violência
Nas entrelinhas: Apesar dos violentos e seu vandalismo, a democracia segue seu curso
Luiz Carlos Azedo | Correio Braziliense
O vandalismo dos inconformados com a prisão de um xavante bolsonarista, baderneiro — supostamente convertido ao Evangelho e oficiado pastor quando estava preso por tráfico de drogas —, na noite de segunda-feira, em Brasília, sinaliza muitas coisas, mas não a força suficiente para impedir a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Sua diplomação pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre Moraes, que determinou a prisão preventiva do índio renegado por sua tribo e a soldo de um fazendeiro do interior paulista, demonstrou que a democracia segue seu curso, com suas pompas e ritos, que consagram o nosso Estado democrático de direito.
O sociólogo Manuel Castells, ex-ministro de Universidades da Espanha — discípulo de Alain Touraine, Michel Foucault e Jürgen Habermas —, destaca que a democracia se constrói em torno de relações de poder social que vão se adaptando à evolução, mas sempre acaba por privilegiar o poder que já está cristalizado nas instituições. E com o poder cristalizado ficando cada vez mais poderoso, mais difícil fica de eliminá-lo ou combatê-lo. Isso acaba por desencorajar a criação de novas representações políticas ao fazer com que o cenário político se mostre cada vez mais dominado por grandes partidos, enraizados há mais tempo.
Partindo dessa premissa, podemos constatar que o tsunami eleitoral de 2018, que levou Bolsonaro ao poder, ao mesmo tempo em que foi resultado do descolamento dos partidos da sociedade, por seu cretinismo parlamentar (que nada mais é do que a defesa dos interesse próprios dos políticos e não das ideias e eleitores que lhes deram origem), representou a derrota dos movimentos cívicos que emergiram da crise do governo Dilma Rousseff em 2013. Esses movimentos não conseguiram dar origem a uma alternativa de poder de caráter liberal. Esvaziados, sua base social foi capturada pelo bolsonarismo, um movimento assumidamente reacionário, cuja atuação reproduz a velha extrema-direita da crise política e da radicalização dos anos 1930.
Agora estamos diante de um novo ciclo, em que o presidente Jair Bolsonaro, líder carismático desses movimentos, perdeu as eleições para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fundador e líder do maior partido de origem operária da história do país, num processo de polarização esquerda versus direita que precisa ser ultrapassado, mas se retroalimenta. Entretanto, há uma diferença fundamental entre Lula e Bolsonaro: o primeiro tem um partido com experiência política e eleitoral, e o segundo, não; lidera uma militância fanatizada e organizada à margem dos partidos que lhe deram governabilidade.
Diria Castells, quem paga esse pato é a sociedade, que se vê longe do sistema político, ao mesmo tempo em que o processo de renovação e evolução política do país fica tolhido pelos partidos dominantes. Mas não sejamos maniqueístas, o outro lado dessa moeda é o fortalecimento das instituições políticas, ainda que por uma “partidocracia”. Assim, a virulência verbal e vandalismo dos bolsonaristas-raiz são preocupantes, desnudam a mentalidade fascista de suas lideranças, porém, ao mesmo tempo, revelam um certo desespero diante da força das instituições e do curso da democracia.
Bagunça tem limite
A bagunça ocorrida em Brasília no dia da diplomação de Lula estava escrita nas estrelas. Foi orquestrada e mostra as intenções dos grupos golpistas que permanecem à porta dos quartéis, com propósito de impedir a posse do presidente eleito. Mas esse tipo de ação serve também para isolá-los e pôr uma saia justa nos aliados de Bolsonaro que se passam por liberais e flertam com o autoritarismo, bem como as autoridades de segurança cujos serviços de informação sabem o que está se passando. Como um novo ciclo que se abre, esses grupos de extrema-direita, com sinal trocado, se deparam com as mesmas dificuldades dos movimentos cívicos que não conseguiram se integrar ao processo político institucional e se esvaziaram como força eleitoral. A chave do que está ocorrendo é o Centrão.
O cientista político Carlos Melo, professor do Insper, a propósito do momento em que estamos vivendo, numa conversa política entre amigos na segunda-feira, fez uma observação fundamental: precisamos separar a extrema-direita bolsonarista do Centrão ao analisar a força de Bolsonaro. Segundo ele, a sobrevivência dos políticos do Centrão depende da relação com o governo, e não da liderança de Bolsonaro. Por isso mesmo, a construção da governabilidade de Lula passa pela institucionalidade da política, e não pelo confronto nas ruas. Esse seria o jogo dos violentos. Complemento: quando Churchill disse que “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras formas que foram experimentadas de tempos em tempos”, estava se referindo à capacidade de a democracia liberal do Ocidente sobreviver às crises que ela própria engendra. Foi mais ou menos o que ouvi de um general no Comando Militar do Planalto às vésperas do 7 de setembro do ano passado: “A democracia é barulhenta, mas tem instituições fortes”.
Em tempo: o presidente Jair Bolsonaro está chocando o ovo de uma serpente natimorta. A correlação de forças políticas, com a derrota eleitoral, está se alterando, porque o governo é a forma mais concentrada de poder e o aparelho burocrático-administrativo já gravita em torno do novo presidente da República e das forças que o apoiam. Os bolsões de resistência no Estado são localizados e estão sendo desnudados, principalmente na área da segurança pública. O que houve em Brasília foi omissão e conivência com os baderneiros, mesmo assim, diante da escalada, chegou uma hora em que a repressão aos manifestantes teve que ser adotada. Não houve prisões de vândalos na segunda-feira, mas serão inevitáveis.
Estadão usa foto de negro em matéria sobre ataque neonazista a escolas e redes não perdoam
O jornal O Estado de S. Paulo “errou” ao divulgar nas redes sociais uma matéria sobre o ataque neonazista em uma escola de Aracruz, no Espírito Santo. A publicação foi feita neste sábado (26) e continha a imagem de mãos negras segurando uma arma. O assassino que invadiu a instituição de ensino e fez vítimas já foi identificado e é branco e usava símbolos nazistas durante o ataque.
“Ataque a tiros em escola do ES: Por que ataques em escolas têm se repetido no Brasil?”, dizia a legenda da publicação no Twitter, junto com a imagem. Desde então, o jornal está sendo chamado de racista nas redes sociais. O assunto está entre os mais comentados do Twitter na noite deste sábado (26).
Momentos depois, o jornal excluiu a postagem com a imagem equivocada e repostou com a imagem correta. “Uma versão anterior deste post usou uma imagem inadequada para ilustrar a reportagem. Alertados por nossos leitores, trocamos a foto, corrigindo o erro”, escreveu o Estadão. Veja abaixo.
*Texto publicado originalmente no portal Poder 360
4 fatores que impedem que Brasil vire potência no turismo apesar do potencial
Shin Suzuki*, BBC News Brasil
Alguns dos elementos mais associados ao Brasil — belezas naturais, grande diversidade cultural, calendário rico em festas nacionais e regionais — valem ouro em qualquer roteiro de viagem. Mas o grande potencial do país não se traduz em números de destaque no mercado mundial de turismo. Um estudo analisou fatores que emperram o desenvolvimento nacional da área.
O futuro do turismo no Brasil a partir da análise crítica do período 2000-2019 contou com 23 pesquisadores de 17 instituições brasileiras.
A investigação observa que, mesmo durante o boom do turismo internacional na década passada, o Brasil estacionou em pouco mais de 6 milhões de visitantes estrangeiros por ano.
Nesse período, o país ainda teve a rara oportunidade de sediar uma Copa do Mundo e uma Olimpíada no espaço de dois anos, mas o crescimento entre 2014 e 2019 foi ínfimo: uma alta ligeira (que também pode ser vista como estagnação) de 6,31 milhões para 6,35 milhões.
O Brasil não figura nem na lista da Organização Mundial de Turismo dos 50 países com mais chegadas de turistas.
Os dados são relativos a 2019, ou seja, antes da chegada da pandemia de covid. Em todo o mundo, o setor sofreu fortemente os impactos da quarentena e tenta agora ensaiar uma recuperação.
Para efeito de comparação, uma única localidade do Vietnã, a Baía de Ha Long, recebeu quase o equivalente aos números totais do Brasil: 6,2 milhões, de acordo com o Euromonitor. O Vietnã, como um todo, contabiliza 18 milhões de viajantes internacionais anualmente.
Outro exemplo, e de maior proximidade, é o México.
De limitações socioeconômicas como o Brasil, o país se firmou como um dos mais importantes destinos do turismo mundial, com 45 milhões de turistas estrangeiros.
Os mexicanos são muito beneficiados pela proximidade com os Estados Unidos, mas deram prioridade ao setor em sua estratégia econômica na última década, segundo observa relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento (OCDE).
Comparações podem ser relativizadas pelas condições específicas dos países, mas o mercado brasileiro, com trunfos turísticos bem conhecidos como o Rio de Janeiro e as Cataratas do Iguaçu e dezenas de lugares com grandes possibilidades de desenvolvimento, está claramente aquém do seu potencial.
Isso é admitido em um relatório do governo federal.
"O Brasil não faz parte das rotas do turismo global", diz uma análise feita pela Secretaria Especial de Produtividade e Competitividade, vinculada ao Ministério da Economia, no ano passado.
O texto cita que "no Brasil, 93% dos visitantes são locais" e "[em 2019] a participação no PIB era de 7,7% e com alta empregabilidade, mas com um crescimento estagnado".
A permanência de velhos problemas e o aparecimento de novos levam o Brasil a deixar de aproveitar um setor que poderia ter um impacto positivo de forma considerável na economia, na melhoria dos serviços, na conservação dos espaços nas cidades, entre outros ganhos.
Para Alexandre Panosso Netto, coordenador de pós-graduação em Turismo da Universidade de São Paulo (USP) e um dos autores da pesquisa, esse caminho de desenvolvimento não se torna uma política séria de Estado por algumas razões.
"A concorrência de várias áreas e a incompreensão dos pontos positivos do turismo como vetor e alavanca de inclusão social, de valorização da cultura e de diversificação de pensamentos e aprendizado".
"O turista estrangeiro gastava por volta de US$ 110 por dia no Brasil até a pandemia. Em 2019 foi por volta de US$ 6 bilhões que os estrangeiros trouxeram ao país. Então dobrar ou triplicar o número de visitantes representaria dobrar ou triplicar esse montante."
O mercado de trabalho também teria a ganhar com o turismo.
"Não é só financeiro, o aumento do número de empregos gerados e o efeito multiplicador do turismo seriam grandes."
Veja abaixo alguns fatores que prejudicam que o turismo brasileiro decole:
1) Imagem ruim no exterior
Violência, corrupção, ambiente hostil para mulheres e para o público LGBTQ+, somados à deterioração nos últimos anos da imagem do país em campos como meio ambiente e a gestão da pandemia do coronavírus, não criam um cenário muito atraente para turistas considerarem o Brasil como destino, afirma Panosso Netto.
Seu estudo cita um índice criado pelos jornalistas Asher e Lyric Fergusson que ranqueia os países mais perigosos para mulheres que viajam sozinhas. O Brasil é listado na segunda posição, atrás apenas da África do Sul.
A mudança do slogan oficial do turismo brasileiro em 2019 também não ajudou na imagem brasileira. A frase usada para promoção, "Visit and love us" (Visite e nos ame, em tradução literal), foi considerada de pouca fluência e de construção pouco usual no inglês, além de soar com conotação sexual para alguns turistas estrangeiros.
O pesquisador também diz que a ligação do país a histórias que envolvem corrupção "influenciam como o turista nacional e internacional vê o destino Brasil. Se é um destino com notícias de corrupção, também se pode imaginar que é um destino inseguro".
Ele diz que países com problemas relacionados à corrupção como México e Turquia, mas com grande número de visitantes, conseguem contornar a questão pela proximidade a grandes mercados consumidores internacionais e a criação de ilhas de excelência turística.
2) Falta de continuidade em políticas e planejamento
"Políticas de turismo específicas precisam ser baseadas em um processo de planejamento contínuo", diz o estudo.
Para um desenvolvimento mais sustentável do setor é preciso que o Ministério do Turismo e a Embratur tenham grande qualidade técnica, com um planejamento de longo prazo.
Panosso Netto cita Bonito, em Mato Grosso do Sul, como um exemplo de um destino que vivenciou processo de melhora e desenvolvimento através dos anos.
"Há ótimos exemplos de boas práticas turísticas nos interiores do Brasil. Bonito, em Mato Grosso do Sul, com sua diversidade ecológica e turismo de alto nível, é um exemplo disso. Mas essa qualidade de Bonito não foi alcançada de uma hora para a outra. Começou no início dos anos 1990. Estamos falando, portanto, de mais de 30 anos de trabalho."
Mas problemas com a conservação ambiental derivados do desmatamento vem impactando o ecoturismo da região. A abertura de áreas para agricultura impacta na cor das suas águas, um dos grandes trunfos de Bonito. Cerca de 70% da população local depende do turismo.
Políticas de turismo também incluem a identificação de oportunidades em diferentes mercados, como o latino-americano.
"É preciso se preparar para receber o turista argentino, uruguaio, chileno, peruano, boliviano, paraguaio etc. Não podemos estar dar as costas à América Latina."
3) Qualidade dos serviços varia muito
A falta de maior profissionalização na parte de serviços é algo constantemente apontado como problemático. "Esse é um dos itens mais criticados pelos profissionais do setor", afirma Panosso Netto.
O pesquisador acha que seria também uma forma de desenvolver a própria área de empreendedorismo no país.
"O turismo é a porta de entrada de muitos empreendedores de primeira viagem. Temos que transformar isso em um ponto positivo a nosso favor. O governo pode criar programas de formação continuada do turismo, tal como já existiram no passado, a exemplo do Curso de Formação de Gestores de Políticas Públicas do Turismo Nacional."
Educação sobre como funcionam o mercado e o atendimento a turistas domésticos e internacionais, além do aprendizado efetivo de idiomas, seriam formas de capacitação.
Mas há um outro problema estrutural, segundo o professor da USP: "A dificuldade em acessar o crédito para o investimento em empreendimentos turísticos pequenos também é imensa".
4) Transporte aéreo e deslocamento
Segundo a pesquisa, embora o ambiente entre 2000 e 2019 no mercado aéreo "tenha melhorado a oferta e a competição nas rotas principais, especialmente aquelas conectando as capitais dos Estados e grandes centros urbanos, o acesso regional ainda é caro e, na maioria dos casos, insatisfatório".
Para Panosso Netto, "o transporte aéreo está deveras caro pelo preço do querosene e a política de impostos dos combustíveis e taxas aeroportuárias. Além disso, as viagens rodoviárias são prejudicadas pelas condições das rodovias; e se as rodovias são boas, os pedágios são caros".
O tamanho continental do Brasil, que de uma forma pode ser uma vantagem pela variedade de ofertas, acaba gerando um problema pelo deslocamento.
"Acredito que os destinos regionais devam se unir mais para compartilharem os turistas que por eles passam. Ou seja, a gestão regional do turismo deve ser fortalecida, junto com a criação de roteiros regionais com produtos e serviços de alta qualidade", diz o professor da USP.
O estudo defende "alinhar o ambiente regulatório, jurídico e tributário que rege a aviação brasileira, ao ambiente internacional. A evolução que viveu o setor nestes 20 anos não permite que sigamos admitindo que o Brasil tenha sérias diferenças e distorções entre nossas regras nacionais, que acabam gerando ofertas e produtos mais caros aos consumidores, e o que se pode ofertar no exterior".
*Texto publicado originalmente no site BBC News Brasil
A guerra após nove meses, segundo Chomsky
Outras Palavras*
Noam Chomsky em entrevista a C.J. Polychroniou, no Other News | Tradução: Maurício Ayer
A guerra da Rússia na Ucrânia se prolongou por quase nove meses, e agora escala a níveis altamente letais. Putin tem como alvo a infraestrutura de energia da Ucrânia e pôs em pauta repetidamente o fantasma das armas nucleares. Os ucranianos, por outro lado, continuam acreditando que podem derrotar os russos no campo de batalha e até retomar a Crimeia. De fato, a guerra na Ucrânia não tem fim à vista. Como Noam Chomsky aponta nesta entrevista, a escalada do conflito colocou as alternativas diplomáticas ainda mais em segundo plano.
Chomsky é professor emérito do Departamento de Linguística e Filosofia do MIT e professor laureado de linguística e catedrático Agnese Nelms Haury no Programa de Meio Ambiente e Justiça Social da Universidade do Arizona. Um dos estudiosos mais citados do mundo e um intelectual público considerado por milhões de pessoas como um patrimônio nacional e internacional, Chomsky publicou mais de 150 livros em linguística, pensamento político e social, economia política, estudos de mídia, política externa dos EUA. Seus livros mais recentes são The Secrets of Words (com Andrea Moro; MIT Press, 2022); A retirada: Iraque, Líbia, Afeganistão e a fragilidade do poder dos EUA (com Vijay Prashad; The New Press, 2022); e The Precipice: Neoliberalism, the Pandemic and the Urgent Need for Social Change (com C.J. Polychroniou; Haymarket Books, 2021).
C.J. Polychroniou – Noam, a guerra na Ucrânia se aproxima da marca do nono mês e, em vez de um arrefecimento, caminha para uma “escalada sem controle”. Na verdade, está se tornando uma guerra sem fim, já que a Rússia tem alvejado a infraestrutura de energia da Ucrânia nas últimas semanas e intensificado seus ataques na região leste do país, enquanto os ucranianos continuam pedindo mais e mais armas do Ocidente, acreditando que têm a capacidade de derrotar a Rússia no campo de batalha. Como as coisas estão na conjuntura atual, a diplomacia pode acabar com a guerra? De fato, como é possível desescalar uma guerra quando o nível de intensidade é tão alto e os lados em confronto parecem incapazes de chegar a uma decisão sobre as questões sobre as quais eles têm conflito? Por exemplo, a Rússia nunca aceitará reverter as fronteiras para a posição que estavam antes de 24 de fevereiro, quando a invasão foi lançada.
Noam Chomsky – Tragédia anunciada. Vamos fazer uma breve retrospectiva do que discutimos ao longo de meses.
Antes da invasão de Putin, havia alternativas baseadas geralmente nos acordos de Minsk, que poderiam ter evitado o crime. Há um debate não resolvido sobre se a Ucrânia aceitou esses acordos. Pelo menos verbalmente, a Rússia parece ter feito isso até pouco antes da invasão. Os EUA os rejeitaram em favor da integração da Ucrânia ao comando militar da OTAN (ou seja, dos EUA), recusando-se também a levar em consideração quaisquer preocupações de segurança russas, conforme já foi admitido. Esses movimentos foram acelerados sob Biden. Poderia a diplomacia ter conseguido evitar a tragédia? Só havia uma maneira de descobrir: tentar. Essa possibilidade foi ignorada.
Putin rejeitou os esforços do presidente francês Macron, até quase o último minuto, de oferecer uma alternativa viável à agressão. Rejeitou-os no final com desprezo – um tiro no pé de si próprio e da Rússia, pois colocou a Europa no bolso de Washington, o que era seu maior sonho. Ao crime de agressão somava-se o crime de tolice, do seu ponto de vista.
As negociações Ucrânia-Rússia ocorreram sob os auspícios da Turquia em março-abril. Falharam. Os EUA e o Reino Unido se opuseram. Devido à falta de investigação, o que é parte do menosprezo geral da diplomacia nos círculos tradicionais, não sabemos até que ponto essa oposição foi um fator para o colapso das negociações.
Washington inicialmente esperava que a Rússia conquistasse a Ucrânia em poucos dias e estava preparando um governo no exílio. Analistas militares ficaram surpresos com a incompetência militar russa, a notável resistência ucraniana e o fato de a Rússia não ter seguido o esperado modelo de guerra dos EUA e Reino Unido (também o modelo seguido por Israel na indefesa Faixa de Gaza): atacar direto na jugular, usando armas convencionais para destruir comunicações, transporte, energia, o que quer que mantenha a sociedade funcionando.
Com a escalada do conflito, as opções de diplomacia diminuíram. No mínimo, os EUA poderiam retirar sua insistência em sustentar a guerra para enfraquecer a Rússia, barrando assim o caminho para a diplomacia.
Os EUA então tomaram uma decisão fatídica: continuar a guerra para enfraquecer severamente a Rússia, evitando assim as negociações e fazendo uma aposta medonha: que o destino de Putin seria fazer as malas e escapar da derrota para o esquecimento, se não pior, e que não usaria as armas convencionais que, como todos sabem, ele tinha com capacidade para destruir a Ucrânia.
Se os ucranianos querem arriscar a aposta, isso é problema deles. O papel dos EUA é problema nosso.
Agora Putin avançou para a escalada que fora prevista, “visando a infraestrutura de energia da Ucrânia nas últimas semanas e intensificando seus ataques na região leste do país”. A escalada de Putin igualando-se ao modelo celebrizado pelos EUA-Reino Unido-Israel foi condenada com razão por sua brutalidade – condenada justamente por aqueles que aceitam os “originais” com pouca ou nenhuma objeção, e cuja aposta medonha deu as bases para essa escalada, tal como foi amplamente advertido. Não haverá responsabilização, embora algumas lições possam ter sido aprendidas.
Enquanto os apelos liberais, mesmo muito moderados, para que se considerasse uma saída diplomática dando apoio total à Ucrânia foram imediatamente submetidos a uma torrente de difamação, e muitas vezes apagados com medo, as vozes do mainstream que clamam por diplomacia foram poupadas desse tratamento, incluindo vozes da principal revista do establishment, a Foreign Affairs. Pode ser que as preocupações a respeito de uma guerra destrutiva, com consequências potencialmente cada vez mais sinistras, estejam chegando aos “falcões” neocons que parecem estar conduzindo a política externa de Biden. É o que parecem indicar algumas de suas declarações recentes.
Muito possivelmente eles também estão ouvindo outras vozes. Enquanto as corporações de energia e militares dos EUA estão rindo à toa, olhando as contas no banco, a Europa está sendo duramente castigada pelo corte de suprimentos russos e pelas sanções iniciadas pelos EUA. Isso é particularmente verdadeiro para o complexo industrial alemão que é a base da economia europeia. Permanece uma questão em aberto se os líderes europeus estarão dispostos a monitorar o declínio econômico da Europa e o aumento da subordinação aos EUA, e se suas populações vão tolerar tais consequências da adesão às demandas dos EUA.
O golpe mais dramático para a economia europeia é a perda do gás russo barato, agora parcialmente substituído por suprimentos americanos muito mais caros (aumentando também a poluição em trânsito e na distribuição). Isso, porém, não é tudo. Os suprimentos russos de minerais desempenham um papel essencial na economia industrial da Europa, incluindo os esforços para mudar para energia renovável.
O futuro do abastecimento de gás para a Europa foi prejudicado severamente – talvez permanentemente – com a sabotagem dos gasodutos Nord Stream que ligam a Rússia e a Alemanha através do Mar Báltico. Este é um grande golpe para os dois países. Foi recebido com entusiasmo pelos Estados Unidos, que vinham tentando há anos barrar esse projeto. O secretário de Estado [Antony] Blinken descreveu a destruição dos oleodutos como “uma tremenda oportunidade para remover de uma vez por todas a dependência da energia russa e, assim, tirar das mãos de Vladimir Putin a belicização da energia como meio de avançar em seus desígnios imperiais.”
Os fortes esforços dos EUA para bloquear o Nord Stream precederam em muito a crise na Ucrânia e as atuais narrativas febris sobre os desígnios imperiais de longo prazo de Putin. Eles remontam aos dias em que Bush II olhava nos olhos de Putin e percebia que sua alma era boa.
O presidente Biden informou à Alemanha que se a Rússia invadisse a Ucrânia, “então não haverá mais Nord Stream 2. Vamos colocar um fim nisso”.
Essa sabotagem, um dos eventos mais importantes dos últimos meses, foi rapidamente despachada para a obscuridade. Alemanha, Dinamarca e Suécia conduziram investigações sobre a sabotagem em suas águas próximas, mas mantêm silêncio sobre os resultados. Há um país que certamente tinha capacidade e motivo para destruir os oleodutos. Isso não pode ser mencionado na sociedade polida. Então vamos deixar por isso mesmo.
Ainda há uma oportunidade para o tipo de esforço diplomático que as vozes do establishment estão pedindo? Não podemos ter certeza. Com a escalada do conflito, as opções diplomáticas diminuíram. No mínimo, como mencionado, os EUA poderiam retirar sua insistência em sustentar a guerra para enfraquecer a Rússia. Uma posição mais forte é a das citadas vozes do establishment: pedem que opções diplomáticas sejam exploradas antes que os horrores se tornem ainda piores, não apenas para a Ucrânia, mas muito além.
As autoridades ucranianas afirmam que têm uma estratégia para retomar a Crimeia porque foi anexada ilegalmente por Moscou em 2014. Anúncios semelhantes foram feitos antes mesmo da invasão da Ucrânia pela Rússia. Embora nenhum estrategista militar acredite que a Ucrânia esteja em posição de retomar a Crimeia, isso não seria mais uma evidência de que não há um fim à vista para a guerra Rússia-Ucrânia? Não é esta outra razão pela qual as armas ATACMS de longo alcance que a Ucrânia diz precisar não devem ser entregues a eles?
A administração Biden e o Pentágono tiveram o cuidado de limitar o fluxo maciço de armas àqueles tipos que provavelmente não conduziriam a uma guerra OTAN-Rússia, que seria efetivamente terminal para todos. Se esses assuntos delicados podem ser mantidos sob controle, ninguém pode ter certeza. Mais uma razão para tentar acabar com os horrores o mais rápido possível.
A China alertou a Rússia contra ameaças de usar armas nucleares na guerra contra a Ucrânia. Seria esse um sinal de que Pequim pode estar pensando em se distanciar das aventuras militares de Putin na Ucrânia? Em ambos os casos, indica que há limites para a amizade entre China e Rússia, não é?
Há poucas evidências, que eu saiba, de que a China esteja se distanciando da Rússia. Ao contrário, parece que suas relações estão se estreitando em oposição comum ao entrincheiramento de um mundo unipolar dirigido pelos Estados Unidos, sentimentos compartilhados na maior parte do mundo. A China certamente se opõe ao uso de armas nucleares, assim como qualquer um que ainda tenha um pingo de sanidade. E como quase todo o mundo, quer uma solução rápida para o conflito.
Deveria ser uma grande preocupação o fato de que a conversa sobre a guerra nuclear esteja sendo cogitada casualmente como uma possibilidade a ser considerada.
As conversas sobre armas nucleares têm ocorrido principalmente no Ocidente. A Rússia reiterou a posição universal dos Estados nucleares: que eles podem recorrer a armas nucleares em caso de ameaça à sobrevivência. Essa posição tornou-se mais perigosa quando Putin anexou partes da Ucrânia, estendendo a doutrina universal a um território mais amplo.
Não é bem verdade que a doutrina é universal. Os EUA têm uma posição muito mais extrema, enquadrada antes da invasão da Ucrânia, mas anunciada apenas recentemente: uma nova estratégia nuclear que a Associação de Controle de Armas descreveu como “uma expansão significativa da missão original dessas armas, ou seja, dissuadir ameaças existenciais contra os Estados Unidos.”
A expansão significativa é explicada pelo almirante Charles Richard, chefe do Comando Estratégico dos EUA (STRATCOM). Sob a recém-anunciada Revisão da Postura Nuclear, as armas nucleares fornecem o “espaço de manobra” necessário para os Estados Unidos “projetar estrategicamente o poder militar convencional”. A dissuasão nuclear é, portanto, uma cobertura para operações militares convencionais em todo o mundo, impedindo outros de interferir nas operações militares convencionais dos EUA. As armas nucleares, portanto, “impedem todos os países, o tempo todo” de interferir nas ações dos EUA, continuou o almirante Richard.
Stephen Young, representante sênior de Washington na Union of Concerned Scientists (União de Cientistas Preocupados), descreveu a nova Revisão da Postura Nuclear como “um documento aterrorizante [que] não apenas mantém o mundo em um caminho de risco nuclear crescente, mas aumenta esse risco”, já intoleravelmente alto, “de muitas maneiras”.
Uma avaliação justa
A imprensa mal noticiou a Revisão da Postura Nuclear, descrevendo-a como não sendo uma grande mudança. Por acaso eles estão certos, mas por razões que evidentemente eles desconhecem. Como o comandante do STRATCOM, Richard, sem dúvida, poderia informá-los, essa tem sido a política dos EUA desde 1995, quando foi elaborada em um documento do STRATCOM intitulado “Fundamentos da Dissuasão Pós-Guerra Fria”. Sob Clinton, as armas nucleares devem estar constantemente disponíveis porque “lançam uma sombra” sobre o uso convencional da força, impedindo outros de interferir. Como disse Daniel Ellsberg, as armas nucleares são usadas constantemente, assim como uma arma é usada em um assalto, mesmo que não seja disparada.
O documento do STRATCOM de 1995 pede ainda que os EUA projetem uma “persona nacional” de “irracionalidade e vingança”, com alguns elementos “fora de controle”. Isso vai assustar aqueles que podem ter pensar em interferir. É a “doutrina do louco”, que foi atribuída a Nixon com base em poucas evidências, mas que agora aparece em um documento oficial.
Tudo isso está dentro da estrutura da doutrina abrangente de Clinton de que os EUA devem estar prontos para recorrer à força multilateralmente se pudermos, unilateralmente se precisarmos, para garantir “acesso livre a mercados-chave, suprimentos de energia e recursos estratégicos”.
É verdade, então, que a nova doutrina não é muito nova, embora os americanos desconheçam os fatos – não por causa da censura. Os documentos são públicos há décadas e citados na literatura crítica, que é mantida à margem.
Deveria ser uma grande preocupação que a conversa sobre a guerra nuclear esteja sendo cogitada casualmente como uma possibilidade a ser considerada. Não é. Definitivamente não é.
*Texto publicado originalmente no site Outras Palavras
O que se sabe de atirador que matou 7 pessoas em supermercado nos EUA
BBC News Brasil*
Um tiroteio matou sete pessoas — incluindo o próprio atirador — na noite de terça-feira (22/11) em um supermercado da rede Walmart em Chesapeake, no Estado americano da Virgínia, informou a polícia.
Acredita-se que o próprio gerente da loja abriu fogo, depois apontou a arma para si mesmo e se matou.
A conta oficial da cidade de Chesapeake escreveu no Twitter que "a polícia confirma um incidente com atirador com mortes no Walmart".
Ainda não se sabe o motivo do ataque, que aconteceu às 22h12 de terça-feira do horário local (0h12 no horário de Brasília).
O porta-voz do departamento de polícia de Chesapeake, Leo Kosinski, disse que o tiroteio teria acontecido dentro da loja e que o suspeito agiu sozinho.
A rede Walmart afirmou estar "chocada com este trágico evento" e que está "trabalhando em estreita colaboração com as autoridades".
A expectativa é de que a polícia Chesapeake divulgue mais informações sobre o avanço das investigações na manhã desta quarta-feira.
Fotos postadas nas redes sociais mostram uma forte presença policial no local. Um vídeo publicado na internet mostra uma pessoa que seria testemunha do incidente — vestindo uniforme do Walmart — descrevendo o que aconteceu.
O homem conta que havia saído da sala dos funcionários da loja, na qual um gerente entrou e abriu fogo.
"Infelizmente, perdemos alguns de nossos colaboradores", ele acrescentou, esclarecendo que não sabia quantos de seus colegas haviam sido baleados.
Um porta-voz do Sentara Norfolk General Hospital foi citado pela rede de televisão local WAVY-TV dizendo que cinco vítimas do ataque estavam sendo atendidas lá.
Uma mulher contou à WAVY-TV que seu irmão, um funcionário de 20 anos do supermercado, foi baleado apenas 10 minutos depois de chegar para trabalhar.
Ela disse que o irmão tinha conseguido falar com parentes e enviar mensagens de texto — o que, segundo ela, era "reconfortante".
Outra mulher, chamada Joetta Jeffery, contou à rede americana CNN que sua mãe estava dentro do prédio quando o ataque aconteceu e tinha conseguido enviar mensagens de texto.
Jeffrey afirmou que a mãe não estava ferida, mas estava em estado de choque.
Mark Warner, senador democrata pela Virgínia, tuitou que estava "mal com as notícias de mais um massacre".
A senadora do Estado L. Louise Lucas, também democrata, acrescentou que estava "completamente desolada".
"Não vou descansar até encontrarmos as soluções para acabar com essa epidemia de violência armada em nosso país", escreveu no Twitter.
O ataque da noite de terça-feira aconteceu apenas alguns dias depois que um homem armado abriu fogo em uma boate LGBT no Estado do Colorado, matando cinco pessoas e ferindo outras 17.
Em 2019, um ataque a tiros em uma loja da rede Walmart na cidade de El Paso, no Texas, deixou 23 mortos.
*Texto publicado originalmente no site BBC News Brasil
Vítimas de tráfico humano relatam horrores: “Comia tripas e lesma”
Maria Eduarda Portela*, Metrópoles
Dois jovens de Ribeirão Pires, em São Paulo, relataram os horrores dos dias em que estiveram num cativeiro em Myanmar. Nathalia Munhoz e Patrick da Silva Palma de Lopes, ambos de 25 anos, foram vítimas de tráfico humano após aceitarem uma falsa promessa de emprego em Bangcoc, na Tailândia. A proposta era de um salário de US$ 1,5 mil por mês para trabalhar em um call center.
Os jovens apostaram todas as fichas em uma mudança para um dos países mais agitados do mundo. O problema é que o sonho se tornou um pesadelo. Ao desembarcarem em Bangcoc, na Tailândia, os jovens foram levados para Myanmar, país próximo, e obrigados a trabalhar em um esquema internacional de extorsão, em condições análogas à escravidão.
Os jovens conseguiram retornar para o Brasil na última quarta-feira (16/11). Nathalia Munhoz e os seus pais, Vanessa Aparecida Munhoz e Cristiano de Lima Munhoz, concederam uma entrevista ao Globo após quatro meses longe.
“Vivemos uma mistura de sentimentos durante a expectativa da chegada deles. Momentos de felicidade, nervosismo, angústia, choro. Ao vê-los e tocá-los, tudo isso foi desmoronando”, relatou Cristiano.
“Tanta coisa negativa, com o Natal chegando e minha filha do meio prestes a ter um bebê… imagina a minha situação. Quando desembarcaram, foi uma emoção só. Sensação de alívio, paz e gratidão a Deus. Eu ganhei um presente de Deus!”, contou o pai de Nathalia em entrevista.
Tudo começou quando Nathalia viu um anúncio de vaga de emprego no Instagram para trabalhar na Tailândia. A jovem se interessou ao perceber que se enquadrava no perfil descrito no post. O homem que divulgou a suposta vaga se apresentava como André.
Entretanto, sua família se mostrou contrária à decisão de ir para o outro lado do mundo em busca de um emprego.
“Não sei ao certo se o rapaz ela já conhecia ou não, mas ela me pediu opinião e eu fui contrário, não havia gostado da ideia, por algumas razões lógicas. Mas, por fim, ela aceitou a proposta e nos comunicou, dizendo que precisava trabalhar e sustentar as filhas dela. Mesmo contrariados, aceitamos”, conta Cristiano.
Após aceitar a vaga de emprego, Nathalia e o pai decidiram como ficaria a situação das duas filhas pequenas. Marina, de 5 anos, e Antônia Beatriz, de 4 anos, iriam ficar sob os cuidados do avô paterno.
“As pessoas que conduziriam eles até a empresa não falavam inglês ou português. Ao entrarem no carro, eles já se depararam com duas pessoas fortemente armadas com metralhadoras e fuzis. Com medo, minha filha postou um vídeo mostrando o entorno durante a chegada e, de relance, alguns dos caras. Já mostrou certa apreensão ali. Àquela altura, eu ainda tentei tranquilizá-la”, relata Cristiano.
Cativeiro
A jovem contou à reportagem que viajou durante dois dias de carro após desembarcar na capital da Tailândia até chegar a um local chamado KKparque, em Myanmar. Os prédios eram uma espécie de condomínio dominado e comandado pela milícia responsável pelo sequestro de Nathalia.
“Lá ela começou a situação inóspita que enfrentaria. Um ambiente hostil, agressivo, com duras horas de trabalho. E ela contou que eles eram ainda mais cruéis e agressivos com os asiáticos mantidos lá”, relata Cristiano. “Mas todos eram vigiados pelos rebeldes ou milicianos fortemente armados, que não deixavam ninguém sair do parque. Entravam e saíam apenas com a autorização do chefe da quadrilha”, lembra.
A vítima ainda está muito abalada, mas contou ao Globo sobre as condições de vida em que era mantida durante o cárcere. “Comia tripas, lesmas, dormi em chão duro, passei fome e frio”, conta Nathalia.
Além das condições precárias, as diferenças culturais relacionadas à alimentação eram difíceis para Nathalia. “Eles comem cobras, escorpiões, pato, rãs, muitos legumes, muito miojo. O café da manhã lá às vezes era miojo… a água que nos davam para beber era salobra”.
Apesar das condições precárias a que era submetida, os sequestradores autorizaram Nathalia a ficar com o seu telefone celular para realizar ligações rápidas, mas não poderia filmar nada. Durante estes telefonemas, a jovem conseguiu tranquilizar a sua família, até que em setembro ela passou a detalhar a situação em que vivia e pediu por meio de um áudio para que os seus parentes procurassem as autoridades policiais caso ela desaparecesse por dois dias ou mais.
Trabalho
Nathalia era obrigada a trabalhar até às 16h por dia e com apenas uma folga por mês. O trabalho criminoso tinha como objetivo extorquir criptomoedas de norte-americanos, em um golpe em que eles se passavam por mulheres interessadas por meio de um perfil falso.
“Ela e o Patrick começaram a passar mal, até mesmo por conta das alimentações, e em certas ocasiões ela deixava escapar que estaria vivendo um inferno e que queria vir embora. Muitas vezes ela deixou escapar que não via a hora de vir embora, que o lugar era horrível, que não tinha o que fazer. Nas raras folgas que tinha, não tinha o que fazer lá, além de dormir”, conta Cristiano.
A família do amigo de Nathalia também sequestrado, Patrick, foi a primeira a procurar as autoridades em busca dos jovens após ser informada das situações precárias em que os dois estavam.
“Entrei em contato com o Itamaraty e com a embaixada de Yangon. Depois da primeira reportagem, o grupo (de sequestrados) começou a se articular lá dentro, por intermédio do Patrick e da minha filha. Eles sofreram, mas os bandidos afastaram eles das atividades por 18 dias alegando que os soltariam. Cobraram um resgate de US$ 6 mil dólares, que a família do Patrick conseguiu levantar. Depois, disseram que não podiam libertá-los ainda porque tinham que esperar a chegada dos passaportes”, contou o pai de Nathalia.
“Mas não foi o que aconteceu. Os milicianos levaram eles e os soltaram em outro lugar, onde eles foram detidos em um distrito sob a alegação de estarem sem vistos. Foram presos por conta da irregularidade. Quando eles foram pegos pela imigração, começamos então a cobrar o Itamaraty e a embaixada. Depois de muita cobrança, foram soltos e mandados de volta ao Brasil”, relembra Cristiano.
Texto publicado originalmente no Metrópoles.
Em nota, Igualdade 23 repudia ataques racistas contra Seu Jorge
Cidadania23*
A Coordenação do Coletivo Igualdade 23 do Cidadania divulgou nota pública (veja abaixo), nesta quarta-feira (19), na qual repudia ‘os ataques racistas contra o cantor Seu Jorge, em Porto Alegre (RS), ocorridos na última sexta-feira (14), durante um show do artista em clube da cidade.
“Ainda que fique provado, o que Seu Jorge nega, que a violência tenha sido desencadeada após manifestações político-partidárias, não há justificativa para os ataques”, diz trecho do texto.
A nota também chama atenção para o fato de o País já ter arcabouço jurídico para punir casos de racismo, e para que esse caso ‘sirva de incentivo ao combate ao racismo e violências correlatas, ocorram com qualquer pessoa e em qualquer lugar do Brasil’.
“O racismo à brasileira é persistente e desconhece reputações, condição social ou carismas
Os ataques racistas contra o cantor Seu Jorge em Porto Alegre ocorridos na última sexta-feira, 14, demonstram o quanto essa chaga social é persistente e incomodamente diversificada no país, ou seja, atinge pessoas de diversas classes socias, gente simples, de classe média e até personalidades de reconhecida reputação e carisma social como o caso do artista, cantor e ator, amado por muitos públicos.
Ainda que fique provado, o que Seu Jorge nega, que a violência tenha sido desencadeada após manifestações político-partidárias, não há justificativa para os ataques. Sabidamente, é bastante usual que ícones das artes se manifestem publicamente sobre suas preferências ideológicas, sem que isso legitime virulência por parte do público onde quer que seja.
Até aqui é animadora a reação da direção do Grêmio Náutico União, palco do triste episódio, que prometeu tomar todas as providências cabíveis para que o assunto não fique na impunidade nas estatísticas.
Apesar disso, gera suspeita a informação de que os administradores do local apagaram todas as fotos e vídeos que envolviam a apresentação do cantor.
Entra em cena a Polícia Civil do Rio Grande do Sul, instituição a quem cabe as investigações via inquérito para apurar as denúncias de racismo contra Seu Jorge.
O que vem sendo veiculado é que parte do público ofendeu o cantor o comparando a um “macaco”, insulto acompanhado de imitações corporações, segundo testemunhas do ocorrido.
É instigante a propósito desse fato recordar que a primeira lei contra a discriminação racial brasileira, a Afonso Arinos, teve a tramitação e aprovação impulsionada pelo caso de racismo contra uma bailarina negra. Katherine Dunham, afro-americana, impedida de se hospedar em um hotel em São Paulo devido à sua cor de pele, em 1951.
Não esperamos que o desrespeito a essa estrela das artes, nesse caso um brasileiro, Seu Jorge, se traduza em nova legislação. Já temos suficiente arcabouço para punir casos assim. Clamamos que o imbróglio sirva de incentivo ao combate ao racismo e violências correlatas, ocorram com qualquer pessoa e em qualquer lugar do Brasil.
Coordenação do Coletivo Igualdade 23 do Cidadania“
Texto publicado originalmente no portal do Cidadania23.
Com mais armas circulando, Brasil 'começa a colecionar' casos de tiros em escolas
Felipe Souza* | BBC News Brasil
O caso mais recente aconteceu na manhã de quarta-feira (5/10), quando um adolescente de 15 anos atirou contra três estudantes em uma escola na cidade de Sobral, no Estado do Ceará. As informações foram passadas pela assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado à BBC News Brasil.
Duas das três vítimas foram atingidas na cabeça. Ambas estão em estado grave. Uma delas tinha quadro estável no início da tarde, enquanto a outra estava entubada. A terceira foi atingida na perna e não teve os detalhes de seu quadro clínico divulgados.
Ainda não há informações sobre como o adolescente teve acesso à arma.
A diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carol Ricardo, afirma em entrevista à BBC News Brasil que o número de armas adquiridas por CACs mais do que triplicou de 2018 a 2022. Hoje, há mais de 1 milhão de armas em circulação em relação à 330 mil, quatros anos atrás.
A advogada e socióloga, Carol Ricardo, diz que três fatores principais contribuem para que esses incidentes com armas em escolas se tornem recorrentes.
"O primeiro é o aumento das armas em circulação. O segundo é a falta de fiscalização e controle por parte do Exército e o terceiro é o incentivo e a banalização ao armamento por parte do poder público. Há um discurso de que ter uma arma e guardá-la em casa não oferece risco", afirma.
De acordo com informações preliminares da Polícia Civil do Ceará, o estudante que abriu fogo contra três colegas de classe em Sobral usou uma arma dele, que é CAC, para cometer o crime. Segundo a Delegacia Municipal de Sobral da Polícia Civil, o adolescente planejou o ataque após ter sido vítima de bullying na escola.
Em agosto, um menino de 8 anos matou o próprio cunhado de maneira acidental com uma arma deixada no banco de trás do carro onde ele estava sentado. A vítima, de 27 anos, era CAC e tinha ido buscar o filho de 2 anos em um colégio em Jacareí, no interior de São Paulo.
Quando os três estavam no carro, o menino de 8 anos pegou a pistola, carregada com 12 balas, e disparou contra a cabeça do cunhado. Quando o socorro chegou ao local, ele já estava morto.
A especialista disse que, durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL), foram aprovados diversos projetos de lei que não apenas facilitam o acesso a armas, mas também alguns permitem que sejam comprados armamentos mais potentes e munição em maior quantidade.
Arma da polícia
No dia 26 de setembro, um adolescente de 14 anos matou a tiros uma aluna cadeirante em Barreiras, no oeste baiano. De acordo com a polícia, a arma usada no crime foi um revólver calibre 38 que ele pegou do pai dele, que é policial militar.
O adolescente teria encontrado a arma embaixo do colchão, onde o pai costumava guardá-la. Ele entrou encapuzado pelo portão principal do colégio e fez os disparos contra a aluna no pátio da escola.
Carol Ricardo, do Sou da Paz, diz que é preocupante como o Brasil "começa a colecionar" casos de atiradores em escolas, como ocorre com mais frequência nos Estados Unidos.
"Toda vez que tem um ataque nos Estados Unidos, ocorre essa discussão de controle de arma. Aqui também alertamos sobre os riscos desse amplo acesso às armas de fogo. A gente deve continuar vendo casos assim com mais frequência por conta dessa facilidade ao acesso."
Para ela, esse caso deixa claro que, mesmo em posse de agentes de segurança, há riscos de a arma ser usada para praticar crimes. Ela diz que os argumentos para liberar mais armas não têm fundamento e que os recorrentes casos de incidentes revelam que não há cuidado com a maneira como elas são armazenadas.
"A narrativa que busca legitimar o uso é a de que a arma é um bem e quem mata é o homem. Mas não há nenhuma informação ou treinamento sobre como elas estão sendo armazenadas. É uma situação grave, aliada a um sistema que não fiscaliza e não controla a distribuição desse armamento", afirmou.
Para ela, as políticas que permitem um acesso mais fácil a armas para CACs estão causando tragédias. Ela afirma que a legislação sofreu constantes mudanças que facilitaram a compra desse armamento.
"Nessa categoria, mesmo antes do Bolsonaro, já via-se um crescimento de compra porque é mais fácil se cadastrar e conseguir armas com o Exército do que com a Polícia Federal. Mas agora está muito mais fácil", afirmou.
Ela alertou para que as escolas tenham mais preparo para discutir essa escalada da violência e os casos de bullying.
"Não estou acusando a escola, mas hoje sabemos que a violência nas escolas e o bullying são uma realidade e que isso gera novas formas de agressões entre os estudantes. É necessário que as escolas entrem nessa discussão o quanto antes".
Matéria publicada originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63152623
Eleições 2022: fake news sobre perseguição a evangélicos chegam a milhões via filhos e aliados de Bolsonaro
Julia Braun*, BBC News Brasil
As mensagens — compartilhadas não apenas por políticos influentes como também por usuários comuns — associam candidatos de esquerda, principalmente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a falsos projetos para proibir pregação de pastores, criminalizar a fé evangélica e até retirar o nome de Jesus da Bíblia.
Outras fazem referência a casos reais de violência contra comunidades religiosas em países da América Latina, Ásia e África e alardeiam que isso pode ocorrer no Brasil.
"No cenário eleitoral e político brasileiro atual, isso se traduz em uma representação de Lula como um anticristão, enquanto que o Jair Bolsonaro é representado como um grande Messias", afirma Débora Salles, professora da Escola de Comunicação da UFRJ e uma das pesquisadoras do NetLab responsável pelo relatório 'Evangélicos nas redes'.
O relatório monitorou perfis de influenciadores com grande alcance no segmento evangélico entre janeiro e agosto de 2022 e identificou os macro-influenciadores e perfis mais relevantes no terreno da desinformação de fundo religioso.
Entre eles, personalidades com ampla base de seguidores nas redes como o senador Flávio Bolsonaro (PL), o deputado Eduardo Bolsonaro (PL) e o vereador Carlos Bolsonaro (PL); os deputados Marco Feliciano (PL) e Carla Zambelli (PL); e o pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo.
A BBC News Brasil analisou as redes sociais dessas seis figuras expoentes entre 6 de agosto e 6 de setembro e encontrou pelo menos 85 mensagens que usavam o temor de perseguição para "demonizar" adversários como Lula e Ciro Gomes.
Foram identificadas 14 postagens nas páginas do senador Flávio Bolsonaro, 11 nas do deputado Eduardo Bolsonaro, 2 na do vereador Carlos Bolsonaro, 8 nas de Carla Zambelli e 3 na do pastor Silas Malafaia no período. O campeão de postagens, porém, foi Marco Feliciano, com um total de 47 em apenas um mês.
Desse total, três mensagens chegaram a ser proibidas pelo TSE por "deturpar e descontextualizar" notícias a fim de gerar a "falsa conclusão no eleitor".
"Percebemos oportunismo de muitos políticos ligados ao bolsonarismo para usar os ambientes de troca de informação dos evangélicos para ganhar confiança, disseminar desinformação e angariar votos", diz a professora Rose Marie Santini, fundadora do NetLab, laboratório vinculado à Escola de Comunicação da UFRJ dedicado a estudos de internet e redes sociais.
"As pessoas estão mais informadas em relação ao perigo das fake news do que estavam em 2018, quando muitos foram pegos de surpresa. Mas certamente esse tipo de desinformação com fundo religioso terá grande impacto no resultado", diz Magali Cunha, doutora em Ciências da Comunicação, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e editora-geral do Coletivo Bereia, especializado em checagem de notícias falsas com teor religioso.
'Banir a religião cristã'
Uma das fake news compartilhadas nos perfis monitorados pela BBC News Brasil afirma que Lula editou um decreto para "banir a religião cristã" em 2010.
Trata-se de um vídeo que combina reportagens da Band e da TV Globo sobre o decreto conhecido pela sigla PNDH-3 (Programa Nacional de Direitos Humanos), de 2009.
Antes do vídeo, uma narração faz a seguinte pergunta: "Você sabia que em 2010 o presidente Lula assinou o decreto PNDH-3 para censurar a imprensa e banir a religião cristã e dar direito de posse da terra a invasores? Mas o projeto foi barrado pelo Congresso. Acha que se ganhar a eleição, ele não vai tentar novamente?".
A alegação é falsa. O documento assinado por Lula não cita qualquer tipo de banimento da religião cristã. O decreto, que ainda está em vigor, propõe justamente o inverso: incentivar a liberdade religiosa e combater a discriminação.
O documento também não prevê censura à imprensa ou dar o direito de posse de terra a invasores. O vídeo foi compartilhado em diversas redes sociais. No TikTok, uma das postagens tem quase 100 mil visualizações.
Ele também foi compartilhado pelo senador Flávio Bolsonaro em suas páginas no Facebook e Instagram no dia 19 de agosto e retuitado pelo deputado Eduardo Bolsonaro a partir de outro perfil no Twitter em 25 de agosto.
A BBC News Brasil entrou em contato com os dois filhos do presidente, mas eles não responderam aos pedidos de comentário até a publicação desta reportagem.
Nas postagens do senador Flavio Bolsonaro, entre comentários de 'Lula nunca mais' e '#bolsonaro2022', uma usuária escreveu: "Isso precisa ser divulgado em todas redes sociais". Uma outra versão da mesma notícia falsa foi postada pelo deputado Marco Feliciano no Facebook e Instagram em 20 de agosto.
Em 19 de agosto, Eduardo publicou no Twitter, Facebook e Instagram uma montagem afirmando que "Lula e PT apoiam invasões de igrejas e perseguição de cristãos". Na mesma imagem, há recortes de notícias sobre a perseguição de religiosos na Nicarágua e de declarações do PT e de Lula sobre o presidente Daniel Ortega.
Após um pedido da campanha do petista, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) determinou no início de setembro a remoção das publicações, que não estão mais no ar, por "deturpar e descontextualizar quatro notícias a fim de gerar a falsa conclusão, no eleitor, de que o ex-presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores apoiam invasão de igrejas e a perseguição de cristãos".
A reportagem entrou em contato com a campanha de Lula, mas não obteve resposta.
Eduardo Bolsonaro já tinha recebido ordens do TSE para tirar do ar um vídeo que, segundo o tribunal, apresentava de forma descontextualizada e editada um material cujo objetivo era dizer que Ciro Gomes, candidato à presidência do PDT, prega a desarmonia entre as religiões.
A postagem afirma, entre outras coisas, que Ciro "comparou igrejas com o narcotráfico em 2018". "Os recortes são manipulados com o objetivo de prejudicar a imagem do candidato, emprestando o sentido de que ele seria contrário à fé católica e odioso aos cristãos", escreveu o ministro Raul Araújo, do TSE, na decisão.
'Discurso de ódio para destruir as igrejas evangélicas'
As mensagens que fazem referência a uma ameaça de perseguição aos cristãos não estão apenas no Facebook, Instagram e Twitter. São compartilhadas também por usuários desconhecidos em aplicativos de mensagem como WhatsApp e Telegram, com muito menos controle das autoridades.
Segundo levantamento feito pelo Monitor de WhatsApp da UFMG a pedido da BBC News Brasil, a mensagem mais compartilhada nos mais de mil grupos públicos acompanhados na rede social desde o começo do ano e que contém expressões como 'cristofobia', 'destruir as igrejas' e 'intolerância religiosa' é também de ataque ao ex-presidente Lula.
A postagem diz, entre outras coisas, que o candidato "não tem apreço por pastores e militares, faz um verdadeiro discurso de ódio para destruir as igrejas evangélicas" e foi enviada um total de 19 vezes por 6 usuários distintos em 15 dos grupos monitorados pelos pesquisadores.
A segunda mais repostada, porém, também contém distorções, mas contra o presidente Jair Bolsonaro.
"O povo de Deus abandonou Bolsonaro e suas mentiras, ele é o enviado da morte, fome, desgraça e desemprego, que veio para destruir as igrejas evangélicas com política, e jogar irmão contra irmão", diz o texto, enviado 18 vezes por 3 usuários distintos em 10 grupos.
Entre as mensagens detectadas pela UFMG há ainda uma que se refere a uma suposta "lei de proteção doméstica" em debate no Senado Federal que proibiria a pregação religiosa. Ela foi enviada um total de 68 vezes por 49 usuários distintos e apareceu em 63 grupos.
A mensagem cita uma iniciativa debatida no Senado que teria como objetivo, entre outras coisas, determinar a prisão religiosa por pregações em horários impróprios e a sanção de congregações e fiéis. Segundo o coletivo Bereia, trata-se de uma notícia falsa, e não existe Projeto de Lei em discussão denominado "Proteção Doméstica".
O texto em tramitação mais próximo ao citado é o PL 524/2015, que está parado no Senado Federal e prevê estabelecer limites para emissão sonora nas atividades em templos religiosos, sem menção à prisão religiosa, proibição de pregações ou limitação da liberdade religiosa.
'Um alerta à igreja'
Mas nem todos os posts identificados pela reportagem são imediatamente reconhecidos como fake news. Enquanto alguns usam notícias ou declarações tirados do contexto com o objetivo de desinformar, outros simplesmente reproduzem o discurso que explora o temor de restrição à liberdade religiosa.
Um vídeo em que o ex-presidente Lula aparece falando justamente do crescimento das fake news religiosas e acusa algumas pessoas de "fazer da Igreja um palanque político" foi compartilhado com frequência no final de semana de 20 e 21 de agosto e associado a um ataque a pastores e igrejas.
"Tem muita fake news religiosa correndo por esse mundo. Tem demônio sendo chamado de Deus e gente honesta sendo chamada de demônio", diz o petista na gravação feita durante um comício. Em seguida, ele afirma que, em um eventual novo governo seu, o Estado será laico. "Eu, Luiz Inácio Lula da Silva, defendo Estado laico, o Estado não tem que ter religião, todas as religiões têm que ser defendidas pelo Estado", diz
"Igreja não deve ter partido político, tem que cuidar da fé, não de fariseus e falsos profetas que estão enganando o povo de Deus. Falo isso com a tranquilidade de um homem que crê em Deus."
Ao ser compartilhado nas redes sociais, porém, o vídeo foi descrito como uma demonstração de ódio ou zombaria. "Mais uma vez Lula zomba da fé cristã. Desta vez, atacando o sacerdócio e a honra de padres e pastores. INACEITÁVEL!", escreveu a deputada Carla Zambelli.
A BBC News Brasil procurou Zambelli, que afirmou em nota que "existe, sim, uma ameaça à liberdade do Cristianismo no Brasil, e não podemos ignorar isso tão somente argumentando que vivemos em um país majoritariamente cristão".
"Os ataques ocorrem não apenas a templos e igrejas, mas a valores cristãos. A censura à manifestação religiosa é uma tática antiga de ideologias de esquerda, como no regime soviético, que taxou igrejas, proibiu a venda e circulação da Bíblia Sagrada e praticou diversas campanhas antirreligiosas", disse ainda a deputada, que é autora de um projeto de lei para ampliar a legislação sobre crimes contra a liberdade religiosa.
O vídeo também foi repostado por Flávio, Eduardo e Carlos Bolsonaro e pelo deputado Marco Feliciano.
Carlos Bolsonaro não respondeu ao pedido de comentário feito pela reportagem. Em nota, Feliciano afirmou que suas postagens não se tratam de fake news e que parte de "premissas incontestes" quando faz alertas sobre a ameaça à liberdade religiosa dos cristãos.
"Desavisados, manipuladores e as esquerdas atribuem às ideias conservadoras como fake news. Numa narrativa rasa dos assuntos que não lhes convém! Quando eu publico um alerta ao povo que me elegeu, cristãos evangélicos e conservadores, eu parto de premissas incontestes!", disse Marco Feliciano em nota enviada à BBC News Brasil.
"Em todos os países em que a esquerda socialista-comunista tomou o poder à força ou pela urnas, quando não conseguiu uma Igreja subserviente, partiu para a mais atroz perseguição, como estamos assistindo na Nicarágua, que persegue a Igreja Católica expulsando freiras e fechando as emissoras de rádio cristãs, regime que tem muitos amigos por aqui (Brasil). Completo: não se trata de falso temor, mas da sabedoria popular: 'o seguro morreu de velho'".
Mas a professora Marie Santini, da UFRJ, afirma que mensagens como as postadas pelos filhos e aliados de Bolsonaro geram desinformação e alardeiam pânico sem apresentar evidências que justifiquem esse temor.
"Entendemos fake news como algo que parece jornalismo, mas na verdade é só propaganda. A desinformação é algo mais amplo, inclui teorias da conspiração, distorção de fatos, discursos de ódio e que citam a intolerância e o ódio, por exemplo", diz Santini.
Em alguns dos vídeos compartilhados pelo pastor Silas Malafaia, a reportagem também identificou o discurso classificado como desinformativo pelos especialistas e que trata, por vezes de forma implícita, da ameaça de perseguição aos cristãos.
Em um vídeo postado em seu canal no YouTube em 4 de setembro e compartilhado também em suas páginas no Facebook, Instagram e Twitter, o pastor faz um "alerta" à sua igreja e fala sobre um avanço "com toda força" contra os evangélicos.
"Ficamos chocados quando comunistas e ímpios rasgam a Bíblia e tacam fogo nela. E quando os crentes rasgam a Bíblia do seu coração apoiando gente que nos odeia e odeia nossos fundamentos e princípios?", diz Malafaia, no vídeo de cerca de 11 minutos.
"Eu estou dando um alerta, depois não chora. Porque meu irmão, vão vir em cima da igreja com toda força (...), porque nós somos o último guardião contra aquilo que eles creem e acreditam."
O vídeo tem mais de 150 mil visualizações no YouTube. Um trecho compartilhado no perfil de Malafaia no Instagram tem 84 mil curtidas.
A reportagem procurou o pastor Silas Malafaia, que afirmou que suas postagens não são fake news e que suas manifestações fazem parte de seu direito de expressão. "A minha fala não tem relação com perseguição. O que estou dizendo é que não podemos apoiar um candidato que é contra nossas crenças, valores e fundamentos", disse.
Como exemplos de medidas que corroboram sua visão, Malafaia citou a PLC 122/2006, que criminaliza a homofobia, como um projeto cujo objetivo era "botar padre e pastor na cadeia que impedisse que gays dessem beijo no pátio da igreja" e que foi apoiado pelo PT.
Em sua redação final aprovada na Câmara dos Deputados, antes de ser enviado ao Senado, a proposta citada pelo pastor não mencionava padres ou pastores. Um dos artigos previa pena de reclusão de dois a cinco anos para quem impedisse ou restringisse a expressão e a manifestação de afetividade em locais públicos ou privados abertos ao público por discriminação ou preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero. O projeto, porém, foi arquivado.
Malafaia disse ainda que, durante seu governo, a ex-presidente Dilma Rousseff "promoveu através do secretário Rachid da Receita Federal perseguição às igrejas". "Eu sou um que sofreu perseguição e multas violentas, de pura maldade", disse à BBC News Brasil.
'Cristofobia'
O uso do tema da perseguição a cristãos pela esquerda, porém, não é novo. O discurso remonta às eleições de 1989, quando o PT lançou Lula candidato pela primeira vez e apoiadores de Fernando Collor de Mello usaram o imaginário da ameaça comunista relacionada ao PT e o discurso de que ele fecharia as igrejas para apoiar sua campanha.
A narrativa foi retomada com mais força mais recentemente, nas eleições municipais de 2020, sob o rótulo do termo "cristofobia". Dentro das esferas evangélicas, o termo tem sido usado para se referir a perseguições sofridas por adeptos do cristianismo em diversos países, principalmente em locais onde eles são minoria. Bolsonaro usou a expressão em discurso na ONU naquele ano.
"Há alguns anos, eram mais comuns as postagens que identificavam casos de perseguição a cristãos no Oriente Médio, na China e em países ligados ao comunismo. As mensagens criavam um certo pânico em torno disso e chamavam os cristãos brasileiros para que tivessem solidariedade", afirma Magali Cunha.
"Mas de 2020 para cá, temos observado que se está trazendo para a realidade do Brasil esse tipo de abordagem."
O antropólogo Flávio Conrado é assessor de campanhas do grupo de pesquisa Casa Galileia e coordena um projeto de monitoramento de perfis cristãos nas redes sociais.
Segundo ele, a narrativa de perseguição religiosa tem objetivo de atingir especialmente os grupos evangélicos, mas em muitos momentos também acaba por chamar a atenção de católicos mais conservadores.
"Algumas das vozes por trás das postagens usam uma estratégia de se associar aos católicos e passam a falar em nome dos cristãos como um todo", diz. Para Conrado, o objetivo por trás da campanha de desinformação é usar o temor de um ambiente de perseguição para atrair votos.
De acordo com Débora Salles, o discurso de ameaça à liberdade religiosa dos cristãos também se mistura de forma intensa com uma outra narrativa que vem sendo difundida com frequência nas redes sociais — a de que existe uma "guerra" de valores morais entre evangélicos e a esquerda.
"Essas narrativas se baseiam em uma lógica populista em que tenta se criar a ideia de que há uma guerra político cultural em que os evangélicos deveriam se juntar pela defesa dos seus valores, que estão ameaçados por uma esquerda associada a instituições democráticas, à mídia tradicional e a figuras importantes do cenário cultural", explica a pesquisadora
Em alguns de seus vídeos para as redes sociais, o vereador mineiro Nikolas Ferreira (PL-BH) dá voz a esse discurso.
"Esse vídeo é um alerta para abrir os nossos olhos para a guerra silenciosa que estamos vivendo", diz ele em um vídeo de março, em que fala sobre uma "doutrinação" nas escolas e universidades e cita a criação de um exército pelo que define como "o inimigo" dos cristãos.
Em outra postagem, associa a campanha do ex-presidente Lula à ditadura da Nicarágua e à invasão de igrejas. "Essa galerinha de esquerda gosta de invadir uma igreja né? Imagina quantas igrejas não serão invadidas se o Lula estiver no poder?", diz no vídeo, que tem mais de 500 mil curtidas.
O vereador de 26 anos tem uma grande comunidade de fãs nas redes, com 3,1 milhões de seguidores no Instagram e 1,4 milhão no TikTok.
Nikolas Ferreira, enviou a seguinte nota à reportagem: "Eu não me baseei em achismo ou levantei meras suposições, mas expus fatos que evidenciam igrejas sendo invadidas, imagens sendo quebradas e profanadas nos países da América Latina. A perseguição já existe. Inclusive, o amigo do Lula, Daniel Ortega, está fechando rádios católicas e perseguindo fiéis na Nicarágua. Desinformar é dizer o contrário."
Segundo o antropólogo Flávio Conrado, também são comuns os conteúdos desinformativos que, por exemplo, associam o PLC 122/2006, projeto de lei chamado informalmente de "projeto anti-homofobia", apresentado em 2001 para punir criminalmente discriminação de gênero e de orientação sexual, com a perseguição a pastores e o fechamento de igrejas.
A proposta foi arquivada no final de 2014, mas em junho de 2019 o STF decidiu pela criminalização da homofobia e da transfobia, com a aplicação da Lei do Racismo (7.716/1989).
Em um vídeo compartilhado no início de agosto, o deputado Marco Feliciano afirma que pastores de todo o Brasil estão sendo perseguidos e processados por se recusarem a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo. "A liberdade de consciência e crença está em jogo. A Igreja precisa resistir!!!", escreveu na legenda.
Mas há ou não perseguição a cristãos no Brasil?
Todos os anos, a ONG internacional Portas Abertas, que auxilia cristãos que sofrem opressão por conta de sua religião, produz um ranking dos 50 países onde seguidores do cristianismo são mais perseguidos por causa de sua fé.
O estudo é feito a partir de relatos de incidentes de violência. Na edição de 2022 do ranking, os únicos países da América Latina citados como localidades onde há perseguição severa são Colômbia (30ª posição), Cuba (37ª) e México (43ª).
Há ainda uma lista de países em observação, que engloba outras 26 nações — entre elas estão Nicarágua (61°), Venezuela (65°), Honduras (68°) e El Salvador (70°). O ranking é elaborado anualmente e a edição atual foi feita entre setembro de 2020 e outubro de 2021, o que significa que a classificação de alguns países pode mudar na próxima publicação.
O governo da Nicarágua, citado em muitos dos conteúdos desinformativos identificados pela reportagem, tem sido, de fato, denunciado por repressão à Igreja Católica no país. A tensão entre o Executivo do presidente Daniel Ortega e a instituição cresceu desde que o clero forneceu abrigo a estudantes envolvidos nos protestos de 2018.
Mas desde que a lista do Portas Abertas começou a ser feita, há quase 30 anos, o Brasil não aparece no ranking e é classificado como livre de perseguição.
Segundo o sociólogo Clemir Fernandes, pesquisador do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e pastor da Igreja Batista, o discurso em torno da cristofobia sequer faz sentido em um país como o Brasil, onde 86,8% da população se identifica como cristã, entre católicos e evangélicos, segundo dados do censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
"Não é possível falar de perseguição a um grupo que não só é majoritário numericamente, como também tem grande representação nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e na cultura brasileira", diz.
Ainda de acordo com o pesquisador, o ambiente de confiança criado em torno das igrejas evangélicas e os laços formados entre os fiéis facilita a difusão dos conteúdos falsos nesse ambiente.
"Muitas pessoas podem julgar as informações passadas nos grupos evangélicos como verdadeiras porque não verificam a sua veracidade, mas também porque elas foram repassadas por irmãos de fé", diz Clemir Fernandes.
Mas há preconceito?
Embora não haja evidências de perseguição concreta a cristãos no Brasil, pesquisadores afirmam que há "arrogância" e "preconceito", especialmente por parte da elite de esquerda, ao falar sobre evangélicos.
No segundo turno da eleição de 2018, o então candidato do PT à Presidência, Fernando Haddad, chamou o pastor Edir Macedo, fundador da Igreja Universal, de "representante do fundamentalismo charlatão".
Para o historiador e antropólogo Juliano Spyer, isso custou votos a Haddad e deu munição a segmentos evangélicos que defendiam um apoio formal de suas igrejas a Bolsonaro.
"As camadas médias e altas do Brasil têm uma visão fora de foco do Brasil popular e ignoram esse fenômeno [evangélico]. Isso é problemático, porque generaliza a imagem de um grupo de brasileiros com imensa importância cultural, econômica e política", diz Spyer, que é autor do livro O Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam.
"Ao tratar os evangélicos de forma desrespeitosa, arrogante, desinformada e com uma série de críticas por serem religiosos, estamos abrindo mão do diálogo com as pessoas que têm valores conservadores".
'Realmente acho que pode acontecer aqui no Brasil'
Luciana Casa Grande, de 40 anos, frequenta uma Igreja Batista em São José dos Campos, São Paulo. Assim como muitos outros evangélicos no país, ela vem sendo exposta nas redes sociais a conteúdos que alardeiam uma ameaça à liberdade religiosa dos cristãos.
"Leio com frequência postagens e notícias nas redes sociais que falam sobre invasões, incêndios e atentados em igrejas ou assassinatos de cristãos na África e em outros lugares", afirmou a arquiteta à BBC News Brasil. "Pela intolerância que vejo, principalmente dos partidos de esquerda ou daqueles que se autodenominam socialistas ou comunistas, realmente acho que pode acontecer aqui no Brasil."
Luciana afirma acompanhar com frequência o perfil de alguns dos aliados de Jair Bolsonaro citados pela reportagem, como Nikolas Ferreira e a vereadora Sonaira Fernandes (PL-SP), outra aliada de Jair Bolsonaro que dá voz ao discurso desinformativo de perseguição religiosa.
Em um post na página do Instagram de Fernandes, em que a vereadora que se autodenomina cristã fala sobre a possibilidade de ataques ao cristianismo no Brasil a partir de um vídeo de uma homilia de um bispo católico, Luciana expressou sua apreensão: "Deus é maior! É hora dos cristãos se posicionarem e se colocarem à disposição de Nosso Senhor Jesus Cristo!", escreveu a paulista nos comentários.
Em nota enviada à reportagem, a vereadora Sonaira Fernandes disse que é cristã "antes de ser qualquer outra coisa, e tenho todo direito de expressar minhas convicções religiosas, conforme prevê a Constituição".
"Diz o filósofo Luiz Felipe Pondé que o único preconceito ainda socialmente aceito no Brasil é contra evangélicos e católicos. Isso fica evidente quando uma declaração minha, que reflete minha cosmovisão cristã, é demonizada e criminalizada", afirma.
Luciana já tem seu candidato à presidência definido: "Vou votar no Bolsonaro, principalmente porque ele defende as coisas em que eu acredito", diz.
"Gosto da defesa que ele faz pelo fim da sexualização das crianças. A questão do aborto também, eu sou contra o aborto".
Algumas informações que circulam nas redes sociais sobre o ex-presidente Lula também influenciaram Luciana no momento de escolher seu candidato. "Temos ouvido falar que o Lula vai colocar os padres e os pastores em seu devido lugar. Sempre faz um ataque nesse sentido", diz a arquiteta.
"Vi na internet e em cortes de vídeos, mas não me lembro onde exatamente. Leio muita coisa, não fico catalogando."
*Texto publicado originalmente no portal da BBC News Brasil.
Democracia: a luta contra o medo e a violência
Euzamara de Carvalho*, Brasil de Fato
Porque a noite não anoitece sozinha.
Há mãos armadas de açoite
retalhando em pedaços
o fogo do sol
e o corpo dos lutadores.
– Pedro Tierra
O recrudescimento da violência no Brasil tem causado preocupações por parte de alguns setores do Estado, da sociedade civil popular organizada e da comunidade internacional. As diferentes formas de violências que perpassam a vida cotidiana no campo e na cidade se apresentam marcantes na história das populações pobres – classe trabalhadora. Para essa classe, a violência efetua-se como "resposta" às suas diferentes lutas, motivada pela negação das dimensões econômicas, territoriais, culturais, raciais, geracionais, políticas e de gênero e pela falta de reconhecimento do direito à organização social para reivindicar a efetivação de direitos.
No que se refere ao papel do Estado brasileiro frente a situações de violências agravadas, os fatos recentes apontam que sua atuação vai na direção oposta ao respeito e promoção da dignidade humana, de modo a operar contra os direitos coletivos, agravando situações de violência e confirmando sua dimensão estrutural. Nesse sentido, Minayo e Souza (1998, p. 520) esclarecem que:
“Os adeptos da força repressiva do Estado, tergiversando sobre as complexas causas da violência, reduzem sua concepção desse fenômeno à delinquência e tendem a interpretá-la como fruto da conduta patológica dos indivíduos. Ao mesmo tempo, absolutizam o papel autoritário do Estado no desenvolvimento socioeconômico das sociedades. As ideias desses intelectuais combinam com o senso comum, que advoga a força repressiva como condição de "ordem e progresso".
Situações atuais impulsionadas pela cúpula do atual governo brasileiro que incita a violência ancorada no falso discurso de ordem e progresso é exemplo nítido e atenta contra o Estado Democrático de Direito. Nesse sentido cabe pontuar a função da violência como emblemático instrumento de domínio econômico e político sobre os grupos sociais nas suas diferentes constituições de classe trabalhadora. E que se enraíza em diferentes setores da sociedade que perpetuam essas violências nas suas distintas realidades.
Violências estas que se alargam no processo eleitoral que atravessa o Brasil, como as perpetradas contra cidadãos/as brasileiros/as no seu exercício de livre escolha de representação política democrática, a exemplo do caso do assassinato de Marcelo Arruda, e consequentemente contra candidatos ou pré-candidatos e representantes de cargos eletivos - destaco aqui a memória do assassinato de Marielle Franco.
Respectivas situações têm como pano de fundo impossibilitar o fortalecimento de um projeto democrático no país conquistado por meio de árduas lutas coletivas organizadas. O caminho sinalizado, conforme manifestações públicas, é o de inviabilizar liberdades asseguradas pelos pilares da democracia e que podem resultar em mais mortes, perseguição, ameaça e intimidação. Concomitante desestabilizar e desacreditar a justiça eleitoral na sua responsabilidade de realização e monitoramento do processo eleitoral que enfrenta o país.
O quadro de grave ameaça aos valores democráticos para a integridade e a paz dos cidadãos brasileiros é preocupante e se mostra inaceitável às instituições políticas e às liberdades públicas. De acordo com o relatório do Coletivo RPU Brasil - 2022, o Brasil continua sendo um dos países mais perigosos para defensoras e defensores de direitos humanos, em especial para ativistas ambientais e pessoas trans, em todo o mundo.
Ao longo dos anos, o demonstrativo da violência vem sendo denunciado por diversos setores da sociedade, a exemplo da gravidade das violências praticadas contra o povo negro, aumento da violência contra a população LGBTQI+, recorrente violência de gênero, homicídios de pessoas indígenas, conflitos e assassinatos no campo.
O alerta que nos move para o enfrentamento à violência nesse contexto eleitoral, nos provoca situar que a recorrencial violência no Brasil é fruto das relações desiguais constitutivas da sociedade brasileira fomentada por uma política de autoritarismo, exclusão e abandono que perpassa a dimensão de raça, classe e gênero. Violência utilizada contra a luta dos povos e seu direito de se constituírem defensores e defensoras de direitos humanos, interlocutores no processo de positivação e de reconhecimento institucional de suas expectativas para efetivação de direitos numa sociedade democrática.
Essa reflexão nos mobiliza para o efeito pedagógico de considerar os pontos sinérgicos da causa e da reprodução da violência oponente à histórica luta dos povos numa ação de curto, médio e longo prazo que perpassa a defesa intransigente da democracia. Para Marilena Chaui (2017) “A democracia propicia uma cultura da cidadania e a luta contra o medo e a violência”. Assim, nos emanamos no enfrentamento ao contexto de ódio e de violência que nos acomete no Brasil, afirmando os valores democráticos que devem permear nossa vida em sociedade. Portanto, nos situamos nas lutas constitutivas de direitos, em uma dimensão regional e sua inter-relação com as resistências para a construção da paz no ambiente latino-americano.
*Texto publicado originalmente em Brasil de Fato.
Durante terceiro ano de Bolsonaro, 176 indígenas foram assassinados no Brasil
Gabriela Moncau*, Brasil de Fato
A realidade que notícias esparsas ou a vivência local já demonstravam é agora, mais uma vez, comprovada em números. Os ataques aos povos originários no Brasil estão numa crescente. Apenas durante o terceiro ano do governo de Jair Bolsonaro (PL), 176 indígenas foram assassinados no país. O número é praticamente igual ao de 2020, quando 182 indígenas perderam a vida de forma violenta.
Lançado nesta quarta-feira (17), o relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, publicação anual do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), registra 355 casos de violência contra indígenas ao longo de 2021. É o maior índice desde 2013, quando o método de contagem foi alterado.
Em 2020 foram 304 casos – que, além de mortes, somam ameaças, lesões, racismo, violência sexual e tentativa de assassinato. De um ano para o outro, portanto, houve um aumento de 51 episódios deste tipo. "É um grau de violência que a gente ainda não tinha visto dessa maneira", resume Lucia Helena Rangel, assessora antropológica do Cimi.
Seguindo o mesmo padrão desde que Bolsonaro assumiu a presidência, os estados que registraram o maior número de assassinatos de indígenas foram Amazonas (38), Mato Grosso do Sul (35) e Roraima (32).
Responsabilidade do Estado
"O contexto geral de ataques aos territórios, lideranças e comunidades indígenas está relacionado a uma série de medidas, por parte do poder Executivo, que favoreceram a exploração e a apropriação privada de terras indígenas", avalia o relatório do Cimi.
Se a paralisação da demarcação de terras indígenas (TI) foi uma diretriz inalterada ao longo de todo o governo Bolsonaro, ao longo dos anos as consequências desta política indigenista oficial representaram, de acordo com o relatório, "o agravamento de um cenário que já era violento e estarrecedor".
Pelo sexto ano seguido, o Cimi registrou um aumento das "invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio" em TIs. Em 2020 foram registradas 263 invasões aos territórios dos povos originários, enquanto em 2021 foram 305, um crescimento de 16%.
"Vemos máquinas enormes, grupos armados, tiroteios e assassinatos por trás do garimpo de extração de ouro e de alguns minérios como a cassiterita, praticados de forma violenta. Essas invasões têm aumentado sistematicamente, sobretudo na região amazônica. Mas também em outras regiões onde há minério", relata Rangel.
Cenário premeditado
A situação não é fruto apenas de omissão estatal, mas da intencionalidade dos poderes Executivo e Legislativo. Entre as ações do Estado que ativamente prejudicam os povos indígenas, o relatório destaca a Instrução Normativa 09, publicada pela Funai em 2020, que autorizou a certificação de propriedades privadas que estão dentro de terras indígenas não homologadas.
Em 2021, a Instrução Normativa Conjunta da Funai e do Ibama foi além: permitiu a exploração econômica de terras indígenas por organizações de "composição mista" entre indígenas e não indígenas.
Além disso, está em tramitação o conjunto de Projetos de Lei (PL) apelidado pelo movimento indígena como Pacote do Fim do Mundo. Fazem parte dele, por exemplo, o PL 490/2007, que inviabiliza novas demarcações e o PL 191/2020, que prevê a exploração de mineradoras em TIs.
Em um ano, invasões e explorações ilegais de terras indígenas aumentaram 16% no Brasil / Marina Oliveira / CIMI
"Esse conjunto de ações deu aos invasores confiança para avançar em suas ações ilegais em terras indígenas. Garimpos desenvolveram ampla infraestrutura, invasores ampliaram o desmatamento de áreas de floresta para a abertura de pastos e o plantio de monoculturas, e caçadores, pescadores e madeireiros intensificaram suas incursões aos territórios", descreve o documento.
A luta contra a aprovação deste pacote e também do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF) está no centro das reivindicações indígenas nos últimos anos, tendo impulsionado massivas mobilizações nacionais, como as que levaram, em 2021 e 2022, cerca de sete mil indígenas para Brasília.
A (não) demarcação
Conforme levantamento do Cimi, 62% das 1.393 terras indígenas no país estão com pendências para a sua regularização. Entre estas, que somam 871, são 598 as que, apesar de reivindicadas por povos indígenas, não apresentam qualquer providência do Estado para começar o processo de demarcação.
Entre os conflitos por terra, o relatório salienta também a recorrência de terras indígenas onde há a sobreposição de Cadastros Ambientais Rurais (CAR). Ou seja, certificações de propriedades privadas em cima de territórios tradicionais. "Em alguns casos, como nas TIs Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, e Barra Velha, na Bahia", ilustra o documento, "houve a tentativa de venda de 'lotes' de terra por meio de redes sociais".
O mapeamento das formas de violência a que estão submetidos os povos indígenas no Brasil destaca, ainda, a queima de casas de reza - espaços primordiais para a espiritualidade, a resistência e a manutenção das tradições de diversas comunidades indígenas.
Em 2021, foram registrados quatro casos contra os povos Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul e um contra o povo Guarani Mbya no Rio Grande do Sul. A despeito da destruição, por meio de arrecadações voluntárias e mutirões comunitários, as casas de reza têm sido reerguidas.
Povos isolados
A situação dos povos em isolamento voluntário também está se agravando. Esse isolamento é garantido por portarias federais mas, em alguns casos, elas sequer vêm sendo renovadas. A TI Jacareúba-Katawixi, no Amazonas, é uma das áreas que está sem proteção. A portaria que garante o isolamento expirou em dezembro de 2021. Em outros casos, as portarias foram renovadas, mas apenas pelo período de seis meses.
"As invasões atingiram pelo menos 28 TIs onde há presença de povos indígenas isolados, colocando a própria existência desses grupos em risco", alerta o Cimi.
O relatório, disponível no site do Conselho, também traz artigos que, entre outros temas, abordam o encarceramento de indígenas no país; a execução orçamentária da política indigenista de Bolsonaro; e mecanismos de reparação e não repetição de violações contra essa população.
*Texto publicado originalmente em Brasil de Fato. Título editado
Revista online | Representatividade negra na política
Kennedy Vasconcelos Júnior*, especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)
Como pode um deputado ou deputada não-negros (brancos) entenderem as demandas dessa população se nunca sofrem discriminação ou racismo na pele? Para iniciar qualquer conversa sobre o tema “representatividade”, é essencial definirmos o conceito do termo de modo que possamos partir do mesmo ponto.
De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa e o Dicionário de Política, do filósofo e historiador Norberto Bobbio, a representatividade é a expressão dos interesses de um grupo (partido, classe, movimento, nação, etc.) na figura de um representante, de forma que aquele que fala em nome do coletivo o faz comprometido com as demandas e necessidades dos representados.
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Portanto, falar de representatividade revela o sentido político e ideológico por trás do termo. Mesmo que seja possível imaginar o sofrimento do outro, só podem alcançar a compreensão plena do que seja a opressão racial aqueles que sofrem diretamente a violência desse contexto. Qualquer coisa diferente disso é achismo.
A maneira mais reveladora de se enxergar a falta de representatividade negra é nos números: Além de o Brasil ser o maior país em concentração de negros fora do continente africano, temos 125 deputados autodeclarados negros – soma de pardos e pretos, segundo critério do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – de um total de 513 parlamentares na Câmara dos Deputados, o que representa 24,36% da assembleia da Casa.
Mesmo que pessoas negras constituam a maioria da população brasileira (cerca de 56%, de acordo com dados do censo do IBGE de 2018), a representatividade desse grupo está muito aquém da necessária, e isso não é um acidente. O racismo estrutural é fruto do caráter exploratório e excludente da colonização, bem como da desigualdade social que afeta majoritariamente negros e pardos no Brasil.
Veja, abaixo, galeria de imagens:
Jovens negros continuam sendo as principais vítimas da violência no Brasil, o que é facilmente constatado pelos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020. De acordo com a pesquisa, pessoas negras foram 76,2% das vítimas de mortes violentas intencionais. No mesmo ano, representaram 78,9% das vítimas de intervenções policiais. Além disso, 62,7% dos policiais assassinados eram negros.
Nada disso decorre de crimes diretamente caracterizados por ódio racial. No entanto, fazem parte de uma lógica histórica mais profunda, entranhada não só nas percepções individuais e no funcionamento das políticas públicas e das instituições.
Tudo isso, atrelado à falta de perspectivas e oportunidades, justifica a urgência da necessidade de falarmos sobre representatividade negra e diversidade, além da garantia de direitos fundamentais para que a vida de nossas crianças se desenvolva de forma segura, saudável e promissora, por meio de políticas compatíveis com as necessidades de um mundo real, partindo do entendimento de que nossa sociedade é múltipla e diversa. Aceitar e se aliar a essa pauta é uma oportunidade de reforçar o nosso desenvolvimento individual como seres humanos e como sociedade.
A “violência simbólica" é o subproduto das relações de poder, trazendo à margem tudo que foge do padrão eurocêntrico preestabelecido desde as colonizações. O sociólogo francês Pierre Bourdieu define violência simbólica como um conceito social elaborado, o qual aborda uma forma de violência sem coação física, causando danos morais e psicológicos, muitas vezes sutis, e que estão arraigados na estrutura social.
A única forma de combater o racismo estrutural nas instituições é por meio do despertar da consciência da comunidade negra, que precisa se reconhecer como tal e, assim, se empoderar da armadura ancestral de lutas, sacrifícios e vitórias. Os brancos precisam reconhecer seus privilégios e entender que é preciso microevoluções para grandes revoluções. Tudo isso é crucial para este momento de ameaça democrática. É preciso confiar nas instituições e no processo eleitoral e respeitar a luta de muitos que se foram para respirarmos liberdade e escolha.
Doze das 24 legendas com representação na Câmara dos Deputados não têm qualquer instância para debater igualdade racial ou sua organização política, o que fere profundamente a representatividade racial no Brasil, pois dificulta ainda mais que negros e negras disputem eleições no país.
A Comissão de Igualdade Racial do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) lançou neste mês de agosto de 2022 um relatório de financiamento de campanha eleitorais para impulsionar campanhas de pessoas negras por meio do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e o Fundo Partidário, atribuindo a responsabilidade de empregar os recursos aos candidatos negros, aos órgãos geridos pela base nacional de cada partido, que também será responsável por fixar os critérios internos para o recebimento pelos candidatos, assim como sua prestação de contas ao TSE.
Esses recursos deverão ser solicitados à base nacional do partido através de uma carta de autodeclaração racial. É importante fiscalizar o destino do dinheiro e se atentar a autodeclarantes que não possuem características negras.
A mensagem final que deixo é sobre o aquilombamento, um conceito muito bem abordado por Abdias do Nascimento, político brasileiro, poeta, artista e ativista do direito negro. A perspectiva do aquilombamento vem trazendo uma nova modalidade para a luta negra no Brasil, um lugar seguro de compartilhamento e fortalecimento. É um espaço de conexão e acolhimento com amor.
Uma das maiores características dos quilombos é a união do povo. É preciso um espírito evoluído para olhar integralmente para as questões humanas e saber que a construção de um mundo melhor faz parte de nós. Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista.
Sobre o autor
*Kennedy Vasconcelos Júnior é coordenador do Igualdade23 de Minas Gerais. Primeiro Secretário na empresa Conselho Municipal de Cultura de Juiz de Fora - Concult-JF.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto de 2022 (46ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
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