William Waack

William Waack: Sem resposta simples

Vista de fora do Brasil, a onda bolsonarista desafia interpretações

Vista de Nova York, onde estou palestrando para investidores estrangeiros, a onda que levou Bolsonaro aos seus 50 milhões de votos no primeiro turno é uma jabuticaba política brasileira ou simplesmente a expressão de um fenômeno autoritário com variadas ramificações mundo afora?

Pelo menos três elementos a política brasileira tem em comum com ondas semelhantes na Ásia, Europa e Estados Unidos. Eles são: o descrédito e a desconfiança do eleitor em relação a instituições tradicionais, incluindo perda de credibilidade dos grandes órgão de imprensa; a presença de fortes redes sociais que impulsionam “outsiders”; uma situação de crise ou paralisia na economia (no caso brasileiro, a pior recessão em gerações).

Aos elementos acima teríamos de acrescentar partidos desmoralizados, sistema político destruído, e as consequências da Lava Jato como expressão de indignação e raiva que vem já desde 2013. Ou seja, aos elementos comuns a muitos países somam-se fatores domésticos de alta relevância.

O “fenômeno político Bolsonaro” atraiu enorme atenção fora do Brasil – e dificuldades de interpretação idem. O mínimo denominador comum encontrado entre publicações normalmente divergentes entre si (como The Guardian ou Economist), por exemplo, foi o de ressaltar perigos severos à democracia. A palavra “fascista” aparece em publicações como Der Spiegel, revista importante num país no qual esse vocábulo tem peso muito especial. Mesmo o Financial Times, que provavelmente tem a melhor cobertura do Brasil na grande imprensa internacional, vê na figura de Bolsonaro o prenuncio de tempos duros – a inversão de uma tendência, segundo o FT, que o Brasil também simbolizara ao sair do regime militar há mais de 30 anos.

Para comediantes da telinha americana como John Oliver, a eleição brasileira virou piada pronta, com a exibição das aberrações de propaganda eleitoral produzida por candidatos a deputado, passando por Lula na cadeia (aqui fora se acha mesmo piada que um presidiário surgisse como favorito nas pesquisas eleitorais) e chegando até algumas das frases mais contundentes de Bolsonaro – aqui, segundo o humorista, acaba a graça.

A “guerra cultural” brasileira invadiu também o espectro de opiniões nos Estados Unidos, com o Wall Street Journal reconhecendo em editorial que progressistas no mundo inteiro ingressaram em “estado de ansiedade” desde que os brasileiros deram votação tão expressiva a Bolsonaro. Mas não será o próprio eleitor brasileiro que sabe melhor que ninguém de qual candidato precisa?, indagou o WSJ.

Quanto aos investidores estrangeiros, concentrados em grande número em Nova York, a política brasileira se resume a uma pergunta: “Can he deliver?” – Bolsonaro consegue entregar o que precisa ser feito, na perspectiva de quem pretende pôr dinheiro no nosso país, ou seja, ele consegue as reformas necessárias para atacar a questão do gasto público e a recuperação da capacidade de investimento na economia?

Confesso que não consegui dar a eles uma resposta simples. É óbvio que a onda do fim de semana passado mudou bastante a política e sugere desdobramentos de alcance maior do que a capacidade de se construir maiorias para votações na Câmara dos Deputados. A onda desenha uma oportunidade que pode ser ampliada com o “capital político”, como gostam de dizer os economistas, que Bolsonaro está acumulando.

Soa esperançoso? Depende para trazer resultados de uma capacidade de articulação e liderança políticas que até agora ninguém demonstrou.


William Waack: O sonho mirabolante

O ‘nacional-desenvolvimentismo’ do PT é parte de ideário nacional quase, infelizmente, ‘atávico’

São espetaculares os termos da delação do ex-ministro Antonio Palocci cujo sigilo foi levantado pelo juiz Sérgio Moro. Não chegam a ser exatamente “revelações”, mas comprovam de maneira assombrosamente clara como foi produzido o desastre no qual se enfiou o Brasil. Catástrofe na qual o PT e seu chefão, Lula, tiveram papel de liderança e conduta, mas que envolveu amplos círculos do mundo da política, dos negócios, da economia e setores importantes da sociedade civil.

Não, não é a parte que fala de propina, ilicitudes, grana correndo por dentro e por fora e os mais variados crimes de corrupção. É a parte, no anexo 1 da delação, na qual Palocci relata como a descoberta do pré-sal levou Lula, em 2007, a ter “sonhos mirabolantes”. E como o governo vislumbrava um país riquíssimo, e, para isso, se determinava a construção de 40 navios sondas – e a consequente “fundação” de uma indústria naval completa – para a nacionalização e desenvolvimento do projeto do pré-sal, pelo seu interesse social e pela possibilidade de alavancar a indústria nacional.

Estão aí os elementos centrais (políticos, sociais e econômicos) do “nacional-desenvolvimentismo”, que é, talvez, o pior conjunto de ideias capaz de explicar a baixa produtividade, a baixa competitividade, o atraso relativo e a distância que o Brasil vê aumentar em relação às economias avançadas, tanto pelo ponto de vista das nossas relações de trabalho e sociais quanto à nossa capacidade de participar da era da geração do conhecimento.

O “nacional-desenvolvimentismo” dos militares ainda tinha um componente focado em infraestrutura e ocupação de território, enquanto o “nacional-desenvolvimentismo” do lulopetismo desandou para a “nova matriz econômica” dos subsídios, proteções, controle de preços (mais prejudicial à Petrobrás que a totalidade da grana desviada pelos companheiros do PT, PMDB e PP) e anabolizantes de consumo via crédito.

Impossível dizer que os “sonhos mirabolantes” do então presidente fossem delírios saídos de uma só cabeça. O “nacional-desenvolvimentismo” do PT vem de uma longa tradição que capturou também cabeças pensantes do mundo empresarial, acadêmico e político. É parte de um ideário nacional quase, infelizmente, “atávico” e com raízes já anteriores ao varguismo. E seu retrato 3 x 4 moderno só poderia ser o de Dilma Rousseff – para ser colocado na parede com a legenda: “esta é a cara do nacional-desenvolvimentismo”.

Nestas eleições, nas quais a corrupção (com razão) e a insegurança pública (com razão) ocupam um espaço tão importante na maneira como os eleitores encaram os candidatos, ficou em plano muito inferior qualquer debate sobre o conjunto de ideias, sobre o “sonho mirabolante” transformado em pesadelo – e nem estamos falando de seus aspectos éticos e morais. Por mais paradoxal que pareça, dadas a profundidade e a abrangência do fracasso econômico, uma relativamente gigantesca fatia da sociedade é sensível às mesmas promessas e aos mesmos postulados ligados ao atraso, à ineficácia, à estagnação.

Para muita gente, muita mesmo, é mais fácil encarar as mazelas do momento como o resultado da ação de políticos incompetentes, perdulários, corruptos e que agem apenas em benefício do próprio bolso ou de seus grupos. E que uma vez lavado tudo isso a jato, as coisas voltam a funcionar e o País a crescer e a gerar prosperidade. É um grave engano, mas quem disse que elites inteiras não se enganam?


William Waack: Apelos ao ‘razoável’

Talvez seja o momento de lamentar nossa evidente falta de verdadeiras lideranças

Não acho que as opções mais prováveis que se colocam diante do eleitor após o primeiro turno – a julgar pelo cenário trazido pelas pesquisas mais recentes, seria o confronto Fernando Haddad versus Jair Bolsonaro – sejam uma escolha de Sofia ou possam ser descritas como dilema do prisioneiro.

A primeira é a horrível situação, descrita no filme com Meryl Streep sobre a rampa de seleção em Auschwitz, em que qualquer escolha implica uma tragédia. O segundo é uma adaptação da Teoria dos Jogos, segundo a qual escolhas individuais visando exclusivamente a interesse próprio (nesse contexto, o voto anti-Bolsonaro ou o voto anti-PT) acabam produzindo um resultado coletivo pior para cada indivíduo.

Acho que a questão essencial neste momento é tentar entender a natureza do fenômeno que enfrentamos na próxima votação – duas posturas radicalmente opostas, antagônicas e, a julgar pelo palavreado em curso, irreconciliáveis. Trata-se de ocorrência efêmera, típica de polarização em disputa eleitoral, ou, ao contrário, de uma profunda transformação da política brasileira caracterizada, antes de mais nada, pelo “esfarelamento” do que se poderia descrever como “centro”, “moderação” ou “equilíbrio”?

Tendo pela segunda hipótese. Em primeiro lugar, não é nada novo o fenômeno da resistência ao lulopetismo, que é a expressão do que há de retrógrado e atrasado na política brasileira, resistência que levou ao impeachment de Dilma Rousseff e a resultados de eleições como as municipais de São Paulo de 2016. Em segundo lugar, em oposição à ferocidade como o lulopetismo se dedicou (em parte com dinheiro público desviado, como hoje sabemos) a destruir seus adversários políticos, encarados sempre como “inimigos do povo”, cresceu um vigoroso movimento pendular contrário, com capilaridade, abrangência e características próprias de uma “guerra cultural” (ou seja, de afirmação ou negação de valores).

No meio desse movimento foram apanhadas elites pensantes que, à falta de um projeto de País razoavelmente desenhado, e em dúvida sobre as próprias ideias, parecem pregar a um deserto de ouvintes – e que se sentem “órfãos” de representação – os valores democráticos, harmonia, estabilidade, coesão de princípios e o que mais pareça bonito, socialmente responsável e capaz de arrancar aplausos de gente “razoável”.

Neste momento difícil da política, as bandeiras “moderadas” ou “centristas” (não confundir com “Centrão”) realmente parecem empunhadas por quem, perdoem a expressão chula, se veste de freira num bordel.

É óbvio que as pessoas “razoáveis” estão à mercê de uma onda que parece ter demonstrado seu tamanho (o candidato Jair Bolsonaro estacionado na ponta das pesquisas de intenção de voto), mas que está muito distante ainda de dizer para onde eventualmente nos levará.

Diante dessa onda, é claro que gente “razoável”, com convicções políticas “razoáveis” e disposta a entendimento entre “razoáveis”, lamenta que se tivesse deixado pela metade reformas de Estado, que se tivesse defendido timidamente o que parecia fazer parte “firme” de seu ideário econômico mais “liberal”, que, em busca do que é “pop”, se tivesse dado tanta crença a marqueteiros e que se esquecesse das estratégias políticas de maior alcance.

Dignos apelos ao que se possa considerar “razoável” não surtiram nem me parece que surtirão efeitos a curto prazo. Talvez seja o momento histórico em que mais se deva lamentar nossa evidente falta de verdadeiras lideranças.


William Waack: Medo e indignação

Não me parece que Jair Bolsonaro seja o criador da onda que está surfando

Está bem claro que nesta eleição vai se decidir contra alguma coisa, e não por alguma coisa. A maioria do eleitorado é a cara do fenômeno dos dispostos a romper “com o que está aí”. Provavelmente, encerra-se o período histórico iniciado com a saída do regime autoritário e a promulgação da Constituição de 1988. As grandes forças e o sentido político que se sobressaem nesta reta final da eleição claramente consideram obsoletos os sistemas político e boa parte das instituições que ali se consolidaram.

Alguns elementos que indicam o futuro próximo são bastante óbvios. A tendência do eleitorado em direção a figuras autoritárias é o mais notável desses elementos. O líder das pesquisas, Jair Bolsonaro, diz que resolve tudo praticamente no tapa, enquanto a agremiação política que parece, no momento, a que vai disputar o segundo turno com ele, o PT da corrupção, é o símbolo perfeito para a constatação de que enorme número de brasileiros não entende quais ideias erradas, entre elas a de que vontade política tudo resolve, levaram o País ao desastre. Estamos presenciando o enterro do “sonho” social-democrata tipo punho de renda do tucanato. O que havia de social-democracia no PT já havia sido sepultado pela avalanche de corrupção, cinismo e mentira.

Não existe neste momento um “centro”. O eleitorado raivoso clama por uma solução rápida – que a magnitude dos problemas enfrentados sugere ser impossível, mas não importa. Esse mesmo espírito do “vamos chutar o pau da barraca” prefere sonhar com passos para conter a crise que venham de fora da política, ou que sejam anunciados como soluções vindas de “fora do sistema”. Em outras palavras, e isso é bastante preocupante, há uma enorme aceitação da promessa de se resolver questões (como o déficit fiscal, que criaria perdedores por toda parte) sem considerar a necessidade de compromissos e de articulação política muito mais abrangentes do que conseguir 308 votos para maiorias na Câmara dos Deputados.

Há uma imensa desconfiança em relação às instituições e uma das mais recentes a serem devastadoramente atingidas é a da imprensa em geral, e dos grandes grupos de comunicação televisiva em especial. É assombroso como o jogo se inverteu, e em que velocidade: atacar esses colossos que antes eram capazes de determinar o futuro de políticos é o que hoje confere estatura a políticos, e vários se dedicam com êxito a lucrar em prestígio e simpatia no eleitorado fazendo uso em causa própria dessa espantosa perda de credibilidade (em boa medida, por cegueira política e covardia de dirigentes).

Numa sociedade com índices espantosos de violência, e alguns sinais graves de anomia (como na greve dos caminhoneiros), não deveria causar espanto algum a força com que medo e indignação empurram a candidatura de Jair Bolsonaro – e um atentado ter influenciado tanto a disputa.

Não me parece que o ex-capitão seja o criador da onda que está surfando – até agora com boa vantagem sobre os rivais. Talvez ele seja a expressão acabada de que o bom mocismo, o politicamente correto tivessem sido apenas delírios de elites dedicadas a si mesmas e vivendo em bolhas confortáveis em meio a um país pobre, desigual, ignorante e atrasado (basicamente as mesmas mazelas enfrentadas pela geração que escreveu a Constituição de 88).

O atraso, o retrocesso, o desastre e os malefícios trazidos durante os 13 anos de populismo irresponsável do lulopetismo já conhecemos bastante bem. Para onde vamos agora é uma completa incógnita. O que sairá do que acredito ser a destruição da política brasileira tal como a conhecemos por mais de 30 anos ninguém sabe.


William Waack: A ‘voz rouca’ das ruas

Candidaturas se articulam por ‘onda’ de voto útil bem antes das famosas 36 horas finais

A consagrada expressão “voz rouca” das ruas deve vir do fato de que uma voz rouca mal se distingue, às vezes nem se entende, sugere algum problema afetando as cordas vocais e o som se parece a alguma coisa gutural, vinda de um fundo indefinido.

Pois mesmo assim a rouca voz das ruas no Brasil está dando um recado inconfundível na reta final para o primeiro turno das eleições. Ela já diminuiu pela metade o tamanho do grande ponto de interrogação que perdurava até poucos dias atrás, e parece ter colocado Jair Bolsonaro confortavelmente no segundo turno.

Bolsonaro atende exatamente a essa “demanda” rouca das ruas e espalhada (a julgar pelo mais recente Ibope) por segmentos dos mais diversos em termos de idade, condição socioeconômica, gênero, raça e escolaridade – ao mesmo tempo em que esse candidato enfrenta renhida rejeição nos mesmos segmentos mencionados. Haja rouquidão!

Na metade que sobrou do grande ponto de interrogação – quem vai para o segundo turno contra Bolsonaro – desponta como um candidato bastante competitivo no empate quádruplo o nome de Ciro Gomes. Não importa o que Bolsonaro ou Ciro tentem transmitir sobre qualquer assunto, ambos se destacam fortemente pela contundência.

É aquilo que os analistas de pesquisas chamam de “autenticidade”, um fator que boa parte do eleitorado parece prezar hoje acima do que candidatos estão dizendo. Não deveria causar espanto quando se considera que segurança pública e corrupção são componentes essenciais hoje ao se tentar entender preferências eleitorais.

Em outras palavras, não há um “tema”, um “assunto”, um “eixo” em torno do qual se possa e definir o debate nesta fase derradeira do primeiro turno. O que existe é um enorme conteúdo emotivo – no qual o atentado contra Bolsonaro o beneficiou numa fase crítica para a candidatura dele, mudando a eleição – difuso e incapaz de diferenciar entre “propostas concretas”.

Note-se que até agora nenhuma candidatura conseguiu impor um mote à disputa, apesar de algumas tentativas como Marina versus Bolsonaro na questão envolvendo mulheres, por exemplo. O principal “evento” da campanha, capaz de alterar boa parte do ritmo, foi um atentado que, evidentemente, escapava ao controle de qualquer dos participantes.

Essa mesma rouquidão não parece favorecer Marina, cuja imagem sugere uma certa fragilidade, e muito menos Geraldo Alckmin, cuja candidatura não consegue se desvencilhar, nesta fase da corrida, do carimbo de ser mais do mesmo, além dos recentes golpes desferidos pela Lava Jato contra figuras do PSDB.

Resta considerar o que ainda consegue a voz mais rouca de todas, a de Lula, que fez uma arriscadíssima jogada contra o tempo ao insistir numa candidatura que se sabia impossível, apostando que conseguiria em último momento transferir quantidade suficiente de votos para colocar o poste Fernando Haddad no segundo turno. Há grande divergência entre analistas, todos apoiados em diversas pesquisas, sobre essa capacidade. Neste momento, dou mais chances a Ciro de disputar contra Bolsonaro.

Mesmo que essa hipótese não se confirme (não tenho bola de cristal e a eleição continua indefinida), é curioso notar como as várias candidaturas se articulam para tentar gerar uma “onda” de voto útil já bem antes das famosas 36 horas finais (quando essas “ondas” são decisivas). Elas já se apresentam como único remédio capaz de bloquear o “perigo” representado por adversários e, claramente, apelam ao medo do pior.

Admitindo que melhor, não são.


William Waack: ‘Chamado à razão’

Nenhum dos oficiais de alta patente antecipa tranquilidade e estabilidade pela frente

A coluna é dedicada ao que pensam os militares sobre o momento político. Condensei mais de dezena de longas conversas recentes com oficiais de alta patente das três armas, quase todos da ativa, incluindo dois comandantes. Oficiais generais não manifestam qualquer disposição para a tal “intervenção” militar. Mas se perguntam, sem conseguir responder, o que fazer se houver rompimento de um tecido social já “esgarçado” (expressão muito usada por eles). O cenário mais temido é a quebra de lei e ordem “no caso de uma besteira qualquer do STF beneficiando o Lula” ou, pior, da reconhecida falta de contingentes para atuar no caso de greves de PMs ou a paralisação do País por bloqueios simultâneos de rodovias.

“Achamos que devemos, sim, alertar em público e em privado para perigos e chamar à razão pessoas com responsabilidades”, diz um interlocutor. Assim foi entendido, por exemplo, o já célebre tuíte do comandante do Exército às vésperas do julgamento de um habeas corpus em favor de Lula, em abril. Oficiais registraram com alívio sinais, vindos de contatos diretos com integrantes do STF, de que “não haveria surpresas” até o fim do período eleitoral, o que inclui questões envolvendo a Lei da Anistia, um ponto descrito como inegociável – boa parte dessa sensação vem da indicação do general Fernando Azevedo e Silva, até agora no comando do Estado-Maior do Exército, como assessor do ministro Dias Toffoli, que assume a presidência do STF. Esse oficial é uma das principais “cabeças políticas” nas três armas.

Esse “chamado à razão” – na verdade, um alerta e uma advertência – resulta menos de um cálculo para interferir na política e mais para “aliviar enorme pressão” vinda de escalões inferiores nas estruturas de comando. “Você imagine que um maluco de saco cheio com a política comande um pequeno destacamento bloqueando algum lugar – digamos, Curitiba – e aí ninguém segura mais nada”, admite-se, por hipótese. “A fragilidade do atual governo é um absurdo, e a falta de autoridade também”, comenta-se. “Não dá pra achar que a gente vai salvar políticos incompetentes desse desastre.”

Oficiais de alta patente já admitem a possibilidade de um presidente Jair Bolsonaro (“para nós não é mais capitão, é um político civil”), em relação a quem não mais se declaram refratários, embora lhe atribuam escassa sabedoria política e pouca capacidade de articulação para enfrentar um Congresso provavelmente hostil. “Ponto positivo nele é que talvez ajude a frear essa onda de esquerdização do País”, diz fonte de alta patente. “Já conseguiu encurralar parte dessa mídia que é a grande responsável por esse clima.”

O general Heleno é um dos principais canais entre Bolsonaro e setores superiores da ativa, em que se ouve o palpite de que “Bolsonaro daria um tiro certo se nomeasse o Heleno seu chefe da Casa Civil, pois tem cabeça política melhor que a dele, e se pusesse um civil no Ministério da Defesa”, disse um general de destaque.

Nenhum dos oficiais de alta patente antecipa tranquilidade e estabilidade pela frente. Acham que há um esforço internacional, incentivado também pelo PT, de enfraquecer “ainda mais a soberania nacional”, lamentam que debates sobre segurança e um projeto de País mal apareçam na campanha, queixam-se de que não há como soldados resolverem questões de ordem pública, manifestam-se profundamente descrentes da classe política, mas, também, do Judiciário ser capaz de reverter a onda de insegurança jurídica (que, apontam, vem de um STF fracionado por lealdades políticas e pessoais de todo tipo).

Não se furtam a fazer comparações com “a bagunça” que precedeu 1964, mas não é a que se poderia esperar (intervir para “salvar a democracia”, por exemplo). “Naquela época, pelo menos, havia estadistas”, disse um destacado oficial general. “Hoje, este país é um deserto de lideranças.”


William Waack: Enfrentar o ‘inevitável’

Uma vitória de ‘reformistas’ é menos pior para nosso futuro; mas é pouco

O esforço de muitos analistas em traçar cenários pós-eleitorais tem trazido uma curiosa “mediana” de previsões, especialmente entre economistas que já viram de tudo (começando pelo Plano Cruzado). Cofres públicos vazios, dívida pública subindo e quebradeira geral dos Estados “inevitavelmente” levarão a reformas para lidar com a crise fiscal. Candidatos carimbados como “reformistas”, segundo essas previsões, farão mais rápido o necessário. Até mesmo os “populistas” agirão na direção “correta”, pois reconhecem a bomba fiscal.

A velocidade relativa com que uns e outros atacarão os gastos públicos permite até previsões numéricas. Assim, a eleição de um “reformista” sugere um dólar de R$ 3,40 no meio do ano que vem. Se for um populista, dólar de R$ 4,60. A taxa de inflação sob um “reformista” permaneceria em 4,5%; um “populista” a levaria para 8%. E assim por diante com juros e crescimento do PIB que, dependendo do otimismo quanto à recuperação do consumo das famílias, poderia até chegar a uns 3% já em 2019.

Não critico economistas por raramente acertarem previsões; com jornalistas acontece o mesmo. O que sempre me fascina no raciocínio deles é a pouca margem que atribuem à estupidez humana na tomada de decisões – no caso do Brasil, não fazer nada relevante frente à questão fiscal (uma “não decisão” a cargo de humanos) equivale a uma das posturas mais estúpidas possíveis. E, a julgar pelo andar da carruagem político-eleitoral, até mesmo bastante provável.

Da mesma maneira, não posso criticar quem, confrontado com o cenário difuso e nebuloso do momento atual da corrida eleitoral, se apega a “inevitabilidades”, a coisas que “terão” de acontecer. É uma forma de tornar a imprevisibilidade menos imprevisível. E, também, em confiar que decisões coletivas claramente prejudiciais aos interesses de um país (especialmente de prazo mais dilatado) acabam sendo evitadas. Mas é bom considerar Brexit, Trump e o apoio popular à greve dos caminhoneiros. Não era para acontecer, mas aconteceu.

A ideia da “inevitabilidade” de um futuro risonho para um País com tantos recursos e tamanho é tão arraigada quanto a noção de que o tempo trabalharia a nosso favor. Ela mascara o fato (traduzido em estatísticas muito eloquentes) de que na comparação com economias mais avançadas estamos estagnados há mais de uma geração, e estamos ficando velhos. Populistas no Brasil e não só os de esquerda desenvolvem a ficção política de que o País foi feliz e bem sucedido em algum ponto do passado – no caso do PT, nos 13 anos que nos amaldiçoaram por muitos mais.

É a falta de compreensão do papel das pessoas e das ideias que elas abraçaram na confecção do desastre no qual fomos jogados que explica amplamente a popularidade de um criminoso condenado e cumprindo pena de prisão, chefe de um dos maiores esquemas de corrupção da recente história do planeta. A eleição dos governos do PT não era “inevitável” do ponto de vista histórico, nem a adoção de seus postulados desastrosos de economia inclusive por parte relevante do empresariado, interessado em protecionismo, subsídios e anabolizantes para o consumo.

A pergunta abrangente que me parece relevante neste ponto da corrida eleitoral é a de averiguar se há forças comprometidas com o rompimento da estagnação política e econômica atuais, não apenas na configuração tosca do “deixa que eu chuto”. Vai ser necessário enfrentar e derrotar parte do nosso jeito de ser – patrimonialismo, corporativismo e regionalismos – para libertar o que poderíamos ser: inovadores e criativos. Também acho que uma vitória de “reformistas” é menos pior para nosso futuro. Mas é pouco.


William Waack: Cumpriu-se o óbvio

Eleitor de comportamento menos previsível deverá decidir eleição tão apertada

A verdadeira largada para o primeiro turno das eleições começa com o que não se realizou. O derretimento da candidatura de Jair Bolsonaro não ocorreu, o fracasso da candidatura de Geraldo Alckmin não se registrou, a tão falada unidade de esquerda não surgiu e a tão aguardada candidatura mágica de algum completo outsider não se materializou.

De certa maneira, o que era bastante óbvio se cumpriu: sendo as máquinas partidárias o feudo de caciques, sendo caciques o que são (caciques, ora), o entendimento entre os principais deles deu-se exclusivamente pelas vantagens percebidas no uso de instrumentos tradicionais da política no curtíssimo prazo (eleição) com um olho na capacidade de barganha dentro do Legislativo no horizonte de 2019.

Porém, é possível identificar com razoável nitidez uma divisão entre as principais forças ao longo de postulados “ideológicos” (pelo menos para os padrões brasileiros de maçaroca ideológica). Há um campo que, grosso modo, me parece majoritariamente “conservador” em termos de valores e liberal em termos de postulados econômicos, disputado por várias candidaturas “de fora” (como Bolsonaro) assim como “do sistema” (como Alckmin, Alvaro Dias e Meirelles) e também por vários movimentos “de base” que pretendem renovar a política brasileira por meio da longa marcha da formação de partidos modernos (Amoêdo).

Do lado da “esquerda”, a tática do PT turvou consideravelmente qualquer tipo de unidade à espera de que o inelegível Lula coloque um poste no segundo turno – uma aposta de alto risco e contra o tempo.

Os dois principais contendores que se vendem como “de fora”, Marina Silva e Jair Bolsonaro, apresentam-se coesos em termos de chapas (um vice do Partido Verde ao lado de Marina, um general que há pouco ainda vestia farda ao lado de Bolsonaro) e excepcionalmente confiantes na capacidade de modernas tecnologias digitais romperem também o que foi até agora o primado dos instrumentos tradicionais de campanha eleitoral (sobretudo tempo de TV).

Essa aparência de “homogeneidade” na composição da chapa será suficiente para colocar qualquer um dos dois – especialmente Bolsonaro, que no momento parece ganhar estatura quanto mais é atacado em entrevistas – num segundo turno? Os vendedores de facilidades em campanhas eleitorais, os partidos do Centrão, acomodaram-se com Alckmin. Conduziram-se não apenas visando a recompensas num futuro governo mas, também, por considerarem Bolsonaro um risco muito alto.

Nessa “largada” são mais evidentes que em eleições recentes o empenho em conquistar o voto feminino e a clara determinação em disputar com Bolsonaro o voto do “agro”. A expressão confunde quando usada como sinônimo de representações ou entidades de classe de um setor da economia, mas faz todo sentido ao se considerar as imensas áreas de prosperidade relativa que abarcam importantes cidades médias com um contingente de eleitores que se consideram “órfãos” da política tradicional, além de vítimas de insegurança pública e jurídica.

Os profissionais da leitura de pesquisas – todas elas coincidindo em apontar ainda imenso número de indecisos e desanimados – nos dão um grave alerta. Não importa o que esta eleição possa demonstrar sobre o choque entre desejo de mudança versus predomínio da “velha” política – além da inédita presença de itens como corrupção e honestidade no topo da prioridade dos eleitores –, a decisão numa eleição tão apertada acabará a cargo da parcela de comportamento menos previsível entre aqueles que vão às urnas: os eleitores que formam opinião na derradeira hora. Especialmente mulheres, pobres e de meia-idade.


William Waack: Memórias distantes

Há momentos em que sociedades decidem que um assunto já foi encerrado

A reabertura da investigação sobre o assassinato no DOI/Codi de Vladimir Herzog por parte do MPF e o consequente apelo a invalidar a Lei da Anistia – que perdoou crimes cometidos nos dois lados da guerra suja brasileira – trouxeram de volta a mim memórias muito pessoais que, confesso, estavam bem distantes. Simbolicamente representadas na morte terça-feira última de Hélio Bicudo, naquela época um herói para mim e exemplo de coragem como o homem que enfrentou o Esquadrão da Morte.

Lembranças pessoais nada têm a ver com a maneira como sociedades “trabalham” períodos traumáticos de sua história, isto é, como “lembram” (ou decidem esquecer) esse tipo de acontecimento. Lição que aprendi participando diretamente durante cinco anos seguidos da cobertura jornalística de como a Alemanha reunificada lidou com o legado vivo e palpitante de uma odiosa ditadura comunista, também acusada de crimes contra a humanidade.

Há momentos em que essas sociedades (e aqui incluiria os exemplos de Espanha, Chile, Argentina e Uruguai – mais complexos são os casos de França e Itália) decidem por um entendimento político tácito que o assunto foi encerrado. Por mais ofensivo e dolorido que possa parecer, por exemplo, à viúva de Vlado e seus filhos. E parece-me bastante óbvio que o mesmo – página virada – ocorreu já no Brasil. Não se trata aqui de examinar argumentos jurídicos para invalidar a anistia, e que me parecem bastante frágeis, devido ao fato de que os constituintes de 1988 plantaram-se sobre essa lei para propor a rota futura do País.

Por mais que grupos e personalidades políticas ligadas ao que se convencionou chamar de “esquerda” no Brasil insistam, a tal “memória coletiva” (concordo, de difícil definição) sobre a sequência de acontecimentos datados a partir de 1964 não é nem de longe e não guarda a menor comparação com processos político eleitorais de uma Espanha, um Chile ou uma Argentina pós-ditaduras. Mesmo a recente publicação de papéis da CIA segundo os quais decisões de matar inimigos foram tomadas por generais dentro do Palácio do Planalto sequer arranha a superfície de um estado de espírito na sociedade segundo o qual o passado pouco interessa para decisões que têm de ser tomadas a partir das votações de hoje.

Pode-se lamentar esse tipo de coisa, mas me parece um fato da nossa realidade política. Em outras palavras, não há uma “memória coletiva” dos males de uma ditadura (como foi a brasileira) que sirva para definir como parte expressiva do eleitorado encara a candidatura de Jair Bolsonaro, e tentar destruir a candidatura dele por esse caminho, o de confrontá-lo com a ditadura militar, revelou-se até agora bem pouco eficaz. Há semelhanças com o fenômeno político-eleitoral americano recente, no qual, em vez de perder, Trump ganhava projeção com o que a sabedoria política convencional considerava posturas intoleráveis do então candidato.

As pesquisas indicam que o eleitorado brasileiro este ano postula honestidade pessoal como critério primordial para escolher candidatos, e esse é claramente um julgamento moral. Só posso dizer que, em algum momento na nossa rota, nós brasileiros perdemos (se é que uma vez tivemos) a noção de critérios morais mais abrangentes, substituídos até aqui nesta corrida eleitoral pela doutrina do saco cheio, do vamos acabar com tudo, do não me importam as consequências (vide greve dos caminhoneiros).

Não sei se este estado de espírito se altera com a entrada da clássica propaganda eleitoral na TV, que privilegia por exemplo Geraldo Alckmin contra Jair Bolsonaro. Por enquanto, parece que não.


William Waack: Soco na boca

A potência das ‘armas’ na disputa eleitoral será testada no confronto direto que se inicia

Supõe-se que o campo das disputas políticas, especificamente eleições, seja o das decisões frias. Não é à toa que boa parte do vocabulário venha da linguagem militar e do pensamento clássico sobre estratégia, pois trata-se de ganhar uma batalha. Nesse sentido, a expressão mais consagrada é a de um general prussiano do século 19, Helmuth von Moltke (“O Velho”): nenhum plano resiste ao primeiro contato com o adversário.

Antes de mais nada, um recado: vou me concentrar aqui nos personagens políticos que estão pontuando melhor nas pesquisas. Não importa a simpatia e admiração que se possa ter por movimentos autênticos de renovação de métodos e ideias, e o essencial exemplo de engajamento político de milhares em torno de propostas modernas – e o que isso aponte de positivo para a futura política brasileira – o peso desses movimentos nas próximas eleições estará ainda bem aquém das elogiáveis ambições de seus participantes.

Vamos tentar limpar a “verborragia” típica de candidatos, exacerbada com a revolução digital (que incentiva a produção de “soundbites” de 10 segundos para viralização em redes sociais) e focar no que são planos nítidos de combate. O balé do Centrão é, em primeiro lugar, com a quase infinita possibilidade de alianças e parcerias, o espelho fiel da maçaroca ideológica brasileira, impossível de ser corretamente definida pelos termos “direita” e “esquerda”.

Em segundo lugar, essa movimentação é a evidência de que todos calculam friamente que elementos do sistema (tempo de TV, acesso a fundos com dinheiro público e controle de pedaços da máquina governamental) trazem vantagens na disputa eleitoral. E, eventualmente, na capacidade de governar em 2019. É o plano óbvio de Geraldo Alckmin, mas também de Ciro Gomes (que sai em desvantagem), assim como é bastante óbvio o plano de candidatos que se apresentam como “de fora” (não importa se de fato o são, o que importa é a percepção) – Marina Silva e Jair Bolsonaro. É a aposta na capacidade de mobilização através de tecnologias digitais, e o uso do que identificam como qualidade própria de atender à “demanda” do eleitorado por limpeza “do que está aí”.

A potência dessas “armas” será testada no confronto direto que se inicia agora, e meu palpite é o de que miséria, pobreza e infraestrutura precária ainda dão bastante peso ao dinheiro para campanhas e ao tempo de TV, fatores ligados, porém, às qualidades de cada personagem (Chuchu conquistará paladares?) e subordinado ao que todos os generais inteligentes já admitiam desde que batalhas existem, ou seja, que a guerra é o terreno da sorte, do acaso e do imponderável (como a Lava Jato, por exemplo).

E como é que fica com os planos do PT, uma força que não se pode negligenciar? Por enquanto parece-me o cálculo menos “frio” de todos, pois emana do fígado de Lula, o chefe da seita. A dificuldade com o atual “plano” fixado em Lula é o problema que os estrategistas chamam de confusão entre meios e fins: o plano é usar Lula como arma de transferência de votos (que, sem dúvida, ele é) ou só o de livrar Lula da cadeia? Até agora, serviu para isolar a agremiação política e dar conforto a seus adversários.

Diante do quadro ainda indefinido das eleições, saborosas frases antigas sobre como ganhar batalhas continuam tendo ressonância hoje. “A gente se engaja (no combate) e depois vê o que faz”, disse Napoleão, quando perguntaram qual era seu princípio estratégico. Prefiro uma definição de estratégia bem mais recente, e proferida pelo boxeador campeão mundial dos peso pesados, Mike Tyson: “Todo mundo tem um plano até levar um soco na boca”.


William Waack: Admirável mundo novo

Somos pequenos e diminuímos nas últimas décadas por falta de lideranças com visão

É uma pena, e ao mesmo tempo um péssimo sinal, o fato de temas de política externa terem tão pouca importância no debate político eleitoral no Brasil, país ao mesmo tempo abençoado e amaldiçoado pela enorme distância que mantém de qualquer conflito internacional relevante. Abençoado, pois ninguém aqui vai dormir hoje preocupado em saber se um ente querido vai matar ou morrer num conflito armado (não estou considerando a guerra interna brasileira como conflito armado clássico). Amaldiçoado, pois a imensa maioria da população – e os políticos em geral – não tem a menor percepção da natureza, abrangência e alcance de grandes contenciosos lá fora.

E olhem que Donald Trump, involuntariamente, nos deu uma espetacular demonstração da rapidez da destruição que está alcançando o sistema de relações entre as potências existente desde o fim da 2.ª Guerra Mundial. Ao lado do tirano russo Vladimir Putin, de quem foi livrar a cara num encontro em Helsinque, Trump encerrou uma extraordinária semana de massacre do que tinham sido até aqui alguns princípios norteadores da potência que foi decisiva para dar forma e garantir esse sistema do pós-guerra, os Estados Unidos.

O mundo no qual o Brasil terá de se virar agora é um lugar no qual o presidente americano xinga aliados e elogia adversários tradicionais; abomina instituições multilaterais (da OMC à ONU) e a coordenação de ações entre países; encara o comércio internacional como um jogo de soma zero, no qual se alguém ganha é às custas de outro; reflui para o pensamento de divisão do mundo em esferas de influência nas quais “homens fortes” podem agir a gosto; mantém que a aplicação de princípios ou valores é coisa de trouxa e só distrai de resultados práticos.

Não estou aqui (desculpem o cinismo) fazendo um julgamento moral sobre se esse admirável mundo novo é pior ou melhor do que o velho. Cumpre apenas registrar que boa parte do que foram apostas de política externa e inserção internacional do Brasil (supondo que as havia de maneira mais ou menos doutrinária) simplesmente caiu por terra. O que um novo governo aqui possa ter como norte precisará levar em conta um mundo muito mais perigoso e multipolar no “mau” sentido da palavra, isto é, não pela convivência mais ou menos harmônica de vários polos de poder, mas, sim, pela destruição de regras que até agora tiveram notável importância.

Duas delas estão sob ataque há algum tempo, não importa Trump. Democracias liberais e seus sistemas representativos passam por notável crise, em parte até acelerada pela revolução digital. Sob ataque está a ordem internacional do “livre” comércio – que inclui o livre movimento também de capitais e pessoas. A instabilidade parece ser o componente essencial de uma nova situação na qual não está claro como será a acomodação (pacífica ou nem um pouco pacífica) do surgimento de uma nova superpotência, a China.

É bastante óbvio que esse tipo de desafio se torna ainda mais difícil para um país como o Brasil, amarrado ao chão não por grilhões impostos por potências estrangeiras (como afirmam populistas imbecis, particularmente os de coloração petista, mas não só). Somos pequenos no mundo e diminuímos em termos relativos nas últimas décadas por conta de produtividade estagnada, economia pouco competitiva e paralisia política geral para resolver problemas (como a crise fiscal) que demandam urgentemente o recurso do qual mais precisamos, e não encontramos: lideranças políticas com visão.

No nosso próprio clima de “vamos ver o circo pegar fogo”, tem bastante gente aplaudindo Trump. É bom não esquecer que somos parte do circo.


William Waack: Politização da Justiça

Esse controle de vastas esferas de órgãos públicos produz sustos como o do domingo

Mais ou menos na mesma época em que o PT estava sendo fundado no Brasil os militantes de vários grupos de esquerda na então Alemanha Ocidental inventaram um nome bonito para a tática de abandonar as ruas, as passeatas, os protestos e deixar de ser oposição extraparlamentar para ganhar votos e entrar no parlamento. Chamava-se “a marcha através das instituições”. No Brasil o PT preferiu tomar conta delas, aparelhando-as e transformando o que deveriam ser instâncias do Estado em braços servindo ao partido.

Ao lado do submarxismo primitivo que dominou boa parte do mundo acadêmico e da “produção de ideias” (incluindo jornalismo) esse controle de vastas esferas de órgãos públicos produz sustos como o do domingo, quando um desembargador resolveu cumprir uma missão político-partidária para libertar o chefe do partido que virou seita.

Chegou há tempos ao STF, onde um ministro paralisa privatizações não só por se sentir contrariado em suas opiniões políticas, mas por acreditar que a Lava Jato é uma operação engendrada por serviços secretos de potências estrangeiras para roubar o pré-sal do Brasil.

Nem vale a pena examinar um absurdo desses (“debater um absurdo significa dar a ele um ar de legitimidade”, dizia Raymond Aron durante a Guerra Fria quando confrontado com quimeras inventadas por comunistas). Mas o absurdo do plantonista amigo que queria libertar Lula levanta duas questões de grande alcance: a) até onde permanece intacto e obedecendo à direção de partidos o aparelhamento do Estado brasileiro? b) em que medida o enfraquecimento, deterioração, solapamento, destruição das instituições – como o caso do Judiciário também, rachado pela política – é um fenômeno duradouro?

A “privatização” do Estado brasileiro, entendido como sua apropriação por entes privados (como o são partidos políticos) precede o PT, mas não é uma ocorrência uniforme. Algumas instâncias, sobretudo da área econômica, apresentam bolsões de eficiência e formas de conduta próximas ao que se chamaria de uma burocracia impessoal. Outras são aquilo que o Padre Vieira criticava em sermões já no século 17: cabides de emprego para inúteis – alguns mais, outros menos gananciosos. Sobre essa máquina diminui o controle ideológico que o PT exercia. Estamos indo de volta para uma situação na qual impera “apenas” o fisiologismo.

Quando figuras de peso como a presidente do STF ou o comandante do Exército afirmam – como fizeram recentemente – que as “instituições estão funcionando”, temos de considerar que eles não poderiam dizer outra coisa. Já pensaram Cármen Lúcia declarando “as instituições NÃO estão funcionando?” E aí, ministra, como é que fica? Ou o general Villas Boas afirmando “as instituições pararam de funcionar”. E o senhor, general, pensa em agir como? O fato é que a bizarra disputa entre togados no domingo é apenas o mais recente indicador de como progrediu, no Judiciário, a rachadura política.

Não é um fenômeno tão recente assim. Lembram-se de como o País parou, em janeiro de 2017, logo após o acidente que matou o então relator da Lava Jato, e todos esperavam o resultado de um sorteio? Se o sorteio indicasse um determinado ministro como relator da operação poderia-se esperar certa conduta frente à campanha anticorrupção. Em outras palavras, a conduta de órgãos de Estado dependia da sorte? O que aconteceu no domingo foi não só um truque aplicado por uma organização criminosa para livrar seu chefe, mas, pior que isso, o resultado da politização da Justiça.

Resumo de um domingo, como diz o juiz aposentado Wálter Maierovitch, da República de Bananas: o aparelhamento do Estado, apesar de maléfico, preocupa menos do que o esfrangalhamento das instituições.