William Waack

William Waack: Foi ditadura, e daí?

Bolsonaro dá a 64 o significado que não tem, e arrisca consequências

O que aconteceu em 31 de março de 1964 foi um golpe, depois veio um golpe dentro do golpe e tudo aquilo foi uma ditadura. Que, ao enfrentar resistência da luta armada de grupos de esquerda antidemocráticos (o termo técnico é terrorismo) e de correntes da sociedade civil organizada (imprensa, sindicatos, universidades, grupos políticos conservadores e liberais) – estas últimas são as que tiraram o País do regime de exceção –, dedicou-se a reprimir, censurar, prender e torturar, contrariando os próprios códigos de conduta das Forças Armadas. E daí?

E daí que o assunto é página virada e, no caso do Brasil, só assume importância política atual por causa da patética dedicação do presidente da República a aspectos secundários da “guerra cultural”. É bem verdade que Bolsonaro não está sozinho nesse empenho em recorrer a algum episódio traumático do passado como forma de moldar o debate político do presente.

Em Israel, o revisionismo do mito de fundação do país influencia também as atuais eleições. Na Rússia, é a interpretação da implosão da União Soviética como uma “catástrofe geopolítica” a ser corrigida que sustenta Vladimir Putin. Na China, o ressurgimento do nacionalismo é uma arma poderosa de legitimação do partido comunista empenhado em desfazer um século de “humilhações impostas por potências estrangeiras”. Nos Estados Unidos, Trump fala de uma “América grande de novo”, como se alguma vez tivesse deixado de ser.

A tentativa de Bolsonaro de dar a 64 uma relevância que também os integrantes do Alto-Comando das Forças Armadas acham que ficou para os historiadores tem pouco a ver com os exemplos acima. É parte do cacoete do palanque digital de campanha eleitoral. E já não se trata de perguntar quando ele vai descer da plataforma da agitação eleitoral e se sentar na cadeira presidencial, pois a resposta está dada: nunca.

O presidente e seus seguidores mais aguerridos nas redes sociais criam e se retroalimentam de “polêmicas” que, na época pré-digital, se chamavam de briga de mesa de boteco. Sobe o volume da gritaria à medida que o tempo avança e as coisas não acontecem como os “revolucionários” esperavam que evoluíssem. E encontram na “velha política”, nas “oligarquias corruptas”, na “mídia”, no “marxismo cultural” as “explicações” para a própria incapacidade de criar uma narrativa abrangente e dotada de clara estratégia de como tirar o País do buraco.

As reações contrárias de diversos setores à “comemoração” de 64 provocam nos militantes dessa franja da direita brasileira um “frisson” de alegria, como se sentissem confirmados em suas piores suspeitas. São a eles que os atuais comandantes militares se referem quando alertam que não estão dispostos a tolerar nenhum tipo de fanatismo, de um lado ou de outro. É o tipo de recado, porém, que provavelmente fará os mesmos militantes se sentirem reconfortados.

Nesse sentido, as agressões verbais por intelectuais que influenciam Bolsonaro e seus entes mais próximos aos generais no governo (xingados de “idiotas”, “cagões” e “comunistas infiltrados”) não são deslizes típicos da mesa do boteco. Na peculiar visão de mundo que move os agressores, trata-se do necessário resgate do espírito da História, no qual a nova “hora zero” de 64 explicaria a razão de o País ser hoje uma democracia aberta e representativa e não uma república popular ou socialista. Por isso, consideram que “comemorar” o distante 64 seria parte da luta de ideias.

Sem dúvida alguma, ideias têm consequências. E ideias malucas e idiotas costumam ter consequências péssimas.


William Waack: O mínimo de preparo

Fascinado por Trump, Bolsonaro piora crise externa e interna com a Venezuela

Se o presidente Jair Bolsonaro tem um mínimo de informação sobre o estado das Forças Armadas brasileiras, ele sabe que elas ainda não estão em condições de enfrentar sequer duas greves simultâneas de PMs, quanto mais se meter numa intervenção em país vizinho.

Se o presidente Jair Bolsonaro tem um mínimo de informação sobre o que pensam os vários quatro estrelas com os quais ele trabalha diretamente no governo ou interage inclusive por redes sociais, ele sabe que não há da parte desses profissionais a menor intenção de embarcar numa aventura militar contra um vizinho brasileiro – no caso, a Venezuela – e isso nada tem a ver com a capacidade operacional das Forças Armadas.

Se o presidente Jair Bolsonaro tem um mínimo de informação sobre o que o próprio estabelecimento militar americano pensa sobre “regime change” com o emprego de uma invasão (seria o caso na Venezuela, com “boots on the ground”), especialmente à luz de Afeganistão (2001) e Iraque (2003), sabe que uma invasão da Venezuela só existe, eventualmente, na cabeça de um falastrão como Donald Trump.

Então qual a razão de o chefe de Estado brasileiro deixar no ar, como o fez em pelo menos três ocasiões, em Washington, a hipótese de que uma intervenção militar americana na Venezuela tenha sido discutida sigilosamente com Trump? E, nesse mesmo raciocínio, que tivesse deixado aberta a possibilidade de o Brasil participar como coadjuvante (alguns talvez digam “lacaio”, mas, gente, vamos com calma, tá?) numa aventura absurda desse tipo?

Talvez o presidente, convicto de que há um comunista embaixo de cada cama, acredite (como os comunistas acreditavam) que a CIA, à qual prestou o especial tributo de uma visita, tenha um manual de “como derrubar um ditador socialista”. A CIA previa dois anos antes do colapso da União Soviética que o império de Moscou duraria para sempre, pouco antes do 11 de Setembro não tinha tradutores suficientes para ler as mensagens trocadas pela rede de Osama bin Laden e não conseguiu lidar com um ditador como Saddam Hussein.

Talvez fascinado pela exuberante personalidade de Trump, cujo maior temor é o de que alguém não esteja incessantemente falando dele, Bolsonaro acredite que o “maior negociador do mundo” (Trump sobre Trump) empregue com êxito contra o ditador Nicolás Maduro a mesma tática de compra e venda de imóveis, que inclui o blefe. Mas parece que outro alvo, o gordinho ditador da Coreia do Norte, é bom de negociação também, e continua abraçado aos seus mísseis e bombas apesar de toda “arte de fazer negócio” (título de best-seller escrito por Trump) criada pelo presidente americano.

Talvez o presidente brasileiro esteja convencido de que Trump seja um gênio das relações internacionais ao trocar o frio cálculo estratégico pela impetuosidade do Twitter. Não importa que, ao contrário das promessas de campanha de Trump, o tratado com o Irã continue de pé (culpa dos aliados), que o muro com o México não esteja de pé (culpa dos democratas) e que, em vez de diminuir, o déficit comercial dos EUA com a China tivesse aumentado (culpa dos chineses).

Talvez tenha sido essa extraordinária comunhão de valores ocidentais, que Trump considera ameaçados por hordas de imigrantes infiéis, que levou Bolsonaro a incluir milhões de brasileiros que foram para os EUA em busca de vida melhor na categoria de “mal-intencionados” em relação ao país que os acolheu, num “ato falho” que o presidente brasileiro reconheceu e pelo qual pediu perdão – mas o fato político estava criado.

Talvez nada disso. Talvez faltou, simplesmente, preparo.


William Waack: Simplórios no comando

A complicada relação entre humanos e automação é agravada por populismo barato

O conselho mais sábio dado por instrutores de voo a jovens pilotos é também o mais antigo: em caso de pane, voe o avião (está lá no filme Sully, do famoso pouso no Rio Hudson em Nova York). Significa simplesmente utilizar de maneira coordenada pés e mãos, e pilotar a máquina até chegar lá embaixo, como fez o Capitão Sully.

Então como entender que engenheiros projetaram um sistema de computadores que interfere diretamente na atitude do avião (nariz para baixo, no caso) somente quando o piloto automático NÃO está acionado, ou seja, o avião está sendo voado pelo ser humano? É o caso do Boeing 737 Max 8, obrigado a ficar no chão ou proibido de voar no espaço aéreo de dezenas de países depois de dois acidentes fatais levantarem a suspeita de que pilotos não conseguiram lidar ou foram driblados por modernos sistemas automáticos.

A questão está longe de ser meramente técnica. Na verdade, é profundamente filosófica, e por consequência política, e tem a ver com a relação entre humanos e automação. Modernos aviões comerciais voam controlados por sistemas que “protegem” os pilotos de si mesmos, isto é, sensores levam computadores a agir diretamente na pilotagem se dados essenciais como velocidade, por exemplo, estiverem fora de limites fixados num software.

No já clássico The human factor, de William Langewiesche, que trata da tragédia do AF447 entre Rio e Paris, em 2009 – talvez o melhor texto jamais escrito sobre um grande acidente aeronáutico – verifica-se que é a automação que permitiu eliminar grande parte do “fator humano” e dar enorme segurança ao transporte aéreo. Mas o “fator humano” é o decisivo quando pilotos educados a confiar na automação se desorientam na ausência dela – caso dos pilotos do AF447, surpreendidos pelo desligamento dos computadores depois de uma pequena falha de um sensor de velocidade, e que não conseguem “voar o avião”.

No extremo oposto, como parece ser o caso de pelo menos um acidente fatal envolvendo o 737 Max, os pilotos aparentemente lutaram para manter o avião sob controle nas mãos mas, o computador, novamente por culpa de dados errôneos de sensores, insistiu em jogar o nariz para baixo provocando um mergulho fatal. “Automation surprise” chama-se no jargão técnico esse súbito pesadelo de duas faces: a desorientação do piloto quando os sistemas automáticos não fazem o que se espera que deveriam fazer, ou, ao contrário, quando fazem o que não deveriam.

A questão é política pois são entidades governamentais que certificam a segurança de aviões, fiscalizam a aplicação de medidas, obrigam (ou cedem, depende) grandes fabricantes a seguir ou alterar normas, com enorme impacto econômico, psicológico e social numa indústria competitiva e dominada por poucos. E de imenso apelo emocional ao público, para o qual o debate sobre quem manda na máquina, o piloto ou o computador, só torna o voo uma coisa ainda mais misteriosa.

E tanto é político que esse apelo se tornou irresistível para populistas como Donald Trump. Acreditando equivocadamente que sistemas de alta complexidade de segurança de voo criam apenas mais perigos em troca de vantagens mínimas, além de serem caros e demandarem a complexa formação de profissionais, Trump foi ao Twitter declarar que preferia não ter um Albert Einstein como piloto e, sim, gente que fosse autorizada a rápida e facilmente assumir o controle do avião. Aguardou as reações. E aí mandou o avião ficar no chão, sem esperar a FAA, a agência reguladora.

Claro que não é possível comparar o escritório de trabalho de um chefe de Estado como Trump com o cockpit de uma moderna aeronave comercial. Mas provavelmente só em palácios de governo é que simplórios conseguem ficar tanto tempo no comando.


William Waack: Lição americana

Toda política externa sofre quando profissionais são desprezados e vence a gritaria na internet

Para interessados em diplomacia e política externa, vale a pena ler The Back Channel, as memórias profissionais de William Burns, um dos mais importantes diplomatas americanos dos últimos 30 anos. Ele serviu a cinco presidentes e dez secretários de Estado e acompanhou todos os principais momentos que vão da vitória na Guerra Fria à concepção de mundo de Trump. É uma rica descrição da transição da diplomacia da era pré para a era pós-Twitter.

É uma obra com importantes lições para o debate atual sobre política externa brasileira, desatado pela crise da Venezuela. Burns serviu a republicanos e democratas e sua principal crítica a figuras como George W. Bush ou Barack Obama é basicamente a mesma: a de que o profissionalismo de diplomatas (e suas escolas) cedeu lugar à esfera do Twitter e ficou em segundo plano a ideia de que diplomacia serve sobretudo para comunicar, convergir e manobrar para obter vantagens futuras, especialmente por meio de alianças. Lição para o Brasil.

Burns contribui para provar que um “staff” profissional bem conduzido é capaz de identificar tendências com grande antecedência, como demonstra memorando que ele enviou a Bill Clinton, em 1992, afirmando que a vitória americana na Guerra Fria traria maior fragmentação e o mundo recuaria para nacionalismos e extremismo religioso, ou uma combinação dos dois – é uma boa descrição de parte das crises internacionais atuais. Como governantes se preparam ou reagem a contingências é outra história. Nesse sentido, Burns é duro com Obama, mas a paulada maior é na política da “America First” de Trump. “Uma sopa nojenta de unilateralismo beligerante, mercantilismo e nacionalismo bruto”, caracterizada por “posturas de força e afirmações desvinculadas de fatos”, escreve Burns. Lição para o Brasil.

O maior problema de Trump, porém, é o que Burns chama de “sabotagem ativa” contra o Departamento de Estado, ou seja, o “staff” profissional. Mais uma lição para o Brasil. Quando Lula assumiu em 2003 o Itamaraty foi subordinado à influência de um guru com ideias totalmente desvinculadas da realidade (e presas ainda ao esquerdismo infantil dos anos cinquenta) e um chanceler dedicado a vendetas contra qualquer um identificado com o “ancien regime” na casa, ou seja, que não fosse da turma dele. É muito similar ao que acontece agora, e as consequências começam a se desenhar da mesma maneira: perda de foco, ênfase no espetáculo em torno de um líder “infalível” e a confusão entre postulados ideológicos de franja do espectro político com interesse nacional de longo prazo.

A “lacração” típica do comportamento de militantes, empenhados em ganhar no grito “debates” em redes sociais, leva a afirmações do tipo “o Brasil guiou os Estados Unidos” na crise da Venezuela. A frase fica valendo como argumento para o qual não há fatos – a não ser que se despreze o fato básico de que só os americanos têm recursos para bater (com poderio militar sem rival no planeta) e para pagar (com o músculo financeiro para impor sanções ou conseguir alívio para amigos). E são eles os que batem e/ou pagam, que teriam sido conduzidos numa crise de amplas proporções internacionais por quem não consegue nem um nem outro.

A atual crise da Venezuela não foi uma “escolha” brasileira. Mas demonstra como a falta de profissionalismo na condução da política externa, ideias erradas e cumplicidade oportunista de classes empresariais (não só no episódio da molecagem diplomática que colocou a Venezuela no Mercosul) criam problemas de difícil solução. A época do Twitter, lamenta o veterano Burns, sepultou o frio racionalismo da diplomacia de contatos, informação e influência. Pior ainda quando a política externa fica a cargo de amadores arrogantes.


William Waack: Vem pro jogo, Jair

O sucesso da reforma da Previdência depende sobretudo do engajamento de Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro ganhou um simpático apoio num evento público com três governadores recém-eleitos no RS, em GO e em SP: uma adesão “irrestrita” (Eduardo Leite), “total” (Ronaldo Caiado) e “firme” (João Doria) à reforma da Previdência. E ouviu, no mesmo evento, um duro recado: “Jair, vem pro jogo, e traz teu capital político”.

O mesmo pedido já havia sido feito antes por Rodrigo Maia, presidente da Câmara e agora a figura política de referência para o governo Bolsonaro. Tem sido repetido por diversos líderes partidários. E está em destaque nas análises fornecidas por consultorias políticas e de risco: a reforma da Previdência é o único assunto que importa para definir o sucesso deste governo. E ela depende hoje, basicamente, do presidente.

Há um sentido crítico muito evidente nesses “pedidos”. Sendo a reforma da Previdência, antes de mais nada, uma batalha de comunicação, e batalha de comunicação é a capacidade de fazer prevalecer uma narrativa (ou desconstruir uma oposta), cabe a Bolsonaro usar a habilidade que demonstrou nas eleições de dirigir-se ao “homem simples” e engajar-se diretamente em convencer o dileto público a engolir medidas que serão inevitavelmente impopulares.

Economistas alertam para o fato de que não adianta sequer pensar num “plano B” para o governo no caso de não aprovação ou de uma aprovação de reforma demasiadamente aguada. As consequências da não aprovação para a economia seriam catastróficas em prazo bem curto. O tempo está trabalhando contra o País e, portanto, o emprego do capital político não só é necessário como urgente.

Há mais um alerta na praça se Bolsonaro estiver disposto a considerá-lo. Tanto os governadores experimentados e veteranos no Legislativo (como Caiado) quanto os jovens e recém-chegados à “grande articulação” (como Leite) apontam para um elemento essencial na política: o ambiente. O atual ainda seria favorável a empurrar em direção à reforma um Congresso fracionado, desarticulado e – como todos sabem – muito bem dominado por interesses setoriais e corporativos dos mais diversos tipos.

Tão ou mais que o presidente, os governadores estão lidando com uma bomba fiscal de proporções catastróficas e que, em alguns casos, já paralisou a máquina pública especialmente em setores como segurança pública, saúde e educação. Em boa parte, a “velha” política dos governadores (a do domínio por eles de bancadas no Congresso) está sendo substituída por uma “nova” política na qual o aperto das contas e a quase incapacidade de fazer funcionar a máquina pública empurram esses chefes dos executivos estaduais a algum tipo de entendimento com a União.

Há um outro lado, pendurado no da reforma da Previdência, que os governadores estão entendendo bastante bem. Uma hipotética mexida na estrutura tributária (que eles querem) pressupõe algum tipo de acerto nas questões fiscais, e as duas juntas trazem à mesa a famosa e interminável discussão do “pacto federativo”. Os R$ 100 bilhões que viriam para os cofres públicos com a cessão onerosa combinada lá atrás com a Petrobrás já são um teste entre a equipe econômica de Paulo Guedes e alguns governadores que olham (com razão) gulosamente para esse caixa.

É mais um assunto para ser decidido com participação do Congresso, num sistema no qual toda questão conflituosa política acaba judicializada (imaginem a Previdência...), com partidos fracionados, lideranças velhas desgastadas, as novas ainda incipientes e uma parte do governo achando que consegue administrar via redes sociais. É só um pedaço do jogo que está armado. Os envolvidos acham que falta Jair pular com vontade pra dentro dele.


William Waack: A hora do capitão

As dificuldades de articulação política do Planalto vão testar a estratégia dos militares

Levava um tempão antigamente até que conversas confidenciais envolvendo um presidente e seus principais ministros aparecessem transcritas em algum arquivo. Agora é quase em “real time”. Como sempre, são elucidativas.

A audionovela envolvendo o presidente Jair Bolsonaro e o exonerado ministro da Secretaria-Geral Gustavo Bebianno – um de seus colaboradores mais próximos – confirma um vencedor ainda em clima de campanha eleitoral, totalmente preso ao círculo mais próximo familiar e subordinando temas centrais às rusgas pessoais. Ou seja, Bolsonaro está muito distante ainda de “institucionalizar” seu papel, talvez nunca o consiga.

Ao dar entrevistas comentando a audionovela que ajudou a divulgar (o episódio confirma que não existe lealdade em política), Bebianno forneceu uma importante radiografia do papel dos militares em todas as fases do processo que levou Bolsonaro ao Palácio. Sabe-se publicamente agora que os militares forneceram os planos estratégicos de governo. E os quadros para executá-los. Sem eles, o presidente provavelmente não tem condições de sobreviver no cargo, tal como a situação se coloca agora.

Cabe recordar que a entrada de algumas principais cabeças entre os militares (então fardados ou não) na campanha de Bolsonaro ocorreu de forma relativamente tardia. Deu-se em grande parte por uma leitura angustiada com a possibilidade de o País resvalar para uma situação incontrolável. Esse temor se agravou entre lideranças militares durante a semianarquia da greve dos caminhoneiros. E foi exacerbado pela bagunça institucional no domingo em que Lula saía e ficava na cadeia de hora em hora por causa de uma canetada de um desembargador.

Os líderes militares acolheram Bolsonaro também como instrumento eficaz na “guerra cultural” – os militares usavam a expressão “frear a esquerdização do País” – e como personagem político de apelo à estabilidade e à ordem. Não cabe na cabeça deles um Bolsonaro como agente de caos político, seja pela influência do clã familiar, seja pela dificuldade em impor um sentido e disciplina ao próprio partido pelo qual se elegeu, seja por estapafúrdia ideologia – e às vésperas de seu grande desafio do momento, a reforma da Previdência.

Essa mesma reforma, com o projeto apresentado ontem, vai testar, talvez precocemente (pela confusão política inicial), a “grande estratégia” de juntar a uma onda disruptiva e abrangente (a que levou Bolsonaro à Presidência) os méritos e o preparo de um grupo treinado para administrar e coordenar – coisa que os oficiais-generais aprenderam nas escolas de Estado-Maior. Esse lado eles, os militares, entendem bem. O que os deixa inseguros, pois não têm treino nisso nem experiência direta, é a política.

Bolsonaro pretende agora ser o articulador político dele mesmo. O teste é severo, e muito mais abrangente do que conseguir os 308 votos mínimos necessários na Câmara dos Deputados para aprovar a reforma da Previdência (sem a qual a economia não destrava) e fazer andar o pacote anticrime de Moro (importante medida de sucesso do governo). Requer um jogo de cintura que as hostes esbravejantes em redes sociais confundem com tibieza. E a inevitável colaboração de profissionais (como a do ex-ministro de Dilma agora na função de líder do governo no Senado) que a mesma turma da lacração carimba de “política desprezível”.

Bebianno diz que chamava Bolsonaro sempre de “capitão”. É um título de forte apelo positivo. O capitão do avião, do navio, do time. A figura da autoridade, comando e respeito. Na acepção puramente militar do termo, capitão ainda é um oficial júnior que, por mais brilhante que seja, não tem o sentido de direção e a visão abrangentes dos oficiais superiores.


William Waack: O berreiro do desmame

Bolsonaro e Guedes apenas começam o confronto com os interesses de cada grupo

A agenda liberal de Paulo Guedes chegou ao leitinho e, com ela, o vocabulário sobre a discussão tornou-se preciso, realista e fiel aos fatos. “O desmame não pode ser radical”, disse a ministra da Agricultura ao se referir a pretendidos cortes nos subsídios do crédito rural, anunciado pelo colega da Economia.

Nem o setor dos produtores de leite pode prescindir de tarifas de importação (diretas ou na forma de antidumping) para enfrentar competidores externos – Bolsonaro atendeu os produtores e disse no Twitter que o leitinho deles, em sentido metafórico, está garantido. Na mesma linha geral surge a tomada de decisão sobre o fim da isenção dada às contribuições previdenciárias dos produtores rurais que exportam.

A proposta de agenda liberal de Guedes supõe o fim dessa renúncia (cerca de R$ 7 bilhões por ano nos cofres do INSS), tanto por razões fiscais como pelo propósito conceitual mais amplo. A Agricultura diz que não faz sentido tirar refresco de um setor – o de exportações agrícolas – que ajuda substancialmente a gerar os superávits comerciais que a economia também precisa.

Essa é uma típica discussão que no Brasil (mas não só) anda em círculos há décadas, subordinada sempre ao curtíssimo prazo e às turbulências dos momentos de crise econômica e política. Que obrigaram sucessivos governos a esticar contas (aumentando impostos, por exemplo, ou deixando de investir) para atender a todos que demandam seu leitinho.

Seja pela típica estatolatria reinante no Brasil, seja pelo fato de que a mentalidade predominante no País não é liberal (nem importa classe social ou ramo de atividade econômica), seja pelo comodismo de deixar decisões difíceis para depois, o leitinho de cada um expressa a realidade de uma sociedade anestesiada pelo subsídio. O corporativismo é apenas um sintoma de um estado geral no qual se assume que o governo, no final das contas, acabará fazendo alguma coisa em meu benefício.

Este é o padrão cultural mais amplo que Bolsonaro e Guedes dizem estar dispostos a enfrentar. Por vezes ambos transmitem a sensação de confusão entre causa e efeitos. Queixam-se (com razão, aliás) que o consagrado método do “toma lá, dá cá” no Legislativo, do qual dependem para qualquer reforma fiscal significativa, embaralha as cartas na hora de proceder a reformas estruturantes quando, no fundo, esse jogo político não é outra coisa senão (pelo menos naquilo que é interesse setorial lícito e legítimo) a defesa do leitinho de cada grupo.

Bolsonaro e Guedes chegaram ao poder impulsionados por uma enorme onda de transformação política e aparentemente empolgados com a frase tão repetida segundo a qual é imperioso acabar com a mania, que no nosso caso dura séculos, de mamar nas tetas estatais. São certeiros no diagnóstico. “Todo mundo vem pedir subsídios, dinheiro para isso, dinheiro para aquilo”, desabafou Guedes na quarta-feira, falando em evento para servidores públicos. “Quebraram o Brasil”, sentenciou.

Pode ser (suposição meramente teórica) que Bolsonaro e Guedes compartilhem cada vírgula de uma idêntica visão de mundo, e cada mínimo impulso sobre como agir na política. No caso do leite em pó cederam ao “toma lá, dá cá” por sólidos motivos políticos. Querem o apoio de um setor? Serão obrigados a atender a pelo menos parte de suas demandas, num delicado jogo de equilíbrio, articulação e compensações, enquanto o ambiente político vai se tornando mais hostil à medida que o leitinho some da mesa.

Vamos ver como aguentam o berreiro de uma manada de bezerros desmamados.


William Waack: A hora dos profissionais

Governo ataca crime e dívida, mas precisa sobreviver aos ideólogos

Pode-se gostar ou não do governo Bolsonaro, mas é difícil negar que ao se iniciar, de fato, na segunda-feira passada, pretendeu ir de frente à questão. Ela se chama crime e dívida – separadas de maneira artificial, pois são, na verdade, uma coisa só. Crise fiscal e crise social são duas expressões distintas para o mesmo fenômeno: a incapacidade do poder público de controlar a si mesmo (gastos, mas não só) e de dirigir-se a uma pavorosa taxa de criminalidade.

Os detalhes do pacote anticrime já foram esmiuçados no noticiário enquanto os da reforma da Previdência ainda são confusos, e os dados da realidade impõe que ambas iniciativas sejam tratadas do ponto de vista político simultaneamente, e com urgência. Nesse sentido, é relevante a advertência feita pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, segundo o qual “a pauta de costumes vem depois da Previdência”.

O que Maia está dizendo enfurece os entusiasmados bolsonaristas: atuação política não pode ser apenas função de atender à ideologia, cujas propostas ou utopias mais amplas por definição (se os bolsonaristas não aprenderam com o PT está mais do que na hora) nunca são realizadas, nunca se chega à terra do amanhã. No plano dos fatos na instância legislativa o momento é favorável se o governo agir depressa, enquanto a gravidade da crise de segurança empurra os governadores (e seus chefes de polícia) para algum tipo de entendimento, cientes de que não dá para protelar.

Este é visivelmente o conflito estratégico mais difícil para o governo no momento, e que está escancarado para o público nas trocas de farpas entre as várias alas concorrendo pelas atenções do presidente. Em resumo, o problema consiste em deixar para depois uma “revolução dos costumes” que, na interpretação do círculo íntimo do presidente, e alguns de seus expoentes intelectuais, é o que explicaria em primeiro lugar a vitória eleitoral. E concentrar-se com foco total nas articulações necessárias para a aprovação de pacotes de mudanças de legislação que terão, aos olhos dos ideólogos próximos de Bolsonaro, um indisfarçável ranço da “velha política” que pretendem já ter eliminado – uma perigosa ilusão.

Há sempre lições interessantes na História para agentes políticos que acham que ninguém contém seu ímpeto, como são os bolsonaristas. Os bolchevistas descobriram já em 1917 que nenhuma máquina militar (da qual precisavam para sobreviver) funcionaria sem os oficiais czaristas, ou seja, necessitavam dos profissionais para levar adiante sua agenda de transformação política. O vice-presidente Mourão anda empolgado com a série Trotsky da Netflix, que retrata bem esse episódio (os revolucionários islâmicos de Khomeini libertaram da cadeia os pilotos de F-4 que eles mesmos haviam encarcerado quando Saddam Hussein atacou o Irã, e precisavam rapidamente de uma força aérea).

Sem a tal “velha política”, entendida como a atuação de operadores no Congresso (Câmara e Senado) dificilmente o governo leva adiante esse prometido ataque frontal ao crime e à dívida, sob os quais o País está esmagado. São as questões cujo maior ou menor capacidade do governo em tratá-las de forma consequente (dada da gravidade dessa grande crise, é difícil usar o verbo “resolver”) será a verdadeira medida do sucesso. E de sua própria sobrevivência, palavra aqui entendida como a de um governo que mereça esse nome.


William Waack: A palavra maldita

Brumadinho traz severas consequências políticas para o governo Bolsonaro

Todo motorista alemão teme a frase “até que o TÜV” nos separe. Significa que o veículo dele não passou pelo TÜV (“Technischer Überwachungsverein”, a organização privada que vigia, entre milhares de outras coisas, se um carro obedece às normas técnicas para circular nas ruas). O TÜV foi inventado em 1865 no sul da Alemanha para acabar com as frequentes explosões de caldeiras a vapor, especialmente em cervejarias.

Trata-se de uma organização privada que assumiu funções do poder público (vigiar normas técnicas) e deu tão certo nos últimos 150 anos a ponto de se transformar num produto de exportação alemão. “Examinado pelo TÜV” está carimbado na placa de cada veículo, no reator de uma central nuclear ou numa escova de dentes. Funciona como atestado de qualidade e respeito às normas (legais e técnicas) emitido por organização independente e privada.

No Brasil, uma das três grandes “holdings” regionais dessa organização, o TÜV SÜD (24 mil funcionários, US$ 2,6 bilhões de faturamento) em meados do ano passado conferiu à barragem da Vale que se rompeu em Brumadinho um macabro “tudo ok” de trágicas consequências. Como assim aquilo que os alemães apontam com tanto orgulho – o autocontrole exercido pelo próprio setor privado da economia – não funcionou no Brasil?

Advogados já consideram como o TÜV – assim como a Vale – terá de assumir no mínimo responsabilidades cíveis pela tragédia, mas o que as investigações e o noticiário de Brumadinho já parecem sugerir é um contexto de falha coletiva que envolve a grosso modo os dois setores (público e privado). Por exemplo, barragens como a de Brumadinho (rio acima) são proibidas em países de tradicional atividade de mineração, como Peru e Chile, por causa de frequentes terremotos.

No Brasil, a técnica obsoleta de confecção dessas barragens (nas quais se utilizam os próprios rejeitos da mina) se arrasta desde a década dos anos 1970. A fiscalização não existe ou é incipiente, numa clara demonstração que talvez o principal problema da burocracia brasileira nem é o excesso dela, mas o fato de que não funciona. E que prevalece em boa parte a mentalidade – nos setores público e privado – resumida na expressão “se nada aconteceu até agora é porque nada vai acontecer”.

Pois aconteceu. E deve alterar substancialmente a atmosfera política nacional e internacional para se debater a relação entre desenvolvimento econômico (sobretudo a exploração de recursos naturais, como agricultura e mineração) e proteção do meio ambiente.

Se o governo de Bolsonaro se elegeu apegado em parte à narrativa política de que licenciamento ambiental não pode se transformar em barreira burocrática à atividade empresarial, a tragédia de Brumadinho altera fortemente a percepção que o público tem da questão e, portanto, vai exigir do presidente e seus ministros habilidade política em vez de frases de efeito. A palavra mágica “desregulação” se arrisca a virar palavra maldita.

O TÜV SÜD expandiu sua venda de serviços ao Brasil na euforia das obras de infraestrutura para a Copa de 2014. Também empenhada em crescer a todo custo, a organização alemã encontrou aqui nosso jeito tradicional no qual leis “pegam” ou “não pegam”, fiscalização existe sobretudo no papel, a burocracia é pesada e ineficiente e um autointitulado “orgulho nacional”, como a Vale, a maior produtora mundial de minério de ferro, demonstrou que, se sabia de erros do passado, precisou de mais um desastre para dizer que vai corrigi-los.

Ambiente institucional – a relação entre ideias e interesses – , diria esse tão citado sociólogo alemão, Max Weber, é tudo.


William Waack: Estreia cautelosa

Em Davos, o presidente brasileiro parece ter entendido alguns fatos fundamentais

Jair Bolsonaro tentou lentamente desconstruir em Davos, na Suíça, no World Economic Forum, uma imagem que ele mesmo passou décadas para criar. Ao estrear de fato na cena internacional (e uma de considerável relevância), o presidente brasileiro parecia empenhado em fugir da caricatura cujos principais elementos – truculência, destempero verbal, radicalismo – vive de elementos fornecidos pelo candidato.

Bolsonaro não empolgou no discurso pois, de fato, não empolga ninguém quando discursa formalmente. O forte dele como figura política está na rapidez e “gaiatice” de algumas respostas – como a que resumiu a condição de seu adversário nas últimas eleições ao mencionar a razão de não topar duelos verbais: “quem conversa com poste é bêbado”. Mas nada disso no discurso formal, que parece melhor lido do que ouvido.

No que ele não disse, ou não se referiu diretamente, vislumbra-se o reconhecimento de alguns dados da realidade. O primeiro é o fato de que o público clássico de Davos (justamente os tais “globalistas” apegados à globalização que Bolsonaro tanto detesta) pouco se deixa levar por histrionismos, piadas, frases de efeito e oratória exacerbada. Quer linhas mestras – de preferência, com detalhes que, no caso, o presidente brasileiro não tinha para fornecer ou não achou necessário.

Bolsonaro falou dos grandes temas caros para esse público (que é o público que, mal ou bem, comanda a ampla agenda internacional): meio ambiente, segurança jurídica, abertura da economia, desregulação, diminuição de carga tributária, combate à corrupção. Falou talvez para o público interno quando se referiu à defesa dos “verdadeiros direitos humanos”. Os estrangeiros não devem ter entendido: lá fora o conceito de direitos humanos é um só.

Outro reconhecimento implícito, no tom (e também na forma do discurso) cordato, morno, pausado, é o de que a eleição de Bolsonaro foi um fato que uniu boa parte da imprensa internacional em severas críticas ao personagem político, e não estamos falando de órgãos da mídia claramente com posturas editoriais de esquerda. Esse é um dado concreto da realidade: nenhum governo brasileiro recente assumiu com uma imagem lá fora tão avariada como o de Bolsonaro. Marcar e desmarcar coletivas, com queixas fundamentadas ou não sobre o comportamento da imprensa, só vai piorar um quadro ruim.

O abandono de algumas posturas que costumam gerar muitos aplausos nas redes de apoio bolsonaristas – principalmente ligada a costumes e combate ao crime – indica também a admissão de que essas posturas (a “lacração” na internet) não são conteúdo capaz de gerar simpatias internacionais que ele, implicitamente, pareceu empenhado em conquistar. E há o reconhecimento explícito que o conjunto de regras multilaterais do comércio merece ser reformado para coibir “práticas desleais” (o velho protecionismo aplicado sem dó e defendido hoje sobretudo por Trump, que Bolsonaro tanto admira).

Bolsonaro passou ao largo ou foi genérico em relação às principais questões internacionais mais relevantes (como a crescente tensão geopolítica entre Estados Unidos e China, por exemplo), mas indicou que o Brasil pretende entrar para o clube da OCDE – o seleto grupo de economias que prosperou e parece razoavelmente interessado na tal “ordem liberal internacional” tão criticada por inspiradores de discursos do presidente.

No fundo, o que o estilo dessa estreia internacional traduz é o mais importante reconhecimento de um fato fundamental para esse novo governo. Bolsonaro deve se sentir aliviado constatando que será julgado não pelo que disser, mas pelo que fizer.


William Waack: Bolsonaro vai ao mundo

Visita ao ninho da globalização em Davos coincide com dificuldades de Brexit e Trump

A estreia internacional de Jair Bolsonaro será em Davos, local símbolo das elites “globalistas” e antissoberania nacional que o novo presidente brasileiro foi convencido a combater. Fazem parte dessa elite também os grandes nomes ligados ao volátil mundo dos investidores e sua incessante busca por oportunidades, grupo que o novo presidente brasileiro foi convencido já há bastante tempo a cultivar.

Como a luta contra o “globalismo” (qualquer que seja a definição que se empregue) tem características de guerra cultural – pois estamos falando de valores – o momento da entrada em cena de Bolsonaro em Davos é especial. Ocorre quando os dois maiores “choques” antiglobalistas passam por graves dificuldades. Brexit e Trump estão dando muito conforto a seus críticos e adversários.

No voto do Brexit, os antiglobalistas enxergaram até mesmo a luta heroica de um povo para recuperar sua soberania e dignidade. Mas a cizânia política trazida pelo resultado é de tal ordem que, hoje, o Reino Unido chegou a ponto de não ter Brexit, não ter acordo para Brexit, não saber o que fazer com Brexit nem com o próprio governo conservador. A confusão está dando projeção a um populista de esquerda, Jeremy Corbyn. E pode acabar em novo referendo sobre... Brexit.

Faz dois anos também que Donald Trump assumiu causando um monumental choque político, seguido agora de uma imensa bagunça política em casa. As investigações contra ele prometem levar a pedidos de impeachment na Câmara, cujo controle perdeu para os adversários democratas. Perigo maior são os políticos republicanos que sofreram nas eleições de meio termo em novembro último e não gostaram nem um pouco da renúncia do general Jim Mattis do Pentágono.

Trump decidiu topar uma inédita paralisação da máquina do governo americano por conta do financiamento de uma promessa de campanha – construir um muro na fronteira com o México – que já causa danos à economia real e faz o próprio campo político republicano perguntar se há alguma relação saudável entre custos e benefícios, sobretudo políticos. Diga-se de passagem que a articulação dos adversários democratas está se dando num eixo de “esquerdismo” nunca antes visto no mainstream da política americana.

O ponto de interrogação levantado por vários comentaristas internacionais sobre os limites dos movimentos políticos simbolizados por Trump e Brexit não tem resposta clara. Alguns dos fatores que ajudaram esses movimentos a ganhar corpo e projeção continuam presentes. Eles são, em forma ultrarresumida, de três tipos: as forças econômicas que criaram ganhadores (elites) e perdedores (trabalhadores em países industrializados). As forças culturais, sobretudo o nacionalismo e o peso da religião.

E, em terceiro, o “antiglobalismo” nas suas várias versões é um fenômeno por sua vez global, que vai de Londres a Washington, de Roma a Manila, de Brasília (direita) ao México (esquerda) – para não falar dos regimes “duros” dos homens fortes na Rússia, China ou Turquia.

A tentação óbvia para Bolsonaro é falar tanto aquilo que gostariam de ouvir os que ele pretende cultivar (investidores) como aqueles com os quais se alinha nessa “cruzada antiglobalista”. Não há em princípio uma contradição: os chineses se consagraram ao capitalismo dizendo que não importa a cor do gato contanto que pegue o rato.

Mas é bom ter na cabeça o que aconteceu com o Brexit. Começou prometendo aos britânicos a volta do destino nas próprias mãos e, portanto, um futuro melhor. No momento, deixou o Reino Unido na condição de país sem destino. Ideias ruins costumam trazer consequências ruins.


William Waack: Valentia e resultados

O grande risco internacional é a instabilidade, agravada pelo comportamento de dirigentes

Tirar o Brasil do Pacto Global para Migração é o tipo da valentia que não custa grande coragem, rende muitas frases de efeito e tem pouquíssimo – ou nenhum – efeito prático. Na raiz desse gesto do novo presidente brasileiro está a convicção de que uma grande conspiração internacional trabalha para retirar a soberania, a capacidade de decisão ou até mesmo a vontade de se defender de Estados nacionais. E que grandes instituições multilaterais (como a ONU, onde se tramitou o tal do inócuo pacto de migração) foram aparelhadas pelos tais globalistas.

O cenário que preocupa de verdade um grande número de analistas internacionais, incluindo as grandes consultorias de risco, é outro. É o que chamam quase em uníssono de agravamento da instabilidade nas relações entre os países. “Nada urgente”, escreve uma dessas consultorias, a Eurásia, “ciclos geopolíticos são lentos e leva-se anos, até décadas, para destruir uma ordem, mas a erosão (da atual ordem) está ocorrendo”.

Neste tipo de cenário abre-se ainda mais o espaço para que indivíduos – tais como dirigentes de alguns países – consigam estragar coisas ainda mais depressa. Mas aqui vai uma nota tranquilizadora: a mesma Eurásia, quando olha para os riscos nestas partes do mundo, está preocupada com o México e seu novo presidente populista de esquerda, e muito pouco com o Brasil (em outras palavras, nossa capacidade de causar estragos internacionais no momento é considerada pequena).

Assim, a guerra comercial entre as duas maiores economias do mundo é descrita como consequência, e não causa, do que se considera como quase inevitável ruptura da ordem internacional descrita como “liberal”. Da mesma maneira, o estado da economia mundial preocupa muitos comentaristas estrangeiros não tanto pela dificuldade de se prever o comportamento dos mercados, mas, sobretudo, por aquilo que se assume com grande dose de convicção: mesmo um pequeno ciclo recessivo (que se dá como favas contadas) encontrará os principais governos menos afinados e capazes de respostas, como aconteceu na grande crise financeira de 2008.

Aqui o foco vai diretamente para os Estados Unidos, e a rara combinação de difícil situação política doméstica com o fato de Washington ser um dos principais fatores que contribuem para virar a ordem internacional de cabeça para baixo – fato exemplificado num presidente que fala tão mal de adversários quanto de aliados. Donald Trump perdeu o controle do Congresso e a atual paralisação do governo é apenas o início de uma áspera batalha política interna.

Nesse sentido, desenha-se um curioso cenário de combates também em relação à política externa americana. O “consenso” entre democratas e republicanos sobre a necessidade de reduzir o papel internacional dos Estados Unidos está sendo quebrado na luta política contra Trump, ou seja, seus adversários começam a falar na necessidade de “reconstruir” valores como a liderança americana e refazer alianças (a belicosidade em relação a China, porém, une nos Estados Unidos forças políticas antagônicas).

Ser “contra” ou “a favor” de Trump é uma dessas bobagens que só tornam ainda mais precária a compreensão do que está em jogo. O problema não está em atacar o “globalismo”, mas em saber qual a capacidade de liderança de Trump no momento em que uma crise econômica transborde para se transformar numa crise geopolítica. E ela vem.