda básica”. Foi um dos raros elogios que a revista Economist dedicou ao governo brasileiro nos últimos tempos. A melhor conduta em países pobres como o nosso, assinalou a publicação, é mesmo dar dinheiro direto nas mãos das pessoas.

Depois de esperar em vão pela fórmula mágica de onde tirar esse dinheiro – fórmula que, se presumia, existisse no Ministério da Economia –, o presidente Jair Bolsonaro trouxe a bordo de sua coordenação política mãos experientes como as do senador Renan Calheiros. De quem ganhou fortes elogios por estar desmontando o “Estado policialesco” da Lava Jato e por ter passado a praticar não a “velha” ou a “nova” política mas, sim, a “boa” política.

Ela consiste há décadas em acomodar os mais variados interesses (como subsídios, renúncias fiscais, penduricalhos de salários, supersalários, entre muitos outros componentes de gastos públicos que sempre crescem) aumentando a carga tributária. De jantar em jantar de confraternização – Brasília parece de novo tão “normal” –, a pergunta é apenas qual será a fórmula de um novo imposto – dirigido contra o “andar de cima” ou não, mas novo imposto.

Quando o noticiário político produz todas as noites a confusão entre qual reforma, qual PEC, qual pacto, qual PL ou qual voz está valendo para definir os rumos, ele está apenas refletindo a falta de plano, foco e estratégia de um governo interessado só em reeleição. Soa contundente, e é: há pouco crédito quando o ministro da Economia reitera que tem um “road map” para a recuperação da economia. O que há é uma infindável manipulação de prazos regimentais em função de calendários eleitorais, como se dependesse da eleição de prefeitos a arrumação do País e a passagem do tempo resolvesse os problemas.

É verdade que são discretos ainda, mas já não dá para se ignorar os murmúrios em setores da economia preocupados com a subida dos juros a longo prazo, a deterioração do câmbio, a velocidade e a sustentação da recuperação pós-pandemia. Que se assume que será mais lenta do que a recuperação lá fora e nem um pouco homogênea (os exemplos mais fortes estão no contraste entre construção civil, no lado que volta a sorrir, e o de serviços como turismo e gastronomia, entre outros).

Nota-se clara convergência entre os relatórios de grandes bancos, o próprio Banco Central e o FMI quando se trata da crescente preocupação que essas várias instituições manifestam frente à dívida pública e à situação fiscal. No fundo, elas se voltam de olhos cada vez mais arregalados para a política brasileira diante de seu dilema: como proteger as camadas mais vulneráveis, que ficaram ainda mais vulneráveis, sem arrebentar a credibilidade do trato das contas públicas.

O problema é, simplesmente, miséria.

*Jornalista e apresentador do jornal da CNN


William Waack: Lição do debate americano

Disputa indica uma crise constitucional, já que Donald Trump só aceita um resultado: sua vitória

Não são nada boas as evidências trazidas pelo debate entre Donald Trump e Joe Biden sobre o estado geral da política americana. O debate trouxe a cara feia do que até há pouco era impensável: uma crise constitucional provocada por uma eleição de resultados contestados. Com Trump dizendo que só aceita um: o da sua vitória.

O que acontece no sistema político americano pesa de forma desproporcional no resto do mundo. Especialmente quando o país que serviu de referência – “a cidade de luzes no topo da colina”, na clássica definição – vai deixando de ser exemplo positivo.

Os Estados Unidos são um país muito grande, muito rico, muito poderoso e que exerceu grande atração como modelo de vida pública e virtudes civis (há séculos, por sinal). Mas o debate da terça feira fez saltar aos olhos como se acelerou essa “virada para dentro”, o “deixa prá lá” em relação ao que se assumia como sendo o papel dos Estados Unidos de “nação líder” (pode-se gostar ou detestar esse papel, mas não dá para ignorar).

Nota-se na falta de conteúdo substantivo do debate a presença de uma espécie de doença infecciosa espalhada de tal maneira a ponto de grandes temas de formulação de políticas domésticas e internacionais mal receberem menções – uma das poucas foi sobre desmatamento da Amazônia, provavelmente pela sensibilidade que Joe Biden julga detectar no eleitorado democrata. É como se fosse uma “amnésia” em relação ao resto do planeta, assinalam comentaristas americanos.

Um deles é Adam Garfinkle, fundador e editor da imperdível publicação “The American Interest” (que tem no seu quadro de colaboradores nomes como Francis Fukuyama, Walter Russel Mead, Robert D. Kaplan, Niall Ferguson). Ele vai ao ponto de dizer que a sociedade e política americanas vivem um “estado geral de loucura” do qual Donald Trump não foi o iniciador. Mas que ajudou a acelerar, passando a representar a “quintessencia” de um tipo de desorientação geral típico de quem se perde numa sala de espelhos.

Para Garfinkle, constatar que Trump está ativamente empenhado em solapar as instituições democráticas americanas (seu destaque favorito é a politização do Departamento de Justiça) não significa dizer que o outro lado é “bom”. “Os democratas podem parecer relativamente menos perigosos para normas e princípios americanos, mas suas divisões internas e seus julgamentos equivocados não os tornam admiráveis. Por serem meramente incompetentes em vez de imorais não os torna bons na linha do tradicional provérbio de que dois erros não compõe um acerto”, escreveu.

Já é lugar-comum afirmar que no ambiente político americano (no brasileiro também, diga-se de passagem) as pessoas não conseguem concordar em sequer quais são os fatos. Não é de hoje que a política se tornou um espetáculo de imagens rápidas, mais compatíveis a eventos de esportes brutais, nos quais o entretenimento tem total precedência. Quando tudo vai se limitando a 140 toques, e ao “joinha” no pé da postagem, esse tipo de debate acaba sendo o espelho da perda do hábito da leitura e, sobretudo, da reflexão.

É o tipo da situação na qual tanto democratas quanto republicanos colocam o “sound bite” (a “sonora”, na gíria televisiva brasileira) adiante de qualquer substância, as teorias conspiratórias na frente de qualquer abordagem racional ou de substância. De novo, não é Trump o “inventor” desse tipo de fenômeno – muito conhecido também na nossa política. Mas é ele quem se esmera em tirar todo partido possível do desrespeito às regras não escritas de convivência dentro da civilidade e do respeito à opinião alheia e, sem dúvida, da mentira descarada.

A julgar pelo que ele mesmo disse no debate, Trump terá de ser forçado para fora da Casa Branca, mas mesmo uma clara e inequívoca derrota dele não fará o relógio voltar para trás. O que pareceu perdido no espetáculo do debate de terça à noite foi o que tanto fascinou sobretudo comentaristas europeus desde o século 18: o espírito de comunidade, de virtudes civis e de dedicação ao bem comum da tal “cidade das luzes no alto da colina”.

*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN


William Waack: De quem é a culpa

Por não entender o que acontece lá fora, governo perde guerra da comunicação

A situação internacional que o Brasil enfrenta em relação às políticas ambientais de Jair Bolsonaro é séria e perigosa. Vamos olhar o que acontece do ponto de vista da comunicação, deixando para especialistas dos vários outros setores o mérito de questões específicas.

Existe desinformação no que se diz e se publica sobre o que acontece na Amazônia e no Pantanal? Sim. Existem interesses de competidores comerciais incomodados com a capacidade brasileira de produzir grãos e proteínas? Sim. Existem organizações (partidos, ONGs, instituições religiosas) com agenda político-ideológica atacando um governo (o brasileiro) por considerá-lo seu adversário? Sim.

Nada disso é novidade nem começou com Bolsonaro. Mas o governo está sabendo enfrentar essa batalha da comunicação? Não. Faltam aos que tomam esse tipo de decisões em Brasília dois elementos fundamentais que ajudam a entender a natureza deste que é um dos maiores desastres de comunicação em escala internacional.

O primeiro elemento é a falta de compreensão do fenômeno lá fora, mas não só. Por incrível que pareça, o governo brasileiro não entendeu a abrangência, a profundidade e o peso da questão climática e ambiental na sua escala planetária. Se isto era, nos idos da Rio 92 (quando o Brasil se preparou muito bem para o que viria), uma agenda de instituições multilaterais e de governos, empurrados em parte por ONGs, hoje a questão ambiental molda nosso “Zeitgeist”, o espírito de uma época, e condiciona a percepção da realidade de gerações inteiras de atores políticos, instituições, governos, consumidores, empresários, grandes corporações no mundo inteiro.

Há um notável apego de ocupantes de gabinetes no Planalto, especialmente generais estrelados, em enxergar no tsunami negativo lá fora em relação ao Brasil articulações contra a nossa soberania em geral e nosso governo em particular – um esquema mental diretamente transferido dos anos setenta para uma realidade muito mais complexa do que conspirações geopolíticas para negar ao Brasil seu direito manifesto de ser uma grande potência. Em outras palavras, embarcaram na guerra de ontem.

O segundo elemento que ajuda a entender o desastre de comunicação é o apego a táticas político-eleitorais – como a negação de fatos, o “deixa que eu chuto”, o xingamento do adversário, a efervescência nas redes sociais – que funcionam no ambiente polarizado de eleições. Mas que tem se mostrado inócuas em escala internacional. O “enfrentamento” duro do adversário, real ou percebido, até aqui não avançou os interesses do Brasil.

Ao contrário, se há algo que o “altivo” discurso de Bolsonaro evidencia quanto à “estratégia” de lidar com a crise internacional de imagem brasileira é a de que ele não tem nenhuma – além de satisfazer seus seguidores domésticos. E não estamos falando de danos subjetivos ou de “percepções” deste ou daquele dirigente ou personagem do debate ambiente versus economia (totalmente superado até na China): estamos falando de danos concretos à capacidade do Brasil de competir nos mercados que interessam.

O extraordinário de tudo isso é que o Brasil tem, de fato, lições a dar em matéria de meio ambiente e de como aumentar a produção de grãos e proteínas de forma sustentável e socialmente responsável. Tem lições a dar em matéria de matrizes energéticas. Dispõe de sólida tradição diplomática (hoje abandonada) na busca de decisões por consenso e cooperação multilaterais. E uma imagem (ainda que cada vez mais distante da realidade social) de um país aberto, simpático, tolerante e bonito.

São ativos desprezados na batalha da comunicação. Enfrentar o que estamos enfrentando lá fora em termos de imagem não é culpa dos outros, dos insidiosos adversários. É nossa, mesmo.

*Jornalista e apresentador do jornal da CNN


William Waack: Desentendimento ao quadrado

Sufoco fiscal está levando o governo a um notável bate-cabeça

Como indivíduo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, está provando ao mercado que resiste mais a pancadas do que inicialmente se supunha. Mas o que importa para agentes econômicos – a confiança na reputação – foi bastante danificada.

Nem tanto por um presidente errático que só pensa naquilo (reeleição) – isto estava, como se diz em economês, “precificado”. Mas, sobretudo, pela rápida e imprevisível mudança dos dados da realidade que impuseram ao governo uma radical alteração de rumo para adaptar assistencialismo (imperativo imediato político e humanitário) à catástrofe fiscal que o próprio Guedes anunciou (problema que vem de longa data).

Se é que existia anteriormente um rumo claramente definido e sendo implementado. Parece que não havia, além de um conjunto de diagnósticos sobre causas de um país estagnado aliado a frases fortes de efeito eleitoral prometendo “mudar tudo que está aí”. O que se evidencia agora, porém, é a ausência de plano para além da contingência.

Bolsonaro entrou numa armadilha nem um pouco original: obrigado a gastar o que não tem. Está, de fato, tolhido por um orçamento engessado que a falta de vontade e articulação políticas contribuíram para deixar no lugar. Sufocado por uma crise fiscal cujo tratamento depende (sim, é repetitivo) de eficaz movimentação POLÍTICA para superar obstáculos rumo a reformas essenciais, como a tributária e a administrativa.

E pressionado pelo calendário eleitoral dos deputados, já voltados para as eleições municipais, e o dele mesmo, o da reeleição. Nesse ambiente, Bolsonaro se rebela com seus característicos arroubos (“cartão vermelho para quem falar em Renda Brasil”) como quem de repente é confrontado com uma realidade profundamente desagradável: a da situação para a qual não existem saídas mágicas.

Foi essa singela constatação que o levou a esbravejar contra a própria equipe econômica, da qual ele obviamente desconfia que lhe prometeu mais do que seria capaz de entregar. Quer continuar prestando ajuda emergencial, que proporciona excelentes dividendos políticos? Então vai ter de cortar em algum outro lugar. Quer criar um benefício social permanente, para chamar de seu? Então precisa rever outros.

Não se sabe exatamente quanto Bolsonaro ouve do tanto que Guedes fala, mas até aqui o mantra tem sido repetido com ênfase: não haverá furo no teto de gastos. Pode-se chamar investidores internacionais ou detentores de títulos brasileiros de míopes ou abutres (palavra preferida por argentinos, por exemplo), mas é fato que eles estão com a atenção concentrada num só aspecto, que é a questão fiscal.

Vem daí – do acompanhamento da evolução da dívida bruta do País em relação ao PIB, e como a política trata disso – uma outra constatação relevante para a equipe econômica: o principal fiador de sua credibilidade hoje lá fora já não é tanto Paulo Guedes, mas, sim, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. É a supremacia da questão fiscal escrita com letras garrafais.

Como se sabe fartamente, não é um problema técnico, mas de natureza essencialmente política. No sentido de que o governo é obrigado a fazer escolhas, não vai conseguir agradar a todos, e essas escolhas são condicionadas por fatores políticos e acarretam consequências idem. E o principal problema de Bolsonaro parece ser o de ter de tomar decisões.

No espetáculo público que seguiu à decepção do presidente com a ausência de fórmulas mágicas, Bolsonaro e Guedes assumiram, contou Guedes, que um não entende de economia e outro não entende de política. É o tipo de observação engraçada numa conversa de boteco, mas que leva os agentes econômicos, que não acham graça em perder tempo ou dinheiro, a uma conclusão cínica: juntar dois maus entendedores não resulta, eventualmente, em um meio entendedor.

Acaba em desentendimento ao quadrado. Ou se chama rápido o Centrão, que é o que está acontecendo.

*Jornalista e apresentador do jornal da CNN


William Waack: Acomodados

Nossa sociedade se acostumou a acomodar interesses pendurando a conta nos cofres públicos

É difícil e pode causar indisposição, mas, se for possível ignorar aspectos morais quando se registra o perdão de dívidas concedido pelos deputados a igrejas, percebe-se que o ocorrido nada tem de anormal. Ao contrário: é o jeitão característico da nossa sociedade, acostumada a acomodar interesses setoriais pendurando a conta nos cofres públicos, quer dizer, em quem paga impostos.

As igrejas compõem um desses “interesses setoriais” e constituíram-se nas últimas quatro décadas num lucrativo negócio graças a uma profunda transformação cultural (associada à perda de valores tradicionais e ao recuo da Igreja Católica, mas este não é o objeto deste texto). Desenvolveram-se também como importantes fatores da política, não apenas pela capilaridade (base de seu poder econômico), mas, principalmente, por terem se tornado muito relevantes na “guerra cultural”, que é uma luta política.

É bastante óbvio que o poder político e econômico explica a maior ou menor capacidade de “interesses setoriais” de obter a acomodação que pretendem. Excelente exemplo está no debate sobre a reforma tributária, um verdadeiro tratado antropológico sobre a realidade brasileira, na qual o privado tem predominância sobre o público. Existe uma espécie de consenso social segundo o qual esse estado de coisas, do ponto de vista moral inclusive, surge como perfeitamente adequado.

A essência desse debate, em meio ao enorme sufoco fiscal, é estabelecer quais interesses setoriais terão de renunciar ao que consideram seus direitos adquiridos. A desoneração de folhas de pagamento, por exemplo, abrange pelo menos 17 setores ou segmentos da economia, que já consideram essa renúncia como uma espécie de “direito”. O mesmo ocorre com incentivos, proteções, subsídios a juros, manutenção de programas especiais de fomento. A força política de cada setor interessado criou um equilíbrio na estagnação, pois o resultado geral (entendido como capacidade de expansão da economia do País) acaba sendo medíocre, mas cada um se defende bem no seu pedaço.

Pode-se seguir adiante nesse raciocínio e ampliá-lo para a questão da reforma do Estado via reorganização do funcionalismo público, cujo peso nas contas públicas é célebre. Os “interesses setoriais” nesse caso estão na elite dos servidores do Estado, naquilo que os sociólogos da velha escola chamariam de “estamentos burocráticos” com inigualável peso nas instituições e formidável capacidade de defender o que consideram “seu”. Não há lideranças capazes no momento de compor todos os interesses ou de fazê-los convergir para qualquer coisa que se possa chamar de “bem comum”.

Não deixa de ser curioso notar que a defesa do perdão das dívidas das igrejas com a União alega que a Receita Federal teria se colocado acima da Constituição e desprezado a imunidade que essas entidades desfrutam quanto ao pagamento de impostos (mas não de contribuições como a previdenciária). Implícita está a noção de que os agentes do Estado brasileiro se comportam de forma autônoma, isto é, eles fazem as leis. Tenham ou não razão em seu pleito (é evidente quem, neste caso, não tem), os representantes das igrejas apenas engrossam um coro muito amplo.

Há mais um paralelo irônico com a mais recente fase da Operação Lava Jato, voltada contra escritórios de advocacia que, segundo a denúncia oferecida pelo Ministério Público, recebiam dinheiro do Sistema S (sustentado por dinheiro público) para “azeitar” decisões em várias instâncias de órgãos de controle e do Judiciário relativas a interesses setoriais. Quando se fala em corrupção sistêmica no Brasil, na verdade está se falando de uma forma de acomodação.

À qual, é triste ter de dizer isso, estamos acostumados.


William Waack: Luta abandonada

Na prática, o governo desistiu de controlar despesas via reforma administrativa

Talvez por sentir que não tem forças políticas para uma briga difícil. Por falta de apetite para enfrentar uma corporação organizada e que sabe defender seus interesses, direitos ou privilégios adquiridos (cada um nomeia como quiser). Ou ambos. Mas o fato é que a principal luta política de Bolsonaro foi abandonada.

O governo prometeu entregar hoje ao Congresso uma reforma administrativa que trata apenas dos servidores de amanhã, e não toca no sistema de interesses, direitos ou privilégios adquiridos (nomeie como quiser) atuais. Na prática, não vai pegar de frente a questão do controle do crescimento de despesas públicas, nas quais as folhas de pagamento do funcionalismo figuram com tanto destaque.

Chega a ser fascinante observar como o atual governo, que ia reformar o Estado e mudar o Brasil, trata obstáculos formidáveis no seu caminho como se o tempo fosse resolver tudo. Nenhum governo recente se revelou capaz (e este segue do mesmo jeito) de controlar o crescimento real de gastos públicos. Nenhum conseguiu escapar (e este vai na mesma toada) de um orçamento ridiculamente engessado: 94% do Orçamento são despesas obrigatórias.

Um consenso abrangente reina entre academia, economistas, cientistas políticos, parlamentares experientes e o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes. É sobre o tamanho do imbróglio. Arrumar dinheiro para gastar depende de reforma tributária, que depende de um pacto federativo para acomodar todos os interesses contraditórios, que depende de uma reforma tributária que enfrente renúncias e isenções, que depende de uma reforma administrativa que controle despesas públicas e tudo isso depende de vontade e lideranças políticas.

É igualmente notável a ausência de uma resposta clara e direta quando se pergunta por onde e como o governo quer atacar a questão. Seu eixo estratégico – a reforma administrativa e o pacto federativo tinham sido declarados como tais há quase dois anos – se perdeu por fatores que o governo controlou ou minorou apenas parcialmente (a crise de saúde pública e a recessão) aliados ao ambiente político que colocou Bolsonaro claramente na defensiva.

É evidente que o impulso inicial por reformas, se autêntico alguma vez, substituído foi pela necessidade de sobrevivência política. Por sua vez, subordinada às questões jurídicas e policiais que afetam o clã Bolsonaro, mas, também, pela urgência trazida pela imperiosa obrigação de acudir milhões de necessitados. Não há qualquer outra prioridade: sobreviver para se reeleger.

O presidente reconhece que não tem recursos para pagar indefinidamente um coronavoucher que chegou a custar R$ 50 bilhões por mês. Que não está disposto a topar uma briga para mexer em interesses, direitos ou privilégios adquiridos, ou seja, tem graves dificuldades para reduzir aumento de gastos. E que ainda aguarda uma “fórmula”, a cargo da Economia, para compensar perda de arrecadação de um lado com necessidade de gastar por outro.

Se havia nesse governo eleito para “mudar o Brasil” uma visão de longo prazo, a crise atual a destruiu. É possível identificar no cálculo político do presidente a esperança de que a tal “recuperação em V” propalada por Guedes (que até aqui os números desmentem), impulsionada por marco do saneamento, agronegócio, lei do gás e liquidez internacional, abra o espaço fiscal para os programas de renda e de crescimento.

Mas foi jogando para frente, para o próximo mês, para a próxima semana, para o próximo dia, o enfrentamento das questões fundamentais que Bolsonaro caiu na situação atual, da qual não tem opções fáceis de saída do ponto de vista político nem econômico (como “salvar” o PIB distribuindo ajuda emergencial).

Pode-se atribuir a Bolsonaro muitas coisas, mas cinismo não figura no alto da lista. Talvez isso dificulte a ele entender que são efêmeras a lealdade política de partidos do Centrão e a popularidade compradas com emendas, cargos e ajuda emergencial.