William Waack

William Waack: Não há vitória absoluta

Como vai reagir Bolsonaro ao papel que o Legislativo está assumindo?

A derrota que o Senado impôs a uma das pautas caras para o presidente Jair Bolsonaro – a derrubada dos decretos que flexibilizam o porte e a posse de armas no Brasil – é apenas o fato mais recente no claro esforço das casas legislativas de aumentar as próprias prerrogativas reduzindo o poder da caneta do chefe do Executivo.

O STF também cerceou a autoridade do Executivo em vários exemplos recentes (privatizações, extinção de conselhos), mas a ação do Legislativo tem um sentido político evidente ao diminuir a capacidade do Executivo em alocar recursos por meio do Orçamento e de limitar o uso de medidas provisórias.

Faz parte desse movimento a tramitação de reformas como a da Previdência e, logo depois dela (promete o presidente da Câmara dos Deputados), a tributária, numa espécie de “plano econômico”. A questão é: até que ponto o Legislativo consegue chegar?

O presidente brasileiro preserva um poder imenso de ditar agendas políticas, mas é evidente a rapidez com que diminui sua capacidade de se afirmar sem uma base sólida no Congresso. Bolsonaro pode achar (como indica que está achando) que é capaz de levar adiante seus planos mesmo à frente de um governo minoritário. No caso da reforma da Previdência, porém, é bom lembrar que os presidentes das casas legislativas abraçaram a agenda reformista, e não foi o caso na questão das armas.

A dupla Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, como condutores dessa “coalizão reformista” (em se tratando da economia), enfrenta um limitador básico. É o fato de que nenhum dos dois distribui cargos no governo ou pode prometer a parlamentares vitória nas próximas eleições (“ao contrário”, admite Maia, reconhecendo danos eleitorais). Controlam pautas de votações, coordenam a atuação de líderes de vários partidos (atendendo ou não aos desejos do Executivo), mas “de facto” estão distantes de estabelecer uma democracia parlamentar.

Maia e Alcolumbre prometem iniciar logo após a reforma da Previdência uma reforma tributária alinhada a demandas urgentes dos principais setores da economia e de categorias profissionais. Ambos são hoje personagens tão procurados por empresários e líderes de segmentos da economia como o superministro Paulo Guedes. Ocorre que a dupla do Legislativo não tem meios para impor disciplina em votações, o que sugere graves dificuldades na aprovação de assuntos complexos, e que demandam a participação direta de governadores, como é o caso da sonhada reforma tributária.

A “rota” política (em sentido amplo) do Legislativo neste momento se beneficia paradoxalmente da volatilidade do clima político. É a primeira vez em muito tempo que a sensação do noticiário não é alguma denúncia contra a “classe política”. O alvo da vez são os principais expoentes da Lava Jato. Um raro caso de “blindagem” do Legislativo num escândalo político (óbvio que isso pode mudar rápido).

É notório que os suspeitos de sempre no mundo político, e dentro do Legislativo, se alegram visivelmente com as dificuldades políticas agora no colo do ministro da Justiça, Sérgio Moro – a quem muitos pretendem dar um troco. Em outras palavras, misturam-se os ratos que pretendem escapar da campanha anticorrupção com uma parte significativa do Congresso (que tem a mesma legitimidade que o presidente) que caminha para tentar tirar o País do tipo de regime por alguns chamado de democracia hiperpresidencial.

Maia e Alcolumbre estão querendo dizer que Executivo e Legislativo só conseguirão governar juntos. “Não há vitória absoluta”, diz Maia. Não parecem ter combinado tudo isso com Bolsonaro. Para quem, ao que tudo indica, a ficha ainda não caiu.


William Waack: Princípios às favas

Provavelmente a Lava Jato e seus expoentes sairão menos desmoralizados do que se pensa

Nas mensagens trocadas entre Sérgio Moro e Deltan Dallagnol publicadas até aqui está um bom resumo da Lava Jato. É a frase atribuída ao então juiz Sérgio Moro na qual ele, dirigindo-se ao procurador Deltan Dallagnol, duvida da capacidade das instituições brasileiras de lidar com a corrupção do sistema político.

A força-tarefa de Curitiba é um acontecimento relativamente recente, mas tem décadas a convicção que personagens como Moro e Dallagnol exibem da sociedade brasileira como hipossuficiente, isto é, incapaz de se defender sozinha, especialmente frente à esfera da política. Esse é também o ponto de partida para a compreensão que procuradores têm de si mesmos como “agentes políticos da lei”.

O que explica a extraordinária popularidade da Lava Jato não são esses velhos e conhecidos postulados ideológicos, mas, sim, o fato de uma imensa parcela da população ter encontrado nas ações da força-tarefa a expressão de seu profundo descontentamento com um “sistema”, sobretudo o político, encarado como principal obstáculo ao progresso dos indivíduos e do País.

A face nos últimos tempos mais identificada com o “sistema” era o PT, entre tantas siglas políticas que procuradores e juízes identificam como predadores de uma sociedade indefesa. Daí ter sido esse partido um de seus principais alvos, mas de forma alguma o único. O fato central é que o “lavajatismo” não considera o sistema político capaz de se regenerar, nem os poderes políticos (sobretudo o Legislativo).

A “tutela” exercida pelos integrantes da Lava Jato sobre uma sociedade civil entendida por eles como fraca e indefesa foi entusiasticamente aceita e se traduziu em grande medida na onda que arrasou o PT, e quase toda a política, com a colaboração de setores dominantes da mídia também. Convencidos desde o início de que enfrentariam uma formidável reação do “sistema”, especialmente dentro do Judiciário, os expoentes da Lava Jato claramente subordinaram meios legais aos fins – políticos num sentido amplo.

Assumiram que seria necessária a utilização excepcional de instrumentos de investigação e coerção, esticados até a margem da lei, para lidar com um adversário enraizado nas principais instituições. A maioria da sociedade brasileira concordou com isso e deu expressão eleitoral (na figura de Jair Bolsonaro) à noção de que era necessário “limpar” o PT e o “sistema”, ainda que se tivesse de fechar os olhos para eventuais “abusos” ou “escorregadas” por parte da Lava Jato.

Muita gente (muita mesmo) pensa que garantias legais e preceitos constitucionais e também a frase “não se deve combater crimes cometendo crimes” importam menos diante do grau de roubalheira, bandidagem, cinismo, irresponsabilidade dos dirigentes políticos e seus comparsas do mundo empresarial no “sistema”, conduzido mais recentemente pelo lulopetismo.

A revelação dos diálogos particulares entre Moro e Dallagnol enfureceu não só juristas, indignados com o que se configura óbvia violação de princípios pelos quais magistrados deveriam pautar suas condutas. Mas as consequências políticas estão sendo o contrário do que pessoas fiéis a princípios poderiam esperar com a grave denúncia de comportamento parcial ou de ativismo político por parte de integrantes da Lava Jato.

Quem calcula a “desmoralização” da Lava Jato provavelmente verá o contrário. Pode-se gostar disso ou não, mas na luta política brasileira já faz bastante tempo que princípios foram mandados às favas. Não sabemos ainda é com quais vamos tentar construir o futuro.


William Waack: A arrancada de Bolsonaro

A falência do sistema político coloca o presidente num dilema fundamental

O mundo político preocupado em encontrar uma ampla saída para a crise desistiu de imaginar que a relação entre os Poderes possa ser fundamentalmente distinta da atual. O presidente Jair Bolsonaro oscila entre tapas e beijos no trato com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, postura difícil de se chamar de “conduta tática” (se é que existe um objetivo estratégico). É simplesmente ao sabor dos acasos quase diários da política cotidiana. Portanto, de baixa previsibilidade.

Ocorre que é o nó político que precisa ser desatado quando se pensa em qualquer questão fundamental: gastos públicos, reforma tributária, insegurança jurídica. Goste-se ou não das escolhas consolidadas nas urnas em outubro, é obrigatório reconhecer que a onda disruptiva tornou ainda mais precário o funcionamento de um sistema de governo que opõe um chefe do Executivo muito forte a um Legislativo cheio de prerrogativas, mas fracionado e com partidos políticos que, em sua maioria, nem merecem esse nome. Receita para um desgaste permanente, de parte a parte.

Em outras palavras, a transformação empurrada em boa parte pelo lavajatismo, e seu esforço em estabelecer um controle externo ao sistema político, agravou o fator de crise “estrutural” das instâncias que se mostram há muito tempo incapazes de lidar com questões como a fiscal – para falar apenas do problema mais agudo de curtíssimo prazo. O fenômeno é de amplo alcance e transcende os nomes de Jair e Rodrigo (e de Toffoli também). Daí a forte desconfiança (total descrédito talvez fosse a melhor expressão) com que foi recebido o tal “pacto entre Poderes”. Fatores de longo e curto prazos combinaram-se para a atual tempestade perfeita.

Essa tempestade se caracteriza pela imensa dificuldade percebida em “arrancar” em alguma direção – e não é por falta de diagnóstico ou de palavras. O ministro da Economia, Paulo Guedes, foi apenas o último a dizer, na Câmara, na terça-feira, que a economia está estagnada há muito tempo, que, sem reformas (além da Previdência), o País não cresce, que a jovem força de trabalho precisa de emprego e aumento de produtividade. E que ele preferia um novo pacto federativo, descentralizador.

O problema é a percepção de que pouco acontece nessa direção. Talvez voluntariamente Guedes expresse uma noção que se amplia nas elites. O de que o nó político é muito mais do que o “toma lá, dá cá” nas relações entre Executivo e Legislativo, nas quais se concentra o já monótono noticiário político de cada dez minutos. Que a corrupção é um problema importante, mas nem sequer o pior. Que a insegurança jurídica, além dos problemas velhos do Judiciário, vem também de decisões políticas do Supremo. E que no público em geral, descrente das instituições (inclusive imprensa), cresce uma raivosa impaciência em relação a “tudo”.

Jair Bolsonaro pode achar que essa raiva lhe favorece no ímpeto declarado de romper o nó político. Por ele entendido até aqui na acepção mais reduzida, a do “toma lá, da cá”. Conscientemente ou não, é formidável o dilema no qual o presidente se colocou: respeitar e ao mesmo tempo desprezar as regras do “sistema” político – que está falido na sua acepção mais ampla. Se ele acha que o dilema tem saída, ainda não deixou exatamente claro com quais meios, além dos apelos à sua base fiel. Nesta semana, quando atravessou a Esplanada e foi ao Congresso, foi falar de pontos na carteira de motorista.

Enquanto a “arrancada” da estagnação política e econômica sugerida pelos eventos de 2018 está se fazendo esperar.


William Waack: O poder da caneta

Na relação com o Congresso, o presidente Jair Bolsonaro está conseguindo o contrário do que pretende

As pessoas que foram às ruas no domingo atendendo a chamado do presidente e as que vão às ruas nesta quinta-feira para protestar contra o governo deram uma demonstração de política real. Uma e outra sugerem a Jair Bolsonaro que ele teria prevalecido num teste de forças que, na verdade, está apenas no começo e no qual a caneta Bic do presidente é insuficiente para vencer.

Começa pelo tal “pacto” dos três Poderes que nem tem como existir (o STF assinando pactos?). A ênfase retórica no “pacto” é, em parte, o resultado da percepção de Bolsonaro de que os termos da vitória eleitoral e “as ruas” lhe teriam permitido enfrentar os outros dois Poderes, e que levou o ministro Paulo Guedes a dizer que “não há antagonismo” entre eles (os Poderes) – frase que só provocou risadas entre seus pares no mundo real da economia e finanças. Tudo bem, reconheça-se que um dos pilares do governo não poderia mesmo declarar outra coisa em público, ainda que fosse para segurar o dólar.

“As ruas” – ou o que Bolsonaro entende por isso – teriam também dito ao presidente que ele não precisa se esforçar muito em conseguir uma base estável no Congresso, pois o ronco das multidões que o apoiam superaria em caso de necessidade os cochichos dos participantes do nefasto conchavo que o impede de realizar os anseios do povo. O problema aqui é o de desafiar um dado estrutural do sistema de governo brasileiro (admita-se, o pior do mundo), que obriga Executivo e Legislativo a se entender de alguma maneira.

Nesse sentido, Bolsonaro está conseguindo o inverso do que pretende. O Congresso está caminhando até com certa rapidez para fortalecer suas prerrogativas e com pautas próprias (na área tributária, por exemplo). Mais complicado ainda para o presidente, o mundo parlamentar se impressionou menos do que ele acredita com as manifestações de rua. Ao contrário, está tomando a guerra deflagrada pelo bolsonarismo nas redes sociais como incentivo para reduzir as prerrogativas do Executivo em dois setores-chave: alocação de recursos pelo orçamento e uso de medidas provisórias.

Ao aderir a simplificações brutais da (admita-se) complexa e dificílima relação com o Legislativo, Bolsonaro ignora um outro dado relevante da realidade dos fatos. Parlamentares reagem, sim, não só “às ruas”, mas, também, a uma série de pressões políticas, sociais, econômicas e regionais que os empurram, por exemplo, para a aprovação de alguma reforma da Previdência – é o que explica, em parte, o entendimento relativamente muito mais fácil entre o próprio Guedes e os presidentes das casas legislativas, que estabeleceram há tempos linha direta com importantes segmentos da atividade econômica.

As elites da economia estão há tempos totalmente convencidas de que não há um plano B para a não aprovação de alguma reforma da Previdência. Mais ainda: clamam por algo que mexa com a sufocante questão dos impostos (nem estamos falando da carga). Alguma surpresa com o fato, mencionado acima, de o Legislativo querer seguir adiante com uma pauta “própria” de reforma tributária? Ou das expectativas dos agentes de mercado voltadas agora menos para Bolsonaro e mais para o Congresso?

Aos cinco meses de governo, está se ampliando a noção de que a formação de uma base coesa e estável de Bolsonaro no Legislativo não só continua distante, mas, talvez, nunca se concretize. O presidente não se mostra disposto a liderar nada nesse sentido, e já deixou a própria bancada mais de uma vez na mão. Confia estar na rota política correta. É a que vai ajudar a diminuir muito o poder da sua caneta.


William Waack: Maluquice lógica

Percepções equivocadas conduzem Bolsonaro a decisões perigosas para ele e o País

Jair Bolsonaro é um personagem político dos mais transparentes. Não deixa dúvidas sobre a maneira como percebe o mundo à sua volta – e as percepções mantidas pelos próprios personagens políticos (malucas ou não) são ferramentas úteis para entender as decisões que eles tomam. Bolsonaro se entende como escolhido por Deus para governar o Brasil. Missão que não está conseguindo cumprir, segundo admite, pois é vítima de um “sistema” que não se deixa moralizar, especialmente a esfera política.

Esse tipo de percepção explica a descrição que o presidente faz de compromissos políticos necessários em qualquer regime representativo democrático (como o brasileiro) como sendo “acertos” espúrios, sobretudo em relação ao Legislativo. E o faz colocar o “povo”, que Deus o encarregou de governar, como seu principal instrumento para quebrar de fora para dentro o “sistema” que tornou o País “ingovernável”. Maluca ou não, é uma sequência perfeitamente lógica.

Erros políticos ocorrem quando o personagem (no caso, Bolsonaro), conduzido por suas percepções, substitui estratégia por aspirações e acredita dispor de meios (pressão popular por meio de redes sociais, por exemplo) para atingir seus fins (controlar os poderes Legislativo e Judiciário). O chamado às ruas que o presidente implicitamente endossou é um desses erros políticos tão crassos a ponto de suscitar uma pergunta: será que não existiria por detrás uma forte jogada política?

Aparentemente, não. Esse chamado dividiu seus apoiadores e mesmo uma estrondosa manifestação popular no dia 26 não diminui – ao contrário, até amplia – as dificuldades de relacionamento do Executivo com o Legislativo. Menos que estrondosa, e ele sai enfraquecido diretamente. A não ser que Bolsonaro tenha no recôndito das reuniões de família pensado no impensável, qual seria o próximo passo para tentar “emparedar” um Legislativo que, de fato, avança – ajudado principalmente pela incompetência do governo – na direção de um “parlamentarismo branco”?

Visões messiânicas da própria atuação em geral impedem personagens políticos de amenizar relações conflituosas (como a atual entre Executivo e Legislativo), pois isso demandaria formação de consensos, e messiânicos tratam preferencialmente de impor a própria vontade, entendida ou não como divina. Enxergam uma “revolução conservadora” numa onda disruptiva de transformação composta por múltiplos elementos antagônicos, que se dedicam agora a disputar o poder entre si (alguém acha que desapareceu a luta entre “ideólogos” e a ala militar, por exemplo?).

Se é que alguma vez a teve, o governo Jair Bolsonaro está perdendo o sentido de urgência para o que realmente importa e, no final das contas, vai de fato definir seu sucesso ou fracasso. O rombo fiscal está se agravando, a economia está estagnada, o crescimento não veio ainda, a arrecadação ficou aquém, piorando dificuldades políticas, fechando opções de acomodação de interesses – tudo isso diante do grande quadro de sempre, caracterizado por infraestrutura precária (investimentos?), formação insuficiente de capital humano (produtividade?) e excessivo fechamento do País.

Percepções equivocadas ou fortemente distorcidas da realidade e do próprio papel conduzem personagem políticos a avaliações equivocadas das relações de força e de poder e, por consequência, ao erro. O problema é que não só o personagem em questão acaba sendo punido pelos fatos ou pagando um preço alto em termos de perda de capacidade de conduzir, liderar, governar. O País também.


William Waack: O pelotão de Bolsonaro

O presidente ainda não demonstrou claramente como pretende lidar com o Legislativo

Não há como o presidente Jair Bolsonaro se queixar de que não sabia. O sistema de governo brasileiro obriga um campeão de votos diretos (ele) a lidar com um Legislativo de baixa representatividade (o sistema de voto proporcional brasileiro garante a desproporção), fracionado entre dezenas de partidos políticos – alguns parecidos a quadrilhas – mas cheio de prerrogativas. Que fazem do presidente da Câmara dos Deputados uma espécie de primeiro ministro, até com pauta própria, enquanto o chefe do Executivo legisla por medida provisória.

Nesse “natural” embate não há, até aqui, a menor novidade. Nem mesmo no fato de o campeão de votos dar sinais contraditórios sobre como pretende enfrentar esse dado básico da natureza do sistema de governo. Que confunde mesmo. Por vezes, Bolsonaro acena com gestos políticos que são inerentes à necessidade de se entender com as forças dentro do Legislativo (eventualmente cedendo à pressão fisiológica por cargos). Por outras, despreza a prática da articulação política – a começar pela condução da própria bancada –, qualificando-a como porcaria com a qual não quer se sujar.

Na prática, não está fazendo nem um nem outro. E vai sendo implacavelmente encurralado por prazos de tempo sobre os quais não tem controle. Arrisca-se a ver perdida a reestruturação administrativa por conta de votação de MP mal conduzida na Câmara. Arrisca-se a ver a crise fiscal esmagar ainda mais o espaço para o Orçamento, enquanto já vai atrasado na aprovação de alguma reforma na Previdência. Arrisca-se a entregar de bandeja a adversários políticos uma narrativa política de impacto, como o contingenciamento das verbas da Educação.

No conjunto da obra, está sendo desmoralizado – ajudou a enfraquecer o nome mais popular, o de Sérgio Moro, ao já nomeá-lo para o STF, e vai vendo o mundo legislativo e jurídico fazendo o mesmo gesto de atirar, só que, desta vez, é contra seu predileto decreto de flexibilização do porte de armas. Chega a ser perverso constatar, nesse contexto, que o “fundo do poço” ao qual se referiu o ministro da Economia ao falar da situação fiscal não está convencendo deputados a aprovar o que o governo quer, mas, sim, está dando a ideia a eles de que o governo não sabe o que fazer.

Não há dúvidas sobre a espúria motivação de nutrido grupo de parlamentares (a famosa área bandalha da Câmara) ao bloquear a reforma administrativa ou impor sucessivas derrotas ao governo. Ocorre que grande parte da relevância que esse chamado Centrão assumiu nas últimas quatro semanas é sobretudo o resultado de um vácuo político a partir da “base” de sustentação de Bolsonaro na Câmara. A constatação tem sido reiterada pelos próprios parlamentares governistas, não é “papo da mídia”.

Aos apoiadores, o presidente e seus filhos têm repetido que “não há jeito”, que uma maioria imbatível no Congresso se comporta “contra o Brasil”, que a área política “não se deixa moralizar” e que ele está sendo encurralado por parlamentares bandidos e mídia podre e adversa a: a) ceder ao fisiologismo e bandalha, acabando na cadeia. Ou: b) a cometer um crime fiscal e ser “impichado”. Se abraçada até as últimas consequências, essa percepção que Bolsonaro aparentemente tem das causas das dificuldades em realizar os projetos que considera mais valiosos, e de aprovar reformas que admite serem necessárias, o levará a agir de forma contundente.

Aí resta saber quem e quantos estarão no pelotão que irá atrás do capitão.


William Waack: A marcha da estupidez

O presidente Jair Bolsonaro incentiva luta política que lhe é prejudicial

Jair Bolsonaro avançou um passo importante rumo a um isolamento que lhe poderá custar caro na hora em que precisar de aliados além da militância virtual de redes sociais. Não conseguiu convencer ninguém de que não tem participação na cascata de ataques contra alguns generais em seu governo, que culminou em baixaria inominável contra o ex-comandante do Exército general Villas Bôas, personalidade admirada nos mais variados setores. “Herói nacional”, disse Sérgio Moro.

A ação contra os militares é apenas a mais recente ilustração do fato de que os “ideólogos” que conduzem o presidente enxergam a defesa de instituições – papel que os militares vêm desempenhando – como um obstáculo a ser eliminado no que eles consideram “revolução conservadora”. A distância que essa percepção tem do que realmente acontece nas ruas é enorme e, provavelmente, será fatal para os grupos bolsonaristas da extrema franja do espectro político. Eles vão perder, mas o problema está no dano que já estão causando.

O perigoso isolamento político do presidente se dá quando ele faz de conta ignorar uma luta política que afeta também a credibilidade do chefe de Estado, na medida em que alguns de seus colaboradores mais próximos são desqualificados com palavrões por alguém que o próprio chefe de Estado elogia APÓS a sequência de ataques. O que transparece dessa atitude é a sensação de falta de liderança. E de perda de autoridade.

Boa parte das reações do mundo político caminhou nessa trilha: a de que o presidente não lidera ou, no mínimo, não é capaz de controlar ou sequer de perceber um jogo que lhe é prejudicial. Parte das dificuldades que ele enfrenta no Congresso tem como origem o mesmo tipo de percepção: a de que Bolsonaro se engaja de maneira insuficiente em questões essenciais (como a crise fiscal) e se dedica a administrar de maneira confusa crises que ele ou gente à volta dele criou.

Há uma certa incredulidade no ar. Os primeiros números de atividade econômica sob Bolsonaro, e não apenas os que ele herdou, não empolgam ninguém. Podem ainda ser tratados pelo governo como fase passageira que será logo suplantada por crescimento e desenvolvimento, assim que for aprovada a reforma da Previdência (é a aposta de Paulo Guedes). Da mesma maneira, considera-se que mais liberdade econômica almejada pela recente MP desburocratizante e os programas de concessões e desestatização trarão logo investimento, emprego e renda – um necessário e esperado alívio, sem dúvida.

Mas é pouquíssimo para uma economia que, ao fim do ano, estará ainda abaixo do patamar de 2014. Nas regiões brasileiras de maior densidade do eleitorado, a recuperação dos setores de indústria e serviço é muito lenta e, na comparação com 2014, o PIB de seus Estados estará ainda mais baixo do que o PIB nacional. As lições para Bolsonaro não estão na Venezuela, mas, sim, na Argentina, país no qual (simplificando) a política travou a economia, bloqueou reformas necessárias e colocou a “walking dead” Cristina Kirchner de novo no palco.

Economistas tendem a afirmar que essa realidade dos fatos, especialmente os cofres públicos quebrados, se imporá sobre as decisões dos políticos. Trata-se de esperança ou de crença. O apego de Bolsonaro ao conjunto de postulados levados adiante pelos “ideólogos” impõe enorme desafio intelectual aos economistas, para os quais não cabe dúvida de que o foco deveria ser quase que exclusivamente a estagnação de décadas da economia, da produtividade e da competitividade do País. Em seus modelos numéricos, os economistas ainda não conseguiram incluir um espaço para a estupidez de decisões humanas.


William Waack: Insurreição e mito

Fatores abrangentes tornam difícil a ação comandada pelos EUA para derrubar Maduro

Qualquer que seja o resultado do que está acontecendo na Venezuela, o “golpe de mão” (como se dizia antigamente) contra a ditadura chavista lançado na terça-feira por Guaidó inicialmente carecia de todos os elementos clássicos de ações semelhantes bem-sucedidas, a saber: surpresa, força e velocidade.

A oposição e governos que a apoiam diretamente (como Estados Unidos e Brasil, mas não só) vem “telegrafando” há semanas que pretendem explorar dissidências dentro do aparato militar para derrubar o tirano Nicolás Maduro. Para uma quartelada dar certo esse esforço talvez devesse ter sido mais discreto.

“Golpe de mão” tentado a pedaços desanda em situações de impasse nas quais o controle da hierarquia militar aliado a grupos paramilitares ganha tempo para o ditador a ser desalojado – seria um bom retrato do que acontecia até o 1.º de Maio nas ruas de Caracas. O que leva à questão no fundo essencial, a da força entendida na acepção primordial.

A oposição até aqui não dispõe de tropas para enfrentar tropas. Onde a oposição (e os governos diretamente envolvidos em apoiá-la) julga ter encontrado “força” para um assalto frontal ao regime bem entrincheirado, como aconteceu no dia 30 de abril?

As evidências sugerem que é na convicção da viabilidade de uma insurreição popular alimentada pela miséria e penúria impostas a milhões de pessoas pelo regime chavista, e deflagrada pela “faísca” acendida por lideranças políticas com uma mensagem de esperança no futuro. Ironicamente, isso parece a leitura de panfletos marxistas sobre a Revolução de Outubro, que propagaram durante décadas o triunfo de uma insurreição que nunca ocorreu. Pelo jeito, o mito do grande levante popular é irresistível.

Mitos desse tipo talvez passem longe do staff de gente como Mike Pompeo, o secretário de Estado americano que é egresso de West Point e dirigiu a CIA – cujo mais recente triunfo em manipular personagens empenhados na derrubada de um regime nacionalista-populista num país grande data de 1953 no Irã (o golpe contra Mossadegh). Supõe-se também “frieza” na conduta de um diplomata profissional como John Bolton, assessor de segurança nacional de Trump e especialista em batalhas verbais na ONU e debates na TV.

Ocorre que, no fundo, o problema para a ação montada pela Casa Branca para derrubar Maduro vem de questões estratégicas mais amplas, como a dificuldade (exacerbada por Trump) de se contrapor a Rússia e China, e a profunda desconfiança em relação à política externa americana por parte de aliados tradicionais de vários tipos, como europeus ou a Turquia (“mérito” de Trump). A julgar pelo que disse a própria Casa Branca, Maduro confia muito em Vladimir Putin e teme bem menos do que se imaginava as ameaças de embargos e até ação militar de Trump.

A Venezuela transformada em componente delicado de um jogo geopolítico de grande abrangência internacional é testemunho da falta de liderança de Trump (Kennedy e Kruchev se entenderam por cima da cabeça de Fidel Castro em 1962). Agravada, nesse caso específico, pelo fato de atores regionais de relevância, como o Brasil, terem perdido exatamente essa relevância frente a vizinhos turbulentos.

Nesse sentido, é eloquente o contraste entre, de um lado, os “profissionais” com experiência em crises internacionais, como os generais que integram o governo Jair Bolsonaro. E, de outro, o voluntarismo de amadores das áreas de política externa e ideológicas à volta do presidente. Os “profissionais” têm pouco apreço por soluções improvisadas por motivação político-eleitoral, baseadas em duvidosa análise da realidade dos fatos e relação de forças. Não se empolgam com Guaidó. Os amadores adotam parábolas marxistas sobre História.


Willian Waack: Tão velho quanto palácios

Os ‘ideólogos’ à volta de Bolsonaro estão atacando o que realmente interessa

Nada têm de gratuito, maluco ou infantil os ataques contra o vice-presidente, general Hamilton Mourão, lançados pelos círculos mais íntimos de Jair Bolsonaro, neles incluídos familiares e intelectual a quem o presidente atribui primeira importância. Trata-se de saber quem vai enquadrar quem. Em última análise, é uma luta pelo poder.

Intrigas palacianas são tão velhas quanto... palácios. Nesse caso, porém, não se trata de saber quem tem mais acesso ou consegue mais favores do dono do Palácio, mas, sim, de determinar a quem o dono do Palácio vai obedecer. Do ponto de vista dos assim chamados “ideólogos” juntinho do presidente, faz todo sentido chamar Mourão de “conspirador”.

Pois o vice-presidente ganhou “Profil durch Kontrast”, como diz a famosa expressão política alemã: ganhou contornos como figura política por meio do contraste oferecido pela atuação de outros. A confusão e até notória bagunça nas áreas sob domínio direto dos “ideólogos” no começo do governo é que transformaram Mourão num personagem identificado com pacificação, racionalidade e sensatez – não eram os atributos que se conferiam a ele durante a campanha eleitoral, por exemplo.

A “conspiração” atribuída a Mourão reside no fato – sempre sob a ótica dos ideólogos – de ele representar o que se poderia chamar de “núcleo duro” do poder no Palácio. Nesse sentido, os ideólogos estão atacando o que realmente interessa. Para os militares no Palácio, ao contrário do que propagam os “ideólogos”, grande perigo não são comunistas e esquerdistas embaixo de cada cama. São o caos político e a bagunça institucional, ocorrências que os “ideólogos” consideram não só inevitáveis, mas até desejáveis na grande “revolução conservadora” que julgam ser capazes de conduzir.

É fato notório que esse grupo razoavelmente coeso de militares, egresso de algumas das melhores instituições de ensino do País (como são as academias militares), não só não abraça essas ideias (até as rejeita) nem os métodos de ação (não se dedica a lacrar na internet, por exemplo). Nem parecem esses militares pensar em carreira política no sentido de disputar votos a cada eleição. Além, claro, de se dedicarem a preservar exatamente as instituições (como Supremo e Legislativo) que os ideólogos consideram “sistema” a ser derrotado.

Grupos exaltados e apegados à violência virtual das redes sociais têm dificuldades notórias de enxergar o plano frio das relações de força de fato, entendidas aqui como quem é capaz, em último caso, de comandar quantos seguidores nas ruas. O exemplo mais eloquente dessa perda de leitura da realidade foi fornecido pela direção do PT (começando por Lula) nas semanas que precederam o impeachment de Dilma, quando o partido dizia ser dono “das ruas” e apenas conseguiu demonstrar que as ruas não eram da militância petista – bem ao contrário.

Os “ideólogos” estão reagindo racionalmente ao perigo que identificaram de o presidente ser “tutelado” ou até “emparedado” por outro núcleo de poder, no Palácio e fora dele, que age com método, disciplina e organização. Provavelmente superestimam o fator “popularidade” do capitão, ignorando o fato de que grupos de WhatsApp estão longe de ser a tal “ação direta” com a qual facções desse tipo na franja da paleta política sempre sonharam, não importa a coloração.

Muito vai depender de o próprio Jair Bolsonaro ser capaz de escapar dos efeitos descritos por outra clássica expressão política alemã, a da “Bunkermentalität”. Ela descreve um fenômeno palaciano tão velho quanto... palácios. É o dono do Palácio, vivendo no mundo peculiar das suas paredes estreitas e dando ouvidos só aos mais próximos, não ser capaz de entender o que está acontecendo de fato lá fora.


William Waack: Erro grotesco

No meio de grave luta política, o STF inflama as forças que querem emparedá-lo

Antonio Dias Toffoli assumiu a presidência do STF em setembro último com a proposta de baixar a temperatura das brigas institucionais e evitar surpresas, como uma canetada que libertasse Lula. Era o momento crítico pré-eleitoral (que o diga o atentado contra Bolsonaro) e o então comandante do Exército, general Villas Bôas, tinha combinado com o mais jovem presidente do Judiciário que seu chefe de Estado-Maior e hoje ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, uma das principais cabeças políticas das Forças Armadas, seria assessor especial de Toffoli.

O esquema de “pacificação” funcionou até ser engolido pelo agravamento da mais espetacular disputa da crise brasileira, que opõe expoentes de enorme projeção da Lava Jato, de um lado, e integrantes de peso do Supremo e do mundo político no Legislativo, de outro. E vai acabar arrastando também o Executivo na disputa para determinar quem exerce o poder de fato sobre os principais agentes políticos (e suas decisões).

A Lava Jato se entende como uma instância de controle externa sobre o mundo da política, descrito como irrecuperável, podre e intrinsecamente corrupto até que seu principal paladino, Sérgio Moro, decidisse fazer parte dele como ministro da Justiça. Do outro lado, há sólidas razões doutrinárias sustentando objetivos políticos lícitos, como os de assegurar que quem governa e legisla é quem foi eleito, e não procuradores e juízes. Razões desmoralizadas perante parte numerosa do público pelos que delas fazem uso só para escapar da Justiça. Mas o fato é que uma parte do Supremo e um número grande de políticos, entre eles muita gente honesta, acham que já passou da hora se de colocar limites e frear o ativismo de expoentes da Lava Jato.

É nesse contexto que ocorre o injustificável ato do Supremo de impor censura à publicação de material envolvendo Toffoli e encarado como parte da “guerra suja” movida por quem enxerga o STF como obstáculo, seja qual for o motivo. É um drama carente de heróis autênticos: o STF dispõe de sólidos indícios para supor que existe, sim, uma campanha organizada e dirigida para desmoralizar a Corte e alguns de seus integrantes, por razões somente políticas, e que seus adversários da trincheira da Lava Jato há muito se tornaram agentes políticos com agenda própria de poder (exercido direta ou indiretamente pelo controle da política).

Nesta altura da crise já importa pouco, embora possa parecer paradoxal, determinar quem tem razão, quem está do lado “certo”. Há uma notória atmosfera de desconfiança e perda de credibilidade das principais instituições (incluindo a grande mídia), em meio a um clamor difuso, porém virulento, expresso em “vamos expulsar a quadrilha do STF”, lema associado à visão de que, “com um Congresso cheio de corruptos, não é possível negociar”. É o tal do famoso “monstro”, chamado de “opinião pública” antes da era digital, e que todos os agentes políticos, incluídos os da Lava Jato, do Supremo e variadas lideranças políticas incitam, inflamam e ainda acham que conseguem dirigir.

Emparedar o Supremo e acuar o Legislativo em nome da imensamente popular campanha anticorrupção provavelmente aglutinará número nutrido de atores políticos, incluindo pedaços do Executivo. Há uma convergência tácita atualmente entre aqueles (como os expoentes da Lava Jato) que encaram o Supremo como obstáculo jurídico a ser superado e os “revolucionários” localizados na extrema franja, e com forte ascendência sobre Bolsonaro, para os quais a “limpeza” e o controle de instituições (incluindo Judiciário e Legislativo) têm de ser capitaneados a machadadas. Nesse sentido, a censura imposta pelo Supremo não só é inconstitucional e execrável em si. Trata-se de um grotesco e formidável erro numa luta política.


William Waack: O tempo de Bolsonaro

Para o atual governo o tempo está correndo muito mais rápido – e contra

No universo da física newtoniana no qual vivemos o tempo tem uma medida padrão igual para todo mundo. Não é a que vale para os cem dias de Jair Bolsonaro na Presidência. O tempo da política nem sempre combina com a duração das unidades do tempo cronológico. Para o atual governo, o tempo subjetivo correu muito mais rápido.

Essa rapidez na passagem do “tempo político” é em função de dois fenômenos separados, mas que andam de mãos dadas. Um é o grau de expectativa do público em geral frente ao governo que prometeu mudar o País em prazo recorde. O outro é o grau de intolerância e descrédito com que o mesmo público em geral encara a política. Jair Bolsonaro incentivou e continua incentivando os dois fenômenos.

Não adianta, como integrantes do governo tentam, enumerar medidas, decretos, projetos, propostas ou nomeações como forma de “provar” que as coisas andaram rápido. Nem adianta se queixar de “impaciência” por parte de milhões de pessoas que abraçaram a forte ilusão, reiterada em campanha eleitoral, segundo a qual o capitão resolveria logo o pelotão de problemas.

Serve menos ainda no atual ambiente político argumentar – tema recorrente nas redes sociais mantidas em estado de permanente efervescência – que o governo herdou um País arrebentado por sucessivas administrações perdulárias. E que dez, ou 20, ou 30 anos de incompetência não se revertem em uns três meses. É como esperar que o apego subjetivo e emocional à esperança de mudança imediata seja transformado numa postura calma e racional por quem grita há meses “temos de acabar com tudo o que está aí”.

São conhecidos e foram tratados exaustivamente por toda parte os problemas do governo para lutar na batalha da comunicação, na articulação política para aprovação de reformas, na coordenação de suas prioridades, no estabelecimento de estratégias, na escolha entre as diversas (e até antagônicas) forças políticas que o sustentam – nisso incluindo a personalidade do presidente e a influência aberta ou velada de entes familiares que o cercam.

Em parte as dificuldades resultam de frases de campanha eleitoral que se transformaram em armadilhas conceituais. A principal delas é a diferenciação, totalmente falsa, entre “velha” e “nova” política, quando o que existe é política, à qual pode se dedicar um governante com maior ou menor competência. Em parte as mesmas dificuldades resultam do famoso “modo negação”: é quando o governante, relutando em enfrentar os dados da realidade, atribui a um sujeito oculto ou a uma nebulosa conspiração os obstáculos que não consegue superar (como articular eficientemente uma base de apoio no Legislativo, por exemplo).

Mas talvez a maior dificuldade tenha sido encarar o fato de que o tempo, especialmente o psicológico, mas também o cronológico –, está trabalhando contra, e não a favor do capital político conquistado com a vitória eleitoral em 2018. Há uma urgente necessidade de se atacar questões de curtíssimo prazo e enorme impacto, como a da reforma da Previdência, que não parece refletida na organização e coordenação dos esforços políticos do governo – notório, até aqui, em dissipar parte da energia em temas irrelevantes para lidar com um sufoco como o da crise fiscal.

Um dos efeitos – positivo do ponto de vista da necessidade de aprovação de reformas estruturantes – desse período inicial de impaciência e franca intolerância é a mobilização de várias camadas de elites (política, militar e empresarial) para dar um sentido e direção práticos ao que o governo prometeu fazer e, na percepção generalizada, está gastando tempo subjetivo demais. É a promessa de libertar um país de suas próprias amarras.


William Waack: Vivendo no risco

Parece que Bolsonaro não se importa com o risco, inclusive o do ridículo

Três meses depois de assumir, Jair Bolsonaro demonstra que gosta de viver na beiradinha do risco. O principal deles no momento é arriscar um capital político – aquele que conquistou nas eleições – numa perigosa aposta contra o tempo. A comparação com o que acontece em economia é elucidativa: até agora ele investiu esse capital em quê?

Alguns sinais de erosão desse capital são bem evidentes e só não enxerga quem não quer. Não são as pesquisas de opinião (na qual bolsonaristas, a risco próprio, não acreditam mesmo). Essa deterioração é perceptível em repetidas manifestações de impaciência com o ritmo (ou falta dele) que o governo imprimiu às reformas. Traduzidas em frases desse tipo, que se ouvem por toda parte: “Acredito e AINDA acho que vai”.

É interessante observar o que está acontecendo em setores nos quais se formou, muito antes da eleição, a onda que empurrou Bolsonaro até o Planalto. São pequenos empreendedores, profissionais liberais, nutridas camadas médias de cidades do interior. Que viram em Bolsonaro uma resposta a problemas imediatos como insegurança (real ou percebida, não importa), burocracia, impostos, regulação, insegurança jurídica (em especial questões fundiárias para o agronegócio) – além do clamor anticorrupção.

Nesses grupos a onda ainda não “virou” num sentido contrário, mas, à medida que o tempo avança e a economia não deslancha, a política parece continuar a mesma e as brigas entre os Poderes permanecem inescrutáveis, aquilo que antes era uma mistura de esperança e engajamento está se transformando hoje apenas em esperança. Para alguém, como Bolsonaro, que atribui seu êxito eleitoral em boa parte a essa influência “de baixo para cima” na formação de opiniões, o perigo adiante é evidente.

O presidente despreza os chamados “formadores clássicos” de opinião, especialmente os que se manifestam pela imprensa. Mas esse é um risco grande também, considerando que as vozes críticas “na mídia” começam a se aproximar de outros grupos influenciadores. Trata-se de outros “formadores de opinião” clássicos que não são profissionais de comunicação: figuras respeitadas no mundo de vários segmentos da economia, por exemplo. Era possível “sentir” que a vitória de Bolsonaro estava garantida quando esses últimos pularam para o barco também.

Hoje eles não falam em pular do barco, mas em dar um jeito de dirigi-lo. Nesses círculos, que abrangem o mundo financeiro, industrial, de serviços e empresarial, Bolsonaro está se arriscando a provocar uma irreversível estupefação negativa. São setores que já em boa medida cessaram de ver nele o homem “que resolve”, para enxergar nele o “errático”, insuportavelmente viciado em redes sociais e polêmicas inúteis, que precisa “ser levado” a resolver. Essas elites nem sempre conseguem andar adiante dos acontecimentos, mas é inegável seu grau de influência.

A credibilidade e a confiança tão essenciais para qualquer governo estão hoje se deslocando sensivelmente da figura do “mito” em direção aos núcleos militar, econômico e da Justiça, com poucas figuras realmente de peso no mundo da política que o governo possa chamar de suas. E episódios como a bagunça no MEC e as tiradas do chanceler, reiteradas pelo próprio presidente, produzem situações de ridículo, talvez o mais poderoso ácido corrosivo da imagem de quem precisa ser levado a sério para governar.

Agora que ficamos sabendo, por exemplo, que Joseph Goebbels foi um esquerdista, vale a pena então lembrar uma frase celebremente atribuída a ele, a de que uma mentira repetida mil vezes vira uma verdade. No caso de cretinices, como a de dizer que o nazismo foi um movimento esquerdista, é diferente. Uma cretinice repetida mil vezes só vira uma cretinice ainda maior.