violência no campo
'Bolsonaro está armando pessoas contra nós', diz Megaron Txucarramãe
Em entrevista exclusiva, liderança Kayapó denuncia como os políticos estão se organizando para remover direitos indígenas e que a violência no campo vai aumentar
Por Cristina Ávila / Amazônia Real
Contaram os irmãos Villas-Bôas que Kayapó era uma designação cabocla, dada principalmente pelos seringueiros aos indígenas que usam botoque de madeira no lábio inferior. “São os Jê-Botocudo. Os Juruna, vizinhos mais próximos dos Botocudo do Xingu, chamavam-nos Txucarramãe, poderosa nação que resistiu energicamente ao contato” com a sociedade envolvente e mantinha constante vigilância sobre seu território, não permitindo ingresso de quaisquer estranhos.
“Não há quem não tenha ouvido falar dos Kayapó, nação temida por sua altivez e rebeldia e, atualmente, uma das mais numerosas do nosso vasto sertão”, relataram, no livro A marcha para o oeste: a epopeia da expedição Roncador-Xingu, os irmãos Orlando (1914-2002) e Cláudio Villas-Bôas (1916-1998). Foram os Villas-Bôas que os contataram nos anos 1950, deixando registros em diários escritos durante a sua permanência entre povos amazônicos.
Megaron Txucarramãe, um dos principais líderes indígenas do Brasil, mantém a altivez. E a mesma determinação na vigilância de territórios e de direitos, hoje não somente de seu povo, mas de todos os indígenas brasileiros, que desde os anos 1980 se articulam em lutas coletivas nacionais. Sobrinho do cacique Raoni Metuktire e pai de Mayalú Kokometi Waurá Txucarramãe, que desponta como guerreira de sua nova geração, ele mora na Terra Indígena Capoto/Jarina, no norte do Mato Grosso. É presença marcante nos embates com o governo Jair Bolsonaro e com o Congresso promovidos pelas organizações indígenas.
Há mais de 30 anos, os Kayapó acampam, de tempos em tempos, em Brasília para travar lutas. Nesse período, o cacique Megaron acompanhou seu tio Raoni na liderança dos guerreiros que sempre impressionaram por sua beleza e disciplina espartana no cumprimento de rituais sagrados. Impressionam pelos espetaculares movimentos de dança ordenados por gritos de guerra, sacudindo a Esplanada dos Ministérios com pés pesados e corpos pintados com o negro jenipapo e o rubro urucum.
Um dos cocares multicoloridos dos Kayapó foi parar na cabeça do então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães (1916-1992) em 1987, que assim espantado na porta de seu gabinete na Câmara dos Deputados recebeu o documento com as reivindicações que seriam negociadas no Capítulo dedicado aos povos indígenas da Constituição Federal, homologada em 1988. Foram momentos de tensão vividos pelas organizações indígenas que no primeiro momento não puderam sequer entrar no Congresso. As organizações sofreram derrotas em comissões, mas acabaram com a vitória de 497 votos favoráveis, 5 contra e 10 abstenções em plenário.
Na história de luta de Megaron Txucarramãe, consta a inédita indenização por dano espiritual pago pela empresa aérea Gol aos Kayapó da TI Capoto-Jarina. Em 29 de setembro de 2006, um Boeing da Gol se chocou com um jato Legacy e caiu de bico na floresta. Por 20 dias, Megaron participou do grupo de indígenas que auxiliou militares no resgate dos corpos, como narrou a agência Pública. Em 2010, Raoni e Megaron procuraram a companhia aérea para retirar os destroços da aeronave. Diante da recusa, sob alegação de danos ambientais, os indígenas afirmaram que a área em torno dos destroços ficariam interditados para sempre. A indenização foi de 4 milhões de reais.
Sobrinho de Raoni, Megaron informou à reportagem da Amazônia Real que seu tio já está totalmente recuperado da Covid-19, depois de duas internações em 2020, uma por hemorragia digestiva (em julho) e outra por pneumonia (em agosto). Mas Raoni também está preocupado com as atuais ameaças que sofrem os povos indígenas.
“Não esteve em Brasília porque ainda está de luto pela esposa (Bekwyjka Metuktire) que morreu no ano passado. Mas ele está pensando, preocupado, acompanhando o movimento em Brasília. Pergunta como estamos, como está o andamento do projeto, tudo ele está sempre perguntando. Está forte, está bem” disse.
Em maio de 2018, meses antes da eleição de Bolsonaro, Megaron já demonstrava sua inquietude com a campanha eleitoral e os riscos para as populações indígenas. Desta vez, em nova entrevista exclusiva à Amazônia Real, o líder Kayapó alerta que as ameaças agora ganharam abrigo no poder central. Leia a seguir:
Amazônia Real – Sua luta tem mais de três décadas. Como vê o atual momento para os povos indígenas?
Megaron Txucarramãe – Estou de novo em movimento com outros parentes indígenas de todos os Estados do Brasil contra o projeto de lei votado no Congresso (PL 490/2007) que tenta alterar direitos garantidos nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, escritos em 1988 pelos deputados nos dando direito de ocupar terras tradicionais. Eles querem agora modificar terras indígenas demarcadas, homologadas de acordo com a Constituição. Tudo isso está sendo mudado. E estou, depois de tantos anos de isso tudo aprovado, com jovens indígenas fazendo um movimento contra esse projeto.
Amazônia Real – Durante a Constituinte, havia diálogo com as lideranças indígenas. Hoje há receptividade do Congresso para as demandas dos povos?
Megaron – Naquele tempo a Funai (Fundação Nacional do Índio) dava apoio aos indígenas nos movimentos em Brasília. Era diferente dos dias de hoje. A Funai era outra, o governo era outro, as pessoas eram outras. Hoje, não. O presidente da República é contra nós, o presidente da Funai é contra indígenas, o presidente do Senado, da Câmara devem estar tudo contra nós indígenas porque eles querem aprovar esse projeto. Estamos vendo quem são nossos inimigos, que querem acabar com nós através de papel, não à bala. Eles querem tomar nossas terras. Querem ocupar a terra indígena, querem mandar mineradora, garimpeiro, madeireiro, querem que nós arrendemos as terras indígenas. Essa lei aí nos obriga a arrendar a terra. Antigamente a gente não podia arrendar a terra. Eles querem tomar tudo de nós, indígenas.
Amazônia Real – Então está mais difícil a luta no Congresso Nacional?
Megaron – Está difícil eles aceitarem acordos, conversarem, negociarem com os índios. Está difícil. Jogaram bomba de gás, jogaram spray de pimenta, machucaram dois índios e dois policiais. A gente vai ver a violência agora no campo. Isso vai se refletir lá no campo. Bolsonaro está armando pessoas no campo contra nós, pessoas compram armas, munição; enquanto nós não temos armas. Nós não compramos armas. Se é assim, vamos ter que comprar armas também?
Amazônia Real – Os invasores estão arrogantes, violentos, entram nas terras como se fossem donos, não é?
Megaron – Bolsonaro quer é isso. E tem parente indígena ainda que vai lá tirar foto com ele, vai lá, apoia ele. Nós não apoiamos Bolsonaro, não. Se viu em Brasília [em 23/6, dia de votação do PL na Comissão de Constituição e Justiça], mais de 1.200 indígenas do Brasil fazendo movimento contra. Todos nós indígenas viemos sofrendo desde que chegou o homem branco. Não é só agora que temos esse problema de massacre, envenenamento, de tudo, tomada de terras, extinção de etnias. Não é de hoje que sofremos esses ataques, essas guerras que querem fazer contra nós.
Cristina Ávila fez comunicação na PUCRS e iniciou o jornalismo em pequenos diários de Porto Velho, em Rondônia, onde foi atraída por coberturas sobre meio ambiente, questões indígenas e movimentos sociais. Por mais de duas décadas trabalhou em redações de jornais, especialmente no Correio Braziliense. Em Brasília, entre 2009 e 2015 trabalhou no Ministério do Meio Ambiente, responsável por assuntos como mudanças climáticas e políticas públicas relacionadas a desmatamento. Nesse período teve oportunidade de prestar algumas consultorias ao PNUD. Atualmente atua na imprensa alternativa.
Fonte: Amazônia Real
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