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O Brasil está em guerra pela democracia. E o Congresso, cadê?
O País está no pior dos mundos, com mais de 560 mil mortos pela covid-19 e enfrentando uma crise institucional; e o Congresso, onde está?
Eliane Catanhede / O Estado de S. Paulo
Primeiro, o Congresso triplicou o fundo eleitoral para escandalosos R$ 5,7 bilhões em plena pandemia de covid-19 e de desemprego. Depois, tratou de reduzir os mecanismos de controle sobre essa dinheirama, propondo um código que tira a Justiça Eleitoral da frente e praticamente deixa a “fiscalização” do fundo e das campanhas por conta dos... partidos.
O País está no pior dos mundos, com mais de 560 mil mortos pela covid-19 e enfrentando uma crise institucional de um presidente da República que ameaça rasgar a Constituição contra o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal Superior Eleitoral e os próprios ministros, que resistem bravamente em nome da democracia. E o Congresso, onde está?
STF, TSE, milhares de empresários, intelectuais e líderes religiosos, sociedades de ciência e direitos humanos, entidades profissionais e religiosas, subprocuradores da República e grupos de parlamentares cerram fileiras contra os ataques de Bolsonaro à Constituição e às eleições. A resistência, porém, não encontra o devido eco na “casa do povo”, onde a maioria está mais preocupada com a própria reeleição e com o próprio bolso do que com a democracia.
O Congresso está nas nuvens, cuidando dos próprios interesses, ampliando seus privilégios. Na Câmara, com apoio explícito do presidente Arthur Lira (PP-AL). No Senado, com a atitude excessivamente, digamos, elegante do presidente Rodrigo Pacheco (quase exDEM-MG). É preciso mais. É preciso gritar e articular uma defesa enérgica das instituições, da democracia.
E é urgente, depois que o líder do Centrão Ciro Nogueira abocanhou a “alma do governo” e tem de pagar com a alma do Congresso. Nogueira é unha e carne com Arthur Lira, fiel guardião do cofre onde estão em torno de 130 pedidos de impeachment, e acaba de ignorar a derrota do voto impresso na Comissão Especial. Vai tentar ressuscitar a proposta – atual obsessão de Bolsonaro – no plenário. O regimento permite, mas nunca se viu.
Há, porém, focos de resistência democrática também no Parlamento, ativos e ruidosos. No Senado, a CPI da Covid confirma o quanto o governo, sob o descaso ou a inspiração de Bolsonaro, virou uma casa da mãe Joana aberta a picaretas e picaretagens na pandemia. Na Câmara, a união de 11 partidos pela urna eletrônica e de parlamentares de diferentes orientações ideológicas pró Supremo, democracia e eleições.
Num único dia, Bolsonaro sofreu tripla derrota: o presidente do Supremo, Luiz Fux, rompeu o diálogo com ele; o PIB e a inteligência brasileira finalmente deram as caras pela democracia e as eleições; e, por 23 votos a 11, a Comissão Especial da Câmara rejeitou a volta do famigerado voto impresso. Com 11 partidos contrários, a proposta deve sofrer nova derrota em plenário. Se passar, vai enfrentar uma muralha no Senado, como o presidente Pacheco anuncia.
Nada disso, porém, consegue disfarçar o esforço parlamentar para criar o “distritão” e um Código Eleitoral obscurantista. Pelo “distritão”, só terão chance de vitória para a Câmara as celebridades, os pastores de almas, os muito ricos, os que já têm mandato e... as milícias. E a proposta de Código Eleitoral reduz as cotas da diversidade e o poder de fiscalização e punição da Justiça Eleitoral, com as raposas tomando conta do galinheiro.
Logo, a poderosa resistência que ganha corpo no Brasil deve não apenas mirar nas ameaças contumazes do presidente da República à democracia, mas também nas “boiadas” no Congresso contra a moralidade pública, a lisura das campanhas eleitorais, o meio ambiente. Bolsonaro não dá bola para nada, mas deputados e senadores são suscetíveis à opinião pública e aos setores responsáveis da sociedade. O grito deve ser: sim à democracia, não às “boiadas”!
Fonte:
O Estado de S. Paulo
Urna eletrônica: 'Fraude é denunciar fraude inexistente', afirma analista
Para o argentino Daniel Zovatto, pressão por voto impresso é descabida e é ‘inoportuno e perigoso’ mudar regras a um ano das eleições
Daniel Bramatti, O Estado de S.Paulo
O argentino Daniel Zovatto nunca foi candidato a nada, mas de eleições ele entende, e muito. Diretor para a América Latina do Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral (Idea Internacional), ele conhece a fundo as instituições e autoridades que organizam votações em toda a região. Também monitora, com muita preocupação, o estado de saúde da democracia em todo o mundo.
Para Zovatto, a pressão pela implantação do voto impresso no Brasil é descabida. Ele considera que é “inconveniente, inoportuno e perigoso” mudar as regras das eleições quando falta pouco mais de um ano para os brasileiros irem às urnas.
Na entrevista abaixo, na qual manifesta opiniões pessoais, e não da instituição que representa, o doutor em Direito Internacional analisa, entre outros pontos, a estratégia dos políticos que buscam deslegitimar eleições em caso de risco de derrota.
Como analisa o conflito em relação ao sistema de votação no Brasil?
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) traçou uma linha vermelha oportuna e necessária ao abrir uma investigação sobre o presidente Jair Bolsonaro e ao emitir uma nota assinada por todos os ex-presidentes do TSE em defesa da urna eletrônica, que tem sido atacada quase diariamente pelo chefe do Executivo. Bolsonaro, por sua vez, reagiu dizendo que não aceitará intimidação e que continuará a exercer seu direito à liberdade de expressão, a criticar, a escutar e a atender, acima de tudo, à vontade do povo. E, fiel à sua palavra, ele continuou com seus ataques e denúncias. Como resposta, o ministro Luiz Fux, presidente do STF, cancelou uma reunião de chefes de Poderes. Diante do atual clima de tensão, seria desejável abrir um espaço para o diálogo respeitoso entre o Executivo, o STF e o TSE, visando desescalar o conflito, mas sem abandonar a abordagem básica em defesa da independência do TSE, da credibilidade da urna eletrônica e da defesa do sistema democrático.
O que está por trás da pressão pela adoção do voto impresso?
Na minha opinião, houve uma ameaça muito forte à democracia brasileira quando a realização das próximas eleições foi condicionada à adoção do voto impresso. Diante desta grave ameaça, o TSE agiu corretamente, mostrando que tem poder suficiente para defender o processo eleitoral. Isto representa uma mudança muito importante. Se até a semana passada Bolsonaro agia como se não tivesse nada a perder, após a ofensiva do TSE o presidente é alvo de um risco triplo: pode perder a cadeira presidencial se o TSE encontrar irregularidades na campanha de 2018; pode sofrer impeachment; e pode ser impedido de ser candidato nas eleições de 2022.
Considera que o TSE deu uma resposta institucional, em nome de todo o Judiciário?
O TSE tem uma composição única na América Latina, pois seu presidente e parte de seus ministros também são do Supremo Tribunal Federal, e por concentrar tanto funções administrativas quanto judiciais. Estas características fazem do TSE uma instituição muito poderosa. Existem outros órgãos eleitorais sendo atacados na América Latina pelo Executivo – o INE no México –, por deputados do partido no poder – o TSE na Bolívia – ou pela oposição que perdeu as eleições – a JNE no Peru –, mas nenhum dos três tem a capacidade de reagir como o TSE brasileiro. Conheço o TSE desde 1990. Desde então, tenho colaborado com vários programas de cooperação técnica e com a maioria de seus presidentes. Tenho grande respeito e admiração por esta instituição, suas autoridades e equipes por seu profissionalismo, independência e transparência; respeito e admiração que é compartilhado por todos os órgãos eleitorais da América Latina. Também tenho grande confiança e admiração pela urna eletrônica brasileira. Tive a honra de acompanhar sua implementação e melhoria graduais desde 1996 até hoje. É um instrumento seguro, transparente e auditável. Nesses 25 anos de existência, nenhuma fraude foi provada. Por todas estas razões, não vejo razão para justificar sua reforma, e muito menos neste momento em que as eleições de outubro de 2022 estão a apenas 14 meses de distância. Fazer a reforma proposta é inconveniente, inoportuno e perigoso.
Quando reformar os processos eleitorais a fim de aperfeiçoá-los?
O sistema presidencial é baseado na divisão de Poderes, que exige respeito pela independência de cada Poder, um sistema de freios e contrapesos, diálogo para resolver de forma respeitosa e responsável as tensões que surgem. Na concepção, implementação e melhoria do sistema eleitoral, em sentido amplo, é aconselhável que cada poder faça a contribuição estabelecida na Constituição e que exista um diálogo frutífero entre eles, baseado no reconhecimento da independência dos Poderes, no respeito recíproco e na responsabilidade que vem com o exercício do cargo.
Como autoridades responsáveis pela organização de eleições devem responder a ataques à urna eletrônica?
Primeiro: expor todos os falsos argumentos que denunciam supostas fraudes. Demonstrar, com provas claras, que a verdadeira fraude é a denúncia de uma fraude inexistente. Realizar investigações e auditorias que demonstrem a robustez do sistema eleitoral, a solidez da urna eletrônica e a independência e profissionalismo das autoridades eleitorais. E, como o TSE vem fazendo, exercer ao máximo as competências e poderes que lhe são conferidos pela Constituição e pelas leis. A recente nota do TSE assinada por todos os antigos e pelo atual presidente do TSE desde a Constituição de 1988 e os discursos dos ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux são uma contribuição muito valiosa neste sentido. Segundo: buscar, no país, o apoio do maior número possível de partidos políticos, acadêmicos, especialistas eleitorais, ex-membros do TSE, associações profissionais, ONGs e jornalistas e, internacionalmente, convidar instituições e órgãos eleitorais de renome internacional para que visitem o Brasil, realizem investigações e, se as conclusões forem positivas, contribuam para proteger o TSE, a urna eletrônica e a condução do processo eleitoral. Terceiro: convidar missões de observação eleitoral de prestígio (ONU, OEA, UE, entre outras) a ir ao Brasil para acompanhar o processo ao longo de suas diferentes etapas e fazer observações e recomendações.
De um ponto de vista técnico, é possível melhorar a segurança do voto eletrônico. Como esta discussão deve ser conduzida?
Cada país é soberano ao decidir os mecanismos de votação que deseja utilizar. Globalmente, existem vários mecanismos. Os mais comuns são a cédula única em papel, em várias formas, e o voto eletrônico, em suas várias formas, incluindo o voto pela internet. Há também várias formas de votar: votar somente no dia da eleição; votar pessoalmente; votar antecipadamente pelo correio; levar a urna de votação para a casa do eleitor etc. Alguns países até combinam vários mecanismos e várias formas de votação.
Mas o mais importante é que os mecanismos de votação que cada país escolher devem gerar certeza, segurança, transparência, serem auditáveis e, sobretudo, gozar de muita credibilidade e legitimidade entre os cidadãos. Se o mecanismo de votação em vigor em um país goza de altos níveis de confiança, legitimidade e credibilidade, é aconselhável mantê-lo, sem prejuízo de fazer ajustes periódicos para melhorar seu desempenho e eficácia. Por outro lado, quando o mecanismo sofre de debilidades que poderiam comprometer a confiança e credibilidade do público, é aconselhável realizar um processo de reflexão e revisão, baseado em evidências concretas e demonstráveis, com o objetivo de identificar as possíveis causas do problema e as opções mais adequadas para solucioná-lo.
Como consequência, qualquer proposta de reforma eleitoral, especialmente no caso do mecanismo de votação, deve ser bem fundamentada, e as opções propostas para substituir o mecanismo atual devem demonstrar solidez técnica e viabilidade política. Outros fatores que devem ser cuidadosamente analisados são: demonstrar que o saldo líquido da reforma – benefícios menos efeitos negativos – é positivo; determinar seu custo econômico; basear-se num consenso político o mais amplo possível; e determinar, com o parecer técnico do corpo eleitoral, se há tempo suficiente para sua implementação sem assumir riscos sérios para a conclusão bem sucedida do processo eleitoral. A experiência comparativa sugere que, a fim de reduzir os riscos, mudanças no mecanismo de votação devem ser implementadas gradualmente, ou seja, em etapas sucessivas, como foi o caso com a implementação da urna eletrônica no Brasil.
BOLSONARO EM SANTA CATARINA
Donald Trump, como presidente, atacou a legitimidade das eleições nos Estados Unidos. Que influência isso tem sobre os países com tradições menos democráticas, especialmente na América Latina?
Muito forte, infelizmente. Acabamos de ver exemplo disso no Peru, na fase pós-eleitoral do segundo turno das eleições, com as múltiplas alegações de fraude, nunca provadas, feitas por Keiko Fujimori e seu partido Fuerza Popular, e os graves ataques realizados contra as autoridades. Também vimos isso nas recentes eleições no México, de junho e o referendo do último domingo, quando o presidente Lopez Obrador e seu partido Morena acusaram repetidamente o INE de ser o órgão eleitoral mais caro do mundo e de ser um obstáculo à democracia. E nesta semana, na Bolívia, um deputado do partido governista MAS apresentou uma queixa criminal contra quatro magistrados do Tribunal Supremo Eleitoral.
Uma tendência semelhante parece estar ocorrendo no Brasil com os ataques e denúncias de Bolsonaro contra a urna eletrônica e o presidente do TSE, a quem ele chamou de "idiota" e "imbecil" em julho. Deve-se lembrar que Bolsonaro, nas eleições de 2018, já havia ameaçado não reconhecer os resultados se ele não ganhasse.
Qual é o objetivo de quem busca o descrédito dos processos eleitorais?
A estratégia é semelhante na maioria dos países onde este fenômeno ocorre. Com bastante antecedência, com mentiras e falsas alegações, procuram gerar confusão, semear dúvidas sobre a credibilidade do processo eleitoral, a independência das autoridades eleitorais e a segurança do sistema de votação, criando uma realidade paralela que procura deslegitimar completamente o processo eleitoral no caso de uma derrota. Se eu perco, dizem eles, é porque houve fraude. Os danos que causam ao processo eleitoral, às autoridades eleitorais, às instituições e à democracia são enormes, e seus efeitos se estendem além do processo eleitoral.
Quando alguém analisa se um país está no caminho de se tornar menos democrático, em que se deve prestar mais atenção?
A experiência comparativa, global e regionalmente, identifica quatro luzes amarelas que indicam que estamos enfrentando um perigoso processo de deterioração democrática. Quando não se aceita as regras democráticas ou se joga permanentemente em seus limites. Quando não se reconhece a oposição como um ator legítimo – a oposição é desconsiderada, desqualificada e difamada. Quando se ataca constantemente a imprensa e se impõem restrições ao exercício da liberdade de expressão. E quando se promove o ódio e a violência, física ou verbal, de maneira expressa ou sutil, polarizando a sociedade o máximo possível. Há outros indicadores que normalmente acompanham estes quatro: 1) ataques frontais à divisão de poderes, especialmente às instituições que restringem propostas autoritárias, seja o Congresso, quando não se tem controle sobre ele, o Judiciário, os órgãos de controle, os tribunais eleitorais etc; 2) redução do espaço de ação da sociedade civil; e 3) aumento dos níveis de polarização ao extremo, com a divisão da sociedade em amigos e inimigos, e uso abusivo das redes sociais para atingir este objetivo.
De acordo com analistas e cientistas políticos, atualmente os autocratas atacam a democracia de forma lenta e gradual, e não tanto de maneira abrupta. Concorda com esse ponto de vista?
Concordo plenamente. Embora os golpes não tenham desaparecido completamente, como mostram Honduras em 2009 e Mianmar em 2021, a experiência comparativa indica que os principais e mais perigosos ataques à democracia hoje são realizados por atores que chegaram ao poder através de eleições e que, uma vez eleitos, enfraquecem gradual e permanentemente a democracia de dentro do poder. A maioria dos ataques à democracia em nosso tempo não ocorre por golpes de Estado, mas por quem está no poder e em câmera lenta, como é demonstrado em nossa região pelos regimes autoritários da Venezuela e da Nicarágua.
Como a democracia deve ser defendida quando seu processo de corrosão é gradual e muitas vezes não perceptível pela maioria da população?
Uma estratégia ampla tem de ser implementada, tanto a nível interno como a nível regional e global. A democracia está sitiada em muitos países. As tendências autoritárias estão ganhando terreno, como evidenciado por muitos relatórios de prestígio, incluindo a Economist Intelligence Unit, o projeto V-DEM, os relatórios da Freedom House e o relatório da International IDEA sobre o estado global da democracia. Precisamos estudar com mais profundidade este novo tipo de autoritarismo que está atualmente em construção, a fim de confrontá-lo de forma mais rápida e eficaz. Precisamos estar conscientes da fragilidade da democracia e dos riscos crescentes que ela enfrenta, bem como dos processos de retrocesso que estão ocorrendo em muitos países ao redor do mundo. Nenhum país é vacinado contra o vírus autoritário. Também é necessário rever e atualizar os mecanismos para a defesa regional da democracia, incluindo os estabelecidos pela Carta Democrática Interamericana, que completa 20 anos em 11 de setembro e se tornou ultrapassada diante do novo tipo de ameaças que a democracia enfrenta hoje. A Idea Internacional tem feito um duplo apelo: por um lado, para defender a democracia durante este período tão turbulento em nossa região, agravado pelo impacto da pandemia, e, por outro lado, para repensá-la a fim de avançar para uma nova geração de democracia, mais resistente e de melhor qualidade, com a capacidade de responder de forma oportuna e eficaz aos novos desafios do século 21.
Qual é o papel da desinformação, e sua ampliação nas redes sociais, na atual crise da democracia?
Novas tecnologias de informação e comunicação estão aqui para ficar e apresentar novos e difíceis desafios para a política, a integridade das eleições e a qualidade da democracia. As redes sociais e sua relação com as eleições, a política e a democracia têm, como o deus Jano, duas faces, Por um lado, essas ferramentas, quando utilizadas adequadamente, têm um efeito positivo no desenvolvimento de processos eleitorais legítimos, melhoram a qualidade da democracia, garantem o pleno exercício da liberdade de expressão, contribuem para um debate público informado e promovem a participação cidadã.
Mas, por outro lado, quando mal utilizadas, elas representam novas e sérias ameaças. As bolhas de filtragem ideológicas e as câmaras de eco geradas pelas redes sociais podem fomentar o ódio, aumentar perigosamente a polarização e facilitar a ação dos movimentos pós-verdade. Também podem contribuir para a viralização de notícias falsas e de campanhas de desinformação, afetando a condução normal das campanhas eleitorais, minando a confiança no processo e nas instituições eleitorais e manipulando o comportamento eleitoral dos cidadãos.
Como as plataformas e redes sociais devem responder aos ataques à democracia, sem restringir a liberdade de expressão?
Após o escândalo da Cambridge Analytica, as plataformas adotaram e continuam a adotar uma série de medidas destinadas a combater notícias falsas e desinformação durante os períodos eleitorais, incluindo códigos de conduta para reforçar a transparência e garantir informações confiáveis. Em um número significativo de países, dentro e fora de nossa região, os Legislativos também adotaram novas e melhores regulamentações sobre esta questão para preencher as lacunas legais existentes em muitos países da região.
Por sua vez, numerosos órgãos eleitorais, incluindo o TSE do Brasil, o INE do México e o TE do Panamá, tomaram uma postura proativa diante deste importante fenômeno e implementaram várias medidas e mecanismos, entre eles: desenvolver suas próprias capacidades institucionais e habilidades em assuntos digitais; promover debates on-line; assinar pactos éticos digitais com uma ampla coalizão de atores, como partidos políticos, organizações da sociedade civil e meios de comunicação tradicionais; chegar a acordos de colaboração – formais ou informais – com plataformas digitais; incentivar o uso responsável de redes; implementar mecanismos de verificação de fatos em colaboração com meios de comunicação tradicionais, universidades, grupos de reflexão e organizações da sociedade civil; implementar campanhas de educação digital para os cidadãos e sobre conteúdos educacionais sobre o processo eleitoral; e fomentar a cooperação horizontal entre os órgãos eleitorais e compartilhar boas práticas e lições aprendidas em relação a este fenômeno, tudo com o objetivo de mitigar os excessos e efeitos negativos das redes sociais durante as campanhas eleitorais e, ao mesmo tempo, maximizar seus efeitos positivos, sempre tomando cuidado para que estas medidas não afetem o pleno gozo da liberdade de expressão. Mas a liberdade de expressão não deve e não pode ser mal utilizada ou manipulada para propagar com impunidade notícias falsas ou campanhas de desinformação destinadas a deslegitimar um processo eleitoral ou atacar as instituições ou a própria democracia.
Qual deveria ser a posição de um presidente democrata em relação à oposição? Em que ponto se passa da crítica aceitável para os ataques que procuram deslegitimar a oposição?
Democracia é sinônimo de pluralismo, diálogo, respeito, tolerância. A oposição deve ser racional e jogar limpo. O Executivo também deve. Ambos devem reconhecer e respeitar um ao outro como jogadores legítimos no jogo democrático. Um presidente democrático deve defender seu programa e suas propostas com firmeza, mas sempre com respeito, reconhecendo a oposição como um jogador-chave no jogo democrático. Deve ser evitado um nível excessivo de polarização que leva a um jogo de soma zero, e a uma desqualificação e difamação da oposição que implica não reconhecê-la como um ator legítimo no jogo democrático. Em alguns casos, tais como Nicarágua e Venezuela, vemos como o Executivo desqualifica ou prende partidos e líderes da oposição. Em outros, como no caso de Bukele em El Salvador, adjetivos difamatórios são usados quando se refere à oposição. Sem uma oposição autêntica, não há democracia
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Fonte: O Estado de S. Paulo
Alon Feuerwerker: A raiz da instabilidade
Já havia sido bastante descrito e dissecado que o (primeiro?) mandato presidencial de Jair Bolsonaro seria uma disputa de bonapartismos. A fraqueza terminal dos governos Dilma Rousseff e, depois, Michel Temer trouxe pelo vácuo a anabolização de múltiplos polos de poder em Brasília. Especialmente no Ministério Público, Polícia Federal e Poder Judiciário. Mas também, por exemplo, no Tribunal de Contas da União. Sem falar do Congresso Nacional.
Daí que, para governar, o presidente eleito em 2018, qualquer que fosse, veria pela frente uma batalha morro acima pela retomada de poder. Inclusive o Moderador, que formalmente foi revogado com a República mas na prática permaneceu em vigor na mão do Executivo até bem pouco tempo atrás. A Constituição de 1988 deu mais músculos ao Legislativo, mas pelo menos até o primeiro mandato de Dilma os presidentes vinham submetendo deputados e senadores.
Bolsonaro estava manobrando com alguma eficiência nesse teatro de operações. Um exemplo? Livrou-se do até então dito superministro Sergio Moro sem maior custo político imediato. E emplacou com alguma facilidade os indicados ao Supremo Tribunal Federal, à Procuradoria Geral da República e ao TCU. E viu a vitória de um aliado para comandar a Câmara dos Deputados. Mas em Brasília não dá para deixar flanco desprotegido. E assim estava o Senado Federal, como se viu na hora complicada.
E vieram a pandemia, e os lapsos de avaliação e condução de Jair Bolsonaro. Algum dia talvez se explique como e por que o presidente conseguiu distanciar sua imagem o máximo possível, e simultaneamente, do isolamento e afastamento sociais, do uso de máscaras e da vacinação. Podia ter escolhido esta última, e teve a deixa quando o STF empoderou governadores e prefeitos. Não fez. E nesse ínterim Luiz Inácio Lula da Silva teve a elegibilidade devolvida pelo STF.
E explodiu o número de mortos pelo novo coronavírus. E instalou-se naquele flanco frágil, o Senado, a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19.
E a maioria da Câmara que bloqueia o impeachment não é de incondicionais, tem um custo orçamentário inédito.
A correlação de forças resultante dos fatores objetivos e subjetivos acabou ilhando o presidente no núcleo mais fiel dos eleitores dele e nos políticos menos condicionais. A ideia de que a popularidade de Bolsonaro está derretendo é falsa, ele mantém cerca 30%, a maior parte disso dispostos a votar nele no primeiro turno e o restante no segundo. O problema (dele) é que os não incondicionais estão se agrupando contra. E isso parece cristalizar-se. E aumenta o custo político de manter uma base.
Mas o jogo não está jogado. O governo aposta na retomada da economia, nos novos benefícios sociais aos mais pobres e na contenção da Covid-19. A dúvida está em quanto a adesão a Bolsonaro será elástica em relação a cada uma dessas variáveis, e ao conjunto delas. Isso só o futuro dirá, mas por agora a eleição está configurada de modo amplamente desfavorável ao presidente.
Mais ou menos como no judô, quando você está imobilizado e precisa dar um jeito de sair da imobilização antes de o tempo regulamentar esgotar-se.
Na análise política, uma pergunta sempre útil é: “Se nada acontecer, acontece o quê?” Claro que é remota a possibilidade de na política brasileira faltando um ano e dois meses para a eleição nada se passar de relevante pró-governo até lá. Mas a raiz de toda a instabilidade política e, no limite, institucional, é o fato de, se nada acontecer de muito diferente, o presidente estar apontado para entrar na temporada eleitoral pressionado pelos números e precisando ele próprio alterar o cenário.
Pois, no momento, a inércia joga do outro lado.
* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Fonte: Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/08/a-raiz-da-instabilidade.html
Luiz Carlos Azedo: O partido fardado
O confronto aberto de Bolsonaro com o Supremo e o TSE, a propósito da segurança das urnas eletrônicas, é uma armadilha que precisa ser desarmada
O ex-ministro da Defesa Raul Julgmann, em artigos, entrevistas e lives, vem reiterando a necessidade de o Congresso debater a questão militar no Brasil, para definir claramente a política de Defesa Nacional, o papel das Forças Armadas, suas relações com a sociedade e os limites da participação dos militares da ativa na administração pública. Esse debate está na ordem do dia, protagonizado por estudiosos e militares da reserva, em razão das atitudes e declarações golpistas do presidente Jair Bolsonaro e da presença de grande número de militares no seu governo, muitos dos quais da ativa.
As intervenções militares na vida política republicana foram frequentes: 1889 (Proclamação da República), 1893 (Revolta da Armada), 1922 (os 18 do Forte), 1924 (Revolução em São Paulo e início da Coluna Prestes), 1930 (a Revolução), 1935 (a Intentona), 1937 (o Estado Novo), 1945 (deposição de Vargas), 1954 (suicídio de Getúlio), 1954 (Memorial dos coronéis), 1955 (a “Novembrada”, deposição de Carlos Luz e Café Filho), 1956 (Jacareacanga), 1959 (Aragarças), 1961 (tentativa de impedimento de Goulart), 1963 (revolta dos sargentos), 1964 (deposição de Goulart), 1968 (AI-5).
Essas intervenções nunca tiveram um caráter moderador; a maioria atalhou ou afrontou a democracia, sendo derrotada. As que foram vitoriosas, quase sempre, arrastaram a cúpula militar para aventuras políticas e resultaram em regimes autoritários. Atos institucionais, fechamento do Congresso, cassação de mandatos e decretos-lei não têm esse caráter moderador. Foram obra do chamado “partido fardado”, que agora o presidente Jair Bolsonaro tenta ressuscitar, como um náufrago do passado.
O “partido fardado”, na definição de Oliveiros S. Ferreira, “é mais estado de espírito que organização”. Existiu até o governo do general Emílio Médici, como se fosse obra de quem buscasse, em diferentes momentos, “aglutinar os que se consideravam os reais defensores da ordem (um Estado bem-ordenado) e dos valores que as Armas haviam inscrito em suas almas, devendo agir contra qualquer governo que os ameaçasse.”
No contexto de sucessivas derrotas eleitorais do regime militar, o que matou o “partido fardado” foi a hierarquia. A lei de Castelo Branco sobre as promoções e o decreto-lei da “expulsória” consagraram o princípio do chefe. A demissão do general Sylvio Frota do Ministério do Exército pelo presidente Ernesto Geisel foi a sua morte. Alguns setores mais radicais ainda tentaram uma reação, no governo Figueiredo, inclusive por meio de atentados terroristas, como a bomba do Rio Centro, no Rio de Janeiro, mas fracassaram. A partir da eleição de Tancredo Neves, em 1985, os governos civis não mais precisaram se preocupar com os militares e sua visão da ordem, nem com a preservação dos valores castrenses. Até a formação do atual governo.
Armadilha
Após a vitória eleitoral de 2018, Jair Bolsonaro formou seu Estado-Maior com os generais da reserva e da ativa que o apoiaram. Diante das consequências, alguns se afastaram e têm se manifestado publicamente contra as atitudes do presidente da República. Bolsonaro tenta empregar as Forças Armadas na disputa política, o que é ilegal, não apenas para a sua reeleição, mas para mudar a natureza do regime político consagrado pela Constituição de 1988, o que é uma aventura golpista. Esses objetivos estão cada vez mais claros, em suas atitudes e declarações.
Um pequeno grupo de generais, liderado pelo atual ministro da Defesa, general Braga Netto, compartilha desses propósitos e tensiona a alta hierarquia das Forças Armadas, principalmente do Exército. Entretanto, a recidiva do “partido fardado” esbarra, novamente, na existência de leis e regulamentos, além de uma cadeia de comando constituída por critérios profissionais de antiguidade e de meritocracia. Nem por isso, porém, a questão deve ser subestimada.
Bolsonaro já demitiu um ministro da Defesa e os comandantes das três Forças; Braga Netto endossa o radicalismo do presidente da República e constrange os chefes militares. Nesse aspecto , o confronto aberto de Bolsonaro com o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a propósito da segurança das urnas eletrônicas, é uma armadilha, que pode ser desarmada pela Câmara, ao enterrar a polêmica sobre o voto impresso.
Bolsonaro volta a defender voto impresso em nova motociata
Após participar de 'motociata' em Florianópolis um dia após decisão de Lira de levar discussão ao plenário, presidente acena a parlamentares e critica STF
Fábio Bispo, Especial para o Estadão
FLORIANÓPOLIS - O presidente Jair Bolsonaro voltou a defender o voto impresso, conclamou a população a “lutar com todas as armas” pelo voto "auditável" e fez aceno a parlamentares. “Eleição fora disso não é eleição”, disse Bolsonaro em Florianópolis (SC), no início da tarde deste sábado, 7, após participar de "motociata" pelas avenidas da cidade.
O presidente repetiu os ataques aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) ao discursar para apoiadores na Beira-Mar Continental de Florianópolis: ”Não são meia dúzia dentro de uma sala secreta que vai contar e decidir quem ganhou as eleições; não vai ser um ou dois ministros do Supremo. Quem tem legitimidade além do presidente (da República) é o Congresso Nacional”, declarou.
Na sexta-feira, 6, o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), decidiu levar para o plenário a discussão sobre o voto impresso, após o projeto ter sido derrotado em comissão especial nesta quinta-feira, 5, por um placar de 23 a 11, em comissão especial da Casa. Lira optou pela estratégia arriscada para agradar ao Palácio do Planalto, mas avisou Bolsonaro que, se o texto for rejeitado, não aceitará ruptura institucional.
No ato com tom de campanha em Santa Catarina, Bolsonaro aproveitou para atacar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que lidera pesquisas de intenção de voto para as eleições do próximo ano, e fez ilações em tom alarmista citando o regime político da Venezuela.
“A gente vê na pequena Pacaraima, cidade de Roraima, onde o Exército brasileiro acolhe centenas de pessoas por dia que fogem do paraíso socialista da Venezuela. Muitas são grávidas com crianças pequenas que chegam lá arrastando seus filhos com uma mala na mão e uma trouxa de roupas na cabeça. Muitas sendo obrigadas a se prostituírem para dar de comer aos seus filhos. Nós sabemos como aquele regime começou, quem apoiou. Não preciso dizer que o é o bandido de nove dedos”, declarou. “Não queremos isso para o Brasil. E mais do que não queremos, lutaremos com todas as armas disponíveis para que isso não aconteça em nossa pátria.”
E a ofensiva contra Lula se estendeu aos ministros: “O ladrão de nove dedos, que seus amigos é que vão contar os votos dentro de uma sala secreta”.
Por diversas vezes, Bolsonaro pregou a união de seus apoiadores para combater as supostas ameaças que tem levantado, sempre sem provas, contra a democracia brasileira. ao insistir em eleições com voto impresso. “Há 50 anos eu jurei dar minha vida pela pátria, mas juntamente com vocês, agora, nós juramos dar a nossa vida pela nossa liberdade.”
E mandou recado aos que defendem a legalidade e segurança do atual sistema eleitoral Brasileiro - sem voto impresso -, a quem nominou de não democratas: “Quem não é democrata não tem espaço no resto do Brasil. Eu tenho limites, alguns poucos acham que são o dono do mundo, vão quebrar a cara. Nós queremos e exigimos nada mais além disso. Não continuem nos provocando, não queiram nos ameaçar”, disse ao final do discurso.
Prisão
A Polícia Militar informou que 24 mil motocicletas participaram do evento em Florianópolis, que teve a participação de diversos grupos de motociclistas da Região Sul do País. No palanque, montado no último trecho da "motociata", Bolsonaro discursou ao lado da vice-governadora de Santa Catarina, Daniela Reinerh, do senador Jorginho Melo (PL-SC), da deputada federal Caroline De Toni (PSL-SC), do deputado federal Daniel Freitas (PSL-SC) e do empresário Luciano Hang, que esteve ao seu lado desde a recepção no aeroporto.
O comboio de motos percorreu mais de 60 quilômetros pelas avenidas de Florianópolis. Apesar de não ser evento oficial da Presidência, a "motociata" mobilizou forte aparato público, com reforço no policiamento, guarda municipal, utilização de helicópteros, ambulâncias, entre outros. Diversas vias da cidade foram bloqueadas para o evento.
Pela manhã, um homem foi detido, segundo a PM, por ter atirado objeto nos apoiadores do presidente. Segundo comandante do 4º Batalhão da PM, Tenente-Coronel Dhiogo Cidral, não houve representação registrada pelas supostas vítimas. O homem foi levado para delegacia, onde foi lavrado um Termo Circunstanciado, e acabou liberado.
Fonte: O Estado de S. Paulo
*Título do texto original foi alterado para publicação no portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP)
Anistia Internacional: Lentes da pandemia ajudaram a ver racismo
Para Jurema Werneck, morte é um produto constante da discriminação racial no país
Victoria Damasceno, da Folha de S. Paulo
Foto: Lucas Jatobá/Anistia Internacional Brasil
Caso alguém não tivesse percebido a tragédia que o racismo estrutural produz na vida de homens e mulheres negras, Jurema Werneck, médica e diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil, acredita que as lentes da pandemia a tenham deixado evidente.
Ouvida recentemente na CPI da Covid, que investiga a atuação do governo Bolsonaro na gestão da pandemia de coronavírus, disse que “o vírus procura oportunidade, mas a injustiça, a desigualdade, as iniquidades fizeram diferença”.
Os negros foram as principais vítimas da Covid-19 e, mesmo diante da pandemia, continuaram a ser principais alvos da violência policial. Para Werneck, esse é o objetivo do Estado: fazer morrer os indesejáveis.
“A morte é um produto constante do racismo”, disse em entrevista à Folha.
Homens negros são o segmento mais atingido, tanto pelas mortes por Covid como pela violência de Estado. Seu desaparecimento nas famílias, porém, tem impacto direto na vida das mulheres negras, explica.
“São homens adultos que desaparecem da família, cujo rendimento ou cuja presença ajudava na gestão familiar, e, com o desaparecimento desse homem, o peso fica sobre os ombros das mulheres negras.”
A diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil acredita que mulheres negras deveriam estar no centro das decisões do Estado. Mostra, porém, que chegam ao Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, neste 25 de julho, mais vulnerabilizadas do que antes da pandemia.
Para que aspecto da vida da mulher negra brasileira o Estado deve olhar? Deve olhar para a vida da mulher negra. As mulheres negras são o maior segmento populacional do Brasil. Mas também vemos indicadores que dizem que 38% das mulheres negras vivem na pobreza.
Quando olhamos o impacto direto da Covid-19, vemos que a população negra teve taxas de mortes mais altas que o restante da população. É verdade que as maiores taxas estão entre os homens, mas as taxas das mulheres estão altas. E as taxas entre os homens negros também têm um impacto forte na vida das mulheres [negras], porque são homens adultos que desaparecem da família, cujo rendimento ou cuja presença ajudava na gestão familiar, e com o desaparecimento desse homem, o peso fica sobre os ombros das mulheres negras.
Ou seja, tem que olhar pra vida das mulheres negras. Dizendo de outra forma, tem que botar o direito das mulheres negras no centro de qualquer decisão de gestão.
De acordo com a Pesquisa Nacional da Saúde de 2019, do IBGE, entre os adultos, pessoas negras são as principais usuárias do SUS. Mulheres negras, porém, estão entre as mais vulneráveis na pandemia de coronavírus. Onde esses dados se encontram? Isso não quer dizer um atendimento adequado e de qualidade. Os números da Covid são um exemplo. Tivemos altas taxas de morte nas unidades pré-hospitalares, nos pronto-socorros e UPAs [Unidades de Pronto Atendimento], ou seja, as pessoas não tiveram nem chance de entrar [no sistema]. E a maioria das pessoas que morreram lá eram negras. Essa disparidade segue sendo retratada.
Eu não estou dizendo que o SUS é ruim. Eu estou dizendo que ele não é bom. Essa precariedade do SUS está associada a essa negligência em relação à população.
Os 545 mil mortos no Brasil tem cor e endereço. São principalmente negros e pobres. A pandemia de coronavírus evidenciou ou agravou problemas já existentes? Certamente os dois. Ela evidenciou para os distraídos, porque eu acredito que haja distraídos no Brasil que não tenham visto antes a tragédia que o racismo sistêmico produz sobre nós, mulheres e homens negros. Mas se alguém não tinha visto antes, as lentes da pandemia ajudaram a ver.
A pandemia não inventou o efeito que o racismo sistêmico tem na vida da população negra e das mulheres negras, mas ela aprofundou porque antes, eram cerca de 33% das mulheres negras vivendo na pobreza, na pandemia passou a 38%. Isso é um aprofundamento.
As mortes também continuaram nas operações policiais, a despeito da decisão do STF que limitou operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia. Os homens negros são as principais vítimas, embora mulheres negras também sejam atingidas. Na sua avaliação, a violência de Estado atinge os homens e as mulheres negras de forma diferente? É de forma diferente porque a bala, no volume, atinge mais os corpos dos homens negros. Mas quando a bala atinge o corpo de um homem negro, uma mulher negra está sendo atingida também. Há também uma quantidade de mulheres e meninas que são mortas. Todos e todas nós somos atingidas.
Essa reiteração da liberdade com que o racismo participa da produção da morte, da definição de quem vive e quem morre, atinge a todas nós. Atinge mais aos homens, mas junto com aquele homem que morre, existem mulheres em torno, que são atingidas de uma forma ou de outra.
Os dados deste ano do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que a letalidade policial bateu recorde em 2020, independentemente da pandemia. Entre as vítimas, 78,9% são negras. Isso mostra o quão perversa é a ação do Estado. Não apenas na expressão da ação da polícia mas no fato das outras instituições diante deste absurdo não ser interrompido.
A polícia continuou produzindo mortes no Rio de Janeiro, por exemplo, mas o comandante não foi responsabilizado. O comando acima do comandante, que é o governador, não foi responsabilizado. O Ministério Público, que tem o dever de fazer a supervisão do trabalho policial e garantir a legalidade da ação policial, permanece em silêncio. O Supremo Tribunal Federal, sendo desobedecido em sua decisão, não faz nada em tempo de salvar vidas.
Se tivessem feito alguma coisa, é possível que Kathlen e seu filho estivessem vivos até hoje. É se fazer morrer e deixar morrer. É isso que se chama de necropolítica e a minha geração chama simplesmente de racismo.
Os negros são os mais afetados pela violência policial e são os que mais morrem na pandemia. Me parece que o luto é uma constante na vida da população negra. Porque a morte é um produto constante do racismo. Para usar o termo mais moderno, do Achille Mbembe, a necropolítica é exatamente isso, fazer morrer os indesejáveis. Sob o racismo, os indesejáveis somos nós, negras, negros, indígenas e ciganos. É pra fazer morrer a gente. A morte é a marca.
Nas organizações, nós temos usado há muito tempo a morte como o principal indicador da perversidade do racismo sistêmico. Não é o único indicador, mas tem sido [o principal]. A gente chama atenção para a morte porque ela é real. Ela acontece em volume.
E o que falta para esse luto constante parar, para que essa produção de mortes cesse? A população não negra se responsabilizar? O Estado? Representatividade legislativa? O racismo sistêmico, ou seja, a regra que estrutura as regras de funcionamento do Brasil como estado e como nação, inclusive seu povo e sua sociedade, está fundada nos alicerces do racismo. Então falta refundar a nação. O que significa refundar a nação? Responsabilizar a todos e todas. Responsabilizar, como dizia a frase do Malcolm X, responsabilizar por todos os meios necessários. Precisamos de outro país. Esse país desse jeito tem que acabar. E não é uma mudança radical, porque dentro desse país que precisa acabar já existe o outro país que precisa existir.
Uma parte substancial da sociedade já age contra o racismo, e a gente precisa que essa ação impacte de forma mais profunda as estruturas a ponto de derrubá-las. É que o outro lado está ancorado num alicerce mais potente, um alicerce de mais de 500 anos. É preciso que os nossos alicerces se fortifiquem, seja na lei, seja na responsabilização individual, seja na responsabilização coletiva.
RAIO-X
Jurema Werneck, 59, é diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil desde 2017. É formada em medicina pela UFF (Universidade Federal Fluminense), é mestre em engenharia de produção e doutora em comunicação e cultura pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). É também fundadora da ONG Criola, que trabalha em defesa dos direitos das mulheres negras.
FONTE:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/07/lentes-da-pandemia-ajudaram-a-ver-racismo-diz-diretora-da-anistia-internacional-no-brasil.shtml
Ana Flauzina: Chacina do Jacarezinho impõe que STF dê uma resposta
No último dia 05 de maio, o presidente Jair Bolsonaro declarou no Palácio do Planalto que poderia editar um decreto contra as medidas restritivas impostas por governadores e prefeitos como forma de controle da pandemia. De forma taxativa, disse que a medida não poderia ser “contestada por nenhum tribunal”. À tarde, se encontrou com um de seus aliados políticos, o governador do Rio de Janeiro Cláudio Costa (PSC), no palácio das laranjeiras em reunião a portas fechadas.
No dia seguinte, um banho de sangue inundou a favela do Jacarezinho. Com a justificativa de cumprir mandados de prisão contra 21 suspeitos de envolvimento com tráfico de drogas, a operação se transformou em um massacre após um dos policiais envolvidos na ação ser assassinado. Dos 27 homens mortos pelas forças policiais, apenas 4 eram alvos iniciais da operação. Relatos de testemunhas indicam que o alegado confronto que integra a narrativa policial não se verificou em todos os casos, com pessoas implorando para serem presas e sendo executadas a sangue frio.
Conectar esses dois eventos me parece fundamental para compreendermos o cenário político atual. De um lado, temos um pronunciamento presidencial que dá um recado claro ao Supremo Tribunal Federal, seguindo com a lógica de desgaste institucional que a todo tempo flerta com imposição de um governo militar. De outro, uma cena aterradora de desrespeito a parâmetros constitucionais básicos, em uma ação deflagrada à despeito da decisão do Supremo na ADPF 635, que impõe restrições à realização de operações policiais nas comunidades do Estado do Rio de Janeiro durante o período da pandemia.
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Há claramente uma linha de continuidade entre o pronunciamento e o massacre realizado no curral eleitoral do presidente por agências policiais que contam com muitos de seus adeptos. Fica claro que o recado abstrato que paira no ar clamando por ditadura no plano federal, vai sendo experimentado e publicitado com o aprofundamento do genocídio negro na capital fluminense. Se há ainda dificuldade de se impor uma agenda totalitária em nível nacional, essa toma cada vez mais fôlego em propagandas letais de caráter racista como as que ocorreram no Jacarezinho. O recado dado no pronunciamento se materializa indiscutivelmente na operação policial: quem controla e governa os destinos do povo são as armas, não as togas. O que é sussurrado indiretamente por Bolsonaro é concretizado de forma aberta pelo racismo, com o Supremo sendo exposto por sua incapacidade de conter a barbárie.
A verdade é que a atuação desse governo miliciano, para usar a palavra que qualifica tanto suas práticas quanto os indivíduos que ocupam seus principais cargos institucionais, está assentada em um amplo laboratório de produção de violências. Violências essas produzidas pela adesão histórica das forças institucionais, incluindo o Judiciário, no fortalecimento do apetite genocida contra a população negra: dando base para a formação das milícias, sustentando o discurso social do ódio, garantindo a naturalização do ataque à vida e à liberdade das pessoas negras como um dado quotidiano.
A questão que agora parece se impor é que as consequências perversas do racismo começam a também atentar contra os parâmetros democráticos que protegem as elites. Há muito se denuncia o fato de que o racismo é uma estrutura de poder que foi fabricada e é cultivada para controlar e trucidar pessoas negras. Até aí não há novidades. O que parece escapar à compreensão é que para se conduzir ações genocidas, há uma energia que transforma as instituições em agências de letalidade e restrições de direito. Ao fim e ao cabo, trata-se da construção de um aparato público, em associação a forças privadas, autorizadas a ameaçar, torturar, silenciar, e, claro, matar pessoas, sem maiores consequências entre nós. É esse ethos do racismo, que atropela padrões éticos básicos, direitos e vidas que começa a querer extrapolar para fora das periferias e dar o tom da atuação pública de forma mais ampla nas ameaças presidenciais dirigidas ao Supremo.
Diante disso, só se pode constatar que se opor a esse Governo e suas posturas despóticas é, antes de tudo, se opor ao racismo. Há um pacto de solidariedade entre as elites de todos os espectros políticos que sustenta o massacre das pessoas negras como um dado para a manutenção das desigualdades no Brasil. O problema é que o racismo é um cachorro raivoso que gera instituições e práticas perversas. Logo, se os efeitos mais cruéis dessas dinâmicas são sempre sentidos por negros e negras, em tempos de democracia, ditadura oficiosa ou oficial, fato é que as lógicas de tortura, da censura da e morte, tão comuns no dia a dia das periferias brasileiras, tendem a ser também usadas seletivamente contra grupos políticos em momentos de ruptura institucional.
Por isso, no atual contexto político, enfrentar o genocídio negro é uma demanda que passa tanto pela defesa da vida e dignidade das pessoas negras quanto pela preservação do pacto constitucional que salvaguarda a segurança e os privilégios dos setores de elite que se opõe ao governo de Jair Bolsonaro. Isso porque as ameaças do bolsonarismo estão se concretizando, se enraizando e avançando todos os dias para cercear fundamentalmente os direitos dos que habitam as periferias negras nesse país.
Assim, a resposta ao massacre do Jacarezinho, a maior chacina policial da história do Brasil, pauta o poder Judiciário e, consequentemente a democracia, em duas frentes. A primeira, já muito conhecida, é a que questiona se, uma vez mais, a justiça vai atuar de forma conivente e anistiar os responsáveis pelas execuções. A segunda, é a que mede a força do Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, diante do claro desacato do bolsonarismo frente às suas determinações.
Conforme já declarou Eduardo Bolsonaro, “bastam um soldado e um cabo para fechar o STF”. Ao que tudo indica, o tempo de se verificar a validade dessa afirmação chegou e a forma com que se vai lidar com o caso de Jacarezinho é um termômetro preciso da força ou do completo descrédito do Supremo e da democracia no Brasil.
Ana Flauzina é doutora em Direito e professora da Universidade Federal. Dirigiu o documentário ‘Além do Espelho’, que estabelece uma ponte entre os movimentos negros nos EUA e no Brasil.
Fonte:
El País
Raul Jungmann: Por quem os sinos dobram
Hoje, no Rio de Janeiro, as milícias e o tráfico dominam 57% do território da cidade e 33% da população
“As polícias do Rio de Janeiro são hoje elementos de contaminação de todas as polícias brasileiras. Pela alta visibilidade e pelo ethos guerreiro, fixam um paradigma cultural de instituições totais de enfrentamento bélico, horrivelmente desconstitutiva dos mandamentos constitucionais atribuídos aos policiais.” (Ricardo Balestreri).
Pesquisas e estudos constatam que o método de combate das polícias cariocas ao crime organizado, como na comunidade do Jacarezinho, não leva à redução da violência, do tráfico de drogas, e nem das mortes violentas.
Mas produz efeitos colaterais, como a morte de inocentes, e favorecem disputas de uma facção sobre outra no domínio do tráfico e controle de uma comunidade. Ainda assim, boa parte da população as apoia. Qual a razão?
Creio que são três as principais. Em primeiro lugar, a violência endêmica, potencialmente universal, que a todos torna inseguros e potenciais vítimas. Em segundo, a incapacidade do Estado, via segurança pública, de assegurar a vida e o patrimônio da população, os mais pobres à frente, abrindo espaço para organizações criminosas o substituírem nesse papel. Por último, a incapacidade, lentidão e/ou parcialidade atribuída ao sistema de justiça em punir culpados e dirimir conflitos.
No conjunto, estas causas operam uma regressão em princípios e valores civilizatórios e humanitários da sociedade, que despe os que são estigmatizados como bandidos, criminosos ou suspeitos – usualmente o negro, o favelado, e o pobre -, da sua integral humanidade.
Instala-se uma lógica da vingança, do olho por olho, dente por dente. Hoje, o Brasil é o país que mais lincha no mundo, segundo o sociólogo José de Souza Martins. Essa lógica, do combate e guerra contra o crime, nos tem levado no sentido contrário de uma maior segurança.
Hoje, no Rio de Janeiro, as milícias e o tráfico dominam 57% do território da cidade e 33% da população, que vivem sem direitos e garantias constitucionais.
Milícias, que continuam avançando, em que pese os recorrentes massacres de “suspeitos” ou bandidos; milícias, que possuem uma porta giratória pela qual passa parte dos efetivos policiais e vice-versa.
Portanto, quando um novo combate se travar e mortos às dezenas, inclusos inocentes e/ou crianças, forem recolhidos nas ruas das favelas, não pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por você e por todos nós.
*Raul Jungmann foi Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Fonte:
Capital Político
https://capitalpolitico.com/por-quem-os-sinos-dobram/
Raul Jungmann: Por quem os sinos dobram
“As polícias do Rio de Janeiro são hoje elementos de contaminação de todas as polícias brasileiras. Pela alta visibilidade e pelo ethos guerreiro, fixam um paradigma cultural de instituições totais de enfrentamento bélico, horrivelmente desconstitutiva dos mandamentos constitucionais atribuídos aos policiais.” (Ricardo Balestreri).
Pesquisas e estudos constatam que o método de combate das polícias cariocas ao crime organizado, como na comunidade do Jacarezinho, não leva à redução da violência, do tráfico de drogas, e nem das mortes violentas.
Mas produz efeitos colaterais, como a morte de inocentes, e favorecem disputas de uma facção sobre outra no domínio do tráfico e controle de uma comunidade. Ainda assim, boa parte da população as apoia. Qual a razão?
Creio que são três as principais. Em primeiro lugar, a violência endêmica, potencialmente universal, que a todos torna inseguros e potenciais vítimas. Em segundo, a incapacidade do Estado, via segurança pública, de assegurar a vida e o patrimônio da população, os mais pobres à frente, abrindo espaço para organizações criminosas o substituírem nesse papel. Por último, a incapacidade, lentidão e/ou parcialidade atribuída ao sistema de justiça em punir culpados e dirimir conflitos.
No conjunto, estas causas operam uma regressão em princípios e valores civilizatórios e humanitários da sociedade, que despe os que são estigmatizados como bandidos, criminosos ou suspeitos – usualmente o negro, o favelado, e o pobre -, da sua integral humanidade.
Instala-se uma lógica da vingança, do olho por olho, dente por dente. Hoje, o Brasil é o país que mais lincha no mundo, segundo o sociólogo José de Souza Martins. Essa lógica, do combate e guerra contra o crime, nos tem levado no sentido contrário de uma maior segurança.
Hoje, no Rio de Janeiro, as milícias e o tráfico dominam 57% do território da cidade e 33% da população, que vivem sem direitos e garantias constitucionais.
Milícias, que continuam avançando, em que pese os recorrentes massacres de “suspeitos” ou bandidos; milícias, que possuem uma porta giratória pela qual passa parte dos efetivos policiais e vice-versa.
Portanto, quando um novo combate se travar e mortos às dezenas, inclusos inocentes e/ou crianças, forem recolhidos nas ruas das favelas, não pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por você e por todos nós.
*Raul Jungmann foi Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Fonte:
Capital Político
https://capitalpolitico.com/por-quem-os-sinos-dobram/
Alon Feuerwerker: Jacarezinho, empregos e lei
Toda eleição tem seus temas propulsores, que criam ambiente favorável ao perfil certo. Quando este tem a sorte de, e a competência para, encaixar na demanda. Em 1994 e 1998, Fernando Henrique Cardoso navegou nos mares do cansaço com a inflação, depois veio Luiz Inácio Lula da Silva para saciar a sede da rejeição à pobreza e à corrupção. O período petista sustentou-se por mais de uma década, mesmo sob acusações relativas à segunda, e muito porque entregava no combate à primeira.
Quando a economia ruiu, a tolerância virou fumaça, veio o impeachment de Dilma Rousseff e depois Jair Bolsonaro surfou as duas ondas do momento: os combates à corrupção e ao crime. Sobre este último, um aspecto evitado sempre que possível no debate é o aparente paradoxo: se os governos do PT reduziram as desigualdades, combateram a pobreza e ampliaram as oportunidades para os antes marginalizados, por que então o crime se agravou no período?
A ponto de a repulsa a ele ajudar decisivamente não só na eleição de Bolsonaro, mas de todo um contingente de políticos ligados à segurança pública Brasil afora.
Aliás, o crime encorpou mais onde a prosperidade avançou de maneira mais pujante, em especial em certas regiões metropolitanas e na fronteira agrícola. Não é opinião, mas fato: o combate à pobreza é fundamental, mas nem de longe é suficiente para solucionar os problemas da segurança pública. É só olhar os números, e tem gente boa que os organiza de maneira cuidadosa. E, simplesmente, o mapa da pobreza não bate com o do crime.
Na falta de consensos, a subida dos índices de criminalidade vai sendo enfrentada na base do “na minha opinião”. Uns acham que é uma disputa de espaços assistenciais entre o crime e o Estado. Outros estão certos de que falta mesmo é punição garantida e proporcional ao delito. Mas tem quem imagina resolver na bala. Jacarezinho. Vão lá, matam um certo tanto e voltam para casa. Quando nova leva ocupa o lugar dos que morreram, vai-se lá e mete-se bala de novo.
Com os habituais “danos colaterais”.
A exemplo da maioria dos outros assuntos importantes, é impossível no Brasil de hoje organizar alguma discussão produtiva sobre como atacar a endemia do crime. Se o debate sobre a pandemia da Covid-19 foi capturado por “certezas científicas”, que aliás independem de comprovação científica e se baseiam somente no “princípio da autoridade”, mais ainda algo que se tornou endêmico, parte da paisagem. Ao fim e ao cabo, convive-se com o crime. De vez em quando acontece alguma coisa que produz, como agora, algum calor. Nunca luz.
Entrementes, os candidatos à presidência vão afiando a faca. De um lado, reforça-se o discurso de que a polícia tem mesmo é de eliminar bandidos, e que não se faz omelete sem quebrar os ovos. Do outro, desarquiva-se a panaceia da “presença do Estado”. Será que não está na hora de compreender que sem crescimento acelerado da economia, e portanto das oportunidades, o crime continuará garantindo seu market share na atração de potenciais entrantes no mercado de trabalho?
Empregos e lei. Quem conseguir juntar essas duas ideias, até agora separadas por um muro, vai ter público em 2022.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Fonte:
Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/05/jacarezinho-empregos-e-lei.html
Nelson de Sá: New York Times alerta contra capa falsa pró-Bolsonaro
O perfil de relações públicas do New York Times no Twitter publicou uma mensagem, em português, com um aviso sobre a imagem abaixo, de uma capa adulterada do jornal. Diz o NYT:
“Estamos cientes de que uma versão manipulada da primeira página do New York Times circula na internet com matérias falsas e uma imagem de manifestações a favor do presidente Jair Bolsonaro. O New York Times não publicou essa capa.”
O jornal sugere acompanhar a cobertura de Brasil aqui. A capa já havia sido objeto de serviços de verificação no Brasil, como Lupa.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nelsondesa/2021/05/nyt-alerta-para-capa-falsa-pro-bolsonaro.shtml
Ascânio Seleme: Adicto à mentira
A imagem é constrangedora. Daquelas que causam vergonha alheia. Cercado por uns dez assessores, Jair Bolsonaro acena para um ponto à sua frente onde imagina-se estar reunida uma multidão. Eleva os braços como se fizesse louvação aos céus, ou a Deus. Se curva num movimento que parece ser em deferência ao povo com o qual estaria se comunicando. O cinegrafista, que deveria ter parado de filmar neste ponto, segue gravando enquanto o capitão passa por ele e avança. E então, percebe-se que não havia multidão alguma no local para o qual Bolsonaro endereçava seus salamaleques. Havia apenas um helicóptero, três ou quatro aspones e um militar. Era um aceno cinematográfico. Ou fake, se preferir.
Bolsonaro precisa disso? Não. Ele sempre encontra aglomerações de desmascarados para gritar “mito” onde quer que vá. Os iludidos de sempre estão em todos os lugares, prontos para aplaudir o exterminador de futuro que enxergam como um salvador da pátria. Desnecessário discorrer sobre a ignorância dessa gente, não é esse o objetivo. O que se quer dizer aqui é que os acenos efusivos para uma inexistente multidão provam o que já se sabia. Bolsonaro é um adicto à fake news. Ele não consegue se livrar desse vício, como se fosse uma praga que rogaram contra ele e que pegou.
Viciado em mentira desde antes de se candidatar a presidente, foi exemplo para os seus quatro zeros e para os seus seguidores radicais e fiéis. Viraram todos mentirosos contumazes, como ele. Bolsonaro mente para o eleitor e para quem nem ainda vota. Mente para os inimigos e adversários, assim como mente para os amigos e companheiros. Mente para parentes. Mente para os filhos, que passam a mentira para frente. Mente por email e nas redes sociais. Mente ao vivo ou grava mentiras. Mente no privado e no público. Mente digital e analogicamente.
O grupo de checagem Aos Fatos (www.aosfatos.org) contou 2.919 declarações falsas ou distorcidas de Bolsonaro desde a sua posse até a data da última atualização, em 28 de abril passado. Foram 848 dias, ou 3,44 mentiras a cada dia. E estas são apenas as públicas, feitas em discursos, entrevistas, através das suas redes sociais ou colhidas no cercadinho do Alvorada, onde ele mente para os seus seguidores mais entusiasmados. No privado deve ter mentido outras tantas milhares de vezes. O presidente do Brasil é um mentiroso.
De acordo com o volume das suas mentiras pode-se aferir o que mais incomoda o presidente. Um sinal, talvez, de que ele esteja entendendo onde vai mal, apesar de seu reconhecido déficit cognitivo. De 9 de abril do ano passado até o último dia 10 de março, Bolsonaro mentiu 88 vezes sobre a decisão do STF de considerar legítimo que governadores e prefeitos também adotem medidas restritivas para conter a pandemia. O capitão repetiu que o tribunal retirou dele a responsabilidade para atuar contra a doença e a transferiu aos outros entes da federação. Trata-se do famoso “tirar o seu da reta”. No caso, com uma mentira grossa.
O homem que cometeu mais de duas dúzias de crimes de responsabilidade, que ameaçou inúmeras vezes a democracia e que tem 116 pedidos de impeachment na gaveta do presidente da Câmara, teme os efeitos da pandemia sobre o seu futuro. Por isso sobre ela mente mais. Claro que não vai parar por aí, seu vício é maior do que ele próprio. Novas lorotas já estão sendo engendradas nas salas anexas ao Gabinete do Ódio no Palácio do Planalto, e em breve ganharão a luz do dia. E tem também, claro, as mentiras espontâneas, que saem da cabeça aturdida de Bolsonaro. Estas são mais estúpidas e patéticas, e por isso menos eficientes.
Soldadinhos de chumbo
O ministro Luiz Eduardo Ramos tomou vacina escondido por medo do presidente Bolsonaro. Ele pode dizer outra coisa, que foi em respeito ao chefe, que não queria incomodar sua excelência, que era para evitar aborrecimento. Bobagem. O poderoso general estava com medo do capitão. Aliás, Ramos morre de medo de Bolsonaro. No Palácio todo mundo sabe disso. Braga Netto também se pela de medo e igualmente tomou a vacina escondidinho.
Atacar e bajular
O que quer o presidente do Clube Militar, o general da reserva Eduardo José Barbosa? Talvez um cargo no governo. Ou apenas puxar o saco mesmo. Como mostrou Lauro Jardim, o militar da reserva comparou Renan Calheiros e Omar Aziz, relator e presidente da CPI, a Marcola e Fernandinho Beira-Mar. Pela modalidade dos crimes destes, era mais fácil compará-los aos milicianos do Planalto Central. No ano passado, do alto das suas pantufas, Barbosa disse que isolamento social é igual a socialismo.
Abundância
A CPI vai navegar com abundante vento de popa. Seus membros nem precisam se esforçar para encontrar elementos e provas que apontem para os (ir)responsáveis que ampliaram a catástrofe por “ação e omissão”. Além dos 23 crimes já delimitados pela Casa Civil, a CPI tem que acrescentar no seu cardápio a entrega de cloroquina em aldeias indígenas e a falta de vacinas para a segunda dose em cidades de 18 estados. E estas faltam por que? O Ministério da Saúde mandou os municípios usarem todas as doses enviadas porque chegariam mais a tempo do reforço. Era chute.
Polêmica
Até a família real da Jordânia usa a vacina Sputnik V. No Brasil, a Anvisa proibiu sua importação por estados e municípios alegando ausência de documentos e garantias dos fabricantes que atestem a sua segurança. Enquanto isso, faltam vacinas e o número de mortes diárias no Brasil continua na casa do milhar. Se a Anvisa estiver certa, estarão errados 62 países que aprovaram e estão aplicando em suas populações a Sputnik V.
Ao vivo
A eficiência de uma CPI depende muito da sua divulgação. Se ficar apenas em flashes, pode perder o vento a favor. Quem sabe faz ao vivo.
Manda, mas…
Depois da demissão do superintendente da Polícia Federal do Amazonas Alexandre Saraiva, não resta mais dúvida de que Bolsonaro conseguiu mesmo colocar no comando do órgão um delegado que come na sua mão. A esta altura já deve estar recebendo todos os dados que pedir, sobre qualquer inquérito, principalmente os dos seus zeros. Ocorre que, além de você e eu, tem gente dentro da PF vendo a mesma coisa. E coletando elementos inflamáveis que podem se tornar atômicos de uma hora para a outra.
Nosso Rio
O prefeito Eduardo Paes parece não gostar de prestar contas aos vereadores, eleitos como ele. Nos seus primeiros dois mandatos, 2.539 requerimentos de informação só foram respondidos por força judicial nos últimos dias de governo. Já não valiam nada. Agora, 14 vereadores pressionam o presidente da Câmara, Carlo Caiado, para acionar Paes mais uma vez na Justiça. Ele está sentado novamente sobre algumas dezenas de requerimentos enviados ao seu gabinete desde o início do governo.
Eduardo Cunha
Eduardo Cunha foi solto da prisão, embora esteja em casa há oito meses e de onde não pode sair. Sua prisão era temporária, ainda assim o outrora homem mais odiado do Brasil ficou enjaulado três anos e meio. Quem mais falta soltar da turma do primeiro escalão do Rio? Sérgio Cabral não tem como. Ao contrário de Cunha, já foi condenado e só sai depois de cumpridos os requisitos do Código do Processo Penal. Deve demorar um pouco mais.
Petistas bolsonaristas
O episódio do vereador do interior de Minas, que com um facão abriu um caixão lacrado para provar (?) que o defunto não morrera de Covid, confirma a bagunça político-partidária do país. Depois da barbaridade filmada, William Faria, que era vereador do PT, foi expulso pelo diretório regional do partido em razão do ato horrendo típico do bolsonarismo. Já em Santa Catarina, sindicatos ligados ao PT negociam com bolsonaristas para impichar o governador Carlos Moisés. Em troca, ganhariam a presidência da companhia de energia estadual.
Censo 2020
Os dados coletados pelo Censo são sempre muito úteis para a gestão pública. E servem também para fins políticos e eleitorais absolutamente legítimos. Como o governo conhece bem o status da nação, graças à capilaridade de sua estrutura, a oposição tem no Censo uma das suas principais ferramentas para entender o seu país e de que precisa a sua gente. Mandou bem na despedida o ministro Marco Aurélio.
Fonte:
O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/adicto-mentira-24997558V