violência
Alon Feuerwerker: Jacarezinho, empregos e lei
Toda eleição tem seus temas propulsores, que criam ambiente favorável ao perfil certo. Quando este tem a sorte de, e a competência para, encaixar na demanda. Em 1994 e 1998, Fernando Henrique Cardoso navegou nos mares do cansaço com a inflação, depois veio Luiz Inácio Lula da Silva para saciar a sede da rejeição à pobreza e à corrupção. O período petista sustentou-se por mais de uma década, mesmo sob acusações relativas à segunda, e muito porque entregava no combate à primeira.
Quando a economia ruiu, a tolerância virou fumaça, veio o impeachment de Dilma Rousseff e depois Jair Bolsonaro surfou as duas ondas do momento: os combates à corrupção e ao crime. Sobre este último, um aspecto evitado sempre que possível no debate é o aparente paradoxo: se os governos do PT reduziram as desigualdades, combateram a pobreza e ampliaram as oportunidades para os antes marginalizados, por que então o crime se agravou no período?
A ponto de a repulsa a ele ajudar decisivamente não só na eleição de Bolsonaro, mas de todo um contingente de políticos ligados à segurança pública Brasil afora.
Aliás, o crime encorpou mais onde a prosperidade avançou de maneira mais pujante, em especial em certas regiões metropolitanas e na fronteira agrícola. Não é opinião, mas fato: o combate à pobreza é fundamental, mas nem de longe é suficiente para solucionar os problemas da segurança pública. É só olhar os números, e tem gente boa que os organiza de maneira cuidadosa. E, simplesmente, o mapa da pobreza não bate com o do crime.
Na falta de consensos, a subida dos índices de criminalidade vai sendo enfrentada na base do “na minha opinião”. Uns acham que é uma disputa de espaços assistenciais entre o crime e o Estado. Outros estão certos de que falta mesmo é punição garantida e proporcional ao delito. Mas tem quem imagina resolver na bala. Jacarezinho. Vão lá, matam um certo tanto e voltam para casa. Quando nova leva ocupa o lugar dos que morreram, vai-se lá e mete-se bala de novo.
Com os habituais “danos colaterais”.
A exemplo da maioria dos outros assuntos importantes, é impossível no Brasil de hoje organizar alguma discussão produtiva sobre como atacar a endemia do crime. Se o debate sobre a pandemia da Covid-19 foi capturado por “certezas científicas”, que aliás independem de comprovação científica e se baseiam somente no “princípio da autoridade”, mais ainda algo que se tornou endêmico, parte da paisagem. Ao fim e ao cabo, convive-se com o crime. De vez em quando acontece alguma coisa que produz, como agora, algum calor. Nunca luz.
Entrementes, os candidatos à presidência vão afiando a faca. De um lado, reforça-se o discurso de que a polícia tem mesmo é de eliminar bandidos, e que não se faz omelete sem quebrar os ovos. Do outro, desarquiva-se a panaceia da “presença do Estado”. Será que não está na hora de compreender que sem crescimento acelerado da economia, e portanto das oportunidades, o crime continuará garantindo seu market share na atração de potenciais entrantes no mercado de trabalho?
Empregos e lei. Quem conseguir juntar essas duas ideias, até agora separadas por um muro, vai ter público em 2022.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Fonte:
Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/05/jacarezinho-empregos-e-lei.html
Nelson de Sá: New York Times alerta contra capa falsa pró-Bolsonaro
O perfil de relações públicas do New York Times no Twitter publicou uma mensagem, em português, com um aviso sobre a imagem abaixo, de uma capa adulterada do jornal. Diz o NYT:
“Estamos cientes de que uma versão manipulada da primeira página do New York Times circula na internet com matérias falsas e uma imagem de manifestações a favor do presidente Jair Bolsonaro. O New York Times não publicou essa capa.”
O jornal sugere acompanhar a cobertura de Brasil aqui. A capa já havia sido objeto de serviços de verificação no Brasil, como Lupa.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nelsondesa/2021/05/nyt-alerta-para-capa-falsa-pro-bolsonaro.shtml
Ascânio Seleme: Adicto à mentira
A imagem é constrangedora. Daquelas que causam vergonha alheia. Cercado por uns dez assessores, Jair Bolsonaro acena para um ponto à sua frente onde imagina-se estar reunida uma multidão. Eleva os braços como se fizesse louvação aos céus, ou a Deus. Se curva num movimento que parece ser em deferência ao povo com o qual estaria se comunicando. O cinegrafista, que deveria ter parado de filmar neste ponto, segue gravando enquanto o capitão passa por ele e avança. E então, percebe-se que não havia multidão alguma no local para o qual Bolsonaro endereçava seus salamaleques. Havia apenas um helicóptero, três ou quatro aspones e um militar. Era um aceno cinematográfico. Ou fake, se preferir.
Bolsonaro precisa disso? Não. Ele sempre encontra aglomerações de desmascarados para gritar “mito” onde quer que vá. Os iludidos de sempre estão em todos os lugares, prontos para aplaudir o exterminador de futuro que enxergam como um salvador da pátria. Desnecessário discorrer sobre a ignorância dessa gente, não é esse o objetivo. O que se quer dizer aqui é que os acenos efusivos para uma inexistente multidão provam o que já se sabia. Bolsonaro é um adicto à fake news. Ele não consegue se livrar desse vício, como se fosse uma praga que rogaram contra ele e que pegou.
Viciado em mentira desde antes de se candidatar a presidente, foi exemplo para os seus quatro zeros e para os seus seguidores radicais e fiéis. Viraram todos mentirosos contumazes, como ele. Bolsonaro mente para o eleitor e para quem nem ainda vota. Mente para os inimigos e adversários, assim como mente para os amigos e companheiros. Mente para parentes. Mente para os filhos, que passam a mentira para frente. Mente por email e nas redes sociais. Mente ao vivo ou grava mentiras. Mente no privado e no público. Mente digital e analogicamente.
O grupo de checagem Aos Fatos (www.aosfatos.org) contou 2.919 declarações falsas ou distorcidas de Bolsonaro desde a sua posse até a data da última atualização, em 28 de abril passado. Foram 848 dias, ou 3,44 mentiras a cada dia. E estas são apenas as públicas, feitas em discursos, entrevistas, através das suas redes sociais ou colhidas no cercadinho do Alvorada, onde ele mente para os seus seguidores mais entusiasmados. No privado deve ter mentido outras tantas milhares de vezes. O presidente do Brasil é um mentiroso.
De acordo com o volume das suas mentiras pode-se aferir o que mais incomoda o presidente. Um sinal, talvez, de que ele esteja entendendo onde vai mal, apesar de seu reconhecido déficit cognitivo. De 9 de abril do ano passado até o último dia 10 de março, Bolsonaro mentiu 88 vezes sobre a decisão do STF de considerar legítimo que governadores e prefeitos também adotem medidas restritivas para conter a pandemia. O capitão repetiu que o tribunal retirou dele a responsabilidade para atuar contra a doença e a transferiu aos outros entes da federação. Trata-se do famoso “tirar o seu da reta”. No caso, com uma mentira grossa.
O homem que cometeu mais de duas dúzias de crimes de responsabilidade, que ameaçou inúmeras vezes a democracia e que tem 116 pedidos de impeachment na gaveta do presidente da Câmara, teme os efeitos da pandemia sobre o seu futuro. Por isso sobre ela mente mais. Claro que não vai parar por aí, seu vício é maior do que ele próprio. Novas lorotas já estão sendo engendradas nas salas anexas ao Gabinete do Ódio no Palácio do Planalto, e em breve ganharão a luz do dia. E tem também, claro, as mentiras espontâneas, que saem da cabeça aturdida de Bolsonaro. Estas são mais estúpidas e patéticas, e por isso menos eficientes.
Soldadinhos de chumbo
O ministro Luiz Eduardo Ramos tomou vacina escondido por medo do presidente Bolsonaro. Ele pode dizer outra coisa, que foi em respeito ao chefe, que não queria incomodar sua excelência, que era para evitar aborrecimento. Bobagem. O poderoso general estava com medo do capitão. Aliás, Ramos morre de medo de Bolsonaro. No Palácio todo mundo sabe disso. Braga Netto também se pela de medo e igualmente tomou a vacina escondidinho.
Atacar e bajular
O que quer o presidente do Clube Militar, o general da reserva Eduardo José Barbosa? Talvez um cargo no governo. Ou apenas puxar o saco mesmo. Como mostrou Lauro Jardim, o militar da reserva comparou Renan Calheiros e Omar Aziz, relator e presidente da CPI, a Marcola e Fernandinho Beira-Mar. Pela modalidade dos crimes destes, era mais fácil compará-los aos milicianos do Planalto Central. No ano passado, do alto das suas pantufas, Barbosa disse que isolamento social é igual a socialismo.
Abundância
A CPI vai navegar com abundante vento de popa. Seus membros nem precisam se esforçar para encontrar elementos e provas que apontem para os (ir)responsáveis que ampliaram a catástrofe por “ação e omissão”. Além dos 23 crimes já delimitados pela Casa Civil, a CPI tem que acrescentar no seu cardápio a entrega de cloroquina em aldeias indígenas e a falta de vacinas para a segunda dose em cidades de 18 estados. E estas faltam por que? O Ministério da Saúde mandou os municípios usarem todas as doses enviadas porque chegariam mais a tempo do reforço. Era chute.
Polêmica
Até a família real da Jordânia usa a vacina Sputnik V. No Brasil, a Anvisa proibiu sua importação por estados e municípios alegando ausência de documentos e garantias dos fabricantes que atestem a sua segurança. Enquanto isso, faltam vacinas e o número de mortes diárias no Brasil continua na casa do milhar. Se a Anvisa estiver certa, estarão errados 62 países que aprovaram e estão aplicando em suas populações a Sputnik V.
Ao vivo
A eficiência de uma CPI depende muito da sua divulgação. Se ficar apenas em flashes, pode perder o vento a favor. Quem sabe faz ao vivo.
Manda, mas…
Depois da demissão do superintendente da Polícia Federal do Amazonas Alexandre Saraiva, não resta mais dúvida de que Bolsonaro conseguiu mesmo colocar no comando do órgão um delegado que come na sua mão. A esta altura já deve estar recebendo todos os dados que pedir, sobre qualquer inquérito, principalmente os dos seus zeros. Ocorre que, além de você e eu, tem gente dentro da PF vendo a mesma coisa. E coletando elementos inflamáveis que podem se tornar atômicos de uma hora para a outra.
Nosso Rio
O prefeito Eduardo Paes parece não gostar de prestar contas aos vereadores, eleitos como ele. Nos seus primeiros dois mandatos, 2.539 requerimentos de informação só foram respondidos por força judicial nos últimos dias de governo. Já não valiam nada. Agora, 14 vereadores pressionam o presidente da Câmara, Carlo Caiado, para acionar Paes mais uma vez na Justiça. Ele está sentado novamente sobre algumas dezenas de requerimentos enviados ao seu gabinete desde o início do governo.
Eduardo Cunha
Eduardo Cunha foi solto da prisão, embora esteja em casa há oito meses e de onde não pode sair. Sua prisão era temporária, ainda assim o outrora homem mais odiado do Brasil ficou enjaulado três anos e meio. Quem mais falta soltar da turma do primeiro escalão do Rio? Sérgio Cabral não tem como. Ao contrário de Cunha, já foi condenado e só sai depois de cumpridos os requisitos do Código do Processo Penal. Deve demorar um pouco mais.
Petistas bolsonaristas
O episódio do vereador do interior de Minas, que com um facão abriu um caixão lacrado para provar (?) que o defunto não morrera de Covid, confirma a bagunça político-partidária do país. Depois da barbaridade filmada, William Faria, que era vereador do PT, foi expulso pelo diretório regional do partido em razão do ato horrendo típico do bolsonarismo. Já em Santa Catarina, sindicatos ligados ao PT negociam com bolsonaristas para impichar o governador Carlos Moisés. Em troca, ganhariam a presidência da companhia de energia estadual.
Censo 2020
Os dados coletados pelo Censo são sempre muito úteis para a gestão pública. E servem também para fins políticos e eleitorais absolutamente legítimos. Como o governo conhece bem o status da nação, graças à capilaridade de sua estrutura, a oposição tem no Censo uma das suas principais ferramentas para entender o seu país e de que precisa a sua gente. Mandou bem na despedida o ministro Marco Aurélio.
Fonte:
O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/adicto-mentira-24997558V
João Gabriel de Lima: Sete erros, 400 mil mortos e um vício de origem
No dia seguinte à instalação da CPI da Covid, milícias digitais atacaram senadores de oposição. A artilharia envolveu desde a disseminação de fake news até ameaças veladas aos parlamentares, com frases como “Você gosta da sua família?” O assunto foi tema de reportagem do Estadão e mereceu manchete na edição impressa da quinta-feira 29. A operação, segundo suspeitam os senadores, foi deflagrada por três assessores da Presidência da República. Os parlamentares enxergaram no processo a digital do “gabinete do ódio”, grupo influenciado pelo vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente.
Pode-se gostar ou não dos senadores, mas eles não estão no Parlamento por concurso público. Somados, constituem um espelho do povo brasileiro, pois foram escolhidos em eleição livre. Nas democracias, é normal que os cidadãos elejam os governantes e os oposicionistas que irão fiscalizá-los. É igualmente normal que adversários políticos subam o tom de vez em quando. Não é normal – nem democrático – que se tratem como inimigos, passíveis de extermínio por milícias digitais.
“As elites eleitas, de situação ou oposição, são moderadoras das preferências populares”, diz o cientista político Jorge Fernandes, da Universidade de Lisboa, que desenvolve o assunto no minipodcast da semana. Tal moderação se dá entre entes que dialogam. Nas democracias modernas, os líderes são, antes de tudo, negociadores. Sabem que, mesmo escolhidos pela maioria, beneficiam-se da conversa constante com as vozes minoritárias, à direita e à esquerda, de uma sociedade plural.
Uma CPI é um instrumento legítimo numa democracia. A atual pode prestar um serviço inestimável se trouxer à tona informações concretas e úteis. Um editorial publicado no Estadão na segunda-feira 26 deu uma contribuição importante nesse sentido. O texto junta três estudos científicos sobre a gestão da pandemia no Brasil. Deles se depreendem pelo menos sete erros crassos no combate à covid-19.
Um: faltou uma coordenação nacional efetiva para lidar com a pandemia, algo fundamental num país tão desigual. Dois: a baixa testagem comprometeu o planejamento. Três: houve atraso no fechamento de fronteiras. Quatro: o excesso de serviços designados como “essenciais” prejudicou políticas de isolamento. Cinco: houve intervenção indevida em protocolos de tratamento – leia-se cloroquina. Seis: foram demitidos quadros técnicos importantes do Ministério da Saúde. E sete: os fundos de emergência não foram utilizados na íntegra. Eles poderiam ser empregados, por exemplo, na compra de vacinas.
Todos esses erros decorrem, em maior ou menor grau, do já citado vício de origem do governo federal: a incompreensão do papel do líder numa democracia moderna. Faltou negociar com os governadores políticas conjuntas. Faltou envolver instâncias internacionais – como a Organização Mundial da Saúde – num intercâmbio iluminador. Faltou ouvir uma parte importante da sociedade civil – a comunidade científica – sobre boas práticas no combate a pandemias.
O Brasil é referência internacional em campanhas de vacinação e tem um sistema de saúde abrangente. Tínhamos tudo para ser um caso de sucesso no combate à covid-19. Em vez disso, lamentamos uma tragédia de 400 mil mortos. Que os representantes escolhidos pelo povo, na CPI, entendam as razões do fracasso e proponham uma correção de rumo. De preferência, sem ser importunados por jagunços digitais.
*Escritor, professor da FAAP e doutorando em Ciência Política na Universidade de Lisboa
Fonte:
O Estado de S. Paulo
Zulu Araújo: Primeira prefeita negra de Cachoeira (BA) é ameaçada de morte
Considerada uma joia do Patrimônio Cultural Brasileiro, desde 1971, com belos casarões e igrejas e com bens tombados pelo IPHAN desde 1940, Cachoeira, cidade histórica do Recôncavo Baiano, vive hoje momentos de terror. A prefeita Eliana Gonzaga, primeira mulher e primeira negra eleita para governar a cidade está sendo ameaçada de morte por milicianos políticos. O caso é tão grave que o Governo do Estado da Bahia determinou que a mesma tivesse escolta militar dia e noite.
O drama da prefeita e da cidade começou no dia 15 de novembro de 2020, quando ela, juntamente com sua vice Cristina Pereira, venceram as eleições para a prefeitura com mais de 2.500 votos de vantagem, num universo de 18 mil votos, numa vitória histórica. O derrotado que concorria pela quarta vez a prefeitura foi um grande empresário da região e que continua inconformado. Por conta dessa vitória, Cachoeira não teve mais sossego desde então.
Para quem não sabe, a cidade tem uma importância histórica para a Bahia e o Brasil. Em 25 de junho de 1822, por meio da Câmara Municipal de Cachoeira foi declarada a verdadeira Independência do Brasil e o inicio das sangrentas batalhas que culminaram com a expulsão dos portugueses da Bahia e a declaração de sua independência no dia 2 de Julho de 1823. Por conta dessa atitude corajosa a Cachoeira é conhecida como “Cidade Heroica”.
Se não forem adotadas medidas urgentes e rigorosas contra esses milicianos, Cachoeira pode viver mais uma tragédia. Pois as ameaças não são de brincadeira. Dois dos apoiadores da campanha eleitoral da prefeita já foram assassinados em plena luz do dia sem que até o momento se tenha conhecimento dos autores. São eles, Ivan Passos (morto dois dias após as eleições e Gerolando Silva, assassinado com 10 tiros, em frente à delegacia local.).
Importante dizer que Cachoeira é uma cidade eminentemente negra, com mais de 80% da população de origem africana. Onde os terreiros de candomblés tem uma forte presença, assim como a famosa Irmandade da Boa Morte que é liderada por negras sexagenárias da cidade e encanta o mundo inteiro. Ainda assim, nunca uma mulher negra havia sido eleita para dirigi-la. Ao que parece o racismo e a misoginia se juntaram para impedir que a vontade da população seja respeitada.
“Eu não vou renunciar. Eu não tenho medo. Junto com os meus ancestrais, aqui também pulsa a veia sindical, e muito forte e não sou covarde. A veia do sindicalista não recua”, disse a prefeita, que já foi feirante, líder sindical e vereadora na cidade por dois mandatos. Ela também tem recebido apoios importantes, tanto de entidades do movimento negro baiano, a exemplo da Unegro, do Movimento de Mulheres e de parlamentares de todas as matizes, como a deputada federal Lidice da Mata, que denunciou as ameaças durante audiência na Procuradoria da Mulher da Câmara Federal. Enfim, essa luta também é nossa, afinal, não podemos permitir que uma nova Marielle Franco se materialize na nossa querida Cachoeira.
Celso Rocha de Barros: Quantos dos aliados de Bolsonaro nas polícias são gente como Adriano da Nóbrega?
Investigação sobre 'o homem da casa de vidro' deve prosseguir com o máximo de cuidado
O site de notícias The Intercept Brasil teve acesso a um relatório da Subsecretaria de Inteligência da Polícia Civil do Rio de Janeiro em que são apresentados os resultados da quebra de sigilo telefônico do miliciano Adriano da Nóbrega, chefe da milícia Escritório do Crime, acusada pelo assassinato da vereadora Marielle Franco.
No relatório, pessoas próximas a Adriano fazem referências a contatos com pessoas identificadas pelos investigadores como “Jair”, “O Cara da Casa de Vidro” e “HNI (PRESIDENTE)”, ocorridos logo após a morte do miliciano. Membros do Ministério Público ouvidos em off pelo Intercept suspeitam que se trata do presidente da República, Jair Bolsonaro.
A proximidade do presidente da República com o Adriano da Nóbrega é bem documentada. O miliciano foi homenageado por Jair Bolsonaro e por seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, em várias ocasiões. A irmã e a mãe de Nóbrega eram funcionárias do gabinete do filho do presidente da República e são suspeitas de terem participado do esquema criminoso de repartição de verbas conhecido como “rachadinha”.
A hipótese de que Bolsonaro seria “o homem da casa de vidro” (que, se confirmada a suspeita, seria o Palácio da Alvorada) é plausível por outro motivo: logo depois das interceptações, o Ministério Público ordenou a suspensão do grampo. Os MPs estaduais não podem investigar o presidente da República. Se o nome de Jair Bolsonaro aparecer em uma investigação, ela deve ser interrompida e remetida à Procuradoria-Geral da República.
É obviamente possível que “Jair” seja outro Jair que não o Bolsonaro, que o “homem” more em uma casa de vidro que não seja o Palácio da Alvorada, ou que, forçando um pouco a barra, “HNI (Presidente)” seja outro “homem não identificado” (HNI), amigo de Adriano da Nóbrega que fosse presidente de alguma outra coisa que não a República.
É preciso prosseguir na investigação com o máximo de cuidado, responsabilidade e transparência, preservando todo o benefício da dúvida em favor de Bolsonaro.
Por outro lado, se logo no começo da investigação da Odebrecht tivesse aparecido uma transferência bancária para um sujeito identificado como “Presidente”, Lula teria sido preso como suspeito em cinco minutos.
A proximidade de Bolsonaro com milicianos não é só um problema gravíssimo do passado do presidente. Há gente razoável que teme que, à medida em que perde apoio nas Forças Armadas, Bolsonaro passe a incentivar a radicalização das polícias.
Eu gostaria de saber se há, entre os aliados atuais de Bolsonaro na polícia, mais gente como o ex-PM Adriano da Nóbrega.
Aqui você pode dizer: não seria o caso de centrar nossa atenção nos crimes cometidos por Bolsonaro durante a pandemia, crimes muito maiores, muito mais documentados, flagrantes?
São duas investigações paralelas. Nada impede que as duas sejam conduzidas simultaneamente, por autoridades diferentes. No momento, a prioridade é a CPI dos 400 mil mortos, que, se trabalhar direito, colocará o presidente da República na cadeia.
Mas a Vaza Jato, última grande denúncia do pessoal do Intercept Brasil, também demorou algum tempo até gerar desdobramentos jurídicos importantes. Dependendo de como a política se mova, desta vez pode acontecer a mesma coisa.
Ana Cristina Rosa: Cultura do estupro está até em fala de professor de direito
Banalização da violência contra a mulher é realidade frequente no Brasil
A cultura do estupro e a banalização da violência contra a mulher constituem realidade tão frequente no Brasil que chegaram ao absurdo de virar exemplo ensinado em aula de direito, conforme notícia na imprensa neste fim de semana.
Calcado em argumentos tão frágeis e infundados como o estilo de vestir, um professor de uma faculdade do interior paulista sugeriu que o comportamento da vítima pode interferir na prática do crime de estupro. E arrematou o raciocínio dizendo que mulheres passivas e quietinhas tendem a apanhar menos.
O resultado prático dessa mentalidade machista, misógina e retrógrada, que atribui à vítima a culpa pelo crime, pode ser aferido na verdadeira tragédia traduzida em números no Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A cada oito minutos, uma pessoa é estuprada no país. São 180 estupros por dia, sendo as mulheres a maioria das vítimas segundo as estatísticas feitas a partir de registros em boletins de ocorrência.
O número é assustador por si só, mas se torna ainda mais aterrorizante quando considerado o fato de que muitos casos não são denunciados e, portanto, estão fora das estatísticas. Como estupro é uma questão de poder e subjugação, medo e impotência sustentam a subnotificação.
Quase 30% dos crimes de estupro registrados no anuário foram cometidos contra crianças de zero a 9 anos, das quais mais de 11% eram bebês de até quatro anos. Barbárie é uma palavra que parece adequada para qualificar essa violação de direitos humanos, que atinge a vida, a saúde e a integridade física, causando danos irreparáveis.
Diante de fatos tão graves, deveria ser evidente a existência de apenas um culpado: o estuprador. E isso precisa ser repetido como mantra, divulgado em campanhas de educação sexual, até que seja introjetado no inconsciente coletivo.
Quem sabe assim um dia as conversas e as aulas girem em torno do absurdo de ter havido um tempo em que a culpa pela violência sexual era atribuída às vítimas.
*Ana Cristina Rosa é jornalista especializada em comunicação pública e coordenadora da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPÚBLICA) - Seção Distrito Federal.
Luiz Carlos Azedo: A nobreza, o povo e a plebe
Temos o regime de votação mais moderno e eficiente do mundo, o voto direto, secreto e universal na urna eletrônica, ao lado de uma sociedade extremamente desigual
A palavra isogênese — no dicionário, igualdade ou semelhança de origem ou desenvolvimento — é a linha que separa a democracia moderna das antigas, que se baseavam na participação direta apenas de uma elite de proprietários, como na República de Platão. É o fundamento ideal do regime democrático, que se baseia na concepção enraizada no Ocidente de que a natureza humana faz os homens originalmente iguais, não importa a condição social. Para que essa compreensão se tornasse hegemônica, muito contribuiu o fundamento cristão de que todos os homens são irmãos, porque são filhos de Deus.
Essa ideia-força foi um dos pilares da Revolução Francesa (1789-1799), que secularizou a fraternidade e ancorou o jusnaturalismo, ou seja, a doutrina de que os indivíduos são pessoas dotadas de moral e direitos inalienáveis e invioláveis, que lhes pertencem por natureza. Assim, a ideia de soberania popular se contrapõe à soberania do príncipe. Para se ter uma ideia de como as coisas avançaram neste terreno, basta lembrar que Nicolau Maquiavel, nas Histórias florentinas, dizia: “Em Florença se distinguem os nobres entre si, os nobres e o povo, e por último o povo e a plebe.”
Um pouco de filosofia e teoria política não faz mal a ninguém: o povo é uma abstração conceitual, consagrada em nossa Constituição de 1988 como fonte de todo o poder — que emana do povo, para o povo e em seu nome é exercido. A sutileza do enunciado está no fato de que a democracia moderna não é direta, é representativa, e os indivíduos, com seus defeitos e interesses, são de carne e osso. Não por acaso o respeito aos direitos humanos está no centro da dinâmica de funcionamento e das disputas dos regimes representativos. No Brasil, em razão do grande número de eleitores e do caráter direto e universal do nosso sistema eleitoral, vivemos numa democracia de massas. Além disso, o Estado brasileiro é ampliado, em razão da separação entre os Poderes, do regime federativo, da existência de uma burocracia profissional e de agências autárquicas. Os governantes eleitos não fazem o que querem e bem entendem; precisam governar com base na Lei e no compartilhamento de responsabilidades. A “moral política” é subordinada à ética.
Alguém já disse que o passado é como um diamante, ninguém joga fora. O nosso nos garantiu instituições políticas seculares – como o Senado e o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, pilares do Estado nacional, da integridade territorial e da conciliação entre as elites —; de outro, uma ordem social iníqua, em que a herança da escravidão até hoje se faz presente. Temos o regime de votação mais moderno e eficiente do mundo, o voto direto, secreto e universal na urna eletrônica, ao lado de uma sociedade extremamente desigual, na qual as distâncias abissais entre os ricos, a classe média e os pobres somente não são as da antiga república florentina — entre a nobreza, o povo e plebe — porque as eleições igualam todo mundo na hora do voto.
Solidariedade
O que conseguimos de progresso e redução de diferenças sociais ao longo de nossa República se deve a isso. Durante o regime militar, o milagre econômico alavancou o poder aquisitivo de nossa classe média, mas houve muita concentração de renda e foi exatamente isso, com o achatamento dos salários, que provocou a entrada em cena dos operários e seus sindicatos na luta pela democracia. Entretanto, nossa democracia nunca esteve tão ameaçada, desde a eleição de Tancredo Neves, em 1985.
Isso ocorre em todo o mundo, em razão das mudanças de regras de comportamento nas sociedades secularizadas; da não-integração plena dos estratos sociais de mais baixa renda; e dos avanços tecnológicos. Mas aqui a situação é mais grave. O presidente Jair Bolsonaro sonha com uma “ditadura do Executivo”. Vive fazendo ameaças aos demais Poderes e energiza grupos radicais, alguns verdadeiras milícias políticas armadas, dispostos a defendê-lo a qualquer preço contra a oposição. O agravamento da crise social pela pandemia é um terreno fértil para a violência social e política, por causa do desespero das famílias que passam por necessidades, daí a importância da solidariedade com os menos favorecidos, os “invisíveis”, para mitigar suas dificuldades nessa crise sanitária, sobretudo a fome.
Obs: Publicada domingo, dia 18 de abril, no Correio Braziliense e no Estado de Minas.
BBC Brasil: Quatro fatos que ajudam a explicar tensão entre negros americanos e polícia
Em meio ao julgamento do ex-policial acusado de matar George Floyd, dados mostram que, quando se trata de lei e ordem, os afro-americanos continuam recebendo um tratamento mais violento que os brancos.
Floyd, de 46 anos, foi estrangulado por um policial branco, Derek Chauvin, que ajoelhou em seu pescoço durante uma abordagem em Minneapolis, no Estado americano de Minnesota, em março do ano passado.
Sua morte provocou protestos ao redor do mundo contra a violência policial e discriminação contra os negros.
Nesta semana, outro caso, também em Minneapolis, despertou atenção pela semelhança com o episódio que resultou na morte de Floyd.
Daunte Wright, de 20 anos, foi baleado e morto por um policial durante uma abordagem por infração de trânsito.
A morte também desencadeou protestos. Cerca de 40 pessoas foram presas ao norte da cidade em uma segunda noite de manifestações.
No Brasil, oito a cada dez pessoas mortas pela polícia em 2019 eram negras segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020.
A BBC analisou dados sobre criminalidade nos Estados Unidos e constatou que:
1. Afro-americanos têm maior probabilidade de ser mortos pela polícia
Dados disponíveis sobre incidentes em que a polícia atira e mata pessoas mostram que, para os afro-americanos, há uma chance muito maior de serem mortos em relação ao número total da população dos Estados Unidos.

De acordo com o banco de dados de mortes pela polícia do jornal americano The Washington Post, embora os afro-americanos representem menos de 14% da população, eles foram quase 24% vítimas das mais de 6 mil mortes causadas pela polícia desde 2015.
O total de mortes pela polícia permaneceu relativamente estável - cerca de 1 mil por ano desde 2015.
Levantamentos posteriores mostram que a taxa de mortes de negros desarmados por policiais nos Estados Unidos é três vezes maior do que de brancos.
2. Afro-americanos são mais propensos a serem parados pela polícia
Estudos mostram que os negros têm maior probabilidade de ter o carro parado pela polícia.
Um dos mais recentes, um estudo de 2020 da Universidade de Stanford, analisou 100 milhões de abordagens no trânsito por parte dos departamentos de polícia nos Estados Unidos e constatou que motoristas negros tinham cerca de 20% mais chances de serem parados do que motoristas brancos.
O estudo também descobriu que, uma vez parados, os motoristas negros eram revistados até duas vezes mais que os brancos, embora fossem estatisticamente menos propensos a transportar itens ilegais.
3. Afro-americanos são presos em taxas mais altas por abuso de drogas
Os afro-americanos são presos por abuso de drogas em uma taxa muito maior do que os americanos brancos, embora as pesquisas mostrem que os entorpecentes são usados em níveis semelhantes.
Em 2018, cerca de 750 em cada 100 mil afro-americanos foram presos por abuso de drogas, em comparação com cerca de 350 em cada 100 mil americanos brancos.
Pesquisas de âmbito nacional anteriores sobre o uso de drogas mostram que os brancos usam drogas em taxas semelhantes, mas os afro-americanos continuam sendo presos com mais frequência.
Por exemplo, um estudo da ONG União Americana pelas Liberdades Civis descobriu que os afro-americanos tinham 3,7 vezes mais probabilidade de serem presos por porte de maconha do que os brancos, embora a de uso da droga fosse similar.
4. Mais afro-americanos estão presos
Os afro-americanos são presos a uma taxa cinco vezes maior que a dos americanos brancos e o dobro da dos americanos hispano-americanos, de acordo com os últimos dados.

Em 2019, os afro-americanos eram cerca de 13% da população dos EUA, mas representavam quase um terço da população carcerária do país.
Já os americanos brancos eram cerca de 30% da população carcerária, apesar de representar mais de 60% da população total dos Estados Unidos.
Isso significa mais de 1 mil prisioneiros afro-americanos para cada 100 mil residentes afro-americanos, em comparação com cerca de 200 presidiários brancos para cada 100 mil americanos brancos.
A população carcerária dos Estados Unidos é definida como presidiários condenados a mais de um ano em uma prisão federal ou estadual.
As taxas de encarceramento caíram para afro-americanos na última década, mas eles superaram qualquer outra raça quanto à população carcerária, proporcionalmente.
BBC Brasil: Brasil é 4º país que mais se afastou da democracia em 2020, diz relatório
O Brasil é o quarto país que mais se afastou da democracia em 2020 em um ranking de 202 países analisados. A conclusão é do relatório Variações da Democracia (V-Dem), do instituto de mesmo nome ligado à Universidade de Gotemburgo, na Suécia
Mariana Sanches, Da BBC News Brasil em Washington
Publicado em março de 2021, o documento é um importante instrumento usado por investidores e pesquisadores do mundo todo e do Brasil para definir prioridades de ações globalmente.
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De acordo com o índice, no qual 0 representa um regime ditatorial completo e 1, a democracia plena, o Brasil hoje registra pontuação de 0,51, uma queda de 0,28 em relação à medição de 2010, que ficou em 0,79.
A queda do país só não foi maior do que as de Polônia, Hungria e Turquia. Os dois últimos, um sob regime do direitista Viktor Orban e outro sob comando do conservador Recep Erdogan, se tornaram oficialmente autocracias, na classificação do V-Dem.
"Quase todos os indicadores que usamos mostram uma drástica queda do Brasil a partir de 2015. O único ponto em que o país não perdeu de lá pra cá foi em liberdade de associação", disse à BBC News Brasil o cientista político Staffan Lindberg, diretor do Instituto Variações da Democracia.
O índice é formulado a partir da contribuição de 3,5 mil pesquisadores e analistas, 85% deles vinculados a universidades ao redor do mundo.
O resultado de cada país advém da agregação estatística dos dados para 450 indicadores diferentes, que medem aspectos como o grau de liberdade do Judiciário e do Legislativo em relação ao Executivo, a liberdade de expressão da população, a disseminação de informações falsas por fontes oficiais, a repressão a manifestações da sociedade civil, a liberdade e independência de imprensa e a liberdade de oposição política.
Onda autocrática global
De acordo com o relatório, o mundo vive o que os pesquisadores consideram uma onda de expansão das autocracias iniciada em 1994.
Essa seria a terceira onda desde 1900 (as duas primeiras aconteceram entre os anos 1920-1940 e entre o começo dos anos 1960 e o final dos anos 1970).
Se, em 2010, 48% da população mundial vivia sob regimes considerados não democráticos, em 2020 esse percentual subiu para 68% e retornou ao patamar observado no início dos anos 1990.
No grupo do G-20 - que agrega as maiores economias do mundo -, além de Brasil e Turquia, a Índia também apresentou uma queda nos parâmetros democráticos tão significativa que deixou de ser considerada a maior democracia do mundo e passou a ser classificada como autocracia com eleições pelo V-Dem.
Segundo os pesquisadores, os processos de Índia, Turquia e Brasil, apesar de estarem em estágios diferentes, seguem um mesmo roteiro. "Primeiro, um ataque à mídia e à sociedade civil, depois o incentivo à polarização da sociedade, desrespeitando os opositores e espalhando informações falsas, para então minar as instituições formais", diz o relatório.
"Estamos muito preocupados porque percebemos que Bolsonaro tem dado claros sinais que condizem com os padrões de comportamento de outros líderes autocráticos que vimos atuar antes, como Viktor Orban. São movimentos preocupantes para a sobrevivência da democracia brasileira", afirma Lindberg.
Ainda longe da autocracia
O índice V-Dem de 2021 foi finalizado antes da recente crise do presidente brasileiro com as Forças Armadas.
Em março, foi anunciada a saída do então ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, o que desencadeou também a troca dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica.
Em sua carta de demissão, Azevedo e Silva afirmou que "neste período (à frente da pasta), preservei as Forças Armadas como instituições de Estado", o que provocou questionamentos sobre uma possível tentativa de politização do Exército Brasileiro por Bolsonaro, que tem usado corriqueiramente a expressão "meu Exército" para se referir às Forças Armadas do país.
Antes disso, porém, o atual presidente brasileiro já atacou reiteradas vezes a imprensa, se mostrou elogioso à ditadura militar instaurada nos anos 1960 e endossou uma manifestação de apoiadores seus que pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal.
Pouco antes de ser empossado, Bolsonaro chegou a afirmar que mandaria seus opositores para a "ponta da praia", uma aparente referência à base da Marinha na Restinga da Marambaia, no Rio, onde presos foram torturados e mortos durante o regime ditatorial brasileiro.
"Petralhada, vai tudo vocês pra ponta da praia. Vocês não terão mais vez em nossa pátria porque eu vou cortar todas as mordomias de vocês. Vocês não terão mais ONGs para saciar a fome de mortadela. Será uma limpeza nunca vista na história do Brasil", disse o então presidente eleito em 2018.
Esses aspectos contribuem para os atuais resultados do país. Outros índices também apontam para um retrocesso da democracia brasileira nos últimos anos, embora a queda seja mais branda.
A ONG Freedom House avaliou que a democracia brasileira atingia 79 pontos, em uma escala de 0 a 100, em 2017. Atualmente, o índice recuou para 74.
Para Lindberg, embora os dados sobre Brasil sejam preocupantes, o país ainda está longe de ser enquadrado como uma autocracia, como aconteceu com Turquia e Índia, e isso se deve à qualidade do sistema eleitoral brasileiro.
"Embora ainda haja algumas irregularidades de votação, um pouco de intimidação eleitoral ou de compra de voto, as eleições no Brasil seguem sendo livres e justas, e é possível trocar o comando do país por meio delas", diz Lindberg.
Segundo ele, o sistema de voto eletrônico, como o usado no Brasil, tem se mostrado seguro e confiável. Bolsonaro, no entanto, tem feito uma campanha pelo voto impresso no Brasil e dito que o país pode repetir a história das últimas eleições americanas, quando Trump alegou fraude sem provas, se não mudar o sistema eleitoral.
E se a guinada autocrática atinge grandes populações ao redor do mundo, de outro lado, os processos de democratização, embora aconteçam, se concentram em países menores, como o Sri Lanka, Tunísia e Armênia.
Para os pesquisadores, isso se deve ao fato de que esses países estão relativamente mais distantes da influência de potências autocráticas, como Rússia e China, e parecem ter conseguido encaminhar suas dinâmicas políticas internas para um sistema mais livre.
Luiz Carlos Azedo: Dispensa adversários…
Daniel Silveira não é querido e respeitado por seus colegas, tem apenas dois anos de mandato, nenhuma experiência parlamentar e comportamento arrogante
Quem tem um aliado como o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) não precisa de adversários. É a situação do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), na antessala de um confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF), absolutamente imprevisto e desnecessário, por causa dos ataques do parlamentar àquela Corte e seus ministros. Hoje, o plenário da Câmara deverá decidir se revoga a sua prisão em flagrante — motivo de grande controvérsia jurídica, porque se baseia em postagens nas redes sociais —, sobre a qual a decisão unânime do Supremo firmou jurisprudência. Ontem, a tendência da maioria dos deputados era de manter a prisão e aguardar que o próprio Supremo a relaxasse, substituindo por outras medidas, como prisão domiciliar e tornozeleira eletrônica.
O deputado foi transferido para o batalhão prisional da Polícia Militar fluminense, em Niterói, no final da tarde de ontem; antes, os policiais federais encontraram dois celulares em sua cela. Na reunião de líderes, à tarde, somente quatro partidos haviam decidido pela revogação da prisão: PSL, Pros, Novo e PSC. Manifestaram-se formalmente pela manutenção PSDB, Republicanos, Cidadania, Rede, PSB, PDT, PT, PcdoB, PSol. O deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP), que também é a favor da manutenção da prisão, foi escolhido relator pelo presidente da Câmara, o que indica uma tendência da votação. Lira tem dado demonstrações de que não pretende tomar partido do deputado contra o Supremo, muito pelo contrário. Entretanto, também não quer se desgastar com sua base de apoio.
O fato é que Daniel Silveira conseguiu isolar os deputados de extrema-direita na Câmara, que reagiram de forma atabalhoada à prisão, com duras críticas ao STF, criando constrangimentos para os deputados contrários à prisão em flagrante por razões jurídicas. Esses parlamentares discordam da interpretação dada pelo Supremo às circunstâncias em que os ataques foram cometidos, no caso, por meio das redes sociais, para caracterizar o flagrante delito. Consideram a prisão abusiva, por supostamente desrespeitar o instituto da imunidade parlamentar. A maioria dos deputados, porém, repudia as agressões de Daniel ao Supremo e seus ministros, por representarem um atentado ao Estado de direito democrático. Muitos já se manifestam a favor da cassação do mandato do parlamentar pelo Conselho de Ética da Câmara.
Para os deputados do chamado Centrão, a força hegemônica na Câmara, a votação de hoje pode ser um providencial divisor de águas em relação ao grupo bolsonarista de raiz, demarcando os limites institucionais nos quais estão dispostos a conviver com o grupo e também a apoiar o presidente Jair Bolsonaro. De certa forma, essa fronteira foi delineada por Lira na conversa que teve ontem com o presidente Jair Bolsonaro, na qual o avisou de que a tendência da Câmara era manter a prisão. Silveira está sendo tratado como um falastrão desastrado e radical, que só cria problemas para seus aliados.
Náufrago
Além de manter a prisão do parlamentar, o clima é favorável à cassação do mandato no Conselho de Ética, que já está funcionando e quer tratar o assunto em ritmo acelerado. Daniel Silveira não é um parlamentar querido e respeitado por seus colegas, tem apenas dois anos de mandato, nenhuma experiência parlamentar anterior e comportamento considerado arrogante. Esse é o perfil sob medida para uma cassação pela própria Câmara, que tem a tradição de expurgar àqueles que são considerados indesejáveis, às vezes para purgar os próprios pecados da Casa. É bom lembrar que a maioria dos integrantes do Centrão é formada por políticos tradicionais que sobreviveram ao tsunami eleitoral de 2018, em cujas ondas surfaram Daniel Silveira e outros deputados de extrema-direita.
O vento da eleição de Arthur Lira à Presidência da Câmara, na qual contou com o apoio do grupo bolsonarista, rondou. Daniel Silveira não ajustou as velas e naufragou. O próprio presidente Jair Bolsonaro lavou as mãos no caso de sua prisão, apesar das pressões dos filhos Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), deputado federal, e Carlos Bolsonaro (PR), vereador no Rio de Janeiro. A prioridade do Palácio do Planalto é aprovar a PEC Emergencial, que incluirá o auxílio emergencial, e o Orçamento de 2021. Nesse sentido, a confusão criada por Silveira somente atrapalha os objetivos do governo. Em algum momento, provavelmente, Bolsonaro sinalizará para sua base de apoio alguma solidariedade ao parlamentar, mas isso somente criará mais problemas para o próprio governo.
Luiz Carlos Azedo: O que está em jogo?
A revogação da prisão do deputado Daniel Silveira ganharia ares de impunidade para um comportamento inaceitável numa ordem democrática, à qual se opõe
O Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, manteve a prisão em flagrante do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), aquele que na campanha eleitoral destruiu uma placa de rua com o nome da vereadora Marielle Franco (PSol), assassinada por milicianos do Rio de Janeiro. Na terça-feira, o parlamentar, em live de quase 20 minutos, fez ameaças ao STF e a diversos ministros da Corte, com afirmações caluniosas e atentatórias ao Estado de direito democrático. À noite, foi preso pela Polícia Federal, que cumpriu mandado de prisão em flagrante expedido pelo ministro Alexandre de Moraes.
Ex-policial militar, várias vezes punido por mau comportamento, Silveira deixou a corporação ao se eleger deputados federal na onda bolsonarista, em 2018. Está sendo investigado nos inquéritos que apuram as fake news contra o Supremo e os responsáveis pelas manifestações em favor de uma intervenção militar, sob responsabilidade do ministro Moraes. É suspeito de supostas ligações com as milícias do Rio de Janeiro e de ser um dos líderes dos grupos de extrema-direta que pregam a volta do regime militar.
O pretexto para gravação do vídeo por Silveira foram as declarações do ministro Édson Fachin a propósito do depoimento do ex-comandante do Exército Eduardo Villas-Boas, ao Centro de Pesquisa e Documentação (CPDoc) da Fundação Getulio Vargas (FGV), no qual o general afirma que o texto de seu Twitter sobre o julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio da Silva, em 2018, fora discutido no Alto-Comando do Exército. No vídeo, Silveira também defende a volta do Ato Institucional nº 5, que levou à fascistização do regime militar implantado após o golpe de 1964 , que destituiu o presidente João Goulart.
O vice-procurador-geral da República Humberto Jaques de Medeiros, ontem mesmo, denunciou Silveira por instigar a ruptura institucional e a animosidade entre o Supremo e as Forças Armadas. A decisão unânime do Supremo cria também jurisprudência sobre esse tipo de manifestação, nas redes sociais, que prega a ruptura da democracia e a violência contra seus poderes constituídos. Hoje, haverá audiência de custódia de Daniel Silveira, mas dificilmente sua prisão em flagrante será revogada por Moraes.
A prisão de Silveira pegou de surpresa o Congresso, principalmente o presidente da Câmara, Arthur Lira, que recém-assumiu o cargo e já está no epicentro de uma crise política provocada por um de seus aliados. A decisão de Moraes gerou polêmica sobre a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar, principalmente, na Câmara, onde aliados de Silveira protestaram contra a decisão por afinidade ideológica. Outros parlamentares, porém, por convicções políticas e jurídicas, consideram que a prisão em flagrante, nas circunstâncias que se deram, é uma afronta à imunidade parlamentar.
Narrativa fascista
Presidente da Casa, Lira havia convocado uma sessão plenária para discutir a questão hoje à tarde, mas a suspendeu. Em seu lugar, marcou uma reunião de líderes. Tenta, ainda, negociar a conversão da prisão em flagrante em prisão domiciliar, para evitar um confronto entre a Câmara e o Supremo, mas essa possibilidade ontem era muito remota. É prerrogativa da Câmara revogar ou não a prisão de deputado. Por mais que se faça uma discussão técnica na Casa, qualquer decisão será política.
A defesa do instituto da imunidade tem forte apelo entre os pares de Silveira. Muitos já são favoráveis à punição do parlamentar pela própria Casa, onde já foi apresentado, pelos partidos de oposição, um pedido de cassação de mandato, por quebra de decoro parlamentar, na Comissão de Ética da Câmara. Nos bastidores, cresce a avaliação de que a revogação da prisão de Silveira não vale um confronto com o Supremo, que seria muito desgastante para os dois Poderes e a antessala de uma grave crise institucional. A manifestação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), foi no sentido de evitar essa crise.
No sábado de Carnaval, os decretos do presidente Jair Bolsonaro sobre venda de armas, uma espécie de “liberou geral” para quem gosta de andar armado, invadiram as prerrogativas do Congresso e geraram apreensão entre os parlamentares, porque os grupos de extrema-direita que Silveira e outros deputados representam estão se transformando em milícias políticas armadas. A truculência desses grupos, principalmente nas eleições, é uma ameaça à democracia.
Foi essa truculência que Daniel Silveira escalou ao ameaçar os ministros do Supremo, pois já tinha dado mostras desse comportamento em diversos episódios, desde a sua eleição. A revogação de sua prisão, em termos políticos, ganharia ares de impunidade para um comportamento inaceitável numa ordem democrática, à qual Silveira se opõe; legitima uma narrativa política de características fascistas na tribuna da Câmara. A imunidade parlamentar tem outras dimensões, que precisam ser consideradas.