violência
Inflação histórica e medo de violência afetam brasileiro que volta ao trabalho presencial
Giulia Granchi / BBC News Brasil em São Paulo*
A volta ao trabalho presencial para brasileiros que faziam home office até o início de 2022 pode ser considerada uma notícia boa - afinal, o que levou funcionários a ficarem em casa durante quase dois anos, a pandemia de coronavírus, demonstra uma melhora gradual. No mês de abril, o Brasil registrou o menor número de mortes por covid-19 desde março de 2020, de acordo com dados do Ministério da Saúde.
No entanto, para o grupo que pôde realizar as atividades profissionais remotamente - cerca de 1 a cada 5 brasileiros, segundo o Instituto Brasileiro de Economia da FGV -, a hora é de enfrentar altas de preço históricas e, para alguns, sentir-se mais vulnerável à criminalidade, especialmente nas grandes metrópoles.
Para a advogada Debora Moreira, de 27 anos, moradora da capital paulista, o retorno ao escritório onde trabalha quatro vezes por semana significa que ela terá uma parte menor de sua renda disponível no fim do mês.
"Agora gasto três vezes mais do que antes com gasolina, pelo trajeto e preço mais alto, e como trabalho em uma região cara, no bairro da Vila Olímpia, meu vale-alimentação não é suficiente para comer todos os dias fora. Enquanto estava em casa, cozinhava e ainda sobrava para o dia seguinte, então era bem mais econômico", diz.
"Por ficar parada no trânsito de grandes avenidas e em faróis, tenho medo de ser assaltada e perder não só meus bens, mas o notebook da empresa com todo o meu trabalho nele. De sofrer violência, então, mais ainda. Evito assistir televisão para que os crimes não me causem ansiedade".
Medo da violência
O psicólogo André Vilela Komatsu, pesquisador do NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo), aponta que tem acompanhado muitos relatos de trabalhadores que, assim como Debora, se sentem mais ansiosos por precisar transitar em distâncias maiores nas cidades.
Na avaliação dele, é esperado, assim como toda mudança de rotina, que as pessoas sintam algum nível de estresse. "Passando mais tempo em casa, reparamos na cadeira que está ruim, no espaço não tão agradável... E, com o tempo, a gente vai acostumando. E agora é a mesma coisa. Voltamos a reparar em problemas sociais que sempre estiveram aí, mas muita gente não viu as transformações do espaço público por ficarem restritos a seus bairros durante a pandemia."
Entre as mudanças, ele cita a intensificação de problemas sociais, com maior degradação dos espaços públicos, mais pessoas morando nas ruas e o aumento de crimes. "Houve uma redução de assaltos durante a pandemia, justamente por ter menos gente na rua, e agora já estamos chegando em níveis semelhantes aos de antes."
Para o pesquisador, a sensação de medo é natural e, embora não seja o ideal, é esperado que as pessoas consigam se acostumar ao menos parcialmente.
"(Para) a maior parte dos trabalhadores, não é nem uma questão a ser discutida. Infelizmente, o medo de ser demitido ou de não ter onde trabalhar às vezes é maior do que o medo de sofrer violência, e certamente isso causa muita ansiedade."
Alta histórica da inflação
A prévia da inflação oficial, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - 15 (IPCA-15), chegou em abril a 1,73%, a maior taxa desde 1995, resultado que é consequência de uma série de fatores ocorridos nos últimos dois anos no Brasil e mais recentemente, internacionalmente.
Em março, o IPCA teve o maior avanço para o mês em 28 anos, com alta de 1,62%.
"Há dois fatores que agiram juntos para jogar inflação para cima durante a pandemia: estímulo muito forte por meio da transferência direta de renda do governo para as famílias e taxas de juro em uma mínima histórica - a Selic chegou a 2% ao ano e hoje já está em 11,75%. Isso ajudou a manter o poder de compra das famílias estável por algum tempo, mas com maior demanda e circulação de dinheiro, elevou a inflação", explica a economista Tatiana Vieira, da XP Investimentos.
Outros acontecimentos recentes no cenário internacional também contribuíram para a alta da inflação no Brasil. "A guerra da Rússia contra a Ucrânia fechou portos, criou embargos importantes para Rússia e paralisou produção em ambos os países, exportadores de milho, trigo, sementes - o que influencia, inclusive, no preço da carne, já que esses alimentos servem como ração", afirma Vieira, lembrando que a Rússia também é o maior exportador de gás para Europa e que a situação de instabilidade afeta o preço dos combustíveis.

Na China, o lockdown restritivo a qualquer caso de covid-19 faz com que fábricas e portos fechem por alguns dias, deixando a comunidade global sem acesso a insumos muito importantes para produção. "Com isso, bens manufaturados devem subir, especialmente os industrializados."
Não é só preço: por que carne bovina está perdendo espaço no prato do brasileiro
Em 2022, funcionário paga muito mais caro para ir trabalhar
De todas as altas, a de combustível foi a maior - no último ano, o preço da gasolina aumentou 47%, o diesel, 50% e o etanol, 60%. Os automóveis também ficaram muito mais caros, com aumento de 20% para carros novos e 15% para modelos usados, de acordo com o IPCA.
"Transporte por aplicativo tinha sido uma alternativa muito usada. Até por conta da pandemia, muitos reavaliaram o uso de alguns bens, 'abriram mão' de ter o carro. Mas os preços já subiram um pouco, principalmente pelo combustível", comenta a economista.
Para quem usa o transporte público, também houve aumento. O aumento da passagem de ônibus municipais foi de 1,2%, e para os intermunicipais e interestaduais, entre 1,5 e 2,5%.

"Durante a pandemia, os prefeitos decidiram não dar reajuste. O caixa dos municípios e estados estava muito bem, arrecadação por ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) surpreendeu positivamente, evitando que repassassem a alta do diesel via aumento de tarifas. Mas não sabemos até quando vão conseguir segurar", aponta Vieira.
Os serviços, em geral, desde a contratação de funcionários para limpeza, mensalidade de escolas e creches, e outros que se tornaram ainda mais necessários para muitas famílias ao deixarem o home office, sofrem reajustes ligados à inflação do ano anterior.
Para comer, mesmo dentro de casa, o preço dos alimentos também aumentou, e a conta fica ainda mais cara em restaurantes. "O primeiro motivo é doméstico, crise hídrica, fatores climáticos que impactaram a produção. Fretes e transporte das mercadorias ficaram muito mais caros. E a expectativa é que a gente continue vendo", conclui.
Preferências dos funcionários e tendências das empresas brasileiras
A volta parcial ao escritório com equipes reunidas até duas vezes por semana é a opção preferida pela maioria dos profissionais de grandes empresas brasileiras, de acordo com o estudo "Modelos de trabalho pós-pandemia", realizado pela empresa de consultoria e auditoria PwC Brasil em parceria com o PageGroup.
Entre os mil profissionais ouvidos, 67% preferem regime integral de home office ou modelo híbrido com uma, ou duas idas ao escritório na semana.
"Com a pandemia, fomos convidados a refletir sobre qual modelo de trabalho queremos. Algumas barreiras já foram quebradas e as pessoas começam a pensar 'Bom, talvez eu não precise me deslocar - por horas, às vezes - para trabalhar. Além disso, pessoas localizadas remotamente em diferentes partes do Brasil trazem a equipe, pela minha experiência profissional, ideias diferentes e originais", Stephanie Crispino, CEO da Tribo, consultoria do grupo Anga que tem como foco a humanização de culturas empresariais.
A mistura de home office e trabalho presencial é realidade na rotina das pequenas e médias empresas brasileiras. Segundo a pesquisa "Impacto da covid-19 na cultura e operação das PMEs brasileiras", 47% das PMEs estão trabalhando de forma híbrida. O trabalho 100% presencial vem em segundo lugar, com 38% das companhias, seguido do trabalho totalmente remoto, com 15%.
Ter conhecido a possibilidade de trabalhar em sistema híbrido ou remoto, aponta Stephanie, não significa que as empresas necessariamente continuarão adotando o modelo - mas, em sua opinião, para os tipos de trabalho que permitem, é um passo nessa direção.
"Essa flexibilidade fez as lideranças e trabalhadores entenderem que a produtividade fora do escritório é possível, e nesse ponto, não há como voltar. Essa alternativa pode, inclusive, fazer a diferença quando o profissional for escolher a empresa na qual quer trabalhar", conclui Crispino.
*Texto publicado originalmente na BBC News Brasil
Luiz Carlos Azedo: Histórias que se cruzam na resistência ao regime militar
Dois filmes e duas histórias que mostram um passado de radicalização política que não deve se repetir
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Vale a pena ver o filme Marighella, dirigido por Wagner Moura, com Seu Jorge esbanjando talento na telona, no papel de Carlos Marighella, em 1969, no auge da atuação da Ação Libertadora Nacional (ALN), o grupo guerrilheiro que liderava e foi dizimado pelo delegado Sérgio Fleury.
Em contraponto, sugiro também o documentário Giocondo Dias, Ilustre Clandestino, de Vladimir de Carvalho, disponível no Canal Brasil, que reúne depoimentos sobre o líder comunista que substituiu Luiz Carlos Prestes na Secretaria-Geral do PCB. Ambos mostram um passado de radicalização política que não deve se repetir.
Moura dirigiu um blockbuster político, que utiliza os recursos da ficção e dos filmes de ação para fazer um recorte histórico da vida de Carlos Marighella, inspirada na excelente biografia de Mario Magalhães sobre o líder comunista carismático que arrastou para a luta armada jovens militantes do antigo PCB e um grupo de padres dominicanos.
Carvalho fez um garimpo de imagens, a partir dos depoimentos de militantes que participaram do resgate de Giocondo Dias, o líder comunista clandestino que havia ficado isolado, após o desmonte da estrutura do velho Partidão, em 1975, quando 12 integrantes do Comitê Central foram assassinados e milhares de militantes foram presos.
Marighella e Giocondo fizeram parte do chamado “grupo baiano”, que lideraria a reorganização do PCB no final do Estado Novo, em 1943, tecendo uma aliança pragmática com Getúlio Vargas para o Brasil entrar na II Guerra Mundial contra o Eixo: Armênio Guedes, Moisés Vinhas, Aristeu Nogueira, Milton Caíres de Brito, Arruda Câmara, Leôncio Basbaum, Alberto Passos Guimarães, Jacob Gorender, Maurício Grabois, José Praxedes, Osvaldo Peralva, Boris Tabakoff, Jorge Amado, João Falcão, Fernando Santana, Mário Alves e Ana Montenegro, nem todos baianos.
O cabo Giocondo Dias era um mito comunista, somente ofuscado por Luiz Carlos Prestes. Havia liderado a tomada do poder em Natal (RN), no levante comunista de 1935, no qual Prestes fora preso. Na ocasião, levou três tiros de um dos comandados, ao proteger com o próprio corpo o governador do Rio Grande Norte, Rafael Fernandes Gurjão, a quem Giocondo havia dado voz de prisão.
Escondido para se recuperar dos ferimentos, sobreviveria a 13 facadas, em luta corporal com um capanga do proprietário da fazenda onde estava. Preso, cumpriu um ano de cadeia até a anistia de 1937, a chamada “Macedada”, concedida para legitimar o golpe do Estado Novo. Essa experiência influenciaria sua visão sobre a luta armada.
Estudante de engenharia, Marighella largou a faculdade em 1934 para atuar no PCB no Rio de Janeiro, sendo preso a primeira vez em 1936. Também foi libertado na “Macedada”, porém, acabou novamente preso em 1939 e foi libertado em 1945, com a redemocratização. Voltou para a Bahia e se elegeu deputado federal, integrando a bancada comunista na Constituinte de 1946.
Giocondo viria a ser eleito deputado estadual. Com a cassação de seus mandatos, foi encarregado da segurança do líder comunista Luiz Carlos Prestes, na clandestinidade, enquanto Marighella se destacaria na liderança do PCB em São Paulo, durante os governos Dutra e Vargas.
As divergências
Após a morte de Joseph Stalin, em 1953, com a realização do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em 1956, a cúpula do PCB entrou em crise. O Comitê Central somente se reuniria dois anos depois, para destituir a Executiva liderada por Arruda Câmara e João Amazonas, que mantivera em segredo as denúncias dos crimes de Stalin feitas por Nikita Kruschov, o novo líder soviético.
Giocondo, que fora um dos artífices da aliança do PCB com Juscelino Kubitscheck (PSD) nas eleições de 1955, com Alberto Passos e Armênio Guedes, articulou a Declaração de Março de 1958, na qual o PCB assumiu o compromisso com a defesa da democracia. E emergiu da crise como segundo homem na hierarquia partidária, sob a liderança de Prestes. Giocondo e Marighella, porém, divergiram quanto à “política de conciliação com imperialismo” de Juscelino.
No governo Jango, Marighella defendeu a reforma agrária “na lei ou na marra”, Giocondo condenou o radicalismo das ligas camponesas. O primeiro apoiou a “revolta dos marinheiros”, o segundo considerou o movimento de cabo Anselmo uma provocação.
Quando os militares destituíram Jango, Marighella acreditou que bastaria o brigadeiro Francisco Teixeira bombardear as tropas do general Mourão Filho, que marchavam em direção ao Rio de Janeiro, para derrotar os golpistas, enquanto Prestes, o “Setor Mil” (militares da ativa), Giocondo e outros dirigentes concluíram que Jango estava politicamente derrotado e a resistência armada resultaria num inútil de banho de sangue.
Para Giocondo, a derrota da ditadura exigia longa resistência, a partir da formação de frente democrática, como de fato ocorreu. Inspirado na Revolução Cubana, Marighella acreditava que poderia transformar a derrubada do regime militar na revolução socialista. Em tempo: às vésperas do golpe de março de 1964, Prestes articulava a reeleição de Jango.
RPD || Kelly Quirino: Que projeto de país temos para o futuro?
Erradicar a polaridade política atual e discutir questões estruturais se faz urgente para a construção de um país para o século XXI
Que projeto temos para o futuro do Brasil? Um país estruturado em violência, exploração do trabalho, sexismo e racismo entra na década de vinte do século XXI escancarando seus problemas históricos, e as principais lideranças políticas do nosso país ainda não conseguem apresentar uma resposta para estas demandas.
Começo por esta indagação, porque ao final do século XIX o projeto das nossas elites era modernizar o país. A ciência foi uma aliada para trazer o desenvolvimento e as políticas de imigração europeia para o Brasil ter uma mão de obra assalariada e também embranquecer nosso país, considerado preto demais para época. Era o projeto que até hoje é ostentando na nossa bandeira: “Ordem e Progresso”.
A ideia de desenvolvimento pautado pela implantação da indústria no Governo Vargas, continuada por JK e pelos militares, durante a ditadura, foi responsável pelo chamado milagre econômico brasileiro que colocou o Brasil entre as dez principais economias do mundo.
Ocorre que a exploração do trabalho, a violência e o racismo fizeram com que este projeto desenvolvimentista não fosse usufruído por grupos historicamente marginalizados: negros e indígenas.
Por mais que desde o século XIX José de Alencar já celebrasse a miscigenação como uma identidade nacional – primeiro a partir da exaltação aos indígenas e portugueses –, e Mário de Andrade reconhecendo que a identidade do povo brasileiro era soma dos três povos: indígenas, negros e brancos, no célebre Macunaíma, a riqueza gerada se concentrou nos grupos de homens brancos e continuou mantendo as piores estruturas sociais para negros e indígenas.
Aluísio de Azevedo, em O Cortiço, já apontava que o Estado brasileiro reservava os cortiços como moradia para os pretos no final do século XIX. Na década de 50, do século XX, Carolina Maria de Jesus em O Quarto de Despejo - denunciava os políticos, por negligenciar o povo favelado enquanto ela catava papel para alimentar seus três filhos.
No nosso projeto de país no século XX, os que são considerados cidadãos são privilegiados, e utilizam o discurso da meritocracia, para justificar seus lugares sociais. E pior, não possuem vergonha de ter irmãos pátrios que passam fome, são assassinados diariamente e não possuem moradia e nem trabalho digno.
Nosso projeto de país, criado no século XIX e que foi implementado no século XX não tem vergonha da desigualdade e ainda quer manter privilégios. As obras clássicas fundantes da sociologia brasileira nos ajudam a compreender este fenômeno parcialmente. Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, defende que o brasileiro é um homem cordial. Avalio que seja cordial com seus iguais: homens, brancos, cristãos, instruídos, heterossexuais. Quem não faz parte disso, é tratado de forma violenta. Daí a importância de trazer a obra de Abdias do Nascimento, para refutar a tese de Buarque de Holanda. Em O Genocídio do Negro Brasileiro, Abdias afirma que o brasileiro não é cordial com as pessoas negras. A cada 23 minutos um homem, jovem e negro é assassinado no Brasil. O Atlas da Violência 2021 aponta que 77% das vítimas de homicídio do nosso país em 2019 eram negras.
Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala defendia que a colonização no país foi harmoniosa, negros e portugueses se relacionavam de forma amistosa, e o sexo entre senhores e negras era consensual. E aqui Lélia Gonzalez, no artigo “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”, refuta esta tese ao afirmar que as mulheres negras e indígenas no Brasil foram vítimas de estupro, e, no nosso projeto de país, elas são a mulata para transar, a preta para trabalhar e a mãe preta para servir. É preciso trazer à luz na Sociologia brasileira obras como as de Guerreiro Ramos, Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez para compreender o outro lado que Buarque de Holanda e Gilberto Freyre não contemplaram.
E chegamos no século XXI como resultado de tudo isto, em um cenário obscurantista negando a ciência que tanto nos ajudou a sermos um país industrializado, negando que somos violentos, racistas, sexistas e ainda sem um projeto de país. E a pandemia ainda agravou muito mais estas desigualdades econômicas, raciais e de gênero: 14 milhões de pessoas desempregadas e voltamos para o mapa da fome.
Que projeto de país temos para o futuro? Ainda não sabemos. Daí a importância de erradicarmos a polaridade política atual e discutir questões estruturais do nosso país, apontadas no decorrer deste artigo. Se faz urgente a união de vários setores da sociedade brasileira – intelectuais, políticos, organizações, sociedade civil organizada, partidos, sindicatos e as pessoas que estão nas redes sociais para construirmos um projeto de país para o século XXI. Do jeito que estamos, cada dia nos tornamos chacota mundial.

Kelly Quirino é doutora em Comunicação pela Universidade de Brasilia (UnB), Mestre em Comunicação Midiática e Jornalista Diplomada pela Universidade Estadual Paulista. Pesquisa jornalismo, relações raciais e diversidade.
Podcast discute luta contra a violência à mulher
Irina Storni analisa importância do enfrentamento à violência doméstica e das políticas públicas para as mulheres
João Rodrigues, da equipe da FAP
O Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher, celebrado em 10 de outubro, é um marco na discussão sobre a equidade de gênero no Brasil. A data foi instituída em 1980, após uma mobilização feita em São Paulo por mulheres que ocuparam as escadarias do Teatro Municipal para defender seus direitos. O podcast desta semana da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) coloca em pauta importância do enfrentamento à violência doméstica e familiar. Uma das principais especialistas do país no assunto, Irina Storni é a convidada do episódio. Ela é economista, subsecretária de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres do Distrito Federal e milita na causa há mais de 30 anos.
O aumento dos crimes de feminicídio no país, o crescimento de agressões a mulheres durante a pandemia e os danos psicológicos às vítimas de violência estão entre os temas do programa. O episódio conta com áudios da Rede TVT, TV Senado, TV Cultura, Agência Brasília e TV Brasil.
O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Youtube, Google Podcasts, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.
O Brasil precisa olhar para as mulheres vítimas de violência
26% das vítimas de homicídio com emprego de arma de fogo em 2019 sofreram a agressão fatal em casa
Cristina Neme / El País
A violência contra a mulher é um fenômeno que afeta a sociedade globalmente, produz impactos do ponto de vista individual e social em diversas esferas, como saúde, educação, trabalho e renda, e cujos danos podem se estender por gerações. No âmbito da violência doméstica, prevalece aquela provocada pelo parceiro íntimo, que passa a se manifestar e a atingir as mulheres desde a juventude, avançando na fase adulta e comprometendo sua vida ao longo das fases reprodutiva e produtiva. Relatório global da Organização Mundial da Saúde estima que na região da América Latina e Caribe a violência provocada por parceiro íntimo atinge 25% das mulheres entre 15 e 49 anos.
No recente estudo elaborado pelo Instituto Sou da Paz, o comportamento dos indicadores criminais do estado de São Paulo durante o primeiro semestre de 2021, chama a atenção, por um lado, a redução geral de ocorrências violentas, como homicídios e roubos, e, por outro, o aumento de ocorrências de violência contra a mulher e de estupros, em comparação com o primeiro semestre de 2020. Se em 2021 os homicídios sofreram redução de 3% no estado, os homicídios de mulheres cresceram 2,6% e as lesões corporais dolosas contra mulheres, 5,4%. As ocorrências de estupro, que atingem majoritariamente as mulheres, também aumentaram, sobretudo as de estupro de vulneráveis, que correspondem a 77% desses casos de violência sexual e tiveram crescimento de 17,5% neste primeiro semestre em relação ao mesmo período do ano anterior.
É preciso observar esses indicadores no contexto da pandemia da covid-19, visto que o isolamento social afetou a dinâmica de crimes e violências. No primeiro semestre de 2020, quando tivemos o primeiro isolamento amplamente instituído, observou-se uma queda dessas ocorrências em relação a 2019, não só em São Paulo mas também em outros estados. Considerando que as agressões contra as mulheres e a violência sexual contra vulneráveis prevalecem no ambiente doméstico, nota-se que a queda nos registros de lesões corporais e de estupros durante o primeiro momento de isolamento social refletiu antes a subnotificação desses crimes do que sua redução. Com maior exposição e vulnerabilidade a violências que ocorrem dentro de casa e maior dificuldade de acessar canais institucionais para denúncia e atendimento dos casos, os registros sofreram uma redução expressiva no primeiro semestre de 2020.MAIS INFORMAÇÕESInstituto Sou da Paz: O acesso às armas é a única resposta de Bolsonaro para melhorar a segurança pública?
Assim, o aumento observado em 2021 sinaliza para uma retomada dos registros que vem resultar em estatísticas mais aproximadas da realidade, ou menos subnotificadas, dando visibilidade para a gravidade e recorrência desse tipo de violência. No Brasil, pesquisas de vitimização —como as realizadas pelo Datasenado, em 2019, e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2021— indicam que ao menos 1/4 das mulheres já sofreram algum tipo de agressão, que seu parceiro, companheiro ou ex-companheiro, prevalece entre os agressores, assim como a casa permanece como o principal local onde ocorre o evento violento. E que não chegam a 30% as vítimas que recorrem a instituições como a polícia ou o Disque 180 para fazer a denúncia.). A denúncia é um passo importante para romper o ciclo de violência que caracteriza a violência doméstica e pode se agravar até chegar ao feminicídio, que é o assassinato de mulheres por razões de gênero.
Em relação à morte violenta de mulheres, a partir de dados da saúde, estima-se que no país 1/3 dos assassinatos estão relacionados à violência de gênero, visto que provocados por um parceiro ou ex-parceiro e ocorridos em residências. Os dados da segurança pública, que passaram a ser produzidos a partir da Lei do Feminicídio (2015), se alinham à estimativa ao indicar que os casos de feminicídio corresponderam a 34,5% dos homicídios de mulheres brasileiras em 2020 e, no estado de São Paulo, essa proporção chegou a a 42% (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2021).
Aqui um ponto merece atenção: a arma de fogo é o principal instrumento empregado no assassinato de mulheres, estando presente em cerca de 50% dos casos ocorridos nas últimas duas décadas, conforme indicado em outra análise do Instituto Sou da Paz sobre o Papel da Arma de Fogo na Violência contra a Mulher.
De modo geral a violência armada e os homicídios acontecem nas ruas, sobretudo no caso da vitimização masculina. Mas, entre as mulheres, chama atenção que 26% das vítimas de homicídio com emprego de arma de fogo em 2019 sofreram a agressão fatal em casa. Ainda, 40% das mulheres atendidas no sistema de saúde, vítimas de algum tipo de violência com arma de fogo que não resultou fatal, sofreram a agressão armada em casa —casa que se tornou em 2019 o principal local deste tipo de incidente, à frente da rua. Esses dados evidenciam o risco que a arma de fogo representa no agravamento dos conflitos interpessoais e domésticos ao contribuir para desfechos fatais e/ou danos graves à saúde das vítimas.
Frente à complexidade do problema, já temos grandes desafios para fortalecer e expandir as políticas públicas de enfrentamento da violência contra a mulher, garantindo a implementação de mecanismos de proteção e de acolhimento. No contexto atual, frente aos retrocessos na política de controle de armas, é preciso atentar para o risco que a facilitação do acesso às armas de fogo pode representar em relação ao agravamento dos conflitos interpessoais e da violência doméstica. Defender uma política responsável de controle de armas no país é também um requisito fundamental para avançarmos no enfrentamento da violência contra a mulher.
Cristina Neme é coordenadora de Projetos do Instituto Sou da Paz
Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-10-05/o-brasil-precisa-olhar-para-as-mulheres-vitimas-de-violencia.html
Luiz Carlos Azedo: Três tenores e um anjo torto
Grupo acompanhou a trajetória política do Brasil desde o golpe que destituiu João Goulart, em 1964, até a recente confusão armada por Bolsonaro
Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense
Um evento importante para a política será realizado, hoje, para discutir a crise brasileira, com a participação dos ex-presidentes José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer, no qual o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Nelson Jobim fará uma abertura sobre a crise institucional que estamos atravessando, com mediação do ex-governador fluminense Moreira Franco. O seminário “Um novo rumo para o Brasil” é promovido pelas fundações do MDB, PSDB, DEM e Cidadania, e contará ainda com os presidentes dos respectivos partidos — o deputado federal Baleia Rossi (SP), o ex-ministro das Cidades Bruno Araújo, o ex-prefeito de Salvador ACM Neto e o ex-senador Roberto Freire, respectivamente.
O evento estava sendo organizado havia meses, para começar em 8 de setembro, mas o ex-presidente Michel Temer, premonitoriamente, sugeriu que fosse adiado por uma semana, não apenas por causa do feriadão do 7 de setembro, mas porque se temia que, no Dia da Independência, algum fato relevante ocorresse, como acabou acontecendo, exigindo certa decantação para que o evento não se transformasse numa operação de apagar incêndio. Ou seja, que deixasse de discutir saídas para a crise política que o país atravessa e o choque entre Poderes. Acabou que foi exatamente isso o que ocorreu no dia 8 de setembro, uma operação para conter as chamas dos discursos incendiários de Bolsonaro, que provocaram um locaute de caminhoneiros e que assombraram os agentes econômicos e aliados do governo.
O título da coluna, obviamente, é uma analogia, porque Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer nem de longe têm a potência de voz dos três tenores aos quais se remete: Plácido Do- mingo, José Carreras e Luciano Pavarotti, que cantaram juntos, em concertos, durante a década de 1990 e no início da década de 2000. A primeira performance do trio ocorreu nas Termas de Caracala, em Roma, Itália, em 7 de julho de 1990 — no encerramento da Copa do Mundo de Futebol de 1990. Zubin Mehta conduziu a Orquestra Maggio Musicale Fiorentino e a Orquestra do Teatro da Ópera de Roma.
Potência de voz no sentido figurado, porque são vozes influentes ainda hoje na política brasileira. Sarney virou um oráculo de muitos senadores influentes; FHC é o único que pode juntar os cacos do PSDB e continua sendo a referência política do grupo de economistas que salvou o país da hiperinflação; finalmente, Temer renasceu das cinzas, sendo o único interlocutor do presidente Jair Bolsonaro no mundo da alta política — os demais são operadores do baixo clero. O ex-ministro Nelson Jobim dispensa apresentação: é um personagem importante na calibragem das propostas que podem surgir do evento, porque foi ministro da Justiça de Fernando Henrique, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e ministro da Defesa do ex- presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além de personagem muito importante na elaboração da Constituição de 1988.\
O anjo torto
Do time de presidentes de partidos, Roberto Freire (Cidadania) é o único que participou da Constituinte. Viveu todos os momentos da transição à democracia, desde sua eleição a deputado federal em 1978. Baleia Rossi (MDB), Bruno Araújo (PS- DB) e ACM Neto (DEM) pertencem à nova geração que comanda o Congresso. No seminário, formarão uma espécie de backing vocal. Na música, muita gente subestima o coro que dá sustentação aos tenores e outros solistas, mas é preciso muita habilidade para desempenhar esse papel. É necessário percepção e habilidades que são desenvolvidas com estudos. Ter um ouvido bem apurado e prestar bastante atenção para não “entrar” na voz principal.
O encontro será transmitido ao vivo pelas redes sociais, a partir das 18h30, o primeiro da série de oito debates programáticos (economia, meio ambiente, saúde, educação, segurança, diversidade, relações exteriores), com grandes especialistas, na tentativa de formular uma agenda nova para o país, entre as quais uma saída sustentável para a crise econômica. Há muita experiência vivida nesse grupo, que acompanhou a trajetória política do Brasil desde o golpe que destituiu o presidente João Goulart, em 1964, até a confusão armada por Bolsonaro, na semana passada.
Para resumir a linha de pensamento vitoriosa nesse processo, há dois eixos: a defesa da democracia e a conciliação política. Mas ninguém se iluda: todos nesse grupo foram capazes de tomar decisões firmes em momentos difíceis e liderar rupturas. Por isso mesmo, não se deve esperar um debate monocórdico, um coro perfeito. Quem será o anjo torto?
Índios marcham pelo centro de Brasília e fazem reivindicações
Marcha das Mulheres Indígenas reuniu-se com o movimento Luta pela Vida
Alex Rodrigues / Agência Brasil
Com faixas contra o governo federal e pela manutenção de seus direitos constitucionais, o grupo deixou o acampamento por volta das 9h de hoje e seguiu em caminhada pelo Eixo Monumental até a avenida W3 Sul, de onde foi para a Praça do Compromisso. Na praça, o grupo homenageou a memória do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, morto, no local, por cinco jovens de classe média que, em 1997, atearam fogo em seu corpo. Durante o ato, um boneco alusivo ao presidente Jair Bolsonaro foi queimado.
A marcha pela região central de Brasília estava prevista para ontem (9), mas, por segurança, os coordenadores decidiram adiá-la. Ainda por segurança, os indígenas optaram por caminhar até a Praça do Compromisso, e não mais até a Praça dos Três Poderes.
"As forças de segurança do Distrito Federal recomendaram que, por precaução, as mulheres ficassem aqui mesmo, no acampamento. Decidimos não fazer a marcha até a Praça dos Três Poderes por entender que ainda há muita gente armada na cidade”, disse ontem Danielle Guajajara à Agência Brasil.
Luta Pela Vida
Desde a última terça-feira (7), os participantes da 2ª Marcha Nacional das Mulheres Indígenas se somam aos remanescentes do movimento Luta Pela Vida, acampamento indígena que, nas últimas semanas, chegou a reunir 6 mil pessoas na capital federal para acompanhar o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do futuro das demarcações das terras indígenas.
O movimento indígena reivindica pressa na demarcação de novas reservas, com a conclusão dos processos de reconhecimento em fase avançada. E, principalmente, cobra que os ministros do STF refutem o chamado Marco Temporal, tese segundo a qual só teriam direito às terras pertencentes a seus ancestrais as comunidades que as estavam ocupando ou já as disputavam na Justiça em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
Os índios também se opõem às propostas de liberar a mineração em seus territórios e flexibilizar as normas de licenciamento ambiental em todo o país e ainda cobram ações públicas contra a violência contra as mulheres indígenas e a favor da saúde dos povos tradicionais.
Fonte: Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-09/indigenas-marcham-pelo-centro-de-brasilia-e-fazem-reivindicacoes
Terras indígenas: Relator vota contra o marco temporal
Proteção constitucional independe do marco ou disputa judicial na data da promulgação da Constituição, disse Fachin
André Richter / Agência Brasil
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin votou hoje (9) contra a tese do marco temporal para demarcações de terras indígenas. Para o ministro, que é relator do caso, a proteção constitucional das áreas indígenas independe do marco ou disputa judicial na data da promulgação da Constituição. Após o voto, a sessão foi suspensa para intervalo e será retomada em seguida.
Há duas semanas, o STF julga o processo sobre a disputa pela posse da Terra Indígena Ibirama, em Santa Catarina. A área é habitada pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani, e a posse de parte é questionada pela procuradoria do estado.
Os ministros discutem o chamado marco temporal. Pela tese, defendida por proprietários de terras, os indígenas somente teriam direito às terras que estavam em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, ou que estavam em disputa judicial nesta época.
PROTESTO CONTRA O MARCO TEMPORAL






























Voto
Fachin iniciou seu voto discordando das afirmações de que as condicionantes estabelecidas no julgamento do caso da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em 2009, não possam ser reavaliadas por estarem sendo aplicadas pelo Judiciário em outros casos envolvendo demarcações de terras. Na época, o STF estabeleceu balizas e salvaguardas na promoção de todos os direitos indígenas, e, para garantir a regularidade da demarcação de suas terras, como regra geral, foram observados o marco temporal e o marco da tradicionalidade.
“Dizer que Raposa Serra do Sol é um precedente para toda a questão indígena é inviabilizar as demais etnias indígenas. É dizer que a solução dada para os Macuxis é a mesma dada para Guaranis, para os Xoklengs seria a mesma dada para os Pataxós. Só faz essa ordem de compreensão quem chama todos de índios, esquecendo das mais de 270 línguas que formam a cultura brasileira e somente quem parifica os diferentes e os distintos e as distintas etnias pode dizer que a solução tem que ser a mesma sempre. Quem não vê diferença não promove a igualdade”, afirmou.
O ministro argumentou ainda que as regras de posse indígena não têm relação com o direito de posse civil.

“Não se configura posse em terras indígenas. No caso das terras indígenas, a função da terra se liga visceralmente à conservação das condições de sobrevivência e do modo de vida indígena, mas não funciona como mercadoria de circulação para essas comunidades. A manutenção do habitat indígena não se resume a um conjunto de ocas”, argumentou.
Fachin relembrou histórico de violência pela disputa de terras indígenas e entendeu que o marco temporal não garante proteção contínua das comunidades, garantido pela Constituição, e não abrange casos de comunidades isoladas.
“Assegurar aos índios os direitos originários às terras que tradicionalmente ocupam não se confunde com usucapião imemorial, que exigisse, de forma automática, a manutenção da presença indígena na área na data exata de 5 de outubro de 1988".
O processo tem a chamada repercussão geral. Isso significa que a decisão que for tomada servirá de baliza para outros casos semelhantes que forem decididos em todo o Judiciário.
Fonte: Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2021-09/relator-vota-contra-marco-temporal-para-demarcacao-de-terra-indigena
Câmara discute ações para conter violência contra mulheres indígenas
Cerca de 5 mil indígenas estão acampadas em Brasília
Alex Rodrigues / Agência Brasil
Duas comissões parlamentares (Direitos Humanos e Minorias e Defesa dos Direitos da Mulher) da Câmara dos Deputados realizaram, hoje (9), uma reunião conjunta para debater a violência contra mulheres indígenas de todo o Brasil. Solicitada pelas deputadas federais Joenia Wapichana (Rede-RR) e Erika Kokay (PT-DF), a iniciativa ocorre em um momento em que milhares de pessoas se encontram acampadas em Brasília, onde ocorre a 2ª Marcha Nacional das Mulheres Indígenas.
Convidada a abordar o contexto de violações aos direitos indígenas, especialmente os das mulheres, dentro de um cenário mais amplo, a representante da ONU Mulheres Brasil, a quirguistanesa Anastasia Divinskaya destacou que este tipo de violência não deve ser avaliado isoladamente. Anastasia lembrou que relatórios da própria ONU Mulheres demonstram que, em toda a América Latina, as indígenas, sobretudo aquelas que lutam em defesa de territórios tradicionais e dos direitos humanos, estão mais sujeitas às represálias.
“As mulheres indígenas são vítimas de múltiplos atos de violência: abuso sexual, violência doméstica, assassinatos, desaparecimento, submissão à prostituição e uso não consensual de suas imagens como objetos decorativos e exóticos. Elas também experimentam formas particulares de violências, as chamadas violências ecológica - uma referência aos impactos prejudiciais das políticas e práticas que afetam a saúde das mulheres, estilos de vida, status social e sobrevivência cultural”, disse a representante da ONU Mulheres.
“[Logo] A violação aos direitos das mulheres indígenas não deve ser considerada isoladamente. Ela deve ser vista dentro do amplo espectro das violações dos direitos humanos”, acrescentou Anastasia, antes de comentar os riscos a que se expõem as lideranças que se engajam na promoção e defesa dos direitos de seus povos. “Um recente relatório que abrange os países da América Latina, incluindo o Brasil, observou que ser mulher e promover a defesa de seus direitos, especificamente o direito à terra e aos direitos humanos, aumentam os riscos de retaliação.”
“[Em geral] mulheres indígenas experimentam um amplo e complexo espectro de abusos e de violações aos direitos humanos. Este espectro é influenciado por múltiplas formas de discriminação e marginalização, baseadas em questões de gênero, origem étnica e circunstâncias socioeconômicas”, pontuou Anastasia para, em seguida, enfatizar a importância da mobilização indígena. “Gostaria de dar crédito às mulheres indígenas brasileiras que têm sido fundamentais para a formulação dos marcos normativos globais, influenciando o estabelecimento de um sólido regime de igualdade de gêneros e de direitos das mulheres nas Nações Unidas e em outros fóruns. Há décadas, estas mulheres vêm defendendo seus direitos e os direitos humanos no Brasil”, disse a representante da ONU Mulheres, conclamando os governos a ouvir a opinião de representantes das comunidades, principalmente das mulheres, sobre projetos que afetem os povos indígenas – conforme estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
ÍNDIOS PROTESTAM EM FRENTE AO STF










“É fundamental que as mulheres indígenas tenham a possibilidade de afirmar sua autonomia. O empoderamento destas mulheres não deve ser considerado um fator de desagregação cultural ou uma imposição de direitos individuais aos coletivos. A participação política, a representação das mulheres indígenas em órgãos decisórios de Estado, é essencial para assegurar o respeito a seus direitos, bem como a inclusão de suas realidades e demandas na [formulação de] políticas públicas”, finalizou Anastasia.
Denúncias
Secretária do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Maria Betania Mota de Jesus, lamentou que o Poder Público brasileiro não dê a devida atenção às principais reivindicações do movimento indígena, sobretudo no sentido de proteger os territórios tradicionais.
“As ameaças e retrocessos estão aí, à vista de todos. Estamos fazendo nosso papel, denunciando esta situação a várias instâncias que precisam se alertar e estar ao nosso lado”, declarou a secretária. Segundo ela, a Convenção 169 da OIT vem sendo descumprida, já que a opinião majoritária entre os indígenas sobre projetos de lei que visam a alterar as regras para demarcação de novas reservas e liberar a mineração em territórios de usufruto indígena não estaria sendo levada em conta.
As representantes da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade, Elisângela Baré, e da Articulação dos Povos Indígenas (Apib), Alessandra Munduruku, endossaram a fala de Maria Betania.
“Precisamos sair da invisibilidade, sermos ouvidas a fim de caminharmos todos juntos”, pontuou Elisângela, ao mencionar que grande parte das terras indígenas possuem um plano de gestão territorial e ambiental elaborado pelas comunidades que ali residem, com apoio técnico, e no qual os povos originais estabelecem como pretendem gerir o território, preservando os recursos naturais e seus costumes. “Queremos desenvolvimento sim, mas não de qualquer jeito. Por isso criamos protocolos de consulta”, acrescentou Elisângela.
“O que seria de nós sem nosso território, sem nossos rios, nossas florestas? O que seria de nós se não protegêssemos a Amazônia? Fazemos isso de graça e a única coisa que queremos é viver em paz, mas, infelizmente, não temos isso. O que [recebemos em troca] é violência”, lamentou Alessandra Munduruku, criticando deputados federais e senadores que, segundo ela, vêm propondo e aprovando projetos que prejudicam não só as comunidades indígenas, mas também a outros povos tradicionais que lutam para preservar seu modo de vida ancestral.
“Não estamos mais conseguindo plantar, colher, estar dentro de nossas comunidades tranquilas. Todo o tempo a gente precisa estar aqui, em Brasília, porque temos que gritar que estamos vivos, temos que brigar por nossos direitos.”
ATOS CONTRA O MARCO TEMPORAL












Inconstitucionalidade
Para a procuradora do Ministério Público Federal (MPF), Márcia Brandão Zollinger, muitos dos projetos de lei criticados pelo movimento indígena são claramente inconstitucionais. Caso, segundo ela, do Projeto de Lei 490/2007, que tenta alterar as atuais regras para demarcação de terras indígenas e que já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados.
“Vários projetos de lei que tramitam na Câmara violam os direitos dos povos indígenas porque perpetuam o esbulho das terras indígenas que ocorre desde a invasão do Brasil. São projetos que materializam violências contra os povos indígenas, e mais especificamente contra as mulheres indígenas”, declarou a procuradora. Márcia criticou também o Projeto de Lei 2.159/21, que flexibiliza as regras do licenciamento ambiental, levando em conta a exigência da consulta e autorização dos órgãos ambientais apenas para empreendimentos em terras indígenas já homologadas. “Temos, hoje, 273 territórios já em processo de demarcação, com seus limites já reconhecidos, e que serão desconsiderados para processos de licenciamento ambiental [caso o Senado aprove o PL como recebido da Câmara dos Deputados]. Fora que há ainda outras 536 áreas sendo reivindicadas. Todas seriam desconsideradas.”
Único homem a falar durante o debate, o secretário-adjunto de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Esequiel Roque do Espírito Santo, disse que o governo federal reconhece que o Brasil é um país “multiétnico, de enorme diversidade cultural”, e que está atento à violência contra as mulheres, incluindo as indígenas.
“Temos o grande desafio de tirar esta questão da invisibilidade e trabalharmos com foco nisto. Nos preocupamos muito também com a questão da relativização da violência contra a mulher. Existe uma ideia de que alguns atos de violência cometidos contra as mulheres indígenas são reflexos culturais. Entendemos que a Convenção 169 deixa muito claro que os povos indígenas têm o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional, nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos”, disse o secretário.
Fonte: Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2021-09/camara-discute-acoes-para-conter-violencia-contra-mulheres-indigenas
Luiz Carlos Azedo: O bicentenário
O Brasil vive um cenário de incertezas, tendo como falso deadline o próximo 7 de Setembro
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Ao resenhar a obra do historiador José Honório Rodrigues, Conciliação e reforma no Brasil (Senac), de 1965, o embaixador Alberto Costa e Silva destacou que a chave para entender a história do Brasil é a conciliação: “Entre os que se foram tornando o povo brasileiro — os índios convertidos e os selvagens; os negros escravos, libertos, africanos e crioulos; os brancos reinóis e os mazombos; os mamelucos; os mulatos e os cafuzos; tão diversos entre si, tantas vezes conflitantes e, na aparência, irredutíveis —, venceram os conciliadores sobre a violência dos intransigentes”.
Pelourinhos, quilombos, motins, revoltas, repressões sangrentas, fuzilamentos, enforcamentos, esquartejamentos, guerras e mais guerras, desde a Independência, foram 200 anos sangrentos, mas prevaleceu a unidade nacional e a conciliação no seio do povo, à qual devemos “o fato de ter o Brasil, desde cedo, deixado de ser uma caricatura de Portugal nos trópicos” e possuir um substrato novo, “apesar do europeísmo e lusitanismo vitorioso e dominante na aparência das formas sociais”, como destacou Honório Rodrigues.
Não haveria futuro com recusa ao diálogo, desrespeito aos opositores, intolerância mútua e intransigência. Muito mais do que às elites, ao povo se deve a integridade territorial; a unidade linguística; a mestiçagem; a tolerância racial, cultural e religiosa; e as acomodações que acentuaram e dissolveram muitos dos antagonismos grupais e fizeram dos brasileiros um só povo que, como se reconhece e autoestima, delas também recebeu as melhores lições de rebeldia contra uma ordem social injusta e estagnada, avalia.
Hoje, o Brasil vive um cenário de incertezas, tendo como falso deadline o próximo 7 de Setembro, no qual o presidente Jair Bolsonaro promete armar um grande barraco político, em manifestações convocadas para a Avenida Paulista, em São Paulo, e a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, enquanto as Forças Armadas se recolherão às cerimônias de quartel, à margem da política, sem os populares. desfiles militares. A contagem regressiva para o bicentenário da Independência começa numa encruzilha do seu destino: não temos um projeto de futuro nem consensos sobre o presente.
Não será um ano fácil. Num país com rumo, o presidente da República anunciaria grandes comemorações, uma proposta de desenvolvimento e a convocação de um debate nacional sobre os próximos 100 anos, envolvendo toda a sociedade. O objetivo seria nos tornarmos um país desenvolvido (ou quase) pelo esforço continuado de quatro gerações. Entretanto o que estamos vendo é a desesperança na sociedade e o desejo de volta ao passado, de uma minoria reacionária e extremista, saudosista do sesquicentenário, comemorado durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici.
Naquela época, em plena ditadura, o ponto alto das comemorações foi o seu encerramento, na colina do Ipiranga, em São Paulo, local onde foi proclamada a Independência, em 1822, e onde ocorreria a inumação dos despojos mortais de D. Pedro I, ao lado da imperatriz Leopoldina, após peregrinação por todo o país. Um tour de necropolítica, à sombra da censura prévia e da suspensão do habeas corpus. Os órgãos de segurança do regime sequestravam, torturavam e desapareciam com oposicionistas.
Nova agenda
Com certeza, haverá muita discussão sobre o que aconteceu nestes 200 anos e o que devemos projetar para o futuro, na academia e nos partidos, como o MDB, o PSDB, o DEM e o Cidadania, cujas fundações anunciam a realização de uma série de debates programáticos, com objetivo de repensar a realidade brasileira no contexto da globalização, a partir da segunda semana de setembro. O primeiro será em 15 de setembro, sobre a atual crise institucional e a democracia, tendo como conferencista o ex-presidente do Supremo Nelson Jobim e os ex-presidentes José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer como debatedores, com a participação dos presidentes dos respectivos partidos: o deputado Baleia Rossi (MDB-SP); o presidente nacional do PSDB, Bruno Araujo; o ex-prefeito de Salvador ACM Neto (DEM); e o ex-deputado Roberto Freire (Cidadania).
Segundo o ex-governador Moreira Franco, mediador do debate e um dos curadores do evento, o objetivo é discutir um novo rumo para o país, em bases democráticas, modernas e inclusivas, antes de pensar em candidatura única, analisar uma nova agenda do país. O evento reunirá gente que pensa com Pê maiúsculo: Roberto Brant, Zeina Latif, José Roberto Afonso, Bernard Appy, Ricardo Paes de Barros, Ricardo Henriques, Cristovam Buarque, Raul Jungmann, Murilo Cavalcanti, Sérgio Besserman Vianna, Rubens Ricupero e José Carlos Carvalho, Milton Seligman, Gabriela Cruz Lima, Ivanir dos Santos, Luiz Antônio Santini, André Médice, Januário M Januário Montoni, Marta Suplicy e Luiz Roberto Mott, entre outros.
Carolina Ricardo e Beatriz Graeff: Supremo precisa decidir sobre as armas
Enquanto ações aguardam julgamento, essa boiada também está passando
Carolina Ricardo e Beatriz Graeff / Folha de S. Paulo
Em consonância com sua agenda eleitoral e em diálogo direto com o grupo de apoiadores para quem o acesso às armas é visto como direito absoluto à liberdade de se armar, o governo Bolsonaro vem alterando normas que, entre outros impactos, aumentam o número de equipamentos que podem ser adquiridos por cada cidadão, autorizam a obtenção de exemplares que antes eram de uso exclusivo das forças de segurança e possibilitam a fabricação de munição sem nenhum tipo de controle por parte dos órgãos competentes.
Como resultado, desde 2019 verifica-se um crescimento exponencial no número de armas em circulação, tendo o ano de 2020 registrado um aumento de 65% —ou seja, mais de um milhão de novas armas nas mãos de civis ante 2018 e sem nenhuma ação correspondente para fortalecer os mecanismos de fiscalização e controle desse arsenal.
Em ações judiciais movidas contra os decretos de flexibilização do acesso a armas, os ministros Rosa Weber e Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, já registraram seus votos apontando a inconstitucionalidade dessas medidas, que violam os princípios constitucionais do direito à vida e à segurança pública e usurpam a competência exclusiva do Congresso Nacional ao afrontar mecanismos de controle definidos em lei.
Em decisão liminar, a ministra Rosa Weber suspendeu a eficácia de alguns dispositivos dos decretos editados na véspera do Carnaval de 2021. Embora a decisão tenha sustado provisoriamente parte das medidas de desmantelamento da política de controle de armas, muitos outros dispositivos permanecem vigentes, desde os decretos de 2019. A estratégia de fracionamento das normas adotada pelo governo, editando alterações sobre alterações, promove um ambiente de alta insegurança jurídica, deixando até mesmo os operadores que lidam cotidianamente com esse regramento em dúvida quanto ao que está ou não vigente.
É urgente que o ministro Alexandre de Moraes dê andamento às ações diretas de inconstitucionalidade que tramitam no STF, dando a oportunidade para que os outros ministros se manifestem sobre o desmonte da política de controle de armas. Enquanto as ações aguardam julgamento, a boiada das armas, infelizmente, segue passando. A estimativa é de que a cada dia cerca de 378 novas armas sejam registradas no sistema da Polícia Federal. Desde o pedido de vista das ações, mais de 45 mil novas armas já entraram em circulação.
Além disso, as mortes violentas voltaram a subir em 2020, tendo aumentado para 78% a proporção das cometidas com uso de armas de fogo. Paralelamente, arroubos antidemocráticos continuam se fortalecendo com o ingrediente das armas de fogo, e o crime organizado segue abastecendo seus arsenais.
O julgamento definitivo desse conjunto de ações é fundamental para barrar a explosão na circulação de armas. E, mais do que isso, a manifestação do Supremo a respeito dos decretos de descontrole das armas, à luz do direito à vida e à segurança pública, representará também um importante marco de proteção ao Estatuto do Desarmamento contra os constantes ataques que ameaçam os mecanismos de controle responsável de armas de fogo que ele consolida.
*Carolina Ricardo, advogada e socióloga, é diretora executiva do Instituto Sou da Paz
**Beatriz Graeff é antropóloga e pesquisadora na área de segurança pública e sistema de Justiça criminal
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/08/supremo-precisa-decidir-sobre-as-armas.shtml
Luiz Carlos Azedo: O braço armado de Bolsonaro
“No establishment econômico, institucional e militar, a interrogação é se chegaremos em 2022 com Bolsonaro no poder”
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
O imponderável da democracia brasileira, com eleições limpas e apuração instantânea, é o voto popular. Vem daí o medo que Jair Bolsonaro sente das urnas eletrônicas, porque sua reeleição subiu no telhado, em razão de o país estar à matroca — com inflação em alta, desemprego em massa, crise sanitária e risco de apagão. Por isso, ameaça tumultuar as eleições de 2022. O presidente da República teme não se reeleger, desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva despontou como favorito nas pesquisas de opinião, mesmo sabendo que ninguém ganha eleição de véspera. Outros postulantes querem romper essa polarização: João Doria (PSDB), Ciro Gomes (PDT), Henrique Mandetta (DEM), quiçá Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, e Sérgio Moro, o ex-juiz que não se assume como candidato e continua pontuando nas pesquisas. Nas simulações de segundo turno, Bolsonaro perderia para todos. Obviamente, esse cenário ameaça até sua presença no segundo turno.
Pressionado psicologicamente, diante do próprio fracasso político-administrativo, a 14 meses das eleições, Bolsonaro aposta na polarização ideológica e na radicalização política extrema. Busca um atalho para se manter no poder. Apoiado por partidários fanatizados, escala um confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF) e trabalha para melar as eleições, ao levantar suspeitas sobre a integridade do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na condução do pleito. Tenta intimidar a oposição, a imprensa e os ministros do Supremo, e arrastar as Forças Armadas para uma aventura golpista. Não obteve sucesso até agora. Quer transformar o Sete de Setembro, no qual pretende realizar duas grandes manifestações, uma em Brasília e outra em São Paulo, numa demonstração de que pode resolver no braço o que não consegue pelo convencimento, como fazem os valentões.
Os próximos meses serão complicados. Bolsonaro tem um pacto com os violentos. Primeiro, com as milícias do Rio de Janeiro, cujo modelo de atuação naturalizou e traduziu para a política. Aproveitando-se dos interesses corporativos de categoriais profissionais embrutecidas pelos riscos da própria atividade, mobiliza atiradores e indivíduos que cultuam a violência por temperamento ou ideologia, fundamentais para a formação de falanges políticas armadas, para as quais conta com a expertise de militares reformados e agentes de segurança pública. A violência sempre presente nos territórios dominados por atividades transgressoras ou na fronteira da economia informal, onde não existe título em cartório e as dívidas são cobradas sob ameaças, é o caldo de cultura de que se aproveita.
Establishment
Na Itália do jurista, político e ex-primeiro-ministro Aldo Moro, assassinado em 1978 pelas Brigadas Vermelhas, os terroristas escreveram nos muros da sede da Democracia Cristã: “Transformar a fraude eleitoral em guerra de classes”. Com sinal trocado, quando fala que o povo deveria comprar fuzil e não feijão, Bolsonaro sinaliza na direção de que pretende transformar as eleições numa guerra. Está armando os militantes que pretende mobilizar para tumultuar o pleito, como tentou Donald Trump nas eleições americanas, diante da impossibilidade de mobilizar as Forças Armadas para dar um golpe de Estado.
No establishment econômico, institucional e até mesmo militar do país, porém, a grande interrogação é se chegaremos às eleições de 2022 com Bolsonaro no poder. Sua escalada contra as regras do jogo democrático e contra o Supremo não tem como dar certo. No limite, propõe a discussão sobre a eventualidade de interdição por insanidade mental ou inelegibilidade por atentar contra a democracia. Talvez seja essa a aposta do presidente da República, para provocar uma crise institucional de desfecho violento.
A democracia é uma conquista civil da qual não se pode abrir mão precisamente porque, onde ela foi instaurada, substituiu a violenta luta pela conquista do poder por uma disputa partidária com base na livre discussão de ideias. Condenar as eleições, esse ato fundamental do sistema democrático, em nome da guerra ideológica, nos ensina o mestre Norberto Bobbio, significa “atingir a essência não do Estado, mas da única forma de convivência possível na liberdade e através da liberdade que os homens até agora conseguiram realizar, na longa história de prepotência, violência e cruel dominação”. Deixemos o povo resolver as disputas pelo voto, em clima de eleições pacíficas e ordeiras.