violência

Luiz Carlos Azedo: Como começa a bagunça

“As declarações do general Heleno nos trazem à memória as “quarteladas” que caracterizaram a indisciplina nos quartéis e a presença dos militares na política“

O que têm a ver as declarações contra o Congresso do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, e o tiro disparado por policiais militares grevistas, encapuzados, contra o senador Cid Gomes (PDT-CE), em Sobral? Aparentemente, nada; em sua essência, porém, tudo: a bagunça. O ex-governador cearense tentou negociar e, depois, conduzindo uma retroescavadeira, enfrentou os grevistas de forma exaltada, imprudente e voluntarista, sendo baleado no peito e na clavícula. O episódio, no entanto, também é uma demonstração da anarquia que começa a vicejar nas polícias militares, pois as greves são ilegais e estão sendo preparadas em outros estados.

As declarações do general são incompatíveis com o cargo que ocupa no governo e nos trazem à memória as “quarteladas” que caracterizaram a indisciplina nos quartéis e a presença dos militares na política durante o século passado, inclusive durante o regime militar, só encerradas no governo Ernesto Geisel, com a demissão do então ministro do Exército, general Sílvio Frota, do qual Augusto Heleno foi ajudante de ordens. Ainda que minimizadas pelo presidente Jair Bolsonaro — diga-se de passagem, o responsável pela sua divulgação —, as declarações afrontam um poder constituído, que está no pleno exercício de suas prerrogativas.

A fala do ministro foi transmitida ao vivo, via internet, pelo perfil do presidente Jair Bolsonaro em uma rede social, na terça-feira. No evento de hasteamento da bandeira em frente ao Palácio da Alvorada, Heleno conversava com o ministro da Economia, Paulo Guedes, e com o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. No diálogo, disse que o governo não pode “aceitar esses caras chantagearem a gente o tempo todo”. Ontem, em uma rede social, Heleno tentou minimizar as declarações, mas a emenda foi pior do que o soneto: argumentou que, na conversa com os ministros, estava expondo sua visão pessoal sobre “insaciáveis reivindicações de alguns parlamentares por fatias do Orçamento Impositivo”.

As declarações provocaram reações no Congresso, que discute os vetos do presidente Bolsonaro às regras que dão a deputados e senadores maior controle sobre o Orçamento da União. Manter ou derrubar os vetos presidenciais é prerrogativa do parlamento. O que todos os governos democráticos procuram fazer é articular uma base sólida, que garanta a aprovação do que interessa ao Executivo. O Palácio do Planalto, porém, não se empenha muito para garantir que isso aconteça.

Reações
A reação mais forte foi do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que fez duras críticas ao general: “Geralmente na vida, quando a gente vai ficando mais velho, a gente vai ganhando equilíbrio, experiência e paciência. O ministro, pelo jeito, está ficando mais velho e está falando como um jovem estudante no auge da sua idade, da sua juventude”, disse. Maia também ironizou: “Eu não ouvi da parte dele nenhum tipo de ataque ao parlamento quando a gente estava votando o aumento do salário dele como militar da reserva (…) Talvez ele estivesse melhor em um gabinete de rede social, tuitando, agredindo, como muitos fazem, como ele tem feito ao parlamento nos últimos meses”, concluiu o presidente da Câmara.

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), também se manifestou sobre a fala de Heleno. Em nota, disse que “nenhum ataque à democracia será tolerado pelo parlamento” e que “o momento, mais do que nunca, é de defesa da democracia, independência e harmonia dos poderes para trabalhar pelo país”. Contra todas as expectativas, às vésperas do carnaval, o esgarçamento das relações do Palácio do Planalto com o Congresso aumenta as incertezas em relação à economia.

Um comentário do presidente da República, em cerimônia oficial, sobre o ministro da Economia, Paulo Guedes, gerou ainda mais insegurança no mercado, pois deixou no ar que Guedes estaria demissionário do cargo e sofre uma fritura interna. Seu prazo de validade estaria próximo do fim. O que alimenta essas especulações é o vai-não-vai da economia, cujo crescimento está sendo medíocre, apesar dos juros baixos e da inflação controlada.

O IBC-BR, índice do Banco Central, aponta alta de 0,5% no último trimestre do ano e de 0,9% no ano de 2019. Em 2018, quando o PIB teve alta de 1,3%, o IBC-BR também subiu 1,3%: se o padrão se repetir, o que não é garantido, o PIB em 2019 terá tido pior desempenho que no biênio 2017-18. Nesse ritmo, só em 2022 voltaremos ao PIB de 2014. Levar oito anos para completar a recuperação de uma recessão em qualquer época e em qualquer lugar é um fracasso.

Essa situação tem ampliado os questionamentos à política de Guedes, um ultraliberal, por parte de setores do governo que têm formação desenvolvimentista, entre os quais, os militares. O próprio Bolsonaro é um recém-convertido ao liberalismo e vem adotando postura cada vez mais populista, como no caso dos combustíveis e da reforma administrativa, e não perde oportunidade de abrir novas frentes de conflito, como a queda de braço com os governadores.

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Henrique Herkenhoff: O gato de botas

Quase toda semana aparece a notícia de alguém morto por um tiro que errou o alvo. Torna-se particularmente simbólico quando se atinge uma criança, não apenas porque é mais comovente, mas também porque não é possível justificar de maneira alguma, então não cabem raciocínios escapatórios de nossa realidade.  Disparos de armas de fogo podem acertar quem não tinha nada a ver com a história, mas sempre havia um destinatário; vítimas de balas perdidas e criminosos mortos não são acontecimentos separáveis; então, se quisermos “brincar de faroeste”, devemos admitir também em que Alice nunca viveu no país das maravilhas.

Há duas questões bem diferentes envolvidas, e não podemos misturá-las: uma coisa são confrontos entre policiais e suspeitos, outra são disputas entre criminosos. No primeiro caso, pode haver um controle mais direto de nossos governantes, que podem escolher estratégias menos agressivas ou arriscadas para a população. Não que seja fácil, mas há um domínio direto por parte de quem toma as grandes decisões políticas. Já os duelos entre traficantes que disputam território ou acertam contas parecem – apenas parecem – fugir inteiramente à influência de nossas opções. No ES, felizmente, temos percorrido caminhos bem mais racionais e efetivos do que em outros estados e não é à toa que, embora muito longe do ideal, estamos melhorando sistematicamente nossa segurança.

De um lado, tem prevalecido o profissionalismo de nossas autoridades, e o número de vítimas da atividade policial, suspeitas ou não, vem sendo baixo. De outro, ainda que com muitas vozes contrárias, temos seguido de maneira consistente a máxima de que uma vida sempre vale... uma vida. Mais uma vez, é preciso chamar a atenção para a falsa oposição entre garantir direitos humanos ou dar tranquilidade à população. A única maneira de evitar que uma menininha seja apanhada numa troca de tiros entre traficantes é diminuir a quantidade desses combates urbanos. Ponto final. Ao mesmo tempo, se você não sabe aonde quer chegar, nenhum caminho serve.

Priorizar a preservação da vida, reprimir preventivamente o porte ilegal de armas, investigar a fundo os homicídios – cada um deles – e outras medidas semelhantes são o único caminho e têm claramente funcionado para os capixabas. Não há maneira de proteger só os “cidadãos de bem”; a violência aumenta ou diminui para todos, mocinhos e bandidos, xerifes e pistoleiros, crianças e adultos. E já que está dando certo, vamos seguir aquele velho ditado: não se mexe em time que está ganhando.

*Henrique Geaquinto Herkenhoff é professor do mestrado em segurança pública da UVV


‘Pessoas perderam a vergonha de defender tortura’, diz juiz na Política Democrática online

Na revista da FAP, magistrado critica legitimação da violência no governo de Bolsonaro

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“As pessoas perderam a vergonha de defender tortura”, afirma o juiz da Vara de Execução Penal de Joinville, a 180 quilômetros de Florianópolis, João Marcos Buch. Em reportagem especial da 15ª edição da revista Política Democrática online, ele critica a legitimação da violência por parte do governo de Jair Bolsonaro. Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), podem ser acessados gratuitamente no site da entidade.

» Acesse aqui a 15ª edição da revista Política Democrática online

Bolsonaro não se intimida, em nenhum momento, de fazer apologia à tortura. No ano passado, o presidente chegou a elogiar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra – reconhecido pela Justiça como torturador da ditadura militar –, chamando-o de “herói nacional”

Com o atual governo, de acordo com o magistrado, há um acirramento do discurso de ódio com escolhas pontuais e especificas de quem são os alvos. “São as minorias, além de pessoas presas e quem trabalha com essas pessoas a fim de garantir dignidade”, diz Buch. “No ano de 2019, essa situação ficou mais acentuada porque tive experiências concretas”, conta ele, que é conhecido pelo seu perfil humanista.

Buch não questiona a legitimidade da eleição de Bolsonaro e diz que atos governamentais devem ser respeitados. Segundo ele, os cidadãos que discordarem do governo têm instrumentos democráticos para resolverem as discordâncias. “No entanto, percebo, no governo Bolsonaro, um discurso absolutamente consciente de escolha de pessoas para as quais quer voltar o ódio da sociedade”, afirma.

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Luiz Carlos Azedo: Humanos como nós

“Os povos isolados têm o direito de decidir se preferem viver em isolamento ou não. Para exercer esse direito, porém, precisam de tempo e espaço”

Considerado o pai da antropologia estruturalista, o franco-belga Claude Lévi-Strauss (1908 — 2009), entre 1935 e 1939, dedicou-se a estudar os índios do Brasil Central, base para a publicação de sua tese As estruturas elementares do parentesco, em 1949. Ele rompeu com a ideia de que os índios são apenas índios, porque não concordava com a divisão entre civilizados e selvagens. Lévi-Strauss foi professor da recém-criada Universidade de São Paulo, com sua esposa Dinah Lévi-Strauss, Fernand Braudel, Jean Maugüé e Pierre Monbeig, e realizou pesquisas de campo em Goiás, Mato Grosso e Paraná, que também resultaram no livro Tristes Trópicos (1955). Procurou decifrar as relações entre o ser humano, a natureza e a cultura.

Para o antropólogo, o ser humano se diferencia dos outros animais devido ao uso de símbolos para se comunicar, não importa as particularidades de cada grupo humano. Seu objetivo não era estudar uma sociedade específica, mas identificar o que há nela de universal; por exemplo, sistemas de parentesco e restrições matrimoniais. Graças aos índios, por exemplo, sua compreensão do incesto ultrapassou as explicações biológicas ou morais. A proibição de manter relações sexuais com certas mulheres (como a mãe ou a irmã) e a permissão para tê-las com outras teceram as alianças fundadoras da vida social. O sistema de parentesco é o meio pelo qual se cumpre a transição entre a natureza e a cultura. Explica, por exemplo, como se formou a economia do sertão no Brasil colonial, a partir da miscigenação e do escambo entre os tupis e os portugueses.

Na monumental Mitológicas, de 1960, com mais de 2 mil páginas, Lévi-Straus analisou 813 mitos originários de povos do continente americano, desde os bororos, os jês e os tupi-cavaíbas do Brasil até os hopi, os pueblo, os mohawk e os kwakiutl da América do Norte. No primeiro volume, intitulado O Cru e o Cozido, comparou a análise conjunta dos mitos americanos à audição de uma sinfonia. Os músicos, porém, estão separados no tempo e no espaço, e cada um executa seu fragmento sem saber a partitura completa. Só é capaz de ouvir a música inteira quem estiver a distância. O concerto, segundo Lévi-Strauss, iniciou-se há milênios e hoje poucos músicos remanescentes continuam a tocar na orquestra.

Isolamento
No Maranhão, Karapiru, um indígena Awá, é um dos remanescentes da orquestra. Sobreviveu a um ataque de homens armados e, durante dez anos, morou sozinho, se escondendo na floresta. Agora vive com outros Awá, que são caçadores-coletores e nômades em constante movimento. Em Rondônia, outro índio solitário talvez seja o único sobrevivente de uma tribo massacrada por grileiros que ocuparam a região de Tanuro. Vive em fuga e é conhecido como “homem do buraco”, porque escava grandes covas para se esconder e guardar seus alimentos. Desde 1987, a Fundação Nacional do Índio (Funai) tem um departamento dedicado aos povos indígenas isolados, cuja política é fazer contato somente nos casos em que sua sobrevivência está em risco iminente. Em vez disso, a Funai busca demarcar e proteger suas terras de invasores.

Os povos isolados têm o direito de decidir se preferem viver em isolamento ou não. Para exercer esse direito, porém, precisam de tempo e espaço. É o caso dos Piripkura, ou o “povo borboleta”, como são chamados pelos “Gaviões”, com quem interagem. Eles falam Tupi-Kawahib, o mesmo tronco linguístico de vários outros povos do Brasil. Os Piripkura eram cerca de 20 pessoas quando a Funai fez o primeiro contato no final da década de 1980. Depois, voltaram para a floresta, e mantêm relações esporádicas com os sertanistas. Somente sobreviverão se suas terras forem protegidas. Há centenas de grupos isolados na Amazônia.

Agora, o presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier, pretende nomear o antropólogo Ricardo Lopes Dias para a Coordenadoria Geral de Índios Isolados e Recém Contatados. Formado pela Faculdade Teológica Sul Americana, atuou por mais de dez anos para a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), organização que tem por objetivo evangelizar os indígenas. Lopes Dias terá a missão de tornar o índio cada vez mais “um ser humano igual a nós”, para usar a expressão do presidente Jair Bolsonaro.

Voltemos à antropologia, que explica muitas coisas. Papa do estudo das religiões, o escocês Victor Turner (1920 — 1983) também bebeu das águas das sociedades primitivas. Tendo por base os Lunda-Ndembus, na região Noroeste da antiga Rodésia do Norte, atual Zâmbia, entre 1950 e 1954, viveu na aldeia e estudou o papel dos ritos, dos símbolos e das metáforas nos dramas sociais. Nesse período, de tempos em tempos, eclodiram conflitos, nos quais Turner identificou um padrão universal:

Primeiro, uma crise irrompia no cotidiano, expondo as tensões existentes; depois, os envolvidos acionavam suas redes de parentela, relações de vizinhança e amizade, e a crise se ampliava; a seguir, surgia a turma do deixa disso, que buscava a conciliação e soluções em rituais coletivos; finalmente, havia um rearranjo e as posições e relações eram redefinidas, ou não se chegava a um acordo e a cisão se tornava inevitável, seguindo a clivagem de parentesco e suas alianças, o que daria origem a uma nova aldeia. Qualquer semelhança com o que também acontece nas religiões e na política não é mera coincidência.

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Revista Política Democrática || Lilia Lustosa: Coringa — o grito liberado

Minha curiosidade em ver Coringa foi mais forte que minha bronca. Me rendi e digo: valeu cada segundo. Filme é duro de ver, não pelo excesso de violência física, mas pelo excesso de realidade impresso na tela, avalia Lilia Lustosa

 Logo que soube que ia sair o Coringa, pensei: mais um blockbuster de heróis! No caso, de anti-herói. Superprodução, efeitos especiais, muito barulho, cortes rápidos, muita ação, pouco tempo para se analisar qualquer coisa, puro cinema de entretenimento. E logo imaginei que isso fosse uma reação da DC Films, que anda perdendo terreno para a Marvel Studios nos últimos anos, com seus Avengers e Panteras Negras da vida.

Confesso que não estava muito animada para vê-lo, até que soube da repercussão que o filme estava tendo nos Estados Unidos, onde chegou mesmo a ser entendido como uma mensagem subliminar contra o governo Trump. E, ainda, do texto que Michael Moore publicou defendendo o filme e ressaltando o valor de sua mensagem em tempos atuais, época sombria, em que tantos medos povoam nossos pensamentos.

Me rendi então à famosa peer pressure e fui assistir ao Coringa, mesmo ciente de que estava em pleno período de “invasão blockbuster”. Ou seja, um único filme hollywoodiano ocupando praticamente todas as salas de cinema da cidade, deixando os piores horários para produções locais ou estrangeiras menores. Mas minha curiosidade foi mais forte que minha bronca. Me rendi e digo: valeu cada segundo!

O filme de Todd Phillips é um filmaço, daqueles que você sai e fica por horas discutindo, refletindo. Um filme, sem dúvida, duro de ver, não pelo excesso de violência física, mas pelo excesso de realidade impresso na tela. Excesso de verdade atirada na nossa cara. Excesso quase insuportável quando entendemos que nós, que estamos ali sentados confortavelmente naquela sala de cinema, somos a elite ali representada. Aquela elite que ataca, que chuta, que discrimina e que, acima de tudo, ignora o que está acontecendo. Elite que desvia o olhar ao passar ao lado de um mendigo dormindo na rua, que fecha rapidamente o vidro do carro quando vê chegar aquele velhinho ou deficiente físico para pedir dinheiro outra vez. Mea culpa.

Obviamente, Coringa é uma grande alegoria de nossa sociedade e, por isso mesmo, se permite trabalhar com excessos e metáforas. E isso assusta! Mas são justamente essas extrapolações ou caricaturas de nós mesmos que nos fazem entender aquela tela como um espelho do que estamos nos tornando ou, quem sabe até, do que já somos.

Ao acompanharmos o passo a passo da construção do “monstro” em que vai se convertendo Arthur Fleck (magistralmente interpretado por Joaquin Phoenix), enxergamos muitos conhecidos nossos, quer seja na pele do próprio Arthur, quer seja na pele dos que estão em seu entorno, ajudando a construir a “criatura”. Enxergamos, no início, um homem com um sonho: vencer na vida como comediante. Uma pessoa que, apesar das adversidades sociais (pobreza) e psicológicas (doença mental em que não controla o riso), tenta alcançar licitamente seu sonho. Vemos, então, ao longo do filme, vários gestos de bondade (como o cuidado com a mãe velha e doente) e até mesmo de ingenuidade, transmitidos por aquele corpo frágil que não se faz compreender nem pela assistente social que deveria ajudá-lo. No entanto, o descaso e a ignorância dos que detêm o poder (políticos, empresários, imprensa, artistas, assistentes sociais, “meninos de Wall Street” etc.) vão minando a conta-gotas a bondade que resta naquele corpo solitário e sofrido.

Não à toa, o Coringa de Phillips é cheio de referências implícitas e explícitas ao grande Charles Chaplin, que sabia tão bem dosar o riso e a dor. Quem melhor, na história do cinema, soube e teve coragem de levar às telas comédias de aparência ingênua e que eram, na verdade, grandes críticas à sociedade moderna?

Não, definitivamente Coringa não é uma apologia à violência, como muitos clamam por aí. Ao contrário. O triunfo do Coringa, aplaudido em seu ato final, não é pelos assassinatos que cometeu, muito menos pelo monstro em que se transformou. Sua grande vitória – e por isso as palmas –, é ter-se feito ouvir e, assim, ter liberado o grito de milhões de “palhaços” que vivem na penumbra, escondidos atrás de máscaras que lhes roubam a identidade. É de ter dado voz aos “invisíveis”. É de ter despertado uma camada da sociedade que vinha aguentando as pequenas violências do dia a dia sem nada fazer.

O filme de Todd Phillips me fez pensar na tela O Grito, de Edvard Munch. É isso: Coringa é a liberação daquele grito sufocado, que tenta escapar de dentro de um ser deformado pela sociedade, de uma figura contorcida de dor e sofrimento. É a materialização daquele grito, do pedido de socorro de nossa gente!

 


Revista Política Democrática || Alberto Aggio: A história volta a pulsar no Chile

Chilenos colocaram para fora toda a raiva frente ao mal-estar resultante do “modelo econômico”, que ordena o país desde os tempos da ditadura do Pinochet, durante as manifestações de outubro

Em outubro, o Chile explodiu. Por vários dias, milhares de pessoas saíram às ruas em marchas de protesto que invariavelmente se tornaram violentas. Estavam no foco dos manifestantes o Metrô de Santiago, as empresas de energia, os bancos controladores das famosas AFPs, que “garantem” a aposentadoria da maior parte dos trabalhadores chilenos, dentre outras. O aumento das passagens do Metrô, a partir de determinado horário, foi o estopim da grande explosão. Mas, como no Brasil de 2013, os chilenos também gritaram “não é só pelos 30 centavos”. E, de fato, não era. Nesse “octubre violento y caliente”, os chilenos colocaram para fora toda a raiva frente ao mal-estar resultante do “modelo econômico”, que ordena o país desde os tempos da ditadura do Pinochet.

O governo de Sebastian Piñera reagiu às manifestações impondo “estado de emergência” e “toque de recolher”, além de convocar o Exército para enfrentar os manifestantes. Para Piñera, o Chile estava “em guerra contra inimigos poderosos”. O resultado de vários dias de confrontos entre forças militares e manifestantes foram mais de 20 mortos, milhares de feridos e centenas de detidos. Olhando o conjunto dos acontecimentos, sua magnitude, os atos violentos dos manifestantes, que chegaram a destruir 70% do Metrô de Santiago, e a violenta repressão, pode-se dizer que não havia ocorrido nada similar em tempos de democracia e que as causas dessa explosão são realmente mais profundas.

Como no Brasil de 2013, a repressão fez com que os protestos se amplificassem até chegar à manifestação de 25 de outubro, que reuniu mais de 1,2 milhão de pessoas no centro de Santiago. Foi um sinal eloquente de que a estratégia do governo havia naufragado. Piñera recuou, propôs algumas reformas paliativas, procedeu a mudanças parciais em seu gabinete e, por fim, suspendeu o “estado de emergência”.

Mesmo assim, a tensão não se dissipou por completo. O mal-estar dos chilenos parece que vai demorar a passar, e muitos falam de um “novo despertar” ou mesmo de uma “nova oportunidade”, para alterar a vida da sociedade em seu conjunto. Há efetivamente um sentimento de esperança no ar, esperança de mudança, e uma confiança difusa de que o que se passou nesses dias foi efetivamente histórico.

Analistas e boa parte da opinião pública doméstica e internacional se surpreenderam com os acontecimentos chilenos. Afinal, o Chile está longe de ser um país desorganizado economicamente, vive anos de crescimento significativo e de melhoria de diversos índices que qualificam sua vida social. O Chile está integrado à globalização, o que o torna um dos países mais cosmopolitas do continente. Enfim, números favoráveis não lhe faltam, inclusive no que toca à renda per capita da região, na qual se sobressai com grande distância diante de outros países. Mas então que pasó?

Tanta surpresa talvez venha da crença de que o Chile sempre foi visto nas ciências sociais e no jornalismo, por chilenos e estrangeiros, como um país “modelar”, por seu pioneirismo ou por sua especificidade frente a outros países do continente. Foi assim que, no passado, se falou da “grande democracia” chilena durante a maior parte do século XX, ao passo que os outros países latino-americanos viviam as desventuras do “populismo”.

Mais tarde foi possível ver que a democracia chilena não era tão inclusiva como se imaginava. O Chile aristocratizante sempre foi uma densa sombra sobre a democracia política que lhe dava fama. Foi apenas em 1958, depois de reformas eleitorais importantes, que o grau de participação aumentou. Entretanto, em pouco mais de 15 anos, o golpe militar de 1973 colocaria por terra aquela experiência de ampliação da democracia chilena. Ela ruiria diante de uma polarização irredutível que castigaria o país por outros longos 15 anos.

Contrapondo-se à imagem da “grande democracia”, foi surpreendente notar que a ditadura de Pinochet encontrou apoio significativo durante sua vigência. Surpreendeu porque a “refundação” da sociedade chilena, sustentada por um projeto econômico neoliberal, aparecia em combinação perfeita com a ditadura de Pinochet que, baseado em sua estrita autoridade, funcionou sem ordem constitucional até o plebiscito que daria ao país a Constituição de 1980, ainda vigente. Foi durante esse regime, quase dois anos depois do golpe, que começaram as privatizações da educação, da saúde e da previdência, acompanhadas por uma abertura integral da economia. O único setor que se manteve estatizado foi a exploração do cobre, principal riqueza do país. Nascia aí o “modelo chileno dos Chicago boys”, outra imagem modelar que iria perdurar no tempo, no país e fora dele.

Uma revisão desse período não tardou a ser feita. O período Pinochet não pode, em absoluto, ser visto como um momento tranquilo e feliz do país. Nele emergiram diversas crises sociais graves, em especial quando da implantação do novo modelo. Com ele vieram a quebra de empresas e o desemprego massivo. O que provocou imagens de desolação, com jovens “pateando piedras” pelas cidades mais importantes do país, algo imortalizado na canção da banda de rock Los Prisioneros, no início dos anos 80. Foi também o período do chamado “segundo exilio” chileno, um exilio econômico, já que o primeiro havia sido político, nos meses e anos que se seguiram ao golpe de 1973.

A manutenção da estatização do cobre manchava a natureza do modelo que tinha como centro o afastamento integral do Estado da vida econômica. A persistência da repressão política do regime comprometia, de alguma forma, sua fachada “liberal” perante o mundo. Para o sociólogo chileno Eugenio Tironi, o liberalismo realmente existente no Chile guardava a mesma relação de antagonismo com a liberdade que o socialismo estatizado da ex-URSS.

O fato é que o modelo neoliberal chileno deixava muitas zonas cinzentas e muitos silêncios para trás. A derrota de Pinochet no plebiscito de 1988 recolocaria as coisas em novos patamares. A partir da vitória da Concertación (uma coalizão de centro-esquerda) na primeira eleição presidencial pós-Pinochet, governos democratizadores se sucederiam por mais 20 anos.

Sem confrontar o modelo privatizador que havia sido implantado, a Concertación acabou por consagrar o modelo neoliberal. O êxito dos governos concertacionistas, com a integração do país à globalização, deu o suporte para uma nova etapa de sucesso relativo da economia, melhorias nos aspectos sociais, avanços na educação, na inovação e na competitividade do país. Contudo, o êxito econômico não alterou a sensação de que se vivia num “estado de mal-estar social”, com salários e pensões ao nível latino-americano e custos de bens e serviços ao nível dos europeus ou norte-americanos.

A notável modernização do país, atestada em números, como notável também é a sofisticação e até o luxo das estações do Metrô de Santiago em bairros pobres – quase todas destruídas, total ou parcialmente – compõem o cenário de um país dividido. Sinais materiais de modernização em contraposição às carências domesticas cotidianas, às expectativas de futuro dos jovens em situação de ameaça, com a recorrente elevação dos custos de educação, além do nível das pensões dos mais velhos frente ao que trabalharam e contribuíram durante toda a vida, tudo isso formou um “caldo de cultura” de raiva diante da flagrante desigualdade e de medo da regressão ao status quo anterior, vivenciado nos anos de crise, quando se implantou o modelo.

O Chile que explodiu nada mais expressa do que a reação a décadas de “estado de mal-estar social”. Os termos em que se deu tal explosão, com sua violência costumeira, agora triplicada, confirma o paradoxo de uma democracia ainda sustentada numa ordem político-jurídica (a da Constituição de 1980) que carece de legitimidade.

Os “modelos” que foram cultivados sobre o Chile em sua trajetória histórica estão agora todos em xeque, e, nas ruas, o povo declara que quer vê-los superados. Ao que parece, não haverá volta atrás, a história voltou a pulsar no Chile e está aberta!

 


‘Bacurau, muitos amaram, outros odiaram’, afirma Martin Cezar Feijó

Historiador faz comentário do filme em artigo de sua autoria publicado na nova edição da revista Política Democrática online

“Bacurau (Brasil, 2019), dos brasileiros Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é um filme polêmico, gerou debates polarizados, muitos amaram, outros odiaram, nem sempre por razões cinematográficas, em grande parte por razões políticas e ideológicas, mas, antes de tudo, é um filme. E bom. Cumpre o que se propõe: contar uma história atual, mesmo que anuncie se passar em um futuro próximo”. O comentário sobre o filme é do historiador Martin Cezar Feijó, em artigo de sua autoria publicado na nova edição da revista Política Democrática online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), vinculada ao Cidadania, em Brasília.

» Acesse aqui a 12ª edição da revista Política Democrática online

Feijó, que também é doutor em comunicação pela USP e professor de comunicação comparada na FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado), ressalta que o objetivo do seu texto não é fazer uma crítica cinematográfica, mas um comentário cultural. “O filme estreou mundialmente no Festival de Cannes deste ano e levou o Prêmio do Júri. O que não é pouco”, lembra.

O autor ressalta que o filme também ganhou como melhor filme no Festival de Munique. E deve participar ainda em muitas competições internacionais.  “Está, portanto, fazendo uma carreira internacional vitoriosa, com boas avaliações em Paris ou Nova York, por exemplo. E, o mais importante, atraindo um grande público. Um filme que se assiste com grande atenção”, afirma.

Com um grande elenco. E que conta uma história original, da ameaça a uma comunidade por um grupo de atiradores estrangeiros, dotados de aparelhos sofisticados como drones e se comunicando em inglês através de satélites. “A população da cidade também, apesar de pobre, é bem atualizada, reconhecendo tecnologias e até reclamando quando não recebe sinais para seus aparelhos de telefones celulares”, observa.

Os invasores, segundo o autor, apesar de serem em sua maioria constituídos de norte-americanos, têm entre eles dois brasileiros da região Sudeste, revelando no decorrer do filme um divertimento entre pessoas que querem descarregar frustrações alvejando uma população pobre impunemente. Até com a ajuda de líderes políticos regionais.

Integram o conselho editorial da revista Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho. A direção da revista é de André Amado.

 

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Pedro Auarek: Política Pública de Segurança deve ser pautada no respeito à vida das pessoas

Até quando iremos assistir a banalização da vida? A morte da criança Agatha, de apenas oito anos de idade, infelizmente é apenas mais uma para estatística de casos semelhantes a este. Somente na cidade do Rio de Janeiro é o quinto caso semelhante neste ano.

Em Belo Horizonte, na última semana moradores do Aglomerado da Serra, publicaram em suas redes sociais vídeos amedontrados, com uma ação da Polícia Militar onde através de helicópteros policiais atiravam em direção à comunidade.

O governador e prefeito do Rio de Janeiro devem explicações. Cabe ao Ministério Público apurar os fatos.

Não podemos mais tolerar uma política que estimule o extermínio da população, principalmente de pessoas pobres, negras e moradoras de favela, em defesa de um fracassado e mentiroso discurso de combate e guerra às drogas.

Política Pública de Segurança deve ser pautada no respeito à vida das pessoas.

Precisamos de mudar nossa maneira de pensar as políticas públicas de segurança das cidades. Cito aqui algumas alternativas que acredito possam contribuir para uma melhor qualidade e são necessárias de refletir:

1. Investir em tecnologia. A implantação de centros de inteligência integrados das polícias é fundamental;

2. O Ministério Público acompanhar de perto e investigar os casos de homicídios;

3. Fortalecimento do controle de armas e munições;

4. Revisão da política criminal e penitenciária;

5. Discutir a política de drogas.

Precisamos mudar!

Manifesto aqui minha solidariedade aos familiares de Ágata, dos policiais que também morreram na operação, bem como de todas as pessoas que já foram atingidas diretamente ou indiretamente em situações lamentáveis como essa.

* Pedro Auarek é Relações Públicas, conselheiro tutelar de BH, membro do Movimento Acredito de MG, aluno do RenovaBr Cidades 2019 e dirigente do Cidadania 23.


Nas entrelinhas: Sarcófago do passado

“Quando um governo começa a promover rupturas com a sociedade civil e impor diretrizes verticais às políticas públicas, como vem ocorrendo, gera tensões sociais e políticas desnecessárias”

Das muitas faces do fascismo como regime político, a que determina a essência de sua natureza é o terrorismo de Estado. A existência de um partido de massas organizado e militarizado, com um braço armado, que foi a característica principal dos partidos de Benito Mussolini, na Itália, e de Adolf Hitler, na Alemanha, não seria suficiente para a caracterização do regime se não houvesse implementado, de forma sistemática, o terrorismo de Estado.

A supressão de liberdades e garantias individuais e a perseguição sistemática de oposicionistas são suficientes para caracterizar um regime autoritário, seja de direita, seja de esquerda, como na Hungria e na Venezuela, respectivamente. O fascismo aberto se instala, porém, quando a repressão policial é acionada de forma sistemática contra a população em geral, a pretexto de manter a ordem pública, e a perseguição seletiva aos oposicionistas se estabelece com objetivo de eliminar fisicamente os adversários, por meio de prisões, sequestros, torturas e assassinatos.

Foi o que aconteceu, por exemplo, nos regimes militares que se instalaram na América Latina nas décadas de 1950 (Guatemala e Paraguai), 1960 (Argentina, Brasil, Bolívia, República Dominicana, Nicarágua e Peru) e 1970 (Uruguai e Chile), com forte apoio dos Estados Unidos, em razão da guerra fria com a União Soviética e demais países da então chamada Cortina de Ferro. A maioria desses países transitou para a democracia e se manteve na órbita do Ocidente, a partir do governo de Jimmy Carter, o presidente norte-americano que adotou a defesa dos direitos humanos como vértice de sua política externa, no fim dos anos 1970.

No Brasil, o processo de democratização foi uma longa transição, iniciada nessa época, com a “anistia geral, ampla e recíproca” aprovada pelo Congresso em 1979, depois de muita negociação entre os militares e a oposição. A redemocratização do país foi concluída em 1985, quando os militares deixaram o poder, com a eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral e a convocação de uma Constituinte pelo presidente José Sarney, o vice que assumiu devido à morte do presidente eleito.

A chave desse processo foi, de um lado, a volta dos exilados e a libertação dos presos políticos; de outro, a impunidade dos torturadores e assassinos que, nos porões do regime militar, fizeram o serviço sujo para os generais que ocuparam o poder. Esse é nó górdio da democracia brasileira, assunto pacificado entre as Forças Armadas, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) pela Constituição de 1988. Todas as tentativas de rever a Lei da Anistia fracassaram, inclusive nos governos Lula e Dilma; agora, com sinal trocado, para o bem da democracia, não deve ser diferente.

Fantasmas

No lamentável episódio dos comentários do presidente da República, Jair Bolsonaro, sobre o sequestro e o assassinato do líder estudantil Fernando Santa Cruz, pai do presidente da OAB, Fernando Santa Cruz, o mais grave não é o desrespeito para com a família do desaparecido e a insensibilidade do presidente Bolsonaro diante de um tema tão delicado (a perda de um parente próximo), é a defesa que fez do terrorismo de Estado praticado durante o regime militar, na contramão de tudo o que já foi feito para cicatrizar essa ferida purulenta. Revelou um viés autoritário que confronta a Constituição de 1988, suas instituições e compromisso claro com os direitos humanos. A rigor, confrontou o decoro e a responsabilidade do próprio cargo que exerce por vontade popular: a Presidência da República.

Não cabe ao presidente Bolsonaro, no âmbito das suas atribuições, fazer a exegese da Lei da Anistia, muito menos da Constituição que jurou cumprir e defender ao tomar posse, assunto sobre o qual quem se pronuncia é o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Sua insistência em revisitar, no sarcófago da ditadura, os fantasmas de um passado que não deve ser resgatado como modelo político, embora jamais deva ser esquecido, revela uma personalidade que se coloca acima do Estado democrático de direito, confundindo as próprias idiossincrasias com as prerrogativas do cargo.

Grosso modo, o atual governo tem características bonapartistas, por se colocar acima das classes sociais e se sustentar no “partido das armas”. Mas foi eleito num processo democrático, legitimamente, e a oposição precisa aprender a conviver com isso, sem abrir mão do direito ao dissenso e de lutar pelo poder. Entretanto, o presidente Bolsonaro também precisa aprender a respeitar as regras do jogo democrático e valorizar mais os consensos construídos ao longo de décadas para garantir a coesão da sociedade.

Quando um governo começa a promover rupturas com a sociedade civil e impor diretrizes verticais às políticas públicas, como vem ocorrendo em diversas áreas, gera tensões sociais e políticas desnecessárias, que podem dificultar e até agravar a solução dos verdadeiros problemas do país.

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Luiz Carlos Azedo: A inércia do erro

“O presidente da República toma decisões na base do “achismo”, desconsiderando indicadores científicos”

Há casos famosos de líderes que preferiram matar o mensageiro a reconhecer os próprios erros. Em 335 a.C., o imperador persa Dario III, em guerra com Alexandre Magno, da Macedônia, ao ser alertado sobre os possíveis erros de sua estratégia pelo mercenário grego Charidemus, resolveu estrangulá-lo num ataque de fúria. Acabou derrotado. Também é famoso o caso do almirante inglês Clowdisley Shovell, que havia derrotado os franceses no Mediterrâneo e naufragou a sudoeste da Inglaterra, em meio a um nevoeiro, porque não quis reconhecer que seus cálculos de navegação estavam errados, perdendo cinco navios e dois mil homens. Preferiu enforcar o subalterno.

É mais ou menos o que está fazendo o presidente Jair Bolsonaro com o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Magnus Osório Galvão, a quem acusou de estar “a serviço de alguma ONG” por divulgar dados que mostram o grande aumento do desmatamento na Amazônia. Funcionário de carreira, com uma longa folha de serviços prestados, o pesquisador rebateu as acusações e reafirmou a veracidade dos dados sobre desmatamento divulgados pelo Inpe, cuja política de transparência permite o acesso completo aos dados e adota metodologia reconhecida internacionalmente.

De acordo com números divulgados pelo Inpe no início deste mês, o desmatamento na Amazônia Legal brasileira atingiu 920,4 km² em junho, um aumento de 88% em comparação com o mesmo período do ano passado. Áreas da Amazônia que deveriam ter “desmatamento zero” perderam território equivalente a seis cidades de São Paulo em três décadas. Fora das áreas protegidas, a Amazônia perdeu 39,8 milhões de hectares em 30 anos, o que representa 19% sobre toda a floresta natural não demarcada que existia em 1985, uma perda equivalente a 262 vezes a área do município de São Paulo. Nas áreas protegidas, a perda acumulada foi de 0,5%. É óbvio que a nova política para o meio ambiente já é um fracasso.

Houve protestos de instituições como a Academia Brasileira de Ciência e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “Críticas sem fundamento a uma instituição científica, que atua há cerca de 60 anos e com amplo reconhecimento no país e no exterior, são ofensivas, inaceitáveis e lesivas ao conhecimento científico”, diz a nota da SBPC. Segundo a entidade, dados podem ser questionados em bases científicas e não por motivações políticas e ideológicas.

Bolsonaro argumenta que, antes de divulgar dados sobre desmatamento no Brasil, o diretor do Inpe deveria, no mínimo, procurar o ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, ao qual está subordinado, para informar antecipadamente o conteúdo que seria divulgado. Afirmou que está acostumado com “hierarquia e disciplina” e questionou a divulgação de dados sem seu prévio conhecimento. Segundo Bolsonaro, pode haver algum equívoco na divulgação das informações ambientais sem um crivo prévio do governo, sob o risco de “um enorme estrago para o Brasil”.

Conselhos

Políticas públicas e indicadores sobre a realidade brasileira, porém, devem ter transparência e serem acessíveis ao público, pois são elementos fundamentais para análises e pesquisas. O problema é outro. O presidente da República toma decisões na base do “achismo”, desconsiderando indicadores científicos, sem levar em conta que a inércia do erro num país de dimensões continentais como o Brasil, que tem uma escala muito grande, pode ser muito desastrosa.

É o que está acontecendo com o desmatamento, em razão do estímulo ao avanço do agronegócio em áreas de proteção ambiental e das medidas adotadas contra a política de fiscalização do Ibama. Os números divulgados pelo Inpe mostram o tamanho do estrago que o governo agora quer varrer para debaixo do tapete.

Na verdade, no Palácio do Planalto, enquanto sobram decisões intempestivas, falta planejamento. O mesmo fenômeno pode vir a ocorrer no trânsito, por exemplo, com as mudanças propostas em relação às multas — não vamos nem considerar as cadeirinhas de bebê e os cintos de segurança. O endurecimento das regras não ocorreu por acaso, mas em razão do impacto dos acidentes de trânsito nos indicadores de mortes violentas e nos custos do sistema de saúde pública.

O desmantelamento dos conselhos que subsidiavam as políticas públicas, a pretexto de enxugá-los e dar mais agilidade às decisões do governo, tem o objetivo de eliminar o contraditório na tomada de decisões. Entretanto, tende a aumentar a margem de erro e gerar contenciosos desnecessários com a sociedade, o que pode ter efeito exatamente ao contrário do objetivo de alcançar mais eficiência.

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Luiz Carlos Azedo: Política, sexo e religião

“Não há força no mundo capaz de mudar a realidade das famílias policêntricas e multiétnicas, nem a complexidade das identidades de gênero no estilo de vida contemporâneo”

Clássico da sociologia brasileira, Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, é uma obra polêmica desde sua primeira edição, em 1933, pois desnudou aspectos da formação da sociedade que a elite da época se recusava a considerar. Teve mais ou menos o mesmo impacto de Os Sertões, de Euclides da Cunha, lançado em 1902, a maior e mais importante reportagem já escrita no Brasil. Seu autor descreveu com riqueza de detalhes as características do sertão nordestino e de seus habitantes, além de narrar, como testemunha ocular, a Guerra de Canudos, no interior da Bahia, uma tragédia nacional.

Nas palavras de Antônio Cândido, o lançamento de Casa-Grande & Senzala “foi um verdadeiro terremoto”. À época, houve mais críticas à direita do que à esquerda; com o passar do tempo, porém, Freyre passou a ser atacado por seu conservadorismo. Essa é uma interpretação errônea da obra, por desconsiderar o papel radical que desempenhou para desmistificar preconceitos e ultrapassar valores desconectados da nossa realidade: “É uma obra surpreendente e esclarecedora sobre a formação do povo brasileiro — com todas as qualidades e seus vícios”, avalia Cândido. Consagrou “a importância do indígena — e principalmente do negro — no desenvolvimento racial e cultural do Brasil, que é um dos mais complexos do mundo.”

O presidente Jair Bolsonaro talvez tenha lido Os Sertões, de Euclides da Cunha, porque a Guerra de Canudos faz parte dos currículos das academias militares. Esse foi o livro de cabeceira dos jovens oficiais que protagonizaram o movimento tenentista, servindo de referência para toda a movimentação tática da Coluna Prestes (1924-1927), que percorreu 25 mil quilômetros pelo interior do país. Certamente, porém, não leu Gilberto Freyre, obra seminal sobre a formação da cultura brasileira, traduzida em diversos países. Se o fizesse, talvez conhecesse melhor e respeitasse mais os “paraíbas”, como são chamados os nordestinos por aquela parcela dos cariocas que se acha melhor do que os outros. Ser paraibano é naturalidade, não é pejorativo.

Mas voltemos ao leito antropológico do sociólogo pernambucano. A ideia de que o livro defende a existência de uma “democracia racial” no Brasil, disseminada pelos críticos de Freyre, é reducionista. Casa-Grande &Senzala exalta a formação de nosso povo, mas não esconde as mazelas de uma sociedade patriarcal, ignorante e violenta. A origem dessa crítica é o fato de que o autor destaca a especificidade de nossa escravidão, menos segregacionista do que a espanhola e a inglesa. O colonizador português não era um fanático religioso católico como o espanhol nem um racista puritano como os protestantes ingleses.

Família unicelular
Tanto que Casa-Grande & Senzala escandalizou o país por causa dos capítulos sobre a sexualidade do brasileiro. Entretanto, não foram os indígenas nem os negros africanos que criaram a fama de promíscuo sexual do brasileiro. Foi o sistema escravocrata e patriarcal da colonização portuguesa, que serviu para criar um ambiente de precocidade e permissividade sexuais. Tanto os índios quanto os negros eram povos que viam o sexo com naturalidade, sem a malícia sensual dos europeus.

Freyre lutou como um gigante contra o racismo “científico”, que atribuía aos indígenas e ao africano as origens de nossas mazelas sociais. Há muito mais o que dizer sobre a sua obra, mas o que a torna mais atual é a agenda de costumes do presidente Jair Bolsonaro, que reproduz, em muitos aspectos, características atrasadas e perversas do patriarcado brasileiro, que estão na raiz da violência, da ignorância e do preconceito contra os índios, os negros e as mulheres.

Bolsonaro estabeleceu com eixo de sua atuação a defesa da fé, da ordem e da família. Há um forte ingrediente eleitoral nessa estratégia, mas não é somente isso. Há convicções de natureza “terrivelmente” religiosas e ideológicas, que não têm correspondência com o modo de vida e o imaginário da maioria da sociedade brasileira, com os nossos costumes e tradições, pautados pelo sincretismo e pela miscigenação. No Brasil, tudo é mitigado e misturado, não existe pureza absoluta. Além disso, não se pode fazer a roda da História andar para trás. A família unicelular patriarcal, por exemplo, é minoritária, nem o clã presidencial manteve esse padrão; não há força no mundo capaz de mudar a realidade das famílias policêntricas e multiétnicas, nem a complexidade das identidades de gênero no estilo de vida contemporâneo.

Um dos equívocos de Bolsonaro é acreditar que pode aprisionar a cultura nacional no âmbito dos seus dogmas. Quando investe contra o cinema nacional, a pretexto de que obras como Bruna Sufistinha, um blockbuster da nossa indústria cinematográfica, são mera pornografia e não um retrato da prostituição no Brasil, sua motivação é mais política do que religiosa. Na verdade, deve estar mais incomodado com filmes como Marighella e Democracia em vertigem, que glamoriza a luta armada e enaltece o ex-presidente Luiz Inácio Lula das Silva, respectivamente. Uma coisa é a crítica à obra cinematográfica, outra é o dirigismo oficial à produção cinematográfica, numa ótica que lembra o cinema produzido durante a II Guerra Mundial.

Pura perda de tempo. Com “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, o Cinema Novo emergiu como resposta à falta de recursos técnicos e financeiros. O que temos hoje no cinema brasileiro resulta da centralidade dada por Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e outros cineastas à discussão dos problemas e questões ligadas à “realidade nacional” e a uma linguagem inspirada na nossa própria cultura. “Domesticar” a cultura popular é uma tarefa tão inglória como foi a censura à música popular no regime militar, tanto quanto obrigar os jovens a manter a virgindade até o casamento e mandar os gays de volta para dentro dos armários.

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Luiz Carlos Azedo: Decidiu, cumpra-se!

“As decisões do Supremo precisam ser respeitada por bolsonaristas e petistas. A Corte não pode decidir sob chantagem, com medo de um golpe de Estado, não importa o réu. O nome já diz tudo: Supremo”

O presidente Jair Bolsonaro foi eleito por um triângulo de demandas majoritárias da sociedade: ética, família e segurança. Essas são as palavras-chave sobre as quais assentou sua estratégia de campanha. O sucesso de seu governo, portanto, está pendurado nesses eixos. Ocorre que o governo precisa transpor uma linha que não estava no imaginário dos seus eleitores: a crise fiscal, cuja resolução depende da aprovação da reforma da Previdência. Por causa dela, Bolsonaro enfrenta dificuldades na economia e vê sua popularidade ser corroída.

Com inflação zero, crescimento zero e uma massa de 12 milhões de desempregados (ampliada com os precarizados e os que desistiram de trabalhar são 25 milhões de pessoas em grandes dificuldades), entretanto, Bolsonaro completa seis meses de um governo errático, que ainda não conseguiu organizar seu meio de campo. Atua como aquele artilheiro que pretende ganhar o jogo sozinho e desarruma todo esquema tático do time, que sofre substituições frequentes e joga muita bola para os lados e para trás, sem falar nos passes errados.

As pesquisas de opinião mostram o crescimento contínuo da desaprovação do governo e a queda dos índices de aprovação, o que levou o presidente da República a reagir em três níveis: voltou a ter uma agenda de rua típica de campanha, agarrou com as duas mãos a bandeira da Lava-Jato e recrudesceu no tema da posse do porte de armas. Está dando certo: a aprovação voltou a subir. Mas a sociedade está mais polarizada entre os que aprovam e desaprovam o governo, o número dos que consideram o governo regular, diminui.

Ontem, por exemplo, Bolsonaro revogou dois decretos assinados em maio que facilitaram o porte de armas de fogo. No lugar, editou três novos decretos e enviou um projeto de lei ao Congresso Nacional sobre o mesmo tema. O Decreto nº 9.844 regulamenta a lei sobre a aquisição, o cadastro, o registro, o porte e a comercialização de armas de fogo e de munição, o Sistema Nacional de Armas e o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas; o nº 9.845, a aquisição, o cadastro, o registro e a posse de armas de fogo e de munição em geral; e o nº 9.846, o registro, o cadastro e a aquisição de armas e de munições por caçadores, colecionadores e atiradores.

Bolsonaro não quer dividir com o Congresso a agenda da segurança pública. Tem dificuldades de dividir qualquer agenda, exceto aquelas que possam ter ônus eleitorais. Por isso, não digeriu a derrubada do decreto da venda de armas pelo Senado e não quis sofrer nova derrota na Câmara. Muito menos aceita que o Congresso tenha a iniciativa de pôr outro decreto em seu lugar, mesmo patrocinada pela chamada “bancada da bala”. Essa uma espécie de reserva de mercado eleitoral que pretende monopolizar. Não é assim que as coisas funcionam numa democracia. Para ser o pai da criança, Bolsonaro precisa articular a sua própria maioria no Legislativo, o que não fez até agora, e aprovar seus projetos.

O caso da Previdência é emblemático. Nove entre 10 economistas dizem que, sem essa reforma, não há como resolver a crise fiscal. A retomada do crescimento, com geração de mais empregos, depende de esse nó ser desatado. Nunca houve um ambiente tão favorável para a aprovacão da reforma. Está tudo certo para que isso ocorra, de forma mitigada, sem mexer com aposentadorias rurais e Benefícios de Prestação Continuada para os trabalhadores de mais baixa renda. O plano de capitalização proposto pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, porém, não rolou. Nunca foi bem explicado para a sociedade, o que costuma ser um obstáculo a mais no Congresso. O fundamental — o aumento do tempo de contribuição e da idade mínima, além da redução de privilégios dos servidores públicos — será aprovado.

Julgamento
Toda vez que a Previdência avança na Câmara, porém, surge uma nova polêmica ou várias criadas por Bolsonaro que não têm nada a ver com esse assunto. Qualquer estrategista diria que está faltando foco ao governo. Será isso mesmo? O mais provável é que Bolsonaro não queira colar sua imagem à reforma: ele a defende nos pequenos círculos empresariais que frequenta; quando vai para a agitação na sua base eleitoral, que é muito corporativa, muda completamente de eixo. O caso agora da Lava-Jato, então, caiu do céu.

No mundo jurídico, a revelação das conversas do ministro da Justiça, Sérgio Moro, com os procuradores da Lava-Jato provocou uma estupefação. É tudo o que não se aprende nas faculdades de direito. Ocorre que a Lava-Jato virou uma força da natureza, com amplo apoio popular, transformou o ex-juiz de Curitiba num ícone da ética e da luta contra a corrupção. Bolsonaro montou nesse cavalo e se mantém firme na sela, porque é aí que pode melhorar um pouco mais seus índices de aprovação.

Entretanto, da mesma forma como tenta jogar a opinião pública contra o Congresso no caso do decreto das armas e, mais recentemente, das agências reguladoras, os partidários de Bolsonaro pressionam o Supremo Tribunal Federal (STF) no caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Qualquer que seja o desfecho do julgamento de Lula, a decisão do Supremo precisa ser respeitada por bolsonaristas e petistas. A Corte não pode decidir sob chantagem, com medo de um golpe de Estado provocado por uma decisão sobre um habeas corpus, não importa o réu. O nome já diz tudo: Supremo. Decidiu, cumpra-se!

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