Vladimir Carvalho
Confira entrevista exclusiva que Vladimir Carvalho concedeu a Lilia Lustosa
Cineasta brasileiro morreu nesta quinta-feira (24/10), na capital federal. Velório será nesta sexta, no Cine Brasília
Comunicação FAP
Um dos nomes mais importantes do cinema brasileiro, o cineasta Vladimir Carvalho, que morreu aos 89 anos nesta quinta-feira (24/10), concedeu entrevista exclusiva à crítica de cinema Lilia Lustosa, como parte de uma pesquisa dela para uma tese de doutorado defendida em maio de 2021.
O título da tese é “L’”instant prégnant” du Cinema Novo brésilien: Un double mouvement de décolonisation en quête de légitimité”. Em português, “O ‘momento fecundo’ do Cinema Novo: um movimento duplo de descolonização em busca de legitimidade”. Ainda não foi publicada em forma de livro, mas já está disponível no site da universidade.
Vladimir concedeu a entrevista, que foi organizada em blocos, no dia 21 de setembro de 2016, no Cinememória.
O velório de Vladimir Carvalho será nesta sexta-feira (25/10), no Cine Brasília, na capital federal, onde ele morava. O cineasta estava internado em um hospital no Distrito Federal com problemas renais.
A seguir, confira a entrevista na íntegra:
Lilia Lustosa (LL): [Contexto] Era um dia de sol, e eu chegava meio afogueada, nervosa, ansiosa, carregando uma filmadora, um tripé e vários livros que queria mostrar para ele. Ele era um mestre para mim. Alguém que fazia parte dos meus estudos, alguém que era um exemplo, um autor do cinema brasileiro. Os livros em minhas mãos iam ganhando vida e pulando de minha bolsa para se exibirem para o grande Vladimir Carvalho. Não me lembro bem qual foi o primeiro que me escapou das mãos, mas o segundo foi um fininho, que trazia vários depoimentos para lá de interessantes sobre a realização de Aruanda.
Vladimir Carvalho (VC): Qual é o livro?
LL: Esse também[1]. [GOMES, João de Lima (org.), Aruanda – Jornada Brasileira. João Pessoa : UFPB/Editora Universitaria, 2003].
VC: Ah, sim.
LL: Tem umas entrevistas aí, né?
VC: Não é propriamente entrevista. Isso foi um encontro... e cada um foi... era uma mesa, entendeu? E cada um deu... deu... Você pegou esse livro onde?
LL: No Estante Virtual. Sabe aquele sebo eletrônico?
VC: uhum.
LL: Inclusive ele vem dedicado a alguém que não sou eu, claro!
VC: É o João Ramiro Neto. Fizemos juntos o Aruanda. É porque esse livro é fruto de um outro livrinho que é só sobre Aruanda. Essa parte aqui, ó, é outro livrinho que são só textos. Aí eles juntaram esses textos, que são textos em homenagem à João Ramiro, quer ver?
LL: E ao Rucker Vieira.
VC: E ao Rucker Vieira. Tá aqui: com a palavra João Ramiro. Tem um texto meu. Eu me recordo da figura dele... eu recordo que fomos os dois que o Linduarte convidou para fazer o roteiro. Ele já faleceu. Ele veio viver em Brasília, mas ele foi meio vítima dessa história da passagem da película para o... primeiro pro vídeo, que foi intermediário, depois digital, né? Então ele não se adaptou, ele ficou... perdeu mercado de trabalho. Vivia em São Paulo. Daí veio para Brasília. Ficou uns dois anos aqui. Não se adaptou. Aqui adoeceu e foi pra Paraíba e lá ele faleceu. Mais ou menos da minha idade. 80 anos hoje seria.
LL: Isso já faz tempo?
VC: Tem 10 anos.
LL: Mas ele fez o Cajueiro depois, né?
VC: Linduarte.
LL: É. Ah, o senhor não tá falando do Linduarte?
VC: Não, estou falando do João Ramiro.
LL: Ah, é do João Ramiro mesmo!
VC: O Linduarte chamou a mim e a ele pra fazer o roteiro. Depois chamou o Rucker para fotografar. Aí a gente foi... o João ficou mais na filmagem, mais tempo do que eu, porque eu tinha um vestibular pelo meio, entendeu? Aí eu não pude ir pra ficar. Depois é que eu fui e fiquei uma semana e o filme terminou. E ele foi muito, um montador muito solicitado no Rio. O João Ramiro, eu estou falando, entendeu? O Linduarte morreu há três anos atrás, dois anos. Dois anos!
LL: O que eu estou tentando fazer na minha tese é trabalhar com o período entre 1959 – fim de 59, desde que teve o tal do Manifesto Bola-bola mais ou menos – até 1961, na Bienal de São Paulo, quando os filmes são projetados...
VC: quando o filme é projetado
LL: Isso. E a minha ideia é tentar seguir a trajetória do Aruanda e do Arraial do Cabo, principalmente. Eu também vou falar, claro, dos outros filmes que estava sendo feitos...
VC: Você procura no Rio o... acho que chama-se João Saraceni, filho do Saraceni... ele está fazendo um filme.
LL: Ah, é?
VC: Ele está levantando material sobre Saraceni...
LL: Ah, que legal!
VC: Aí, ele naturalmente vai pegar coisa do Mário Carneiro, que eles fizeram juntos o filme, o Arraial... Teve boa inserção ontem no... [na véspera houve a exibição do documentário Cinema Novo, de Eryk Rocha – filho do GR – no Festival de Brasília].
LL: Teve muita cena! Teve mais do que de Aruanda, né? Bem mais!
VC: É muito interessante! É um filme muito interessante, porque é o choque cultural entre trabalhadores rurais... oh, eu ia dizer rural... entre pescadores – coisa primitiva – e o pessoal que trabalhava na fábrica. A fábrica ficou meio uma coisa... um apelo... um momento de passagem pra outra... pra humanidade, pra industrial, esse outro estágio da economia, né? E convivendo com a pesca mais primitiva, né? De puxar, né?
LL: E com a chegada, com a instalação da fábrica, os pescadores tinham que cada vez se afastar mais pra conseguir peixe, né?
VC: Porque havia já o problema da contaminação, etc.
LL: E sem contar a dinâmica da própria cidade, da comunidade, que foi toda alterada com a chegada da usina...
VC: E é curioso como são contemporâneos, nascem juntos... Com a diferença que um no Rio de Janeiro e o outro lá na Caixa Prego.
LL: Exato. Então, justamente por isso que a minha ideia é essa: seguir a trajetória dos dois, porque nesse período o Arraial primeiro foi exibido no Rio, o Paulo Cezar já tinha ido embora pra Roma, né? O filme foi vaiado e tal, e aí o Mario Carneiro reedita o filme, manda uma cópia pra Bilbao pra participar de um festival...
VC: E o filme é premiado.
LL: E o filme é premiado. E o Saraceni lá. Depois o Saraceni recebe o filme, uma cópia. O pessoal da Embaixada, sem o Saraceni saber, manda pro Festival de Florença...
VC: E o filme ganha prêmio.
LL: O filme ganha prêmio. Depois o filme também é exibido, em janeiro de 1961, na Unesco. Que esse eu não consegui achar muita informação, mas claro, o pai do Mario Carneiro era embaixador lá, em Paris, junto à Unesco.
VC: Paulo Carneiro.
LL: é, Paulo Carneiro. Então imagino que tenha sido articulação dele...
VC: Claro, claro. O Itamaraty jogou um papel muito importante na difusão desses filmes todos. Com o... o Doutor Paulo é porque era [e faz gesto apontando para o alto] o máximo, embaixador, mas também com a influencia do Arnaldo Carrilho. Ele foi muito, muito, assim, generoso e interessado. Ele morreu batalhando por essas coisas, né?
LL: Inclusive em janeiro eu vim e fiquei uma semana no Itamaraty e agora eu estou de novo lá no Itamaraty, pegando...
VC: Poxa, se você tivesse pegado o Carrilho seria ótimo, porque ele falava, sabia de tudo... dessa parte Glauber, Saraceni... lá fora. Porque ele arrumava passagem, ele arrumava hospedagem, hospedava na casa dele própria, entendeu? Muito importante.
LL: O Glauber morou na casa dele, né?
VC: Esse filme eu acho muito importante.
LL: Então, na minha... não só na minha visão, mas em tudo o que a gente lê, inclusive, esses dois filmes – o Arraial e o Aruanda – foram fundamentais para que o movimento eclodisse, né? Sei lá qual é a palavra... explodisse ou fosse lançado...
VC: É, é... porque um aspecto que é importante nisso tudo é que não havia muitos cineastas destinados ou, vamos dizer assim, vocacionados, para usar uma palavra tola, para o documentário. Existiam poucos exemplares. Existia o Humberto Mauro, que dirigia o Instituto Nacional do Cinema Educativo, que o nome já define uma posição de trabalhar com a realidade social, com... que resultou nos filmes que o Mauro fez no Instituto, acho que foram quase 200 filmes. E eram meio documentário, meio promocionais de certas questões, né, educativas, etc.? Por isso era chamado Instituto Nacional do Cinema Educativo. Era uma instituição que tinha como função, né, estimular primeiro a produção de filmes que se debruçassem, não sobre filmes de ficção, mas sobre coisas de interesse social na educação. E só depois é que vem o Instituto Nacional de Cinema, e depois, a Embrafilme. Inclusive atuando no mesmo edifico, na Praça da Republica.
LL: Ah, foi no mesmo? E foi lá que vocês foram pegar a... pedir emprestado
VC: A câmera. Pedir emprestado a câmera.
LL: Como é que foi essa viagem? Como é que... assim, na verdade eu fico curiosa pra saber como é que, porque estando lá na Paraíba, como é que chegavam as informações lá do Rio? Por exemplo, vocês já tinham uma ideia de que no Rio tinha um grupo de jovens que já estava começando a se mexer, na Bahia, o Glauber, como é que era isso?
VC: Essa história, ela um pouco precede – você fez assim um... manifestou a ideia que cobrisse de 1959 a 1961 – o que antecede um pouco ao 1959, quando a gente cogitou de fazer um filme, Aruanda, o que precede a isso é exatamente em que condições, ou melhor, que influencias aconteciam, que tipo de comunicação existia, né? Primeiro, houve um evento que eu reputo importante pra isso: que foi a proibição do Rio, 40 Graus, se não me falha a memoria em 1955. E isso já trouxe uma informação muito forte e que calhava com o momento que a gente estava vivendo, digamos assim, de consumo de uma informação importante, que é o neorrealismo italiano, né? Que, no primeiro pós-guerra, no imediato pós guerra, os italianos começaram a filmar na rua. Isso é de uma importância vital pra gente compreender o que vem depois. Aí o Rosselini vai pra rua e faz um Paisá, e faz Roma, Cidade Aberta, com atores naturais. Ora, quem tinha lido alguns livros, e não era exatamente o nosso caso. A literatura que circulava era muito restrita. Mas quem tinha ouvido falar, por exemplo, em Roberto Flaherty, por exemplo, de Homem de Aran, do Nanook, sabia que existia vagamente essa coisa do cinema que não era o cinema de ficção, um cinema, vamos chamar, de espetáculo que emanava especialmente de Hollywood que era essa coisa açambarcadora no mundo inteiro, já dominava os mercados com filme de ficção e, nos filmes de gêneros vários... Então a gente consumia: o faroeste, o musical americano em alta escala, o filme de gangster, o drama, o filme romântico, de mocinho e mocinha, toda essa coisa que é a formação... isso tem um século e quase meio, né? Daqui a pouco são quase mais meio século de cinema desde 1895 quando o cinema entrou em circulação. Então vivia-se esse clima em todo o mundo. E não precisava nem ser vocacionado ou melhor, não precisava se ter uma tendência a ser cineasta. Mas era o que existia. Aqueles mais atilados, e aí joga um papel importante a própria cultura pessoal de cada um, que era muito livresca e muito ligada, num primeiro momento ao jornalismo. Quase todos nós que viemos fazer Aruanda, a gente atua primeiro como jornalistas. Linduarte, inclusive, sendo crítico de cinema. Eu depois fui crítico de cinema...
LL: Ele já era crítico lá nessa época?
VC: Quando começou... quando a gente pensou em Aruanda, ele tinha uma coluna de jornal só sobre filmes, só... crítico de cinema. Entendeu? Já existia uma Associação de Críticos de Cinematográficos [sic] na Paraíba. Eu fui um dos presidentes. Eu falo isso porque, eu falo com conhecimento de causa porque eu fui um dos presidentes. Eu, o Will Leal, o próprio Linduarte fazia... mas ele nunca foi de querer dirigir nada... essa coisa de ser presidente de uma associação requer uma certa vontade de mexer com papel, não sei quê... Ele não... mas nós outros fizemos uma associação de classe lá, entendeu? Então a comunicação era a leitura. Uma revista importantíssima, que nos pôs em contato com uma certa produção documentaria, chama-se Anhembi. Eu tenho uma pequena coleção, posso depois te mostrar, de algumas dessas revistas e ela trazia matérias...
LL: Essa revista era uma publicação brasileira?
VC: Uma revista de cultura... Paulista. Anhembi. O Vale do Anhembi, o Vale do Anhangabau, não tem essa coisa dessas palavras indígenas que foram adotadas por São Paulo, eu não sei porque... Rua Cauauá... não sei o quê, entendeu? Vale do Anhangabau... e essa revista dava conta... exatamente é fruto de um certo nacionalismo, Anhembi, é fruto de um pouco do que aconteceu lá atrás com o grupo ANTA, o movimento ANTA, com Cassiano Ricardo... que vem da Semana de Arte Moderna de 1922. Quer dizer, esse fluxo meio que passa aos poucos e vai contaminando a produção cinematográfica do Brasil de uma postura mais cultural, eu diria até mais intelectual. Quem tinha mais informações... naquele tempo se o camarada se dedicava a um equipamento como a câmera porque tinha curiosidade, não é à toa que Humberto Mauro foi radio amador, era um pouco inventor, mexia com equipamentos lá ainda em, no interior de Minas, lá em Cataguazes. Ele era esse tipo curioso que tinha em diversas partes do país... que não sei porque comprava uma câmera, adquiria uma câmera... adquirir uma câmera já era assim um gosto pelo mecanismo, pela ótica, por isso e aquilo outro... e o que caracteriza o cinema é a ter existido um evento chamado a câmara cinematográfica, que vem da câmera fotográfica... Primeira né? Primeira o que aconteceu... então, a gente navegou muito na... nós somos a ultima etapa disso, eu digo a ultima, porque é a primeira a cogitar de fazer um cinema que não era de ficção. Entendeu? Isso é importante porque a gente começou a ler... Bom, o Estado de São Paulo, por exemplo, já tinha críticos de nomeada, críticos de cinema e nós nos habituamos a ler esse troço. Misturado com isso, naturalmente, vinham notícias: Fulano vai filmar, ciclano vai... está pensando em fazer isso e aquilo outro...
LL: quem que vocês liam muito? Paulo Emilio Sales Gomes?
VC: Líamos especialmente Paulo Emilio.... que é quando depois vem, que surge depois aquele livro dele... qualquer coisa com o subdesenvolvimento... Eu tenho tudo aí... Os livros eu tenho todos, mas eu às vezes me esqueço dos títulos. E aí a gente começou a.... Outra coisa que foi assim, espinha dorsal do nosso posicionamento com o cinema. Você me perguntou: Como é que essa informação chegava? Lhe respondo agora: Os padres tiveram um papel assim crucial porque os padres faziam a Gregoriana de Roma, espécie de faculdade, espécie de universidade do catolicismo em Roma, até onde eu sei... e os padres brasileiros iam... havia um intercâmbio, os padres se formavam lá... não se pode esquecer que Roma emana, é o Vaticano, então os caras passavam por lá e alguns deles participaram já na Itália do movimento dos cineclubes. Aquele papa, um daqueles Pios não sei o quê, tem uma das encíclicas na qual ele diz peremptoriamente que “o que é importante para nós hoje em dia na divulgação da fé católica é o cinema”. Pari passo com isso, isso é importante para nós, porque tem muito a ver conosco, porque, vamos dizer assim, um dos manifestos da Revolução já vitoriosa é Lenin, Lenin dizendo que “de todas as artes a mais importante para nós é o cinema.” Porque ele viu essa possibilidade da massificação da informação, de levar ao campo, a todo aquele universo geográfico gigantesco que é a Rússia, né? O cinema levava aquela, a imagem, quer dizer era um transportador, um divulgador de qualquer mensagem, entendeu? Então você vê que católicos e comunistas se cruzam nessa história. E o que é que acontece? Nós éramos, nós começamos a frequentar o Cineclube de João Pessoa. Chamava-se Cineclube de João Pessoa.
LL: Quem dirigia esse cineclube?
VC: Quem dirigia? O dirigente maior era o padre...
LL: Ah, era um padre?
VC: Padre Antônio Fragoso. Esse padre se transformou, na carreira dele, da Igreja, ele foi bispo no Ceará muitos anos... já faleceu. Mas era um padre muito ilustrado, muito erudito, muito... sabia das coisas. E trouxe essa palavra, digamos assim, de Roma, do cineclube e tudo...
LL: Ah, eu não sabia.
Terceiro Bloco (3’05’’)
Essa coisa do cineclube, ela tinha uma certa capilaridade. Existia, por conta disso, em Belo Horizonte, onde era muito forte com a presença do Padre Logger (se escreve L-O-G-G-E-R) e do Padre Masotti um movimento muito significativo de cine clubes católicos, entende? A ponto de ter uma revista chamada Revista de Cinema que tinha muitos críticos que militavam junto com os padres, entende? No sentido da catequização, não é? através da programação de cinema conveniente, digamos assim, com indicações... Eles editavam boletins que chegavam para nós na Paraíba... boletins...
LL: Ah, chegavam? Via igreja, né?
VC: Via Igreja. Até um certo tempo eu guardei algumas coisas desses boletins que vinham com indicação, não era uma censura, mas indicação dentro da programação da Igreja. Um filme que era interessante, ou desaconselhava ou aconselhava a visão, as pessoas a assistirem àquele filme ou não, e, principalmente, discutia-se o cinema. O cineclube de João Pessoa tinha José Rafael de Menezes, um líder católico, não era padre, mas que tinha uma ascendência muito grande porque intelectualmente ele era uma pessoa muito atuante, escrevia, escreveu um romance Miragens... - qualquer coisa com miragens - era um romance sobre a migração, e escreveu Elementos de Estética Cinematográfica da Editora AGIR, pela Agir. Então ele vivia, morou na Paraíba, era paraibano, mas ele tinha uma influencia regional, ele era muito ouvido. E o José Rafael de Menezes teve também uma influência muito grande nesse Cineclube, tanto que tinha as sessões do Cineclube, em que se espalhava esses boletins pelas Igrejas, pelas paróquias, etc., e era muito presente esta ideia do cinema como arte e como, vamos dizer assim, difusor de ideias. Ideia, ideia naturalmente era a ideia católica, a função da Igreja... Agora, (Toca o telefone)
Quarto Bloco (16’48’’)
VC: Ao lado isso, nos outros, de um modo geral, o Brasil estava entrando meio que numa fase política de muitas ideias, muita literatura acerca disso, os jornais se posicionando, o aparecimento, por exemplo, no Nordeste uma coisa muito importante que aconteceu foi a criação, a fundação da SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) com nada mais, nada menos, com Celso Furtado a frente, que era um homem que vinha da Sorbonne, um paraibano, nascido em Pombal, na Paraíba, região da seca, região exatamente de onde nos fizemos Aruanda, que foi, esteve neste patamar, ele era o Superintendente da SUDENE, um homem que destrinchava a economia, um gênio da economia, até hoje, até hoje é lembrado, tanto que se fala muito nas ideias do Celso, até hoje, com relação as coisas que estão acontecendo no Brasil, até hoje, a gente tem problemas sério sócio econômicos. Então o Celso era a bola da vez em termos de um intelectual que estava à frente da SUDENE e todos nós gravitávamos em torno disso. Inclusive muitos intelectuais da Paraíba, que eram economistas, ou que eram pessoas que podiam estar na SUDENE migraram pro Recife, muitos deles trabalhavam diretamente com o Celso. Isso teve uma influencia muito grande porque, coincidentemente, era a mesma turma, era a mesma turma do Jornal UNIAO, do jornal O NORTE, que já tinha na Paraíba, que pertencia a Academia Paraibana de Letras, enfim a intelectualidade do Nordeste foi muito tocada por essa presença no Recife, que era a sede da SUDENE, então os de Alagoas, do Rio Grande do Norte, do Ceará, a gente... formou-se uma mentalidade de transformação daquele quadro de subdesenvolvimento especialmente. Isso é importantíssimo! O que é que acontece? Nas nossas cabeças a gente queria transformar, a gente queria, digamos assim, empolgar, de alguma forma, chegar aos estágios de poder, transformar isso... Coincidentemente surgem as Ligas Camponesas nesse momento. Essa coisa é o panorama pré 60, ou melhor, pré 60 não, que acontece nos últimos anos 50, já com a criação das Ligas Camponesas por Francisco Julião em Pernambuco, compreendeu? E, por consequência, começa-se a cogitar de se organizar os camponeses na Paraíba. É mais ou menos desse quadro, para mais ou para menos, que vem a ideia de filmar Aruanda. E o que é Aruanda? Preliminarmente? Um promotor de justiça, um juiz, que assumiu a comarca de Santa Luzia do Sabugi, e descobriu uma... descobriu é modo de dizer, estava lá... Iam à feira vender suas panelas e tal, mas o... o Cananeia, esqueço o primeiro nome, o Cananeia era, Dr. Cananeia, ele era o promotor de justiça em Santa Luzia do Sabugi. Foi ele quem primeiro falou dessa comunidade. Isso nos anos 50, lá atrás. Isso divulgou-se na imprensa. Linduarte fez uma reportagem escrita, que publicou na Tribuna da Imprensa no Rio de Janeiro – “As Oleiras do Talhado” – porque a região se chama Talhado, Serra do Talhado, e isso chamou muita atenção e, principalmente, deu a Linduarte um status assim... publicado na imprensa do sul, na Tribuna da Imprensa de Carlos Lacerda, imagine você... As coisas as vezes são contraditórias. E Linduarte após isso ele também publicou numa revista de universitários que compunham um organismo internacional, acredito que foi, acho na Tchecoslováquia, uma revista da União Internacional dos Estudantes, coisa assim, sobre o mangue, sobre a pesca do caranguejo no mangue, aqueles homens enlameados com a cara enfiada na lama, na pesca do caranguejo que é apressado com a mão mesmo, lá, puxa de dentro o caranguejo, e ele fez essa reportagem também, quase ao mesmo tempo que saiu a reportagem sobre as oleiras do Talhado. Era o seco e o molhado, uma nos mangues de João Pessoa e outra no alto sertão da Paraíba. Isso deu a ele uma certa visibilidade. Não tão grande como hoje o jornal e a revista dão, né? Mas deu uma certa visibilidade a ele. E aí, Linduarte, que era um leitor de Gilberto Freyre, de Josué de Castro, de Franz Boas, através de Gilberto... Ele era leitor desse pessoal porque ele fazia faculdade, ele formou-se em Direito, era bacharel em Direito, Linduarte Noronha. E teve um período que ficou muito tempo em Recife. Isso tudo é importante, pra mim! O Linduarte foi locutor da rádio Jornal do Comércio. Parece que eu estou ouvindo: “Pernambuco falando para o mundo.” Porque era o slogan, né? De uma megalomania total, né? Linduarte teve muito próximo, conviveu com a intelectualidade pernambucana porque ele era um locutor-narrador, especialmente, tinha uma voz muito bonita, e viveu no Recife esse período. Eu estou falando propositadamente de Gilberto Freyre e de Josué de Castro, porque um é o autor de Geografia da Fome, e o outro é o autor de Casa Grande e Senzala. Entende? Então era uma literatura que a gente consumia avidamente. Eu digo consumíamos porque eu sou quase, o Linduarte teria hoje 84 anos, se não me falha a memoria, e eu tenho 80, 81, já tenho 81, é uma diferença... só que ele foi meu professor de geografia no ginásio. De certa forma ele já fez minha cabeça no ginásio porque as coisas pelas quais eu me interessava, coincidiam, que também eram as coisas que ele estava interessado. Linduarte saía de férias, ia viajar, levava a máquina fotográfica dele, e fazia o que ele chamava de fotorreportagem, e quando ele voltava ele mostrava essas fotografias em sala. Ele ia então ao Maranhão, voltava, e mostrava as ribeiras do Rio Dumont, entendeu? Mostrava problemas da economia, o homem, o sertanejo, a seca. Isso me fez a cabeça. A mim, pelo menos. E a Ramiro também, porque Ramiro era poeta nessa época, que era também mais ou menos da minha idade, entendeu? Então o grupo de frequentava o Cineclube meio que se entediou, meio que ficou enfastiado da discussão no Cineclube, que era uma discussão mais para a estética do que propriamente para uma coisa que a gente, diferente de uma coisa que a gente começou a pintar nas nossas cabeças por conta de leituras do Anhembi, Jornal do Brasil, Estadão, começamos a descobrir que havia um cara na Bahia chamado Glauber Rocha, que ia fazer Barravento. Já tinha o Luis Paulino dos Santos que já tinha feito Rampa, que era uma coisa só sobre o mercado e aquele meio que um porto na Bahia, na Bahia de Todos os Santos. Era um foco diferente da coisa. Tinha um camarada, Rex Schindler, na Bahia, que fazia muita... produtor... e Palma não sei de quê... Eles começaram a cogitar dessa coisa. Então pintou na cabeça de Linduarte transformar a reportagem das Oleiras do Talhado num roteiro de cinema e tentar conseguir fazer um filme daí. Isso é a eclosão de Aruanda. Aí a gente sentou, sentamos os três, de conversa em conversa, criamos, fizemos um roteiro. Um roteiro de ferro. Um roteiro de ferro é uma concepção russa pro roteiro que, no qual consta qualquer detalhe de filmagem está previsto. Uma agulha que caísse no chão tinha que ser relatado ali. Close, sei lá, detalhe de uma agulha que cai no chão.
LL: Isso vocês pegaram no manual do Kulechov? Eu li isso em algum lugar... ou não?
VC: Você deve ter lido em alguma coisa que eu escrevi, porque foi fundamental para nós a descoberta do... lendo essas coisas a gente viu que fazia-se alusão a um Tratado de la Realización [sic] Cinematográfica. Eu tenho ele ali. E aí fomos atrás desse livro. E lemos esse livro. E esgotamos, porque se era tratado da realização, tinha ali como fazer um roteiro. Então, nosso roteiro parecia um livro-caixa. O livro-caixa é aquele livro de contabilidade, com aquelas colunas. Então... porque assim dizia, assim contava, assim ensinava o tratado, então era aquela rigidez que não foi, naturalmente, obedecida, foi estuprada. Foi uma estrutura que a gente, quando a gente se viu no campo filmando: como é que a gente vai fazer isso? Não tem aqui. Então vamos fazer algo...
LL: Mas que serviu de qualquer maneira para dar a vocês a base, o norte, a segurança...
VC: O norte, porque a gente estudou... a gente, porque a gente foi... nós fomos à Serra do Talhado antes de filmar. Fomos os primeiros a subir a serra, inaugurando uma “carroçável”. “Carroçável” é uma estrada que você pega, derruba o mato e fica só aquela clareira, aquela... uma picada. A gente enfiou uma, se não me falha a memória, era uma camionete do DER, Departamento Estadual de Estrada de Rodagem, Departamento de Estrada de Rodagem, que era um coisa... e a gente conseguiu isso com o governo. Eles emprestaram uma camionete, e a gente foi nessa camionete e subimos pela primeira vez que eles viram... os meninos ficavam correndo... se a gente se deslocasse os meninos, as crianças todas iam correndo atrás daquele carro. A gente botava os meninos encima, entendeu? Era uma festa, porque fomos o primeiro carro a subir naquele lugar, subir mesmo, lá encima, entendeu? E aí, o Linduarte conhecia Odilon Ribeiro Coutinho, um usineiro rico, mas muito ilustre. Ilustre e ilustrado, amigo de Gilberto Freyre, e Linduarte consegue, através de uma carta, convencê-lo de ajudar na produção do Aruanda. Outra coincidência muito interessante é que, nesse momento, Juscelino está fazendo Brasília, está terminando Brasília que inaugura em 60. E uma das coisas que essa ideia do desenvolvimentismo que você mencionou do Juscelino, afetou muito a cultura brasileira, especialmente a produção artística. Já surgia a Bossa Nova, o teatro tomou um impulso muito grande, e eu acho que, especialmente, jogou assim um papel fundamental também Paschoal Carlos Magno. Paschoal Carlos Magno era um diplomata que criou um negocio chamado Festival Nacional do Estudante. Que aconteceu? Em Santos, pelo menos do que eu em lembre, depois um, acho que no Rio de Janeiro, e outro ou no Rio Grande do Sul, ou no Recife, eu não me lembro bem a sequência... eu sei que o Pascoal com o prestígio enorme, ele era poeta, diplomata, ele percorria o Brasil assuntando e descobrindo e contatando grupos de teatro ainda praticamente desconhecidos até aquele momento. E eu, por uma sorte não sei de onde, eu era diretor de um grupo chamado Teatro Popular de Arte. Um nome pretensiosíssimo, né? Teatro Popular de Arte. Eu era o diretor desse negócio, o presidente, tudo... e mobilizava... Eu que lancei de certa forma – sabe Zezita? A Piedade, do Velho Chico (novela)? – fui eu que trouxe pro meu grupo, Teatro Popular de Arte em João Pessoa. Você assiste a essa novela? Ela é uma das principais atrizes desse coisa... é a mais velha de todas, com óculos, já está com 74 anos, fui eu que lancei. E aí, nesse grupo que foi, a única vez que a gente saiu da Paraíba foi, a gente foi a Alagoas, viajando de trem, pela Great Western Railway of Brazil, pra Alagoas para nos apresentarmos num festival nordeste de teatro...
LL: Que era esse festival?
VC: Não, não era ainda. Não era o de Pascoal. E lá um grupo que era apresentado naquele dia, recebia do grupo que tinha se apresentado na noite anterior uma flâmula, um símbolo com a marca do festival. Um símbolo, uma flâmula era dada. Um sujeito subia no palco e dava para o chefe do outro grupo... E sabe quem subiu? Jofre Soares, que seria o coronel de Vidas Secas. Que não era conhecido ainda. Eu me lembro disso perfeitamente. Isso é finalzinho dos anos 50, entendeu? Quando voltamos à Paraíba, o Pascoal fez o tal do Festival Nacional em Santos, em São Paulo. E aí, eu peguei o cara mais bonito do grupo, que chamava-se Valderedo Paiva, extrapolava o padrão físico do paraibano, alto, bonito, olhos verdes, e junto com o marido da Zezita, Breno Marques (?) um tremendo de um escultor, maravilhoso, já faleceu, e fui ao Palácio do Governo onde o Pascoal estava dando uma recepção para conhecer os grupos. E aí apresentei o Valderedo a ele e nos apresentamos como um grupo, nós três. Ele pegou a agenda dele e disse: Põe aí nome e endereço. Eu pus o nome dos três. Não acreditei em nada. Fiquei pensando... dali 20 dias, três passagens. Foi a primeira vez que eu andei de avião. Foi a primeira vez que eu andei de avião. Como o Teatro dos Estudantes da Paraíba ia se apresentar em Santos com uma peça chamada João Gabriel Bockman, de Ibsen, o Linduarte, como era do jornal A União, o governo mandou que o Linduarte fosse cobrir o Festival. Daí fomos nós quatro. Eu, com a parte do teatro, mas já mordido pelo projeto que a gente estava escrevendo...
Quinto Bloco (58’15’’)
VC: O que é que nós fizemos? Fomos pra Santos. O Ramiro, na pesquisa que ele fez sobre as possibilidades que a gente tinha de produção, tinha descoberto no Anhembi, um edital, ou algo parecido com um edital, do Banco do Estado de São Paulo, entendeu? O Banco principal. O Banco do Estado de São Paulo, que tinha uma carteira que dava, que podia emprestar para o cinema. Aí a gente enlouqueceu. A gente foi pra Santos. O Ramiro não foi, porque não tinha condição, ele não era... a minha jogada era por parte do teatro. Aí eu fui com Linduarte, aí ficamos de Santos para São Paulo, ficamos lá, mas não tivemos tempo de ser recebidos pelo Banco do Estado e, aí viajamos pro Rio, porque a gente tinha que ir pro Rio, pra de lá do Rio tomar um avião de volta para Paraíba, entendeu? Aí, fomos de trem para o Rio de Janeiro, participamos de uma... fomos ao Catete, Juscelino ainda estava no Catete, formamos uma fila enorme em volta do palácio do Catete. Os estudantes... o Paschoal Carlos Magno levou todo o pessoal que estava... do teatro... e ficamos em fila, a gente subia, passava, entrava no gabinete do Juscelino, ele estava sentado, ele se levantava e entregava um diploma, não era um diploma, era uma foto dele com autografo, de Juscelino. Me lembro perfeitamente disso... entendeu? E aquilo deu um status. Bom, e aí, Linduarte no Rio foi procurar Odilon, e Odilon deu uma carta para a Kodak para fornecer a película para o Aruanda. Que era ouro em pó, película 35mm, compreendeu? Aí ele foi no INCE falar com Humberto Mauro...
LL: na cara de pau?
VC: Na cara de pau. Mas ele já tinha o respaldo da película, aí o Mauro concedeu a câmera, mandou falar com... foi com o Linduarte falar com o Dr. Pedro Gouveia, que era o diretor geral do Minc, o diretor do programa todo, do projeto todo, e conseguiu trazer a câmera, levar a câmera para a Paraíba.
LL: E ele já estava com o... já tinha o roteiro feito? Ele levou alguma coisa...
VC: Levou o roteiro que foi aprovado, o que a gente tinha, esse roteiro tinha ficado pronto e foi em cima desse roteiro que o filme foi rodado. Pra você ver como... numa província, pode-se dizer, que não tinha passado, não tinha tradição de produção cinematográfica. Existe um senhor, para o qual a gente tem que tirar o chapéu, chamado Walfredo Rodrigues, já há muitos anos faleceu, que fez “Sob o céu nordestino” e fez também um outro filme que se chama “Reminiscências de 30”. Dois filmes. Ele é a raiz mais distante, porque de Aruanda para o último filme que ele fez - ele fez nas décadas de 20 e de 30 - 30 especialmente. Aruanda é de 60. São 30 anos depois a gente vem com o projeto de Aruanda. Mas Walfredo a gente tem que tirar o chapéu pra ele. Eu vou te dar o livro, eu recordo (recolho?) a figura dele num texto um pouco grande... quando eu o conheci, entrevistei, etc., o Walfredo já velhinho... Então era a única coisa que a gente tinha, a única referencia de cinema, fora, naturalmente, os cinemas, a exibição do cinema é avassalador, tem em todo mundo. Mas de propor filmes, Sr. Walfredo Rodriguez. Rodriguezzz, com Z.
E aí o filme, o Aruanda foi adotado, aceito no Festival de Karlovy Vary, na Tchecoslováquia.
LL: Foi em que ano isso de Karlovy Vary?
VC: É o ano da...
LL: Porque Barravento foi em 1962...
VC: É o ano da... Como chama isso, meu Deus do céu? Era... o Encontro da Crítica.
LL: 1960 então. 1960?
VC: Isso. É 1960. 1960. Houve uma Convenção, se chama Convenção da Crítica, em São Paulo, onde ele foi apresentado...
LL: que foi a primeira vez que ele foi projetado, né?
VC: É. E que o Paulo Emilio ficou basbaque! Entende? Ficou bobo!
LL: Antes dessa projeção em São Paulo, nesse dia aí, que foi junto com o La Dolce Vita, não foi? Passaram junto com La Dolce Vita?
VC: Não sei, esse detalhe eu não sei.
LL: A historia que está em livros, inclusive, eu já tinha lido, aliás eu tinha ouvido uma entrevista do Maurice Capovilla falando isso...
VC: É procedente.
LL: Depois tá nesse livro também que ele [Linduarte] chegou com o filme debaixo do braço e falou: tenho um filme aqui. Eles resolveram dar uma olhada, ficaram surpresos com o que viram e conseguiram encaixar na programação...
VC: Agora tem um fato, um episódio que foi marcante. Você conhece bem o Rio de Janeiro, não, né?
LL: Conheço. Meu irmão mora lá!
VC: No fim de Botafogo, na rua da Passagem, ela deságua na rua Álvaro Ramos... esse endereço é absolutamente significativo pro seu...
LL: é o bar da Líder?
VC: É o bar da Líder. Tem o Laboratório, que depois foi transferido para Tijuca... não... Vila Isabel. Esse Laboratório depois foi transferido para Vila Isabel, mas até os anos 70 ele funcionou nesse endereço: Rua Álvaro Ramos, todo mundo conhecia porque era ali... quer falar com um cineasta? Quer falar com Nelson Pereira dos Santos? Vai lá de tardezinha, na boca da noite, que ele vai estar lá no Bar da Líder. Chamava Bar da Líder, não tinha esse nome, mas era o Bar da Líder. Bom, vizinho ao Bar da Líder tinha uma produtora de cinejornais, que era esse negócio de filmar...
LL: Sim, que o Jean Manzon também fazia... depois o Rozemberg...
VC: Que o Jean Manzon... Isso. Depois o... antes dos filmes antigamente, naquela época, tinha o Jornal da Tela, todo filme tinha um Jornal da Tela junto, que fazia uma espécie de resenha da semana, futebol, moda, acontecimentos sociais... eram três bloquinhos ali de 5, 6 minutos antes do filme, entendeu? Então ali se reunia muita gente porque ali tinha câmera, lá tinha moviola, entende? Então ficava transitando do Bar pra outra calçada onde funcionava a Labocine e, vizinho a ela, essa pequena produtora de Souza Junior. Souza Junior era o grande chefe, era o grande cinegrafista chefe, que tinha essa produtora de cinejornais... e tinha essa patota aí. E o Linduarte fez parada aí, porque o Rucker Vieira já conhecia o Souza Junior, que era nosso fotografo, nosso diretor de fotografia. Então, quando o filme foi projetado pela primeira vez, aí sim, primeiríssima vez, na Líder Cinematográfica, no Bar, quem foi convidado? Glauber Rocha!
LL: Ah! Por isso... eu ia perguntar... isso tá nas minhas perguntas...
VC: Foi quem primeiro escreveu!
LL: Porque isso que eu ia falar... ele escreveu o artigo... primeira vez que ele escreve sobre o Aruanda ainda não tinha tido a [Convenção da ] Crítica
VC: Não
LL: Aí, eu ia perguntar se ele estava na Líder nesse dia...
VC: Estava!
LL: Estava, né? Porque senão ele não teria como ter visto.
VC: Eu não sei se ele faz alusão...
LL: No artigo ele não fala da Líder, mas como ele escreveu antes...
VC: Não... é... foi o dia que ele viu! Ele saiu de lá da Labo, desceu, entrou no escritório do Souza Junior, foi direto para a máquina de escrever e fez... Ele estava tão alucinado, ele estava tão tocado pelo filme que ele foi de pronto... sabe esse troço? Aproveitou o fluxo da emoção e tudo...
LL: E diz que, até então ele só tinha feito o Pátio e A Cruz na Praça, né? E aí, parece, o que eu também li é que quando ele viu Aruanda ele falou: eu fiz tudo errado... eu estava fazendo tudo errado, é isso que eu tenho que fazer...
VC: Mas ele tinha feito, se não em falha a memória, o Barravento
LL: Ainda não.
VC: Não?
LL: Hum, hum
VC: Então foi (gesto com os dedos indicando que foi próximo)
LL: Porque o Barravento ele filma, inclusive, ele não vai pro encontro da Crítica, de 1960 porque...
VC: Porque ele estava filmando?
LL: Porque está fazendo... na verdade, acho que ele já está finalizando o Barravento, acho que ele já estava montando o Barravento.
VC: É provável que tenha tido um impacto de grande influência...
Repare só... E aí o Glauber ficou alucinado! O Glauber ficou... quando viu aquilo ele teve que escrever e escreveu, e comprometeu... e veio junto com... e estava sendo visto na mesma época o Arraial do Cabo e ele juntou, são textos...
LL: Chama “Documentários”, né? E ele fala dos dois...
VC: Dos dois.
LL: Sendo que é interessante que a análise...
VC: Ele chama Dois selvagens... Dois bárbaros... dois selvagens com a câmera... por causa de Rucker e Linduarte, porque o Rucker foi o diretor de fotografia e o Linduarte diretor do filme.
LL: Inclusive, na hora em que ele analisa o filme em si, a crítica, ele é muito mais severo com o Arraial...
VC: Eu sei.
LL: ...do que com o Aruanda, porque ele divide, diz que o filme é dividido em partes...
VC: Ele já era amigo do Sarra, ele já era amigo do Sarraceni [sic] e tudo e pê, pê, pê... e aí ele ficou siderado, em primeiro... inclusive por causa da raiz sertaneja do filme. Dele próprio e do filme Aruanda, né? Então ele se identificou mais talvez... Mas é de total importância o Arraial, pari passo
LL: Uma coisa que eu acho interessante, bom, tem outras coisas antes dessa pergunta, mas uma coisa que me chama a atenção é que o Aruanda me parece que teve um impacto ainda mais forte, tanto pro Paulo Emilio como pro próprio Glauber Rocha e tal. E ele já escreve sobre o filme. No entanto, ele só escreve um artigo inaugurando entre aspas um novo movimento...
VC: Depois da Convenção
LL: Não. Em agosto de 1961, depois que o Saraceni volta de viagem, de Roma. Inclusive ele faz uma entrevista com o Saraceni, perguntando sobre a temporada...
VC: Ele fez o tal do curso lá... como é que chama?
LL: No Centro Sperimentale.
VC: Centro.
LL: Quando ele volta com o filme já premiado em três festivais o Glauber escreve um artigo chamado “Arraial, cinema novo e câmara na mão”, onde ele fala exatamente o que que eles pretendem, as reivindicações, falando tipo... a gente não tá pedindo nada, empréstimos milionários, a gente só quer que abra, que dê oportunidade para os jovens, que o INCE abra as portas pra quem não tem experiência, que empreste equipamento, então ele faz toda a coisa dele, já chamando de Cinema Novo
VC: É uma segunda eclosão, já é uma segunda eclosão do...
LL: É um manifesto quase.
VC: É um manifesto.
LL: Ele já chama de Cinema Novo, só que ele chama de Cinema Novo, e depois ele fala cinenovo, depois ele chama de cinemanovo tudo junto...
VC: Quem chamou de Cinema Novo pra valer mesmo foi...
LL: Foi o Ely Azeredo
VC: É. Foi ele que deu esse nome. Foi ele. Sem querer! Uma coisa assim... É Cinema Novo! E... Cinema Novo ficou... Tem brigas deles porque ele era um crítico muito reacionário, né? Tá vivo ainda!
LL: Eu já mandei e-mail pra ele...
VC: É uma figura!
LL: e ele responde rapidinho!
VC: é. Ele está aposentado, então ele (faz gesto de alguém batendo à máquina)
LL: aí ele escreve...
VC: Ainda ontem, anteontem, estava lá o novo endereço dele, vai morar na Barata Ribeiro, se não me engano...
LL: Ah, no ano passado, foi ano passado? Mandei email pra ele perguntando um monte de coisa, né? Aí ele respondeu assim, eu estou de mudança... e eu também estava de mudança, porque eu mudei da Suíça pra Argentina... daí ele falou: estou de mudança, depois eu respondo. Daí eu falei: então tá bom, porque eu entendo bem porque eu também estou mudando e é um caos, né, mudar?
VC: Tadinho, ele sofreu com essa mudança.
LL: É?
VC: Todo mundo ficou sabendo! Estou mudando, estou sem dinheiro!
LL: Mas então, a minha... uma coisa que me... pra terminar minha pergunta que eu não terminei... então, ele diz que Arraial é um modelo a ser seguido, então ele dá as reivindicações do movimento, ele dá um nome pro movimento, ele fala a coisa da câmera na mão e ele diz que Arraial é o modelo a ser seguido. A minha... uma coisa que me persegue é: Se Aruanda já era um modelo a ser seguido, porque era, tanto que o Jean-Claude Bernardet faz um... também um artigo dizendo que Aruanda é... é isso que a gente tem que fazer, atende a tudo o que o GB diz que deve ser feito, por que esperou tanto? Por que precisou... se Aruanda foi... ele viu Aruanda em 1960. Aruanda foi projetado em 1960, no fim ainda do ano, no encontro, acho que foi em novembro, por que esperar até agosto? Esperar os prêmios internacionais? Precisava desse... dessa legitimação europeia?
VC: É, de certa forma sim, de certa forma sim. A gente padece...
LL: A gente precisa disso?
VC: A gente padece disso, não é que precise, a gente padece disso! O filme não dá certo aqui... sei lá... estou falando meu filme, um filme qualquer... o filme do, do... desse menino mesmo aí... [ele se refere ao documentário Cinema Novo, de Eryk Rocha, filho de GR, exibido na noite anterior no Festival de Cinema de Bsb]...
LL: Ganhou prêmio lá em Cannes...
VC: Primeiro tem, claro, a gente sabe...
LL: Claro, é filho do...
VC: É filho... segundo, o filme tem uma força, você pode discutir isso ou aquilo, um detalhe, cada critico pode ver de uma maneira, mas é muito forte... bate em Cannes, a figura do falecido... Pá! Aí... depois o seguinte, traz de volta uma informação que já estava esmaecendo... ah, isso é que é Cinema Novo! Ah!!!! Entendeu? Eu estou falando do filme do coisa... que é a mesma condição! Aruanda deitou e rolou porque voltou da... foi aceito em Karlovy Vary, não sei se ganhou prêmio, acho que ganhou um prêmio lá, entendeu? Então, isso é importante também, também! Agora, a demora é o seguinte: você sabe o Vidas Secas é posterior...
LL: Sim, 1963.
VC: Três anos não é brincadeira! Três anos é muito tempo! O, eles adotaram um procedimento com relação à luz do nordeste que é bebido de Aruanda... Alguém diz, ah, porque Zé Medeiros fotografava com luz natural. Ele era fotografo do O Cruzeiro. Não tem nada a ver com o cinema. O Zé só entra no cinema muito depois. Não tem nada a ver. O que aconteceu foi o seguinte: o Barreto, que também foi fotografo do O Cruzeiro, produziu Vidas Secas. Então, eles já queriam copiar, digamos assim, ou melhor, assimilar aquela fotografia bastante contrastada – o que é preto é preto, o que é branco é branco –, por quê? Porque nós não tínhamos os recursos! Porque quando você filma no estúdio, por exemplo, aquela lâmpada ali [VC aponta com o dedo uma luz à sua direita], entende? Está dando um leve reflexo, um leve brilho no seu nariz, aqui do lado da sua face, aqui... Esse outro lado está bastante eclipsado. Quando você filma... se eu aumentar a voltagem daquela luz, vai ficar mais ainda, vai ficar escuro desse lado. E nós não tínhamos recursos para estar mexendo com essa coisa. O que a gente usava era o chamado rebatedor. O que é um rebatedor? Eu mesmo, numa experiência imediatamente posterior à Aruanda, deitei e rolei aí... era o que eu tinha. Então eu fiz com rebatedor. Então você pega uma superfície qualquer, por exemplo, um pedaço de madeira, de compensado quadrado... esse quadrado aqui, dessa fotografia, e aí eu colo nessa madeira, sabe esse metal que você coloca o bolo?
LL: Ah, papel alumínio?
VC: Papel alumínio. Você cola papel alumínio e você vai, se você está embaixo de uma árvore e o sol está aí, aqui tá a sombra... o sol que está aqui é violento... se eu dirigir esse reflexo pro seu rosto, ele é iluminado. Entendeu? É uma coisa super primitiva. O cinema americano usava para... porque queria copiar um pouco... o cowboy, por exemplo, você vê a fotografia dos... dos westerns uma série desses coisas... já bem... com... aferrolhado, em cima de um tripé, você levava pra qualquer lado. A gente pegava aquilo e levava... Eu levei, eu levei serra acima, serra abaixo pra fazer o São Saruê, quadros negros de escolas rurais, porque eu filmei, por coincidência, em algumas vezes lá no sertão em férias, e aí eu falava com diretor do grupo, e ele emprestava aquele quadro negro... Então leve esse aqui! Me emprestava. Aí eu colava, eu pegava goma, maizena, fazia um grude junto com Clemente, meu fotógrafo, e pregava dois daqueles troços... porque um, muitas vezes, a gente punha do lado de fora com o sol, e se tinha aqui uma parede e eu estava filmando um casebre de um pobre, botava dois... chutava pra aquele e aquele chutava na cara do sujeito. Entendeu? Então isso resultou em Aruanda numa luz crua, uma luz crua, dura, rascante, que meio que pulveriza os objetos. As vezes, como incide violentamente em cima do objeto um foco direto de luz, aquilo quase que desaparece, ao passo que o que está mais na sombra fica meio... então como eram negros, ficava um grande contraste. Então essa luz é uma descoberta! É uma descoberta! Isso ninguém me tira da cabeça! Porque não tem nenhum filme realizado...
LL: E foi feito de... sem experiência prévia, né?
VC: Sem experiência prévia. O que é que a gente tem, a gente tem isso pra fazer? Vamos lá e faz! Isso é irmão da câmera na mão! Faça com qualquer luz! Uma vez eu dei uma entrevista a um jornal de Recife: filme em 16, mas filme no Nordeste! Olha que besteira! Filme em 16mm, porque se é o que tem, só tem 16, filma...
LL: Mas vá pra lá porque a luz lá é...
VC: Claro! Eu filmei em 16mm, a maior parte dos primeiros dos meus filmes são todos ampliados para 35mm, porque eu filmei em 16mm, porque era muito fácil com uma câmera como essa, eu filmei o Saruê todinho... Saruê é ampliado...
LL: Ah, o Saruê é ampliado?
VC: Ampliado, 35... A origem dele é 16mm, a cópia já é 35mm. E só quando eu vim viver em Brasília, consegui o dinheiro pra pagar essa despesa toda, porque a ampliação é caríssima! Bom, mas isso é detalhe! O fato é o seguinte: é criatividade involuntária, posso dizer, mas é criatividade! Fizemos e fomos copiados porque eles foram fazer Vidas Secas, aquele solão infernal... o Barreto junto com o Nelson resolveram fazer... só que eles fizeram o seguinte: como eles tinham algum recurso, começaram a fazer uma tomada com a concepção da luz dura, e outra tomada com a concepção clássica, iluminada bonitinha, etc. e tal. Entendeu? Então o Vidas Secas tem as duas coisas, só que predomina, por exemplo, se o coronel está... se há uma cena dentro de casa, no Vidas Secas, você lá fora quase não vê nada. Porque a luz do Nordeste, ainda mais filmado em tempo de seca, porque é filmado em tempo de seca, aquela luz... é como Brasília, né? Por isso que eu fiz aquele versinho que você pôs aí na... eu fiz aquele versinho porque quando eles vinham filmar em Brasília, os cinegrafistas, esses que estavam...
LL: que não tinham experiência com a luz daqui...
VC: Não tinham experiência, não usavam fotômetro... ali tem um fotômetro que você pode ver... é um aparelhozinho desse tamanho que liga... que você lê a luz e registra na câmera. Aí os caras chegavam aqui e filmavam como quem estava filmando no Rio, em São Paulo, que é aquela coisa meio embaçada, nublada assim... aí chegava no laboratório, meio estourado. Pô... Tem que botar o fotômetro! Então eu fui e escrevi aquele haicai: Brasília, claro enigma... por causa de Drummond. De luz incandescente, batendo na lente. É isso, entendeu? Então a proposta de luz que prevaleceu... Deus e o Diabo é feito todo assim! Por que? O Deus e o Diabo é muito parecido com a literatura de cordel porque... vou te contar uma história de não sei o que de imaginação...
LL: é, vou contar uma historia...
VC: de verdade e imaginação... não sei o quê... do sertão... não sei o que lá... é todo cordelesco. Então o cordel, coincidentemente, é aquela capa de folheto...
LL: De gravura... de xilogravura
VC: De gravura, de xilogravura, que é preto, branco, pá, pá, pá...
LL: Que é preto no branco. Inclusive em Arraial do Cabo que também tem uma luz bem contrastada...
VC: Mas já sofisticada!
LL: Mas o Mario Carneiro era gravurista, né?
VC: Era gravurista, mas em que? Gravura em metal, que dá uma excelente nuance. Tinha uma formação plástica, era um intelectual...
LL: Já tinha saído do Brasil
VC: Pô... o cara sabia tudo de... eu tenho o livro dele, é um livro completo, um livro de pintor, e de gravador. E sofisticado. O Arraial, a diferença de Arraial é que a fotografia é bastante sofisticada, aquelas insinuações da rede do peixe... você vai ver o trabalho gráfico do Mario é muito inspirado... ou melhor um é inspirado no outro, não sei em que momento. Se vem um primeiro. Entendeu? As gravuras dele têm muito disso, a coisa da sutileza, uma nuance assim... é diferente.
LL: São realidades muito diferentes.
VC: Nós não, a gente não sabia o que estava fazendo, de certa forma, entendeu? Na fotografia. O Rucker tinha feito um curso em São Paulo e voltou se “arvorando”...
LL: ... Se achando!
VC: Com o... como é o nome daquele? Casaris... Não sei o quê Casaris... tem o nome dele por aí... Casarés, Casaris... e assim foi feito, né? [José Cañisalles e Mario Pagés – fonte, livro de José Marinho].
LL: Depois que o filme foi projetado no Encontro da Crítica, e que foi assim... Paulo Emilio, todo mundo... não só Paulo Emilio como vários...
VC: foram vários... Foram três, Jean-Claude, Paulo Emilio... Glauber primeiro, Paulo Emilio, Jean-Claude...
LL: Então, depois disso, quando o Linduarte volta para a Paraíba, depois do filme já ter projetado, como é que foi a repercussão na Paraíba? Saíram artigos? Como é que foi?
VC: Primeiro, a província é cruel e preconceituosa. Começaram a dizer... quando o Linduarte voltou à Paraíba com a câmera, ainda não tinha filmado, “Linduarte voltou cineasta e vai fazer uma obra prima”... sabe esse tipo de piadinha assim? E aí entrevistavam Linduarte ou aí davam uma nota, mas sempre com... de pé atrás. Ele, ele... e aí teve uma carta de Câmara Cascudo [e ele aponta para uma foto na parede, dele com Câmara Cascudo]... Aquilo sou eu e Câmara Cascudo.
LL: Ah, é?
VC: é, é da época. Esse é um momento... isso é 1960, isso aqui, na casa do Câmara em Natal. E parece que, em vez de eu, imbecil aqui, estudante ainda, ouvi-lo, alguém bateu essa foto em que eu estou: “Oh, Câmara Cascudo, qual é a tua, pô?”
LL: Mas isso não é típico da juventude?
VC: É. Menino metido à besta.
LL: Ah, isso é bom!
VC: Por isso que eu guardo, né? Porque é engraçado... todo metidinho...
Bom, mas é isso. O... a gente estava falando da luz... eu olhei aqui no teu livro...
LL: Não, porque daí eu perguntei se tinha tido repercussão na própria Paraíba.
VC: Sim, sim. Primeiro eles tentaram gozar. Aí vem o negócio da Tchecoslováquia. Depois da Tchecoslováquia vem uma exposição russa, russo-soviética, claro com Niesh (?) , em São Cristóvão, no... onde era a feira de São Cristóvão, num negocio que tem assim... um centro cultural, um centro comunitário, sei lá... o São Cristóvão, você sabe, né? Você sabe onde é a feira?
LL: No Rio?
VC: É, no Rio de Janeiro, mas na feira de São Cristóvão, mas não era feira naquela época, era um lugar de grandes exposições internacionais, e aí a União Soviética fez ali...
LL: isso é em 1961, então?
VC: olha, em 1959 acontece a revolução cubana...
LL: Sim
VC: Não podemos esquecer disso...
LL: Que influenciou muito tudo isso
VC: Tudo, tudo. Foi filmada a revolução... os caras começaram a fazer o cinema cubano e tudo... então 1960, 1961*, por aí... acho que é em 1961 que acontece a exposição russa.
* Exposição Soviética inaugurada em 4/5/1962, no pavilhão de São Cristovão, no Rio de Janeiro. Fonte: http://clubemilitar.com.br/ha-50-anos-acontecimentos-de-1962/ No mesmo site, fala-se de uma denuncia e descoberta de uma bomba-relogio na Exposição Soviética (em 20/5/62).
LL: Deve ser 1961
VC: Baixou, os russos baixaram aqui assim, na base da propaganda. Eu e João Ramiro tínhamos foto com uma moça chamada Maya Menglet, uma russa de... desse tamanhão, bonita, do olho azul, loura, sabe, aquela loura...
LL: Bem russa, aquela russa assim
VC: Russona, mas pra exportação mesmo, você falava que a espiga de milho do russo era enorme... a gente ficava falando besteira, porque os grãos eram desse tamanho, e vem essa russa linda de morrer, era uma deusa, e a gente tirou um retrato na associação para a grande imprensa, eu e Ramiro, João Ramiro. E vieram aqueles russos com aquelas camisas que o botão era desse lado aqui, do outro lado... muito engraçado! Por que? Era um momento em que a gente estava vivendo as reformas do Jango.
LL: Sim, isso que eu ia falar, porque aí estava com o Jango entrando, né?
VC: Reforma, reforma agrária principalmente.
LL: Espera aí, o JK sai no fim de 61, não? Mas ele ainda estava no governo e o Jango vice.
VC: Não... o Jânio renuncia...
LL: em 1961
VC: Em 1961
LL: Outubro de 1961
VC: Agosto. Geralmente essas coisas acontecem em agosto.
LL: Agosto é um mês...
VC: É 1961. Só durou um ano.
LL: É.
VC: 9 meses, pra ser mais especifico. 9 meses, por aí...
LL: Mas no fim de 1960 tem eleição, é isso?
VC: Não, porque o Jango foi preterido porque ele era vice-presidente. Você lembra que, diferente de hoje, era a chapa Ja-Ja... Jango-Jânio
LL: Votava separado...
VC: Um de um partido e o outro do outro. Era possível fazer esse troço. Então quem era o vice-presidente da republica? Daí os milicos deram pra trás. Impediram, ficou aquele negocio... o Jango pra voltar teve que adotar o parlamentarismo... aquela confusão... você pode... tem um livro muito interessante sobre essa coisa que se chama Biografia do Brasil. Dessa grossura! Eu tenho ele no Rio. É muito interessante porque essas passagens estão muito bem claras lá. É bom você dar uma olhada. Você vai ter tempo pra isso! Você tem tempo. Então, essa influencia do russo... então, o que acontece? Linduarte vai ao Rio...
LL: Levando o filme?
VC: [acena que não]... com a incumbência de adquirir uma câmera... que a gente viu o material que estava exposto na... uma das coisas que estava lá, uma nave, não sei o quê... uma batedeira, uma colhedeira mecânica, que os russos expuseram no Campo de São Cristóvão, nesse lugar lá, no... é um centro, você sabe qual é! Que hoje é a feira de São Cristóvão. E lá tinha a Konvak, uma máquina, câmera russa de 35mm, que não pagando, porque era um regime comunista, eles não pagavam royalties pela copia que faziam das outras câmeras. Então era uma soma da Éclair, da... da Éclair [mexe a cabeça, negando], da Flex Arret, da Arriflex, da Mitchell, da Mitchell americana. Então o russo fez uma câmera completa copiada dos outros. Konvak. E aí a universidade autorizou o Linduarte a adquirir essa câmera. Comprou dos russos. Haja história!!!! A gente vai até amanhã de manhã falando disso! Aí volta pra Paraíba com essa p... eu ia dizer com essa porra dessa câmera! Essa câmera nunca filmou! Porque Linduarte era um preguiçoso! Pensa num cara preguiçoso que acorda meio-dia! E ele foi deixando. Ele fez o... com a câmera...
LL: Ele fez o Cajueiro...
VC: O Cajueiro, ele fez com a mesma câmera que tinha feito Aruanda, que foi a mesma que a gente pegou para fazer Romeiros da Guia, meu primeiro filme. Enfim, essa câmera virou uma lenda. Nunca ninguém filmou...
LL: Ninguém usou a câmera?
VC: No Cabra Marcado Pra Morrer, eu havia sugerido que a gente utilizasse... até pra diminuir as despesas do Cabra Marcado pra Morrer, que não tinha... era um... tinha dinheiro, mas não tinha tanto, que a gente usasse a câmera. A câmera foi pedida e liberada lá na Universidade. A gente... estava com Rucker Vieira em Recife a câmera, pra um conserto, sei lá o quê... e a gente levou e o que a gente filmou, pifou...
LL: não prestou?
VC: Não deu, porque o filme raspava... porque isso tem o chassi... a câmera é composta por ... você põe ela... você põe o filme... deixa eu ver se consigo abrir esta para eu te mostrar como é o mecanismo...
LL: Mas eu acho que sei como é...
VC: São dois rolos. Tem um rolo aqui virgem, que ela desenrola, passa pela frente da câmera, e enrola do outro lado já exposto. Aí você entrega no laboratório, o que já está exposto e aquilo é revelado e copiado. Eu não estou conseguindo abrir, mas você sabe. Bom, o filme raspava e aí não prestou. A gente filmou um carnaval pra Prefeitura de Vitória de Sant’Antão, que nos acolheu, foi onde a gente foi surpreendido pelo Golpe Militar de 31 de março. Entendeu? A gente fez pra agradar...
LL: Essa é outra historia que é fantástica...
VC: Mas aí não deu porque a gente não, quer dizer, não deu.. a gente copiou, não sei o quê e não tinha nada... estava muito [faz muitas caretas e ruídos]... o filme rrrrr, em vez de rodar 24... arranhava a borda e parava. Aí queimava o filme. E não deu. E essa câmera está lá até hoje como peça de museu. Só. E acompanhava essa... E pior do que isso, e que foi motivo de crítica nossa, minha e de Ramiro... A gente botou pra quebrar em Linduarte, porque Linduarte negou que a gente tinha feito o roteiro. Isso foi uma merda!
LL: Também já li isso.
VC: É. Aí a gente... passamos adiante e: E aí? Vieram dois rolos de filme 35mm, aquilo era muito caro! Acompanhou a... uma espécie de brinde dos russos, dois rolos de 10 minutos de película de 35mm, e nunca foi usado. Caducou e estragou, nunca aconteceu. A câmera vermelha, como eles chamam. O Rucker, como ele estava com essa câmera guardada na casa dele, quando veio o BOPE, ele foi preso e de certa maneira torturado, porque ele apareceu na prisão... Porque muita gente foi presa, né? A gente escapou fedendo! Eu, o Coutinho, Cecil Thiré...
LL: Mas você teve depois que mudar de nome e ficar um tempo escondido....
VC: Não. Eu mudei por iniciativa própria, de medroso que eu sou! Porque eu não sou valente, não sou... queria viver! Queria viver, como sobrevivi, graças a Deus! E saí fora. O Coutinho esteve preso, depois o pai tinha influencia em São Paulo... e aí ele foi solto. Mas o que acontece é que o Rucker na prisão, ele teve uma moléstia, uma coisa, uma dor... que a gente, todo mundo lá chamava “moléstia do mundo”, entendeu? E ele foi... fizeram um cirurgia sem anestesia nele. É! Ele foi mal tratado! Por causa dessa porcaria dessa câmera... “O cara é comunista! Câmera comunista!” Foi agarrado com a câmera comunista... Foram na casa dele e estava lá a câmera! E ele passou por esse desconforto terrível, né? E a câmera nunca filmou. Mas é pra dizer, eu acho... eu estou contando tudo isso pra traduzir o clima... nós queríamos transformar, nós queríamos o poder socialista no país, a gente queria fazer as reformas do Jango: reforma urbana, reforma agrária, reforma universitária, reforma bancária, todas as reformas, estava na linha de frente! Se ia fazer eu não sei. Só sei que a gente embarcou nessa, todo mundo. Quem não era de esquerda estava ferrado! Não, é porque hoje em dia... foda-se! Não sou nem de direita, nem de esquerda. Se um estudante ficava de lado, dessas coisas, ou era um doente que não estava percebendo as coisas, ou então era um mal caráter que ia entregar a gente em algum momento, sei lá o quê! Mas esse momento não dá pra gente reproduzir... contando coisas. Era isso. O resultado é o Golpe Militar... e aí foi tudo pras cucuias!
LL: E isso também afetou o...
VC: Paralisou o Cabra Marcado por 17 anos. Depois é que volta.
LL: Mas, nessa época, em 61, que eu tinha... o que eu me questiono muito é o porquê do Aruanda não ter sido o suficiente para declancher, né, em francês.. Pra fazer o movimento...
VC: Mas, quando fez, fez com muita força, né?
LL: É, sim. Aí...
VC: Você diz que o artigo de Paulo Emilio é de 1961?
LL: Não. O do Glauber Rocha.
VC: De 1961?
LL: De agosto de 1961. Ele já tinha escrito aquele que fala de Aruanda e Arraial...
VC: Ah, bom! Mas já tinha inaugurado o bafafá em torno de Aruanda?
LL: Sim. Por isso que eu acho estranho. Porque eu acho que Aruanda tem tanta força, teve tanto impacto que talvez já fosse o suficiente para o movimento, que aquele bando de jovem queria... porque desde 1959, dos encontros no Bar da Líder, no Alcazar, não sei quê, eles já falavam de movimento. Que eles queriam lançar um movimento, tanto que eles escrevem esse Manifesto Bola-bola que todo mundo critica, quer dizer, que era cinema-cinema, e que todo mundo dizia...
VC: Isso é um pouco reação ao que vem antes um pouquinho, porque eu comecei falando do Nelson, foi muito importante a convivência com o Nelson. O Nelson montou o Barravento. Montou. Montou!
LL: De graça quase, né?
VC: É. O Glauber não sabia o que tinha feito, o Nelson foi quem deu ordem, ele não tinha noção de... como é que chama? De edição. Depois que o filme estava pronto, descobriram mais duas latas debaixo da cama dele que ele tinha esquecido. Conta-se. Entendeu? E o Nelson foi quem fez. Então, isso é um pouco pra... “Agora nós... agora é a nossa vez!” Porque há uma diferença de idade, né? O Nelson é muito mais velho do que a raça, né? O Nelson tem 86, parece... 86 ou 87, não sei. Está bem, já bastante velho. Mas tem vigor, né, ainda. Então, o Paulo Cezar, Leon Hirzman, Joaquim, de certa forma o Jabor, que ainda não tinha filme importante, mas estava no grupo, você viu ele ontem, várias vezes até... ele aparece, e falou, inclusive...
LL: Cacá Diegues.
VC: O Cacá. Walter Lima Junior. Só aqui você tem 6 caras de frente. De frente, né? Do Cinema Novo. Todo ele aí já. Posso estar esquecendo um ou outro do Rio...
LL: O Gustavo Dahl. Mas que só começa a fazer filme depois...
VC: Mas o Gustavo Dahl é mais novo, bem mais novo e estava...
LL: Ele estava em Roma também, né?
VC: O que eu quero dizer é o seguinte: essa febre... as pessoas foram fazer seus filmes. Nesse momento foi todo mundo correndo fazer... O Leon foi correndo fazer Maioria Absoluta, que o Maioria Absoluta era o voto do analfabeto, filmado na Paraíba inclusive.
LL: Mas eu acho que o Maioria Absoluta ele já faz em 1964, 63? Antes?
VC: Não. Em 1964 não. Acho que ele faz antes do Cabra. Não, não, não. Ele faz depois! Tá certo, tá certo! Faz depois porque já era com o Nagra. Jabor operando o Nagra.
LL: Porque o Nagra chega em 1962, né? Com aquele curso da Unesco...
VC: Depois que o Arne Sucksdorf deu o curso, eles ficaram muito inflamados e essa demanda aí por informação ou por escrever, tem um pouco que ver com a prática... todo mundo foi fazer cinema, todo mundo foi correr atrás do seu roteiro e procurar meios pra fazer, entendeu?
LL: E lá na Paraíba, o Aruanda foi exibido em circuito comercial, teve alguma... como é que foi lá?
VC: Teve uma exibição, vamos dizer, festiva, porque com essa viagem do Linduarte, o prestigio foi enorme, né? A Paraíba se sentiu...
LL: A viagem de Karlovy Vary? Da Tchecoslováquia?
VC: É. Essa coisa da Tchecoslováquia e mesmo a Convenção da Crítica... Quando o filme passa na Paraíba, já é no auge... já é uma coisa assim “Aruanda nas páginas”. O Cruzeiro deu uma matéria boa. A revista O Cruzeiro era muito lida! Era a revista semanal, a única que tinha. Ainda não tinha Manchete, nem tinha Veja. O Cruzeiro deu uma matéria...
LL: Deu uma matéria boa no Cruzeiro?
VC: Deu uma matéria. Uma foto com...[2] Porque O Cruzeiro não se detinha muito em análise não, né? Ele promovia. Então, pela foto. Tem uma foto do filme e um pequeno texto daquele senhor... ele era um cineasta de segunda. Ele era do Ministério da Cultura e escrevia no O Cruzeiro. Depois eu me lembro. Depois eu me lembro... tá por aí o nome dele... Ele escreveu um texto. Eu tinha essa revista, não sei o que... onde foi que ela se extraviou... Mas o que eu quero dizer é o seguinte: fez-se uma exibição do Aruanda no Cine Rex, que os exibidores eram muito amigos nossos, o Luciano e... Vanderlei, o Luciano Vanderlei... que exibiu e foi assim um... todo mundo foi, né? E foi exibido, pra completar a fama, numa plenária da SUDENE no Recife. Entendeu? Plenária da SUDENE significa o quê? Os governadores presentes. Os governadores do Nordeste presentes. Mais o Celso, mais todo mundo... assistiram Aruanda. Isso é...
LL: E como foi a repercussão?
VC: Enorme!!!!! Aquilo serviu de filme-texto! Aí, Aruanda! Olha o que é o Nordeste! É a marginalidade econômica... socioeconômica. O cara sobreviver de algodão nascido natural. Um herbário natural. Aquele algodão não era o algodão fibra longa... era o algodão primitivo, já existia no lugar. E num lugar desgraçado que é...
LL: que não tem nada...
VC: Nada. Não tem nada. Na terra não tem nada! Entendeu? Foi assim um escândalo na SUDENE. Um escândalo em termos, né, que eu digo...
LL: Eu tenho que tentar achar rastros disso aqui na SUDENE...
VC: Isso aí você provavelmente...
LL: Eu também tinha visto que teve a projeção na Líder e também, ainda no Rio, antes de ir pra São Paulo, teve uma projeção no Rio, né? Num cinema mesmo.
VC: Deve ter sido no Cineclube da ABI... a ABI – Associação Brasileira de Imprensa – tinha um cineclube que o David Neves passava esses filmes. Pode ter sido. Havia um cineclubão no Rio de Janeiro que ficou muito tempo na ABI – Associação Brasileira de Imprensa.
LL: Não, mas era num cinema...
VC: O cinema tinha uma verdadeira ojeriza por esse tipo de trabalho, foi... demorou muito para eles admitirem que podia... A lei do curta veio porque já [e faz gesto com as mãos representando “muita fala”]...
LL: Vocês aproveitavam a Lei do Curta também, né?
VC: Não. Não existia.
LL: Não. Não conseguiram entrar em nenhum?
VC: Não, não existia.
LL: Mas não passavam os cinejornais?
VC: Aquilo era uma abertura só para os cinejornais que durava cinco minutinhos aí. A Lei do Curta mesmo só veio com a ABD forçando a porta, forçando... isso foi um movimento assim, glorioso!
LL: Eu achei que naquela época já...
VC: Não, não... havia uma licença, que vinha desde Getúlio, para os filmes do DIP, para esse negócio assim de propaganda do governo... é... não era a Lei do Curta. Lei do Curta somos nós já! Associação Brasileira de Documentaristas – ABD. Isso não foi gratuito não. Isso foi luta!
LL: Muita luta!
VC: É!
LL: O filme também teve apoio do Instituto Joaquim Nabuco de Recife
VC: Sim
LL: Bem, isso a gente já falou...
VC: Eu acho... com certeza o Cajueiro Nordestino... que são os dois únicos filmes do Linduarte nessa época. Ele fez também um filme de ficção que não deu certo. Chama... Salario da Morte. É um filme de ficção. Foi feito um grupo... é um filme que não existe, não sei nem se tem cópia. Entendeu? Não foi. Os filmes do Linduarte são Aruanda e o Cajueiro Nordestino, imensamente inferior. Não é nada, mais um... uma bobagem... nem repercutiu! Há uma frase do Humberto Mauro, que foi dito na intimidade, e que não é divulgada, porque não tem interesse, ninguém tem interesse de chegar e enxovalhar! “Desses aí eu faço um por semana no meu sítio!” entendeu? Porque ele tinha um sitio onde ele filmava coisa, lá em Cataguazes.
LL: Parece que teve também um Festival em Cataguazes, né? Nessa época aí também. Acho que em 1961, 62...
VC: Não sei. Não tenho certeza, não vou dizer que teve, mas pode ter acontecido.
LL: Mas era assim uma homenagem a Humberto Mauro
VC: O que teve foi troço na Bahia. Na Bahia teve um troço que o Rex junto com os outros, tinha... acho que foi nesse Festival que ele apresentou o... como é que chama?
LL: Bahia de Todos os Santos?
VC: Não, não. Uma palavra africana... é até um filme... os filmes do André Luiz de Oliveira, o último filme que ele fez, é esse título...
LL: Na Bahia?
VC: Não, ele vive aqui. Ele copiou esse título...
LL: Sim, mas esse filme... esse festival é em 1962, eu acho
VC: Isso. De 62 na Bahia que foi assim glorioso pra nós. Foi todo mundo pra lá... eu não fui, mas foi todo mundo pra lá! É quase assim a semente para muito depois criar a Jornada da Bahia.
LL: Nessa projeção da Líder, você estava lá?
VC: Não. Eu fui, a projeção que o Glauber estava, se ele estava, eu não percebi ou eu não estava antenado. Porque é o seguinte: eu fui para o Rio... isso é 61... eu não sei se eu fui pro Rio para uma reunião do Partido ou se eu fui para o Rio... eu estava parado lá... não foi... foi depois. É que eu ia dizer que tinha sido de Santos... mas não foi. Foi depois. Foi depois e eu fui para uma reunião do Partido. No Rio. Coincidentemente o filme estava saindo do Laboratório. E de lá da Líder, eu me lembro perfeitamente, porque ainda tinha bonde no Rio, e a gente veio brigando dentro do bonde até a Glória, onde eles estavam hospedados, desceram e eu segui adiante porque eu ia pra Tijuca, pra casa de uma tia minha. Porque quando eu assisti e vi que não estava o nosso nome, eu pulei dessa altura.
LL: Claro!
VC: Aí vínhamos eu, o Rucker e o Linduarte no bonde, e aí eu apresentei logo o meu descontentamento. E aí ele começou a falar: Vocês não fizeram nada... parará... e ali a gente rompeu. Quando eu voltei pra Paraíba, a gente soltou os cachorros em cima dele. Eu dei entrevista, blablabá... e isso rolou hoje eu estou pouco ligando... não tenho mais interesse nisso. Eu fiz 23 filmes depois de Aruanda, pelo amor de Deus... e aí eu não me lembro se foi no dia em que Glauber estava. Provável que o... Se foi, eu não registrei. Ele pode ter visto o filme e... porque a Líder era o seguinte: ali estava a porta, você saía... é provável que na conversa ele saiu e eu não registrei o Glauber naquela hora. Mas eu estava lá quando o filme saiu do forno.
LL: Nessa época aí, já tinha esse clima do movimento, dessa coisa que estava acontecendo... já, né?
VC: Do grande movimento. Não tinha o movimento do documentário, não tinha. Você contava nos dedos... você tinha o filme Arraial do Cabo, tinha algum filme feito na Bahia, os filmes, que não eram propriamente, não eram documentários assim focado, tinha A Velha a Fiar... que todo mundo assistia, que não era um documentário, mas era um filme curto, muito interessante, que é uma cantiga... [ele cantarola a música]. Aquilo é uma cantiga que ele fez por que promovia o quê? Um elemento popular da cantiga popular, uma cantiga de trabalho, né? Mas não era um documentarista, porque ele já tinha feito filmes de ficção, e era disso que ele se orgulhava, não dos duzentos filmes que ele fez de serviço... mas havia algumas coisas na Bahia, a Rampa, uma coisa assim... mas foi Aruanda que sacudiu. Sacudiu e todo mundo ficou influenciado por isso! Mas não tinha um movimento do documentário. Existia já, e com o manifesto Bola-bola, essas coisas toda, e aí vem Cinco Vezes Favela, que é... não é um filme, não são documentários, são filmes ficcionados, mas que têm muito... a câmera se volta pra favela. Como a câmera se voltou pra marginalidade do nordeste, da seca, da miséria, etc., eles se voltaram pra favela, porque era aquilo que estava representando... aí vem filme de samba, de isso, vem filme daquilo outro, entendeu?
LL: Sendo que o Couro de Gato já tinha sido feito antes, né?
VC: Antes. O Couro de Gato entrou no Cinco Vezes Favela porque eles fizeram uma espécie de homenagem ao belo dum filme e ao Joaquim que tinha prestígio... o pai do Joaquim dirigia o... o que era?
LL: O IPHAN
VC: O IPHAN, essa coisa toda. Então isso foi... me parece que foi o pai do Joaquim que promoveu a vinda do - não ele propriamente, mas a instituição - do Arne Sucksdorf, com câmera, trouxe o Nagra, daí houve um pulo, uma revolução, porque a presença do Nagra representa uma revolução. Porque você deixa de escrever texto que você cola no filme e passa a ouvir as pessoas. As pessoas até aquela hora não tinham voz.
LL: E vocês ouviam falar aqui do cinéma-vérité? Ouviam, chegava essa informação do cinema-verdade?
VC: Não. A partir do Nagra, aí todo mundo... a gente consumiu o Cahiers du Cinéma. Porque às vezes a comunicação, ou a informação ela cria uma velocidade assim extraordinária, de uma rapidez e de uma eficácia enorme, porque a gente começou a ler, começou a ver... aí... eu me lembro... eu era, em 1965, eu fui assistente do Arnaldo Jabor no filme Opinião Pública, e de um filme chamado Rio, Capital do Cinema, que é um média metragem que talvez nem tenha mais cópia. Rio, Capital do Cinema, feito para o Departamento de Turismo da Guanabara. O Jabor tinha um prestigio muito grande com o Lacerda, então ele conseguiu esse troço. A gente filmou... eu vi, daqui pra aí, Fritz Lang, Polanski, Claudia Cardinali, Gleen Ford, Wayda , porque eu fui assistente do Jabor nesse filme Rio, Capital do Cinema e a gente filmava tudo. A gente passava o dia inteirinho no Copacabana Palace, filmando essas pessoas, filmamos uma festa no Copacabana Palace. Eles tinham alugado smoking para a gente entrar na festa e eu carregava a bateria. Naquele tempo a gente carregava um trambolho, um trambolhão, isso aqui multiplicado por... pendurado aqui, junto da câmera sempre.
LL: De smoking?
VC: É, de smoking. Quando foi no outro dia, que a gente foi devolver os smokings para Rolas, aquele célebre... que foi de negócio de alugar roupa, né? Tinha um rombo desse tamanho. O ácido da bateria tinha feito um rombo assim. Quase que pega as minhas costelas aqui. Uma coisa assim, meio queimado, né? E o rombo [gesto com as mãos]. Eles tiveram que pagar o smoking. Entendeu? Porque a gente filmou tudo. Eu estou dizendo isso por quê?
LL: Nem eu lembro mais. A gente estava falando do... Ah, não, porque eu perguntei se o Cinéma-vérité...
VC: A velocidade com que as coisas acontecem... Aí também foi assim... são coisas pontuais. Festival Internacional do Filme – FIF.
LL: Teve do Filme Francês também, não teve?
VC: Teve. Veio tudo. Veio tudo. Veio a raça toda! A irmã da... a D’Orleac, irmã desse mulher célebre, que é a... a Bela da Tarde, como chama?
LL: Ah, a Belle du Jour, a Catherine Deneuve?
VC: A Catherine Deneuve. Veio a D’Orleac... veio todo mundo, entendeu? Veio muita gente! Esse é um filme que... o Moniz Vianna, com um prestígio enorme na crítica, um crítico reacionário da peste, mas com um prestígio no governo, ele conseguiu trazer tudo isso. Era amigo de Lacerda, o dinheiro todo estava formado, Copacabana virou um... sabe como é? Um troço extraordinário! E filmes... e então eu estou lá metido no meio. Eu peguei dois festivais: o de 1968, ou 69, o repeteco de 69, eu já era repórter de jornal no Rio. Já tinha acontecido o Cabra, eu já tinha me lascado, perdi um emprego que tinha 10 anos de serviço, com medo de voltar. Com medo. Então me demitiram por abandono de cargo. Eu nunca mais fui lá. Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado – IPASE. Um daqueles institutos, IAPETEC, IPASE e IAPI. E aí eu não fui mais lá, e aí fiquei vagando no Rio de Janeiro, arranjei um trabalho no jornal e fiquei trabalhando até que vim pra Brasília. Vim pra Brasília eu estava morando numa casa de cômodo, eu e minha mulher, sabe Deus como! Aí me ofereceram um trabalho na Unb, que eu ia ganhar dez vezes o que eu ganhava no Rio. Daí eu vim pra cá. Salvei a pele!
LL: E nunca mais saiu.
VC: E nunca mais saí. Entendeu? Isso pra dizer o seguinte: que aí já tinha adquirido uma velocidade enorme aí veio o golpe... PUF! Eu me lembro do filme do... O Desafio, do Paulo Cezar Saraceni, que já é a crise do intelectual de esquerda, já tinha acontecido...
LL: Que é como o Terra em Transe também, né?
VC: É, como Terra em Transe que é de 1965. E teve o maior problema pra sair do país, acho que nem conseguiu sair, virou um caos, o Itamaraty não quis... [E olha no relógio]
LL: Ah, está na sua hora, né?
VC: Daqui a pouquinho.
LL: O Terra em Transe... inclusive até o Deus e o Diabo também teve problema, né? Porque o Deus e o Diabo...
VC: O Deus e o Diabo... Eu vou contar mais uma história pra você: a nossa câmera do Cabra Marcado para Morrer pifou e só tinha ela... pifou, no meio da... a câmera...
LL: Do Cabra Marcado?
VC: A câmera, não essa russa não, a câmera mesmo, pifou, queimou! Aí parou tudo. A gente foi rever o roteiro e não sei o quê... e mandou-se o Cecil, carioca, Cecil Thiré, filho da Tônia, com a câmera para o Rio de Janeiro, levando, pra arrumar. Cecil volta transtornado, alucinado... Ele assistiu à Première do...
LL: Do Deus e o Diabo?
VC: A gente ficou a noite inteirinha ouvindo o Cecil. E ele falava, falava, falava...
LL: Parece que foi um sessão assim...
VC: Ele: “Rapaz, é uma coisa que vocês nunca viram...”
LL: Parece que tinha muita gente chorando, gente aplaudia...
VC: Alguém gritou: Gênio, gênio! E daí pra frente, só foi gênio pra Glauber. Me lembro muito bem disso, da volta do Cecil... porque isso é janeiro, fevereiro de 1964. Estourou assim, ó!
LL: Porque ele foi exibido antes... Eu fiz uma apresentação sobre Deus e o Diabo lá na Embaixada, lá em Buenos Aires, ele foi exibido antes, então eu li sobre isso... no dia 13 de março, que era o dia que ia ter o comício do Jango, o filme foi exibido pra um grupo pequeno.
VC: Acho que de tarde, coisa assim...
LL: Sim, foi de dia, exatamente, pra um grupo pequeno, que devia estar lá o Cecil Thiré.
VC: Alex, me lembro que estava Alex, Leon, toda a raça, porque cada um levou seu convidado... Vamos ver um filme de um cara... lálálá... Já tinha feito Barravento. Bateu na tela... o Cecil...
LL: Foi um negócio louco! Só que nisso já tinham mandado uma copia do filme pra participar do Festival de Cannes.
VC: Houve uma... sabe, o Itamaraty?!!! O Itamaraty, diplomata você sabe como é, né? Vira-folha, né? Ele estava no meio desse troço... e houve meio que uma pequena sabotagem de não entregar, de... enfim.
LL: E era o Arnaldo Carrilho que era o responsável do Departamento Cultural que mandava. E os militares foram lá e falaram pra ele: ó, aquela fita que você mandou lá, não pode.
VC: Não pode.
LL: Isso é numa entrevista do Arnaldo Carrilho. E aí ele fala: “Ih, mas eu não posso, eu tenho que consultar meus superiores.” Ele jogou essa, porque o Itamaraty também tem essa coisa da hierarquia igual ao exército, né? E os caras: Superior? É, não, tá bom...
VC: Superior? Como assim?
LL: Tá. E parece que nisso projetaram e o Figueiredo assistiu...
VC: Aí danou-se...
LL: Não. Ao contrário, ele liberou o filme.
VC: é?
LL: Porque aí, quando os caras voltaram no dia seguinte, eles falaram: “ó, é, o filme tem umas coisas assim, tem meio um discurso meio assim...
VC: No SNI. Ele era do SNI.
LL: “...mas, daí ele fala, mas o filme é muito bom! Então foi liberado.
VC: É curioso.
LL: Eu não sei o que tem por trás disso,
VC: Isso é curioso, Mas se está escrito e alguém disse, você pode... trabalhar isso
LL: Foi o Arnaldo Carrilho, na entrevista.
[1] GOMES, João de Lima (org.), Aruanda – Jornada Brasileira. João Pessoa : UFPB/Editora Universitaria, 2003.
[2] O Cruzeiro, n. 33 (?), 1962 – foto com texto : “No Cinema nacional, alguns curta-metragem [...] já passaram à história. “Aruanda” (do qual damos uma cena na foto abaixo) coloca-se entre essas pequenas obras-primas.”
Iphan finaliza levantamento de acervo das peças de Vladimir Carvalho
Correio Braziliense
Iniciado no começo deste ano, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em parceria com a Universidade Federal do Tocantins (UFT), finalizaram o levantamento sobre o acervo de Vladimir Carvalho. Essa etapa é o ponto inicial para o avanço da criação de um inventário e, posteriormente, para a busca de um espaço de qualidade que fornece a atenção e cuidado necessários que esses materiais demandam.
Recentemente, o acervo recebeu mais um equipamento de grande valor simbólico, um projetor de 35mm da Embaixada da França. Para o cineasta, a chegada desse projetor representa o fechamento do ciclo cinematográfico de um filme, que começa na captação das imagens pela câmera e termina no aparelho que entrega a obra para o espectador. "O projetor é uma espécie de ponto final no processo cinematográfico, porque é quando o filme entra em contato com o público. No conjunto do acervo, ele fecha um ciclo", afirma.
Um dos mais importantes documentaristas brasileiros, Vladimir Carvalho é o guardião da memória e da história do cinema nacional e, principalmente, do brasiliense. Além dos 60 anos de contribuição com obras de audiovisual, o documentarista possui um vasto acervo cinematográfico, localizado na Fundação Cine Memória, criada e mantida pelo mesmo.
Nascido na Paraíba e morador de Brasília desde o final de 1969, Vladimir passou os últimos 54 anos pesquisando, coletando e armazenando memórias e registros físicos da história do cinema brasiliense. A coleção vai desde livros, filmes, equipamentos, objetos, fotos, recortes, documentos e até uma sala de projeção. "Eu tenho coisa como meia tonelada de equipamentos, entre câmeras, refletores e material fotográfico", afirma.
A casa que abriga a Fundação Cine Memória fica localizada na W3 Sul, e hoje, os dois andares são tomados por um verdadeiro museu do cinema brasiliense e nacional. Entretanto, a localização não permite qualquer outra atividade que não seja residencial e, por isso, Vladimir Carvalho sonha e luta para que todos os materiais e equipamentos recebam um espaço de cuidado e de visitação para a população.
"Eu estou doando para qualquer instituição que seja pública, ou até privada, que tenha condições de abrigar em lugar seguro, respeitável, de fácil acesso para as pessoas, mas que tenha a garantia de segurança", afirma. "Eu estou trabalhando para que isso seja definitivo", completa.
Para Vladimir, a busca por esse espaço é o passo inicial para a criação de uma cinemateca em Brasília, que permite a democratização do acesso a essa memória física, coletada e cultivada por Vladimir. "Tem uma importância histórica e memorialística, e conta parte da história do cinema realizado em Brasília", ressalta. "É uma prévia para um grande cinemateca que se criará na capital da República", finaliza.
Revista online | Godard, o gênio exausto
Vladimir Carvalho*, especial para a revista Política Democrática online (47ª edição: setembro/2022)
A morte consentida de Jean-Luc Godard pode sinalizar para muitos o final de uma era cinematográfica marcada desde a primeira vanguarda, nos anos 1920, por uma incessante busca de legitimação de uma atividade artística que, de cara, se autodenominava de Sétima Arte, com técnica e linguagem próprias. Cedo seria respaldada pela formação de uma mentalidade que nasceu com os cineclubes, os críticos e as revistas especializadas – o que hoje é conhecido de forma generalizada por cinefilia. Teorias e posturas estéticas renovadoras já se faziam sentir ao tempo do cinema soviético com Sergei Eisenstein, Dovijenko, Dziga Vertov e outros até a explosão que foi o Cidadão Kane, de Orson Welles, nos anos de 1940.
Na década posterior, os franceses jogaram papel importante a partir da ação desenvolvida pela Cinemateca Francesa e com o aparecimento do grupo liderado por André Bazin, grande influenciador e principal crítico da revista Cahiers du Cinéma, que se tornaria célebre e em cujo agitado seio surgiria o até ali desconhecido franco suíço. Ao lado de outros, como François Truffaut, Jacques Rivette, Eric Rohmer e Claude Chabrol, compondo a tendência que seria conhecida, ou apelidada, de “jovens turcos”. Mais tarde, alguns deles se renderiam aos encantos da prática cinematográfica como ativos diretores que defendiam a todo custo a autonomia de um cinema autoral, desde ali, em confronto com o poderio dos produtores que condenavam por princípio o filme clássico francês e valorizavam uma política de autores.
Nesse clima de camaradagem solidária, o futuro autor de Acossado (1960) pontificou-se como um ferrabrás da crítica atento à condução moderadora de Bazin, mas em franco contraste com Georges Sadoul, um marxista militante, que sempre defendeu o cinema soviético não só do período eisensteiniano como também os das gerações posteriores. Godard foi desde sempre um anarquista, pontificando-se na avaliação e cotação dos filmes, no famoso Conseil des Dix, da revista.
Em 1960 Godard vai à “guerra” com uma narrativa desconcertante e uma linguagem inédita até aquele momento. O público delirou com Acossado, e a crítica foi obrigada a reconhecê-lo. Segue-se com igual liberdade estética, Uma Mulher é uma Mulher (1962) e O Desprezo (1963). Depois a política faz a festa em Masculino, Feminino (1966); a moda godardiana continua em Made in USA (1966) e em A Chinesa (1967), que radicaliza em termos de desdramatização e nos aspectos políticos. É um cinema diametralmente oposto aos clássicos americanos, mas que tinha muito da simpatia que os “jovens turcos” nutriam pelos filmes B, nos Cahiers. Porém, ainda não era, claro, o Godard radical e em mutação do Grupo Dziga Vertov, do final dos anos 1960, e que, em Maio de 68, se confunde com os estudantes revoltados, filmando nas barricadas de Paris.
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E foi nessa rumorosa onda de 1968, num veemente protesto contra a demissão do carismático Henri Langlois, da curadoria mor da Cinemateca Francesa, que o Festival de Cannes foi atropelado e quase não aconteceu. Godard protagonizou a cena principal, pendurado nas cortinas do Palais, impedindo que as sessões começassem, com ampla cobertura da imprensa. Em Paris, a redação dos Cahiers, na rua Marbeuf, virara um comitê de agitação em favor dos estudantes; e a temperatura subiu quando o filme de Jacques Rivette, A Religiosa, foi proibido. Novamente é um empedernido Godard que toma as dores e defende Rivette e seu filme, rompendo com o grande André Malraux, então ministro da Cultura, em carta que passou aos anais como uma irrespondível peça de condenação do Estado gaullista.
Entretanto, no âmbito de certa crítica, “a sua utopia de um cinema marxista, de parceria autoral com a classe trabalhadora, resultou tão frustrada quanto a aliança dos estudantes com os proletários da Renault”, como argutamente observou o crítico e escritor Sergio Augusto.
A propósito do perfil muitas vezes contraditório do autor de Je Vous Salue Marie (1985), podemos recordar aqui episódio ocorrido durante o Festival Internacional do Filme, o histórico FIF, do Rio de Janeiro. Godard compareceria ao mesmo para a apresentação do seu filme Alphaville. Tudo acertado, pouco depois ele mandou um telegrama desistindo de participar, num gesto de protesto e condenação da ditadura militar no Brasil. Instalada a confusão, surpreendeu a todos, negando peremptoriamente a autoria da mensagem, e atribuindo-a a terceiros. Quando tomou conhecimento da negaça, o crítico Robert Benayon, da revista Positif, rival dos Cahiers, presente ao evento brasileiro, desabafou para quem quisesse ouvir. Para ele, tratava- se de “mais uma daquele fascista!”. Nesse tempo, andava o autor dessas notas, trabalhando como assistente de Arnaldo Jabor, num filme que realizou sobre o FIF, Rio, Capital do Cinema, e ouviu os comentários acerca desse lance, nos bastidores da sede da mostra, no Copacabana Palace.
Essa época no Rio foi muito marcada pelos filmes e paixão pelos diretores da Nouvelle Vague. Uma pequena multidão de cinéfilos não arredava o pé das sessões do Cinema Paissandu, no Flamengo. Ali enturmei-me levado pelas mãos de Cosme Alves Neto e assisti, imerso na euforia da rapaziada, a quase todos os filmes de Godard lançados ali naquele ano de 1968. A cidade tomada pelo alvoroço político e pela revolta em virtude da morte de Edson Luiz, secundarista assassinado pela polícia no restaurante Calabouço, no aterro do Flamengo, estava transtornada. O clima era de insegurança e medo, mas filmes como Tempo de Guerra, de Godard, nos convocavam à ação, e, portanto, era também do Paissandu que partíamos para engrossar as fileiras da célebre Passeata dos Cem Mil. O Maio de 68 estava fresquinho em nossas agitadas cabeças. Mesmo sabendo das restrições ao autor de Masculino, Feminino, taxado até de fascista pelo pessoal da revista Positif, numa linha editorial que confrontava com os Cahiers du Cinéma, eu pouco ligava. Já havia lido os elogios de Georges Sadoul à Aruanda, o filme de Linduarte Noronha, em que atuei como roteirista e assistente, e num rompante juvenil pouco me interessava que Godard o achasse um stalinista superado pelo tempo, que já era tomado pelo revisionismo que resultou das sérias denúncias feitas por Kruschev; nem tomáramos conhecimento das restrições de Lévi Strauss ao franco suíço; tampouco da ojeriza que Jeanne Moreau lhe dedicava. Godard vivia agora a sua febre maoísta junto ao Grupo Dziga Vertov. E era nosso herói.
Muito depois é que tomaríamos conhecimento das peripécias do nosso ídolo quando da realização de seu filme Vento do Leste. Ele proporia a Glauber Rocha, que fazia importante participação na obra, que juntos destruíssem o cinema como arte. O brasileiro, sagaz como sempre, logo sacou que Godard começava a sucumbir à depressão e militava numa espécie de autodestruição, e a sua resposta foi a de que ele, Glauber, ao contrário, optava pela construção de um cinema inovador e de salvação, no Brasil e no Terceiro Mundo.
Confira, abaixo, galeria de imagens:
Gênio consumado, mas profundamente contraditório e iconoclasta, talvez naquele momento já se manifestasse no espírito de JLG o quadro psíquico que o dominou no fim da vida, depois da realização de filmes não tão brilhantes e plenos de vigor, como os daquela fase em que fez sombra a toda uma geração do cinema francês da Nouvelle Vague. Oriundos quase todos dos Cahiers, o qual terminou, é bom lembrar, por apoiar o Cinema Novo brasileiro, especialmente promovendo seus autores mais importantes e mais afinados com o ideário da revista, como é o caso de Glauber Rocha, Cacá Diegues e Gustavo Dahl.
Embora tumultuada, a existência de Godard foi profícua e intensa, mas sua morte assistida parece se justificar pelo cansaço e esgotamento que o vitimou, e sua descida se deu também pela inexorável ação, digamos assim, da força da gravidade em vista do peso de seus 91 anos. Que descanse em paz!
Sobre o autor
*Vladimir Carvalho é um cineasta e documentarista brasileiro de origem paraibana.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (47ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Vladimir Carvalho fala sobre o filme de "Giocondo Dias - O Ilustre Clandestino"
João Rodrigues, da equipe da FAP
Sucesso no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2019, o documentário “Giocondo Dias - O Ilustre Clandestino” foi o tema principal de entrevista do cineasta Vladmir Carvalho ao Canal Brasil.
Na entrevista, Vladmir fala sobre o sucesso do filme, que retrata a vida do líder comunista baiano Giocondo Dias, militante da esquerda que viveu dois terços de sua vida na clandestinidade e liderou o PCB como secretário-geral.
Confira abaixo vídeo da entrevista na íntegra.
Lucília Garcez deixa marca como referência na literatura brasileira
Ex-conselheira da FAP e professora aposentada da UnB morreu por complicações de câncer de pulmão
Cleomar Almeida, da equipe FAP
Professora aposentada do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB) e ex-conselheira da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), Lucília Helena do Carmo Garcez deixa como legado a referência da literatura e defensora de livros. Ela morreu, nesta quinta-feira (23/9), aos 71 anos, vítima de câncer de pulmão, em Brasília.
O velório está marcado para às 14h desta sexta-feira (24/9), na Capela 5 do cemitério Campo da Esperança da Asa Sul. Lucília estava internada no Hospital Daher havia duas semanas, por causa de complicações da doença e da quimioterapia.
Integrante da Academia Brasiliense de Letras e da Associação Nacional dos Escritores (ANE), a professora propagava a ideia de que o livro é a principal ferramenta para transformar a vida das pessoas. Educação, para ela, era o maior capital que uma sociedade poderia ter em busca de equidade e justiça social.
Lucília era casada com o cineasta e documentarista paraibano Vladimir Carvalho, de 86, e deixou três filhas (Adriana, Fabiana e Cristina) de um casamento anterior, além de cinco netos.
Vladimir lembra-se da esposa como uma mulher carinhosa e cheia de alegria de viver. Segundo ele, Lucília gostava de cuidar do jardim, da casa como um todo. "Era uma liderança enorme na família. Sempre tinha uma palavra de conforto, uma doçura imensa. Mantinha a harmonia e a amizade entre todos”, contou.
Nascida em Uberaba (MG), em 8 de julho de 1950, ela chegou a Brasília em 1966. Era doutora em linguística pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestre em teoria da literatura pela UnB. Foi professora de língua portuguesa do Instituto Rio Branco, responsável pela formação de diplomatas, por oito anos.
Em carta sobre o aniversário de Brasília em 2020, Lucília destacou a admiração pelo céu no lugar e definiu a linha do pôr-do-sol como "desnuda, extravagante, aberta ao infinito".
"Adotar Brasília como minha cidade misturou-se com definir os rumos da vida, fazer outras escolhas fundamentais. Tudo está enraizado naquelas manhãs ensolaradas nos gramados da UnB", escreveu.
Nota oficial da FAP
Nós, conselheiros, diretores e colaboradores da Fundação Astrojildo Pereira manifestamos de público nosso pesar pelo falecimento de Lucília Helena do Carmo Garcez. Professora da Universidade de Brasília, Lucília dedicou sua vida profissional e sua militância cotidiana à promoção da educação, da cultura, com ênfase na difusão do livro e da leitura como instrumentos indispensáveis para esses fins. Lucília participou do grupo presente nas primeiras reuniões que resultaram na criação da Fundação Astrojildo Pereira, integrando, posteriormente, mais de uma vez, seu Conselho Curador. Apresentamos nossas condolências a Vladimir de Carvalho, também militante histórico da Fundação, e a todos os familiares de Lucília.
Livros de Lucília Helena Garcez
https://www.estantevirtual.com.br/livros/lucilia-helena-do-carmo-garcez
RPD 35 || Henrique Brandão: Giocondo, um comunista abnegado e gentil
Documentário sobre o histórico militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), de Vladimir Carvalho, já está à disposição do grande público no NOW, da NET
Já se encontra disponível no Now o documentário “Giocondo - O Ilustre clandestino”, do veterano cineasta Vladimir Carvalho, um dos mais representativos documentaristas brasileiros. Narra a vida de Giocondo Dias, histórico militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
O filme mostra a participação de Giocondo em momentos decisivos da política dos comunistas: o levante militar de 1935, no Rio Grande do Norte, do qual foi o principal líder; o breve período da legalidade pós-Segunda Guerra (1945/47), quando o PCB elegeu 14 deputados federais e um senador (Luiz Carlos Prestes); a luta contra a ditadura e a política de frente democrática contra o regime militar fascista, em divergência com as forças de esquerda que defendiam a resistência armada; a campanha pela legalidade do PCB, nos anos de 1980.
A trajetória de Giocondo se confunde com a própria história do velho Partidão. Cabo Dias, como era conhecido por sua patente militar, viveu a maior parte da existência na clandestinidade, a serviço da causa em que acreditava. Não é para qualquer um. É preciso a fibra dos fortes e a abnegação dos convictos para suportar durante tanto tempo as privações de uma vida clandestina.
Segundo o diretor Vladimir Carvalho, o documentário levou dois anos para ser realizado: “assumi a produção desse filme e fiquei dois anos ralando. É um perfil em segunda-mão, porque é visto pelos raros contemporâneos do Giocondo Dias”, disse o cineasta, em entrevista para a “Agência Brasília”, em 2019, quando o longa foi exibido no encerramento do Festival de Brasília.
De fato, o filme se vale muito do depoimento de quem conviveu com Giocondo. E isso tem uma razão de ser. Cuidadoso, sempre atuando com extrema discrição, é natural que não exista quase nada de imagens de arquivos dos tempos em que Giocondo atuava na clandestinidade.
É por meio de um mosaico de entrevistas com ex-companheiros de organização que emerge a figura de um dedicado militante comunista, rígido nas normas de segurança, mas doce e gentil no convívio pessoal.
Em um emocionado depoimento, sua filha, Ana Maria Dias, fala dos encontros esporádicos com o pai, sempre cercados de extrema cautela para não comprometer a segurança. Uma situação difícil para os dois. Não é fácil abdicar do convívio familiar.
Dois momentos se destacam no documentário: o primeiro é o perfil que Jorge Amado faz de Giocondo no livro “Navegação de Cabotagem”, onde o trata por Neném – apelido cunhado pela mãe de Giocondo – do tempo em que ambos, nascidos na Bahia, agitavam as ruas de Salvador. É uma narrativa carinhosa. Jorge Amado revela que um dos personagens de seu romance, “Tenda dos Milagres”, foi inspirado no amigo comunista: “o coloquei em uma tribuna de comício durante a guerra, falando em nome dos trabalhadores”.
O outro trecho marcante do filme é a descrição, em detalhes, da retirada clandestina, no auge da ditadura militar, de Giocondo do Brasil. Prestes já estava em Moscou desde o início dos anos de 1970. O cerco da repressão havia apertado sobre os dirigentes do PCB. Muitos, inclusive, caíram e até hoje estão desaparecidos.
Por sugestão de José Salles (membro do Comitê Central), que se encontrava na União Soviética, montou-se uma complexa operação que envolveu comunistas brasileiros e argentinos, além de dirigentes da antiga URSS. Os depoimentos relatam em minúcias o vai e vem dos procedimentos que acabaram por levar Giocondo a Moscou, em 1976. Em todo o processo, o cabo Dias manteve-se sereno e disciplinado, preocupado com a segurança dos demais envolvidos.
Vários depoimentos expõem as divergências internas, no exílio, entre os membros do Partidão. Nesse cenário, Giocondo se impõe por sua capacidade de dialogar, qualidade destacada por todos. Soube usá-la com maestria, construindo pontes entre as correntes políticas do partido. Acabou sendo um dos formuladores e porta-voz da política de frente ampla democrática que o Partidão preconizou na luta contra a ditadura. Sua habilidade de ouvir os outros terminou por levá-lo à Secretaria-geral do PCB, em substituição a Luiz Carlos Prestes.
“Giocondo – O ilustre desconhecido” é um filme importante, pois ajuda a resgatar uma personalidade política que, por seus traços pessoais avesso aos holofotes, corria o risco de permanecer na penumbra.
O PCB é a mais antiga organização comunista do país. Ano que vem, será o ano de seu centenário. Com certeza, Giocondo Dias será lembrado como uma das figuras decisivas na construção da bela trajetória de lutas dos comunistas.
* Henrique Brandão é jornalista e escritor.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
Cineclube Vladimir Carvalho será reaberto com entrada gratuita
Filme A Hora da Estrela, de Suzana Amaral, marca a reabertura do Cineclube Vladimir Carvalho.
João Rodrigues, da equipe da FAP
Em 3 de setembro (sexta-feira), a partir das 13h30, o Cineclube Vladimir Carvalho apresenta o filme A Hora da Estrela, de Suzana Amaral, baseado no livro homônimo sobre a escritora Clarice Lispector. A exibição marca a reabertura do espaço, localizado na Biblioteca Salomão Malina, no Conic. A entrada é gratuita.
“Giocondo Dias - O Ilustre Clandestino” é tema de podcast
O cineasta Vladmir Carvalho fala sobre a chegada do filme ao NOW, da NET, e da história de vida desse importante personagem da história política do Brasil
João Rodrigues, da equipe da FAP
Sucesso no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2019, o documentário “Giocondo Dias - O Ilustre Clandestino” chegou à disposição do grande público no NOW, da NET, uma das maiores plataformas de streaming do Brasil, nesta semana. O filme retrata a vida do líder comunista baiano Giocondo Dias, militante de esquerda que viveu dois terços de sua vida na clandestinidade e liderou o PCB como secretário-geral.
Além de resgatar um importante personagem da história política do Brasil, sobretudo na resistência à ditadura, o documentário é uma obra notável do cineasta Vladimir Carvalho, convidado desta edição do podcast da Fundação Astrojildo Pereira. O programa conta com perguntas de Caetano Araújo (diretor-geral da FAP, sociólogo e consultor do Senado), Ivan Alves Filho (jornalista, historiador e escritor), Renato Ferraz (jornalista e gerente de Comunicação da FAP), Gilvan Cavalcanti de Melo (editor do blog Democracia Política e novo Reformismo) e Luiz Carlos Azedo (colunista do Correio Braziliense e do Estado de Minas).
Ouça o podcast!
O episódio tem áudios do filme “Giocondo Dias - O Ilustre Clandestino Online”, documentário #MINHABRASÍLIA 60 Candangos e do Canal Curta!, no Youtube.
O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Youtube, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.
Confira o documentário no link: www.nowonline.com.br/filme/giocondo-dias-o-ilustre-clandestino/1838586.
O homem de Sputnik se mantém como comédia histórica há 62 anos
Premiado, o filme O homem do Sputnik, do diretor Carlos Manga, lançado em 1959, será debatido nesta quinta-feira (22/7) em mais um evento do ciclo de webinars da Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira (FAP), em pré-celebração ao centenário da Semana de Arte Moderna, marcado para o ano que vem. A transmissão será realizada, a partir das 17 horas, no portal da entidade e redes sociais (Facebook e Youtube).
Assista!
Em novembro de 2015, o filme entrou na lista feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Foi listado por Jeanne Santos, do Cinema em Cena, como “clássico nacional”.
A comédia narra as peripécias de um homem simples que pensa que o satélite russo Sputnik 1 caiu no galinheiro de um sítio. A notícia se espalha e ele é perseguido por espiões de todos os tipos até que a verdade vem à tona.
Na época, o estreante Jô Soares, ainda como “Joe” Soares, fez o papel de um espião americano no Brasil. A inclusão desse espião fez com que o diretor Carlos Manga perdesse uma bolsa de estágio nos EUA. O filme teria sido visto por 15 milhões de espectadores.
O enredo é marcado por um casal de caipiras comerciantes de ovos, Anastácio e Cleci, que são surpreendidos por um estrondo em seu galinheiro. Ele encontra entre suas galinhas um globo metálico. No dia seguinte, ela lê no jornal sobre o acidente com o satélite russo Sputnik e reconhece na fotografia um objeto semelhante ao que caiu em seu quintal.
Anastácio, então, leva o globo à casa de penhores e mostra-o para a funcionária Dorinha. Ela liga para o jornal onde trabalha seu namorado, Nelson, e lhe conta o fato. Alberto, jornalista inescrupuloso, ouve a conversa entre o casal e conta a novidade ao chefe do jornal.
Nelson vai ao encontro de Anastácio e pede a ele que esconda o objeto. Anastácio coloca-o dentro do poço. A notícia de que o Sputnik caiu no Brasil vira primeira página dos jornais.
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Anastácio e Clecy se transformam em celebridades. Hospedam-se no Copacabana Palace, onde recebem propostas de grupos de russos, americanos e franceses que tentam seduzir Anastácio, apresentando-lhe a cantora francesa Bebe.
Os interesses desmedidos dos estrangeiros pelo satélite levam os dois à loucura. Anastácio é raptado pelos franceses e Nelson pelos americanos. Fogem e voltam para a casa de Anastácio. Russos, americanos e franceses os seguem, disputando o valioso troféu, que ninguém sabe onde está.
Anastácio revela o local onde o Sputnik se encontra e todos se alvoroçam. Não encontram nada no poço. Ao passar pelo local, o sacristão diz que pegou o Sputnik e transformou-o em pára-raios para a igreja. Os agentes estrangeiros partem decepcionados e Anastécio Cleci voltam para casa, mas se deparam com o verdadeiro Sputnik que acabara de cair no galinheiro. (Com informações públicas)
Ciclo de Debates sobre Centenário da Semana de Arte Moderna
10º evento online da série | Modernismo, cinema, literatura e arquitetura.
Webinário sobre o filme O homem do Sputnik, direção de Carlos Manga
Dia: 22/7/2021
Transmissão: a partir das 17h
Onde: Perfil da Biblioteca Salomão Malina no Facebook e no portal da FAP e redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade
Realização: Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira
Edmílson Caminha: O cineasta Vladimir, de São Saruê a Brasília
São muitos os grandes nomes que a cultura brasileira deve à Paraíba: o pintor Pedro Américo, o poeta Augusto dos Anjos, os escritores José Américo de Almeida, José Lins do Rego e Ariano Suassuna, o teatrólogo Paulo Pontes, os músicos Jackson do Pandeiro, Sivuca, Geraldo Vandré... Ponha-se, entre esses paraibanos ilustres, o cineasta Vladimir Carvalho, referência do documentário no Brasil, autor de artigos, memórias e análises que se reúnem no livro Jornal de cinema (São Paulo : É Tudo Verdade, 2015). Com a modéstia de quem não precisa autopromover-se para alcançar o reconhecimento da crítica e a admiração do público, Vladimir exalta os colegas, louva os amigos e se compraz em enaltecer-lhes o talento, mas tal é a importância de que se reveste, como ser humano e como profissional, que ao fim ninguém parece maior do que ele próprio, pela grandeza que lhe enobrece a vida e pela excelência que lhe consagra a obra.
Textos claros, objetivos, corretos, como nota Amir Labaki, na apresentação: “A elegância do estilo de Vladimir espelha sua sólida formação literária. A precisão e o dinamismo remetem às experiências pontuais no ofício de jornalista, de colaborador eventual a repórter em tempo integral, como ganha-pão no período mais duro da ditadura militar”. Leia-se, por exemplo, o que diz de José Américo de Almeida, o lendário político paraibano que se dispõe a recebê-lo:
Homem feito, eu achava a figura inatingível, posto a salvo da abordagem do restante dos mortais, na redoma sagrada em que o mantinha uma confraria de admiradores. Até que um dia, no exercício do jornalismo, fui colocado vis-à-vis com o mito, realizando uma entrevista com “o velho”, como o chamavam na Paraíba. Ele já estava na fase do recolhimento da praia de Tambaú fazia cerca de dez anos, em meados da década de 60. Reserva moral da Nação, como diziam, mas sem mandato, fazia pensar num navio velho encalhado no mar sereno do Cabo Branco.
Com saber de historiador, Vladimir compõe um abrangente painel do filme documentário brasileiro, a partir do célebre Aruanda (1959), de Linduarte Noronha, que teve Carvalho como assistente. Sua “luz nordestina, que explode como se fosse sempre meio-dia, sol a pino, com o mundo pegando fogo, agredindo retinas e ambientes”, torna-o, “até o lançamento de Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, a mais resoluta e contundente proposta de cinema brasileiro”. É o marco fundador da geração paraibana em que o crítico Paulo Emílio Sales Gomes percebeu uma “inelutável teimosia”, tamanhas as carências e dificuldades que se antepunham àqueles jovens com o sonho de fazer cinema.
Iniciava-se a década de 1960, quando na provinciana João Pessoa, e em muitas outras cidades brasileiras, multiplicavam-se os cineclubes (como o de Fortaleza, dirigido por Eusélio Oliveira) e as sessões dos “cinemas de arte” no circuito comercial. Nas do Cine Diogo, em Fortaleza, às 11h da manhã de sábado, experimentei a emoção de assistir, pela primeira vez, a Teorema, de Pasolini, Persona, de Bergman e Sempre aos domingos, de Serge Bourguignon. Tempo em que se desencadearam paixões de uma vida inteira, como a do paraibano de Picuí que não por acaso se chama “Ivan Cineminha”, dono de dezenas de cadernos em que, desde a juventude, anota minuciosamente a ficha técnica dos milhares de filmes a que assistiu. Conhecimento profundo que o fez desmentir, no “Programa do Jô”, ninguém menos do que Anthony Quinn, que dissera nunca haver trabalhado atrás das câmeras, como diretor. “Trabalhou, sim. É que o filme não é bom, e ele prefere esquecer...”
Antes, milhões de espectadores divertiam-se com as comédias da Atlântida, recheadas de músicas e de histórias de amor, protagonizadas por Oscarito, Grande Otelo, Cyll Farney, Eliana, José Lewgoy, Dercy Gonçalves e Zé Trindade. Tão rendosas para Luiz Severiano Ribeiro, dono da produtora e de centenas de salas de cinema pelo Brasil, que incomodaram Hollywood, lembra Vladimir:
Foi tal o êxito da chanchada, mesmo desprezada como gênero chulo pela intelectualidade, que, segundo se diz, motivou a vinda para o Brasil daquele que seria uma espécie de xerife do cinema americano, o louro e bigodudo Harry Stone. Ele trataria de dissuadir Severiano de continuar produzindo a chanchada, que claramente tomava espaço dos filmes de Tio Sam no mercado exibidor. Como a rede de cinemas de Severiano também dependia de contratos com as distribuidoras americanas para exibição dos filmes de Hollywood, terminou por capitular. O advento da TV no Brasil e seu consequente impacto sobre o público fizeram o resto, e a chanchada foi aos poucos sendo arquivada.
Depois veio o Cinema Novo, com Glauber Rocha, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, que Vladimir Carvalho comenta com lucidez e honestidade crítica, em prefácio para o livro de Pedro Simonard sobre a geração que ganharia prêmios em festivais e resenhas lisonjeiras nos Cahiers du Cinéma:
Uma evidência que salta aos olhos neste ensaio tão sensível é que uma circunstância do Cinema Novo, talvez a mais marcante, o seu viés messiânico de dono da verdade, quase anula a sua proverbial veia contestadora e inconformista, atestando de certo modo a sua alienação e inata identificação com a classe dominante, como a reiterar que “a ideia dominante é a ideia da classe dominante”.
Momentos de peso na cinematografia nacional ganham testemunhos históricos de quem os viveu em pessoa. Assistente do diretor Eduardo Coutinho no célebre Cabra marcado para viver, Vladimir e companheiros interrompem as filmagens no Engenho Galileia, interior de Pernambuco, ante a notícia do golpe militar que depusera Jango. Escondidos câmera, tripé e acessórios no meio do mato, o grupo caminhou por entre espinhos e pedras do sertão, milagrosamente a salvo dos jipes do Exército em patrulha pelas redondezas. Foi quando o aprendiz de cineasta soube que, documentarista por vocação e escolha, jamais provaria o glamour dos tapetes que levam às palmas de ouro de Cannes e aos leões de Veneza: em sociedades injustas e violentas como a nossa, fazer documentários é expor-se corajosamente aos riscos da denúncia, do desafio, do confronto perigoso com tiranos e corruptos. Ante a força de quem podia prender, torturar e dar sumiço, crismava-se o diretor do longa-metragem que chegaria às telas em 1971, pela obstinação com que vencera toda espécie de contratempo e obstáculo:
Nascia o embrião de São Saruê, com filme vencido, rebatedores feitos de quadros-negros dos grupos escolares; rapadura e farinha, pouca água. Um dia esquecemos um monte de latas da película já rodada em cima de um lajedo; quando voltamos pela caatinga espinhenta já era meio-dia, o sol no zênite, torrando tudo. As latas de filme estavam como chaleira quente fervendo, mudou toda a composição química, e o resultado é a textura pulverizada de areia que o documentário apresenta hoje, e os críticos dizem que foi “a troca do conteúdo pela forma através de uma imagem trepidante”. Que nada...
A O país de São Saruê, juntam-se O homem de areia (1982), O evangelho segundo Teotônio (1984) e O engenho de Zé Lins (2006), referências do que se pode compreender como “ciclo nordestino” na obra de Vladimir Carvalho. A homenagem ao romancista de Fogo morto é das maiores que já se fizeram a escritores brasileiros, com passagens comoventes. No leito em que morria de câncer, sem forças para aliviar a comichão nas partes íntimas, Zé Lins pede ao amigo Thiago de Mello que lhe coce os “quibas”. Lembrança que o poeta revive, entre lágrimas: “Eu meti a mão pela calça do pijama e cocei...”, gesto de grandeza que nem todo homem teria para com o pai.
Conterrâneos velhos de guerra (1990), Barra 68, sem perder a ternura (2000) e Rock Brasília – Era de Ouro (2011) destacam-se no “ciclo brasiliense” do diretor. O primeiro é um clássico, a ser obrigatoriamente citado em qualquer estudo sobre a construção da nova capital. Impressiona o depoimento do urbanista Lúcio Costa, que teima em negar a chacina de trabalhadores no canteiro de obras da Construtora Pacheco Fernandes. Ante a insistência do entrevistador Vladimir, põe por terra o refinamento do intelectual que se ilustrou em Paris e declara ser tudo invenção dos motoristas de táxi, eles gostam muito de mentir... E se tiver mesmo acontecido, que representa a morte de alguns operários, ante a epopeia que foi construir aquele colosso? Momento de insensibilidade e de pequenez humana, que a história brasiliense deve à argúcia com que Vladimir arranca a verdade de quem, no teto da casa-grande, dá as costas aos que se amontoam na senzala. Donos do poder insolentes o bastante para, sob o tacão do AI-5, invadir a Universidade de Brasília, humilhar professores e perseguir estudantes, violência que Barra 68 mantém viva na memória dos que a sofreram e no espírito alerta dos que se recusam a tê-la de novo. Tempos medonhos cuja trilha sonora poderia ser das bandas Capital Inicial, Legião Urbana e Plebe Rude, a dizer e a cantar que ainda assim não se deve perder a esperança, com o valor que lhes confere o cineasta: “Este rock and roll, que ganharia a mais extraordinária visibilidade nacional, é o primeiro e mais bem-sucedido produto de toda a cultura saída da estufa brasiliense”.
Essa, a obra do diretor que faz de um filme bem mais do que “a maior diversão”, segundo aquele velho slogan. Para Vladimir Carvalho, cinema é realidade, cultura, história, documento, verdade, saber, a juntar as pontas de duas fantasias, a dos pobres de São Saruê e a dos nobres que dançam quadrilha na Praça dos Três Poderes. Grande, triste e desoladora metáfora de uma terra chamada Brasil.
*Edmilson Caminha é escritor, jornalista, professor de literatura brasileira e de língua portuguesa. É consultor legislativo (aposentado) da Câmara dos Deputados. Tem artigos, ensaios e entrevistas publicados na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras (Rio de Janeiro); Revista da Academia Mineira de Letras (Belo Horizonte); revista Clã, Revista da Academia Cearense de Letras e jornais O Povo e Diário do Nordeste (Fortaleza); Jornal de Letras, RioArtes e Jornal da ABI (Rio de Janeiro); D.O. Leitura (São Paulo); Suplemento Literário Minas Gerais (Belo Horizonte); A Tarde (Salvador); O Dia e Diário do Povo (Teresina); Correio Braziliense e Jornal da Associação Nacional de Escritores (Brasília); O Cometa Itabirano e O Trem (Itabira, MG), entre outros.
Vladimir Carvalho: O Sedutor do Sertão
Surpreende-nos, mais uma vez, Ariano Suassuna, depois do interregno que foi a sua exitosa e longa cruzada com as aulas-espetáculo, que divertiu e mobilizou o país de norte a sul – e da publicação póstuma do prometido Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores (2017) – com a descoberta recente deste “novo” rebento de sua lavra, O Sedutor do Sertão, que só recentemente veio a lume, em requintada brochura também da Editora Nova Fronteira. É o resultado de providencial descida aos baús do grande criador, realizada com o aval do condomínio de herdeiros de Ariano pelo crítico e professor Carlos Newton Júnior, que também é o autor de judiciosa e brilhante apresentação do volume.
A obra faz jus, como era de se esperar, à descomunal imaginação criadora do autor de A Compadecida, de uma infinita capacidade de absorver o espírito das fábulas do romanceiro popular nordestino de onde saltam, luminosas, a astúcia e a graça do sertanejo na sua luta tenaz para sobreviver. Mas de uma forma tão candente que a transposição eleva e sublima a ação de seus personagens, tal como vemos em seu teatro e também em seus romances encabeçados, sobretudo, por A Pedra do Reino, que já nasceu clássico como sabemos. O que nos faz rir e pensar simultaneamente.
Quem se divertiu com as proezas de João Grilo e Chicó naquela peça, inclusive na sua versão para o cinema, vai se fartar de rir com as rocambolescas aventuras pícaras desse impagável Malaquias Pavão, o tal sedutor, “aguardenteiro, conquistador, folheteiro e cambiteiro”, imbatível rei da simpatia nas relações com outros homens ou com o mulherio de maneira geral. Aliás, o livro pode ser, por seu humor contagiante, um bálsamo que nos vem socorrer bem a propósito, nessa quadra de tão penosa travessia em vista do coronavirus.
A prosopopeia desse sujeito estradeiro, capaz de enganar até o diabo, se passa nas terras que vão do sertão ao brejo, na Paraíba, típicas paisagens do Nordeste, lembrando, em muito, e guardadas as proporções, os lances da cavalaria decadente do Dom Quixote de Cervantes, uma das inegáveis influências de Suassuna. Não à toa, Pavão se faz acompanhar de seu fiel estribeiro, Miguel Biôco, “baixo, careca, meio estrábico”, para cuidar de seu cavalo Rei de Ouro. Isso tudo em pleno cenário e no desenrolar da Revolta de Princesa, uma briga entre o coronel Zé Pereira e o presidente (como eram chamados à época os governadores) João Pessoa, que se antecipou à Revolução de 30, deflagrada a partir da morte deste último, como é sabido.
É esta peça rara que tenho sob meus olhos, porém em sua forma original, um manuscrito datilografado em tipos hoje borrados, sob o amarelo que a passagem do tempo marcou. Guardo-o como preciosa relíquia em meus arquivos, porque me foi passado, em 1969, por Marcus Odilon Ribeiro, dublê de escritor e usineiro, amigo dileto, que pretendia transformá-lo num roteiro cinematográfico e produzir o filme dele resultante. Com o passar do tempo, o projeto foi sendo adiado e terminou por ser esquecido no longo período de vacas magras para o cinema brasileiro.
Não obstante, A Compadecida, a obra maior de Suassuna no teatro ter sido adaptada para o cinema pelo húngaro Georges Jonas (1969), que fez fortuna como publicitário em São Paulo, não obteve o êxito esperado. O gringo era incapaz de perceber o mínimo que fosse da cultura brasileira em geral, quanto mais da cultura nordestina. Mais fácil seria o mar secar ou uma baleia emergir das parcas águas de um açude no sertão.
Uma outra versão, muito melhor resolvida, foi a de Roberto Faria (1987), talvez o maior diretor-artesão do nosso cinema, no que pese o caráter estritamente circense que emprestou à sua realização, protagonizada pelos Trapalhões e conquistando grande parte do público. Entretanto, o sucesso mais retumbante viria pelas mãos de Guel Arrais (2000), tanto no cinema como na televisão. Senhor absoluto do tema, o pernambucano soube captar a essência dramatúrgica, o humor e o espírito universal do texto.
Afinal o nosso Ariano foi mestre dos mestres no seu ofício, como prova a genialidade deste O Sedutor do Sertão agora disponível. Não existe em nossa cultura dois Ariano Suassuna. Quem inventou o primeiro perdeu ou esqueceu a fórmula mágica.
*Vladimir Carvalho, Professor Emérito da Universidade de Brasília, jornalista e cineasta
Vladimir Carvalho: 1930 - A revolução nonagenária
Não foi uma insurreição de velhinhos como pode se supor a partir do título acima, até porque os longevos daquela época não chegavam facilmente aos noventa anos de idade como ocorre em muitos casos hoje, graças aos progressos das ciências. Trata-se mesmo é do grande movimento revolucionário que mudou, de certa forma, a fisionomia política e social do país e que, em outubro próximo, completará nove décadas. Os anos de 1920 já prenunciavam, em muitos setores da comunidade brasileira, uma vontade insopitável de mudanças e foram marcados por uma inquietação e um alarido com o fim de despertar o Brasil, o gigante adormecido pela inépcia e incúria da Primeira República, já precocemente velha.
Em cotejo com outros países estávamos estagnados. Não avançáramos no terreno das ciências, a educação era uma quimera e o analfabetismo batia no teto. A economia marcava passo no sobe e desce dos preços do café, nosso principal produto de exportação no mercado internacional, obrigando-nos a constantes queimas de divisas enfraquecendo o tesouro nacional. Nas artes, salvara-se - com ressalvas - o barulho feito pela Semana de Arte Moderna.
Seguíamos no ritmo lerdo, marcado desde muito pela oligarquia dos coronéis donos de terra, em prejuízo dos pobres e de uma classe média que, nos grandes centros urbanos, começara, porém, a dar sinais de inquietação. Os primeiros a se rebelarem contra este estado de coisas foram os militares, que vinham em desacordo com o governo de Artur Bernardes. Em julho de 1922, um grupo de tenentes dominou o Forte de Copacabana e depois de desigual, mas renhido combate, foram vencidos no episódio que ficou conhecido como Os Dezoito do Forte.
Os “tenentes” se reagrupariam em 1924 em torno de Luiz Carlos Prestes e Miguel Couto com o propósito de levantar o país, pregando a revolução, na tentativa de sublevar as populações marginalizadas pelas oligarquias e contra o governo. Encetaram heroica marcha que só terminaria em 1927, cobrindo 24 mil quilômetros de norte a sul do Brasil, a qual ficou conhecida lendariamente pelo nome de Coluna Prestes, em homenagem ao seu capitão comandante.
Seu feito seria enaltecido pelo poeta Pablo Neruda, mas, na prática e em termos revolucionários, não obteve o êxito pretendido, embora tenha permanecido como marcante estímulo político no espírito da classe média urbana. Os militares, leia-se o “tenentismo”, seguiram conspirando juntamente com as lideranças de jovens políticos dos partidos burgueses em ascensão, com forte protagonismo dos gaúchos.
No início de 1929, o presidente Washington Luís lançou a candidatura do paulista Júlio Prestes, do PRP, desrespeitando o pacto tradicional da política conhecida popularmente como “café com leite”. Era a vez dos mineiros, que entraram em reboliço. Desse tremendo mal estar resultou a criação da Aliança Liberal e o lançamento de Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda, para presidente da República, tendo como vice o presidente da Paraíba, João Pessoa. As eleições de 1º de março de 1930 deram a vitória ao candidato oficial, apesar do aparente favoritismo de Vargas.
O pleito foi vastamente acusado de fraudulento, com protestos que nada alcançaram de positivo nos tribunais. Instalou-se, então, um período de insatisfação e conspiração entre as jovens lideranças e os tenentistas, que se posicionaram, mais uma vez, a favor de uma revolução. Demorou, mas justo em 26 de julho daquele ano, ocorreu para surpresa de todos o assassinato de João Pessoa perpetrado pelo advogado João Duarte Dantas, desafeto político deste. A polícia deste varejara o escritório de Dantas, confiscando e publicando cartas íntimas por ele escritas à sua noiva, Anayde Beiriz, poeta e feminista.
O clima virou e forte comoção popular sobreveio reacendendo o estopim da oposição. Juarez Távora, membro proeminente da Coluna Prestes, fechou com os gaúchos de Vargas e junto com José Américo de Almeida – secretário de estado de João Pessoa – foi à garra levantando o Norte e o Nordeste. O féretro do presidente partiu de navio do porto de Cabedelo, fazendo paradas estratégicas, com direito a discursos em várias capitais, até chegar ao Rio de Janeiro, onde multidões o levaram ao sepultamento. O resumo da tragédia virou história com imagens retumbantes dos gaúchos amarrando seus cavalos no obelisco da Cinelândia. Seguiram-se a deposição de Washington Luís e a consequente ascensão de Getúlio à presidência. Este é, em linhas gerais, o “enredo” do meu filme O Homem de Areia, realizado há quarenta atrás.
*Vladimir Carvalho, Cineasta, escritor e Professor emérito da Universidade de Brasília