vinícius torres freire
Vinicius Torres Freire: No mundo da epidemia, há surto de ideias impensáveis
Imprimir dinheiro para doação parece inimaginável como era a quarentena de milhões de pessoas
Pensar o impensável, essa frase velha de exagero retórico cafona, se tornou um problema muito prático e cotidiano no mundo da pandemia. Fazer o inimaginável talvez seja agora mera prudência.
Trancar cidadãos em casa era coisa possível apenas nos despotismos asiáticos, dizia-se. Imprimir dinheiro e doá-lo a fim de evitar falências e fomes era ideia de esquisitos incompetentes em economia. O próximo passo será discutir uma reviravolta socioeconômica, para o bem ou para o mal, pacífica ou não, consequência da situação de quase guerra que é o combate ao coronavírus.
Faz menos de dois meses, a China confinou em suas casas os cidadãos de Hubei, onde explodiu a doença do corona. A Organização Mundial da Saúde observou que essa medida, “inédita na história da saúde pública”, não era uma de suas recomendações, mas demonstrava o compromisso dos chineses de controlar a epidemia.
A reação no chamado “Ocidente” foi antipática. Tal coisa jamais seria prática ou legalmente possível no mundo democrático, diziam líderes e publicistas do mundo (cada vez menos) livre, dominado por tantos demagogos autoritários.
Tal coisa agora acontece na Itália ou na Espanha, sob controle policial, ou na Califórnia, onde cidades compram drones chineses (voilà!) para vigiar seus cidadãos.
Imprimir dinheiro para ressuscitar uma economia deprimida era um plano da esquerda dita socialista americana ou uma caricatura das ideias de fato controversas de economistas como André Lara Resende, no Brasil.
Agora, o debate está nas páginas do liberal Financial Times, voz do establishment global. Seria um meio de evitar depressão inimaginável —e os riscos decorrentes de convulsão social, embora tal perspectiva não esteja explícita no jornal britânico.
Como assim, imprimir dinheiro? Os governos podem gastar mais fazendo mais dívida, pelo que pagam juros. Embora as taxas de juros estejam baratinhas, as dívidas públicas são tidas como altas (pois foi preciso pagar o custo da grande lambança da finança depois de 2008).
A fim de evitar o horror econômico e social da depressão do corona, seria preciso aumentar a dívida pública americana em 10% do PIB (quase US$ 2 trilhões, mais que o PIB brasileiro). É o cálculo de economistas como Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, do “mainstream” de esquerda, digamos, que parecem agora quase moderados. O governo seria o “comprador de última instância”, pagando salários ou o faturamento perdido de empresas paralisadas pela crise da epidemia.
Tal endividamento extra, porém, seria caro e desnecessário, ao menos no caso de uma depressão, há quem diga. Por que não “imprimir” dinheiro e pagar as contas de modo a evitar falências em massa, a destruição de boas empresas, desemprego e desespero? Ao menos enquanto durar a depressão.
Os bancos centrais de Estados Unidos, Europa e Japão na prática imprimiram dinheiro depois da crise de 2008. Assim financiaram indiretamente seus próprios governos e subsidiaram empresas. O BC americano começou a fazê-lo outra vez, na semana passada.
Inflação? Não haveria, durante recessão tal como a que se prevê. Inflação depois da crise? Não aconteceu depois de 2008, argumentam os defensores da medida.
A ideia de imprimir dinheiro ainda parece a história de um vírus que brotou no mercado de Wuhan, um caso que era apenas estranho, embora ligeiramente inquietante, em janeiro. Mas se tornou uma ideia que começa a escapar da quarentena.
Vinicius Torres Freire: Entenda o novo colapso dos mercados americanos dos EUA
Todo o mundo vai para a retranca, o crédito seca, os juros sobem, o que coloca ainda mais gasolina no incêndio
Imagine que alguém queira vender um bem para pagar uma dívida e não consiga comprador. Imagine que alguém queira pegar um empréstimo, tem um bem para dar como garantia e não consiga o crédito. Imagine que um monte de gente deseje vender esses bens e pouquíssimos queiram: o preço desses bens então desaba e parte do patrimônio vira pó.
Essa é uma metáfora caseirinha do desastre que está acontecendo no maior, mais ágil e mais diversificado mercado de dinheiro do mundo, o americano. Mas, claro, o que está em preço de liquidação, com poucos compradores, são ativos financeiros.
Na crise, no medo de calote e da quebradeira, muita gente quer ficar com dinheiro em caixa ou com quase equivalentes de dinheiro (como títulos de curtíssimo prazo do Tesouro americano). O motivo fundamental dessa crise é a epidemia de Covid-19.
Esse é o maior pânico financeiro desde a explosão de 2008. Está arrastando as praças financeiras do restante do mundo para a lama. O que pode evitar desastre financeiro ainda maior? O Banco Central dos EUA “imprimir” dinheiro a fim de comprar o que está na bacia das almas e evitar liquidação ainda maior.
Os mais conhecidos desses ativos na xepa são as ações de empresas. Perdem valor por causa da perspectiva de recessão e lucros menores, mas não apenas por isso. Entram também na liquidação porque a maioria dos donos do dinheiro quer se livrar de ativos de risco (de preço muito variável). As Bolsas caem de modo exorbitante, em um pânico ora sem fim, o que acaba nas manchetes. Mas o buraco vai muito mais para baixo.
Bancos, empresas financeiras e empresas em geral se financiam no grande atacadão de dinheiro dos mercados financeiros americanos, mais do que nos bancos. O que é esse mercado?
Exemplos.
Instituições financeiras variadas levantam dinheiro de curtíssimo prazo por meio de uma operação que, na prática, é um empréstimo em que a garantia são títulos do Tesouro americano (“repurchase agreementes”, “repos”, “operações compromissadas”). Esse mercado está com negócios mais ou menos travados faz pelo menos uma semana —é um atacadão que gira mais de trilhão de dólares.
Sem esse dinheiro, quem não pode pegar emprestado para pagar uma outra “dívida” ou cobrir um prejuízo, quebra ou tem de vender outros ativos, piorando a liquidação. O banco central dos Estados Unidos, o Fed, entrou no mercado emprestando trilhões a fim de cobrir o buraco.
De quais outros ativos financeiros se trata? As empresas americanas levantam dinheiro de curto prazo por meio de “commercial papers” (notas promissórias). Esses papéis são negociados no atacadão de dinheiro. Alguém que emprestou o dinheiro repassa o crédito (esses títulos privados) adiante. Quando a maioria está com medo, deixa de comprar esses papéis ou apenas os compram na xepa, na liquidação.
Isso quer dizer exatamente que as taxas de juros para as empresas subiram (quando alguém investe no Tesouro Direto com uma taxa de juros maior que a de ontem, para o mesmo título, está comprando um título mais barato).
Bancos estavam comprando essas notas promissórias a preço de liquidação. De uma semana para cá, pelo menos, preferiram se livrar deles. Por quê? Porque podem perder ainda mais valor, por exemplo, ou porque querem ficar com ativos mais seguros. Na verdade, querem ficar com dinheiro ou quase-equivalentes.
Como os bancos não encontram compradores suficientes para os “commercial papers”, passaram a vender títulos de longo prazo do Tesouro americano, que assim ficaram mais baratos (as taxas de juros subiram também), provocando mais perdas noutras partes do mercado.
Grandes investidores em “commercial papers” são fundos de investimento. Esses fundos não estão comprando o papel ou estão vendendo ativos para evitar perdas e cobrir os saques dos cotistas, vamos dizer assim, grosso modo.
Algo similar acontece no mercado de títulos do mercado imobiliário (papéis que rendem o que é pago por compradores de imóveis). Empresas emprestam dinheiro para o comprador de imóvel; para levantar dinheiro e emprestar mais ou por outro motivo, repassam esses empréstimos, os vendem na forma de títulos (lastreados em hipotecas, “mortgage backed securities”, MBS). Esse mercado também azedou. Mais gente comprando do que vendendo eleva a taxa de juros para o financiamento de imóveis.
Então, empresas que precisam agora levantar ainda mais dinheiro, dada a perspectiva de paradão da economia, pagam mais caro. A crise vai virando bola de neve.
Mais empresas recorrem então aos bancos, que precisaram de mais reservas para operar. O Fed liberou dinheiro. Mas também parece agora haver estresse no mercado de empréstimos de curto prazo entre bancos (que ficaram bem mais caros do que empréstimos do mesmo prazo para o governo americano, o que não é usual).
Quem se lembra de um pouco da crise de 2008 talvez reconheça alguns dos termos deste texto. A origem da crise é diferente, mas o estresse em vários mercados é semelhante.
O Banco Central americano, na prática, vai entrar no mercado de empréstimos para empresas, o que oficialmente, em tempos normais, não é autorizado a fazer. Isto é, o Fed vai imprimir ainda mais dinheiro a fim de tentar reduzir a asfixia de empresas financeiras e do mundo “real”. Como disse sarcasticamente a economista Maria da Conceição Tavares na crise da década passada: “O Fed vai descontar duplicatas”.
Talvez evite degringolada ainda maior. O problema de base é que ainda não se sabe o tamanho da recessão, da quebradeira das empresas, dos calotes e, pois, dos valores das dívidas. Todo mundo vai para a retranca, o crédito seca, os juros sobem, o que coloca mais gasolina no incêndio. Logo, outro bombeiro precisa acudir: o governo precisa gastar, dando dinheiro a desempregados, adiando impostos de empresas, o diabo.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro e seus economistas fazem contas erradas de morte na epidemia
Por interesse político, inépcia e frieza, governo tem plano econômico errado contra o vírus
Jair Bolsonaro diz por aí que uma economia parada vai matar muito mais pobres durante a epidemia. Comendo mal, sucumbiriam mais facilmente ao coronavírus. No universo de Bolsonaro e de seus economistas, os pobres devem ser largados à própria sorte e assim herdarão a terra. Sete palmos de terra.
Se não houver tanto limite a aglomerações e a movimento de pessoas, a economia ainda vai andar, segue o teorema Bolsonaro-Guedes. A restrição não é o número de cadáveres, mas um ritmo mínimo da economia (qual?), dado um gasto público fixo.
Em suma, por política e desumanidade costumeira, quer evitar as restrições adotadas em todos os países que conseguiram atenuar a expansão da epidemia.
É estapafúrdia a ideia de que a economia vá andar com o medo crescente com a expansão da epidemia; com o colapso mundial; com a evaporação de poupanças financeiras e empregos; com o choque de falta de suprimentos e o diabo.
É uma falácia, de mesquinharia cruel, dizer que os abatidos pela crise econômica da epidemia não devam ser compensados por renda mínima ou coisa que o valha. Na verdade, será das poucas alternativas ao afundamento ainda mais rápido da economia e da vida dos pobres em particular.
O governo não tem dinheiro? O governo terá de inventar dinheiro, de forma ordenada e competente. “Competente” é uma premissa ousada: com tantos executivos e empreendedores privados no governo, é rara a capacidade de execução. Submetidos a uma assembleia de acionistas, estariam no olho da rua.
O governo demorou para pedir ao Congresso o reconhecimento da calamidade pública, com o que pode suspender as metas de gastos das leis orçamentárias. Até agora, não tem plano de gasto extra. A dívida vai crescer? Vai. Quanto irá crescer em caso de colapso do PIB?
Não há alternativa de política macroeconômica. A taxa real de juros de curto prazo irá a zero. Resta um programa ordenado de gasto extra: em saúde e na contenção da miséria. Pode ser que o governo acredite que, contendo gastos, a confiança econômica será logo a seguir restaurada. Sobreviria então, a dança da morte, a festa nos cemitérios.
Os juros de longo prazo subirão, dado o aumento do déficit, sendo então o gasto contraproducente? Não haverá investimento tão cedo, talvez nem crédito (por retranca bancária e de clientes). O governo vai pagar caro para se financiar, para tomar emprestado? Se for este o caso, não role dívidas pelos próximos meses. É possível.
Não se trata de um programa sem limite de endividamento sem regras. Trata-se de dar dinheiro à contenção da epidemia e ao tratamento da doença, de evitar o desespero dos feridos pela economia e assim sustentar algum consumo. Algum: o medo e as restrições de movimento vão derrubar mesmo o PIB.
Deve-se pensar também no imediato pós-crise epidêmica e no pós-paradão, em programa de investimento emergencial para facilitar a saída da crise, algo bem pensado, de implementação e efeito rápidos (há boas obras paradas), limitado em recursos e no tempo.
Um programa organizado, com prazo e recursos delimitados (ATENÇÃO AQUI), pode evitar reações estereotipadas de “o mercado”.
Mas isso é debate racional, universo estranho aos Bolsonaro, indiferentes à morte e que propagandeiam a ideia de que “não é tudo isso”, que é possível manter a “normalidade”, a economia funcionando. Trata-se de ideia inepta, cruel, desumana e degradante, ora subscrita pelos economistas do governo.
Vinicius Torres Freire: Pacote contra epidemia é mesquinho
Governo solta pouco dinheiro contra epidemia e não pensa em pobres e pequenos
Bolsonaro não cuida de informais ou pequena empresa e não tem noção da emergência
Imaginem que um restaurante perca metade do faturamento no paradão da epidemia. Que a loja do shopping feche. Pior ainda, que centenas de milhares de empregados domésticos, “intermitentes” ou não, informais em geral, fiquem sem trabalho. Que milhões de empregados da “nova economia” do bico fiquem sem faturar, na rua da amargura e sem proteção social.
Não se ouviu providência do Ministério da Economia a respeito. Mas o governo disse que precisa aprovar logo a autorização para privatizar a Eletrobras, sem o que não entrarão R$ 16 bilhões previstos no Orçamento. Sem esse dinheiro, teria de suspender (“contingenciar”) ainda mais despesas. Mas quem, se e quando, ó Senhor, vai comprar a Eletrobras neste colapso financeiro? É conversa fiada.
Sim, manter um programa de arrumação da economia pode ajudar. Aprovar a emenda constitucional do arrochão no serviço público era prioridade desde o ano passado para este governo que pretende manter o teto de gastos —trata-se de medidas que na certa vão implicar corte abrupto de despesas, em especial com o funcionalismo, assim que aprovadas.
Mas: 1) o governo faz baderna política, inclusive convocando marchas infecciosas contra o Congresso, e atrasou tudo; 2) o efeito do arrochão é, de imediato, “contracionista” (tira dinheiro da economia); 3) em catástrofes como agora, as leis brasileiras preveem maneiras de se gastar mais, provisórias.
ESTAMOS EM EMERGÊNCIA. Precisamos cuidar dos feridos, equipar hospital, comprar ventilador pulmonar para UTIs, máscaras para o pessoal da saúde. Precisamos alimentar os famintos que ficarão ao léu sem emprego, bico ou renda; precisamos evitar a falência dos milhões de pequenos negócios que empregam o grosso da gente.
O governo disse que vai adiar a cobrança de alguns impostos. Para informais, tanto faz. Para os negócios atropelados pelo paradão da epidemia, seria um alívio temporário. Sem faturamento, eles terão uma dívida adiada, sem caixa para cobrir.
Este texto começou tratando de restaurante. É motivo de preocupação na crise? É um exemplo de como não pensamos em como a economia real roda. Apenas na cidade de São Paulo, os serviços de alimentação empregam cerca de 373 mil pessoas, 6% dos empregados da cidade, segundo dados da prefeitura. Pense então em salões de beleza, barbeiros, pequenas lojas.
O governo conversa com as empresas aéreas, de fato problema grave. Mas o que vai fazer com quem voa baixo, os pequenos e micro negócios, que nem dinheiro no banco conseguem pegar a um custo que não seja extorsivo?
O Banco Central liberou dinheiro para os bancos, reservas que costumam ficar “presas” no caixa do BC. Em tese, assim teriam fundos para emprestar mais, renegociar dívidas, adiar cobranças.
Como diz o clichê sobre o assunto, a gente leva o cavalo até o rio, mas não pode obrigá-lo a beber. Os bancos vão emprestar? Se não houver outros meios de evitar tombo feio da economia, vão adotar alguma retranca no crédito. Por falar nisso, os bancos já têm “sobras” para emprestar. O dinheiro não sai porque é caro ou porque o banco julga que quem está pedindo empréstimo não merece crédito.
Bancos dizem que vão prorrogar o prazo de pagamento de dívidas. A ver. A que taxas de juros? A depender do tombo da economia e da taxa, a corda no pescoço fica adiada para mais tarde. No Natal?
Antecipar o 13° dos aposentados e pensionistas, além do abono salarial, medida anunciada pelo governo, é sensato. O problema é de quem vai ficar sem ganhar nada. O problema são os miseráveis que estão na fila do Bolsa Família, com a porta fechada na cara pelo governo, talvez 1 milhão de famílias. E aí, Guedes?
Vinicius Torres Freire: Mãos limpas contra a Covid-19 e a banana suja de Bolsonaro
Brasil pode ter epidemia mais lenta que a europeia, mas Bolsonaro é risco
Neste domingo (15), é possível que mais de mil brasileiros estejam doentes de Covid-19. O número de casos confirmados talvez chegue a uns 150, mas muito mais gente já com sintomas ainda não terá recebido um diagnóstico.
Pelos registros oficiais, o começo da epidemia no Brasil anda no mesmo ritmo visto nos países europeus maiores, afora a Itália. Não parece bom, mas uma reação inteligente e solidária ao alerta pode atenuar a progressão da doença. Enquanto o governo nos dá bananas sujas pelas mídias sociais, podemos manter as mãos limpas na vida real.
O Brasil ainda está a duas ou três semanas de chegar à situação atual dos grandes países da Europa. Não precisamos repetir seus erros, apesar da doença sinistra do nosso desgoverno.
Campanhas educativas maciças e restrições à aglomeração de pessoas podem ao menos colocar um freio na epidemia. Em países asiáticos que tomaram tais atitudes, a velocidade do adoecimento foi de um terço da europeia (ou menos). Nem foi preciso adotar algo parecido com o toque de recolher à beira de lei marcial que se viu em certas regiões da China e que se vê agora na Itália.
Para começar, é preciso adotar as medidas de higiene recomendadas pelos médicos, que de tão simples parecem tolas, mas vão salvar muita vida. Lavar as mãos, manter-se isolado em caso de sintomas ruins etc., não apenas limita a proliferação do novo coronavírus mas diminui também outras contaminações, como a da gripe.
No Japão e em Hong Kong, agora e no surto de Sars (2003), a limpeza escrupulosa ajudou a derrubar pela metade ou em até 70% os casos de gripe. Menos gente lotando hospital, por qualquer motivo, significa que haverá mais recursos para tratar dos doentes graves e dos mais pobres.
Conversas com epidemiologistas brasileiros, pessoas inteligentes e muito qualificadas, indicam que o Brasil terá de aprender com as medidas asiáticas de restrição. Educação, higiene, solidariedade e controle organizado e inteligente de aglomerações são providências que atenuam a epidemia, ao que se sabe até agora.
A fim de aplicar tal receita, é preciso comunicação esperta dos achados da ciência, das melhores práticas médicas e sanitárias, além de serenidade e pacificação de ânimos. Não é a atitude da liderança do país.
Jair Bolsonaro começou a semana passada, crítica, dedicado ao seu programa de golpeamento e desordem institucionais, degradação que promove de modo intenso desde o início do ano.
Ocupava-se de promover a marcha de suas falanges contra os outros Poderes; afirmou sem provar que houve fraude na eleição que venceu. Desdenhava do risco da epidemia, com a ignorância atroz de costume, repetindo como um sabujo idiotices de Donald Trump.
Na quinta-feira (12), em discurso em cadeia nacional, tratou da doença apenas para dizer de modo frio e incompetente que os recursos para tratamento de saúde eram limitados. No mais, se dedicou a passar recados para suas falanges fanáticas, demonstrando outra vez qual a sua prioridade.
A zoeira ideológica atroz ficou ainda mais evidente no fim da semana, quando o presidente fazia arruaça em torno da notícia que uma TV americana trumpista deu sobre seu teste de Covid-19.
O país discutia o que fazer da epidemia e da economia, em meio a um ambiente político-parlamentar destroçado pelo bolsonarismo, o que ameaça o restante de governabilidade.
Enquanto isso, Bolsonaro dava bananas nas mídias sociais.
Vinicius Torres Freire: Até na epidemia, Bolsonaro fala apenas para seus fanáticos
Em cadeia nacional, disse só que sistema de saúde tem limites e fez política com a militância
A preocupação com a covid-19 se alastra pelo Brasil quase inteiro. Jair Bolsonaro vai então à TV para dizer, em primeiro lugar, que há uma pandemia declarada no mundo e que o sistema de saúde “tem limites” para atender os doentes.
Trata-se de frase tanto óbvia quanto atrocidade que intranquiliza ainda mais o país inteiro. Atrocidade desestabilizadora é um dos motes deste desgoverno.
O que pretende fazer desses limites? Dane-se.
O que tem a dizer ao país sobre providências para conter a epidemia, que ele chamava de “fantasia” da mídia faz dois dias? Dane-se.
O que tem a dizer sobre o risco de paralisia de atividades econômicas? Sobre a tensão nos mercados financeiros, sobre o risco de acidentes na finança? Sobre a disparada das taxas de juros na praça, que ora tem cara de prenúncio de recessão? Dane-se.
O que importa, como logo se ouviu em seu discurso, é espalhar a epidemia de golpeamentos institucionais e fazer chacrinha como animador de auditório de fanáticos de extrema direita.
Foi assim no discurso em cadeia nacional na noite desta quinta-feira.
Logo depois de dizer que o sistema de saúde é limitado, Bolsonaro usou o tempo de TV da Presidência da República para se dirigir a sua militância e aos líderes se suas falanges, que planejavam uma espécie marcha sobre o Congresso, um protesto convocado contra o Parlamento, para domingo próximo (15).
Naquele seu tom de quem dá ordem a um pelotão de fuzilamento e de quem não domina a leitura nem o português, Bolsonaro desconvocou a manifestação que ajudara a esquentar. No entanto, deu recados de que “a luta continua”. Foi apenas suspensa por causa da epidemia.
Bolsonaro é aquele indivíduo que, nesta semana, disse o seguinte sobre a agora pandemia: “Obviamente temos no momento uma crise, uma pequena crise. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo”.
Bolsonaro mentia ao fazer seu discurso na TV ou mentia em seu discurso de Miami, sobre a “fantasia” da epidemia? Tanto faz. Nada do que diz faz parte do universo da razão ou de “união, serenidade e bom senso”, como recomendou ao país na sua chave de cadeia nacional de terça-feira (10).
Gente de seu governo prepara um pacote de remendos econômicos, a ser anunciado na segunda-feira que vem (16), dizem. No que importa, nos assuntos essenciais, seu governo não tem o que dizer.
O que seu governo fará para remediar o SUS, com recursos já escassos e que serão atropelados pela epidemia?
Qual a orientação de políticas nacionais para a contenção da epidemia? Deve-se deixar o vírus circular ao léu, como agora, ou é preciso esvaziar o quanto possível reuniões e aglomerações, como tantos países fizeram e fazem, suspendendo atividades escolares, esportivas e similares?
Para piorar, a loucura política que é parte do programa de degradação institucional que é o seu governo agora é acompanhada pelo Congresso, que resolveu gastar mais sem ter nenhum programa organizado, justificativa ou receita para bancar a despesa.
O desgoverno então se espraia como a praga do coronavírus. Como se não bastasse o pânico financeiro importado, o conflito desordenado nos Poderes alimentou a ruína no mercado. O desastre foi apenas contido pela atuação de técnicos de Banco Central e, de modo maciço, do Tesouro.
O país está desgovernado pela maluquice perversa.
Vinicius Torres Freire: Governos imóveis na guerra da epidemia
Epidemia é guerra, governos vivem a paz dos cemitérios
É preciso gastar para deter o inimigo novo coronavírus e cuidar dos feridos
A epidemia tem algo de uma guerra. Não há destruição física, mas partes da economia deixam de produzir por falta de gente para trabalhar, de transporte e matérias-primas.
Os danos estão evidentes, mas muitos governos vivem em um mundo de paz. A paz dos cemitérios.
Mas é preciso um esforço de guerra —mais sobre isso adiante.
Há quem grite nesse silêncio mortal no meio da algazarra dos mercados financeiros, os primeiros a pedir socorro. Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu, soltou os cachorros em reunião fechada da cúpula europeia, na terça-feira (10), segundo relatos de jornais europeus: parem de tergiversar, governos precisam gastar.
Juros baixos não movem moinhos destruídos, não animam pessoas travadas pelo pânico ou pela impossibilidade física de trabalhar, não tratam doentes.
O Brasil também terá de pensar em medidas de emergência (que não impedem "reformas"). O número de casos da doença se expande aqui a 30% ao dia, quase o mesmo ritmo do mundo rico. Nessa toada, em 15 dias haverá 2.700 doentes. Haverá paralisia também, em um país mais pobre e desgovernado, em parte na mão de dementes.
Reino Unido e Itália começaram a agir. Lawrence Summers, ex-secretário do Tesouro dos EUA, diz que é "melhor se exceder do que fazer pouco". O governo americano está perdido entre os economistas de auditório de Donald Trump e picuinhas democratas. Apenas o BC deles agiu.
O governo da Alemanha, centro da Europa, está aparvalhado. Tem dívida pública pequena, menos de 60% do PIB, e governo com superávit (!). Muito do establishment alemão tem culto fanático pela austeridade, mas parte dessa elite já diz basta.
Para piorar, a "guerra" da epidemia da covid-19 ocorre em um mundo de várias economias deprimidas ou quase estagnadas desde 2008. O PIB per capita da eurozona cresceu cerca de 0,5% ao ano desde então.
É um mundo enfraquecido ainda por guerra econômica real: EUA versus China, disputa tecnológica, militar e comercial; conflito pelo controle do mercado de petróleo (sauditas contra russos contra petroleiras americanas); ataque ao sistema internacional de comércio, obra de demagogos como Trump.
É também um mundo de desumanidade louca, em que mais gente está largada à própria sorte, sem previdência social para pagar saúde, falta de trabalho e outros desastres da vida, como nos EUA.
Guerra demanda esforço de guerra. É preciso aumentar a produção de alguns bens e serviços, pagar os soldados e o remédio para feridos e desabrigados.
É preciso gastar em hospitais e seus funcionários. É preciso sustentar quem cuida dos doentes, profissionais e famílias que ficam sem trabalhar.
É preciso fazer a economia produzir armas contra o inimigo e rodar em setores que escapem à destruição: investimento em infraestrutura de saúde ou geral: energia, transporte.
Na Europa, Alemanha inclusive, há quem diga até que será preciso cuidar das empresas "refugiadas" da guerra, asfixiadas pela destruição causada pela epidemia. Cuidar como? Até o ponto de o governo colocar dinheiro nessas firmas, se tornando sócio delas. Quem o diz é parte do establishment do pensamento econômico de lá, quase todo linha-dura.
Mercados financeiros derretem? Sim, são um enorme sintoma que pode deixar terríveis sequelas. Mas o problema de base é uma economia paralisada por uma guerra, por uma peste, em mundo de lideranças entre dementes e medíocres.
Vinicius Torres Freire: Governo tem atrapalhado, diz Arminio Fraga
Economista rejeita mais gasto, pede plano racional de reformas e comenta riscos financeiros
Arminio Fraga lidou com a grande crise da desvalorização do real, faz 21 anos. Era o recém-nomeado presidente do Banco Central quando a então recente estabilização da moeda parecia ir para o vinagre. O que fazer agora?
O economista e financista não propõe medidas heroicas. É o caso de “evitar grandes ruídos nas mais diversas áreas, manter a disciplina macro e tocar a agenda de reformas. O Congresso tem feito muito, mas precisa de mais ajuda do Executivo”. O governo tem atrapalhado.
Fraga observa que o primeiro ano do governo poderia ter sido aproveitado para mais reformas, mas então nem as prioridades foram apresentadas com clareza. Perdeu-se tempo com um plano de reforma tributária inviável, em parte pela ideia de recriar uma CPMF, por exemplo.
Até agora, não se sabe quais são as prioridades e tampouco o governo parece saber o que quer fazer. Há confusão, desarticulação política no Congresso. “Pela confiança, não estão ganhando o jogo”.
Aumentar o gasto público, mesmo de modo emergencial, a fim de elevar o investimento, não seria uma opção.
Sim, houve um colapso do investimento público, que está em mínimos históricos. “Algum investimento público é indispensável. Agora, não vejo como aumentar, o Estado está quebrado”.
Países que têm crédito no mercado pagam juros baixos, como EUA e Alemanha, podem investir em época de crise. Não seria o caso de quem teve problemas de excesso fiscal e tem dívida alta, argumenta.
“Neste momento, uma tentativa de aumentar despesa, mesmo estritamente direcionada a investimento, tende a desestabilizar tudo e ter efeito contraproducente. Por ora, nosso problema ainda é reencontrar espaço fiscal para fazer investimento público”.
Crescimento ainda menor que o ora previsto ou até a estagnação de fato mudam o receituário de curto prazo?
“O BC está explorando os limites da queda de juros, uma novidade para nós. Dados os riscos internos e externos recomenda-se alguma cautela. Essa parece ser a nossa sina”.
Há algum risco financeiro submerso, dados os solavancos financeiros e a ameaça de crise econômica?
Fraga diz não ver problemas nos canais financeiros, que estariam azeitados, e menos ainda nos bancos.
Nada a ver, por exemplo, com o que se viu nas crises financeiras de 2008 nos EUA, com paralisia nos empréstimos interbancários, ou de 2012, com bancos europeus com problemas nos créditos para países endividados. Mas acha que ainda é difícil ter ideia mais precisa dos efeitos do tumulto.
Algum outro efeito mais concreto nas finanças por aqui?
Pode-se pensar na reação de investidores de varejo. Houve facilidades e interesse, devido aos juros baixos, de investir em ações e debêntures. Com as quedas e variações de preços violentas, pode haver um abalo nos ânimos.
“É um aspecto novo no mercado brasileiro, que é interessante acompanhar. Houve alguma euforia, que acabou de acabar”. Esses tombos no mercado contribuem para diminuir a confiança do setor real.
“Além da timidez do gasto, tanto no consumo quanto no investimento, pega no câmbio, que por ora está reprimido pelas declarações do Banco Central. Mas estão apenas reprimindo a volatilidade. Se o clima geral [no mercado] seguir nessa toada um tanto bizarra, aquilo que hoje se reprime volta mais forte no futuro”.
A queda da despesa do governo (em obras, equipamentos etc.), não foi compensada pelo investimento privado. “Em parte, porque há capacidade ociosa, em parte porque a perspectiva é de crescimento lento, um pouco disso tem a ver com confiança, que depende também do governo, que tem atrapalhado”.
O que vai ser de EUA e Europa? A hipótese é recessão: “Com sorte de curta duração, mas esses processos às vezes adquirem vida própria”.
Vinicius Torres Freire: Dívida em alta, finanças em baixa
Dívida das famílias sobe, aplicações financeiras tombam
Endividamento não estava tão alto fazia cinco anos
As famílias brasileiras não estavam tão endividadas havia pelo menos cinco anos. As mais ricas, as que dispõem de alguma poupança financeira, viram algumas de suas aplicações levarem tombos feios nas últimas semanas. De resto, a tradicional vaca leiteira da renda fixa tem rendido nada ou algo abaixo de nada e tende a render menos ainda até o ano que vem, no mínimo.
Parece haver novidades nas finanças das famílias. O choque do vírus pode balançar essas contas. Qual seria o impacto desses possíveis abalos no crescimento da economia, que era mínimo mesmo antes do coronavírus e do surto renovado da praga da baderna política do governo?
A dívida equivalia na média a 45% do rendimento anual das famílias em dezembro de 2019, dado mais recente dessa estatística calculada pelo Banco Central. Está bem perto dos níveis recordes de 2015 (a série começa em 2005). O total de dinheiro emprestado pelos bancos às pessoas físicas equivalia em janeiro deste ano a 28% do PIB, a proporção mais alta dessa série de dados que começa em 2007, também do Banco Central.
Difícil dizer se é muito, apesar dos recordes. Até janeiro, pelo menos, não havia sinal de alerta na inadimplência nos financiamentos bancários; os bancos ainda pareciam animados de conceder crédito.
O serviço da dívida (pagamento de juros e amortização) levava 20,2% da renda mensal, na média, no fim de 2019. Voltara aos níveis de 2017, mas com peso não muito diferente daquele registrado desde 2011. Esse nível seria um limite?
No bolo dessa estatística geral pode haver várias histórias diferentes. Pode haver famílias com situação mais estável de trabalho e de finanças, que se animaram a tomar crédito para a compra de bens mais caros quando saiu esse mesmo solzinho fraco da recuperação da economia. Pode haver outras muitas famílias com a corda no pescoço, porém.
Sem dados mais finos, o máximo que se pode dizer é que esse nível inédito de dívida em ambiente de choques suscita mais dúvidas sobre o crescimento dos empréstimos bancários. Crédito é um raro motorzinho desta saída muito lerda do buraco da recessão. O crescimento do salário médio tem andado perto de zero.
O ânimo esfria no mercado de veículos, por exemplo. As vendas cresciam a 18% ao ano em 2018 (vendas acumuladas em 12 meses). Em janeiro, o ritmo caíra para perto de 8%, bom ainda, mas embicando rápido para baixo. Depois da excelente recuperação de 2019, em São Paulo, o mercado imobiliário daria uma desacelerada. Normal, mas a freada pode ser maior, dado o impacto do vírus.
O choque no mercado financeiro, se duradouro, pode provocar por aqui um até agora incomum “efeito pobreza”, pois as aplicações financeiras no país se tornaram mais diversificadas e mais arriscadas. As ações têm peso um pouco maior; fundos multimercado e de previdência têm peso mais relevante. A redução das taxas de juro de curto prazo reduziu o rendimento real dos fundos de renda fixa a nada, para nem falar da poupança (há mais dinheiro nas cadernetas do que em fundos de ações).
Os ganhos de capital com títulos públicos de prazo mais longo podem em parte ter ofuscado a baixa da taxa de juros. Mas evidências anedóticas, conversas, indicam que as pessoas passaram a notar o novo mundo do rendimento zero da aplicação conservadora.
Entender a possível crise do vírus depende do acompanhamento dessas novidades nas finanças das famílias.
Vinicius Torres Freire: Carnaval no governo, cinzas na economia
Autoridades econômicas colaboram para aumentar o paniquito no mercado
Era um daqueles dias de pânico nos mercados financeiros, quando muita gente não sabe bem o que está fazendo nem para onde o vento sopra. O ministro da Economia deu mais uns tiros nesse desconcerto.
Para quê? O tempo está fechando. Já há paniquito entre os negociantes de dinheiro grosso, "o mercado", mas também questões reais na praça, além dos lobbies de costume.
Nesta quinta-feira (5), o pessoal da finança pediu ao Banco Central que atenue a corrida do dólar. Foi também dia de pregar que o BC não reduza a taxa básica de juros daqui a duas semanas.
O mercado já jogou a "sua" taxa básica de curto prazo no chão, mas argumenta que nova queda da Selic vai colaborar para alta adicional do dólar e alimentar riscos de inflação, com o que os juros de prazo mais longo já sobem. Na terça-feira (3), o Banco Central sugeriu que tal coisa não tende a acontecer.
Caso fosse duradoura e relevante, essa alta das taxas de juros de prazos mais longos encareceria o financiamento dos negócios, de fato. Mas a alta dos juros mais longos nem durou nada, nem foi relevante e nem alguém tem ideia segura do destino do dólar e de seus efeitos na inflação. Até mesmo o impacto da crise que veio da China no PIB brasileiro é incerto.
O tiroteio de frases de Paulo Guedes pode dar em nada, assim como a desordem desta quinta-feira na praça financeira --por vezes isso simplesmente passa. No entanto, como o governo de Jair Bolsonaro é dado ao disparate atroz contínuo, o ambiente anda estressado e a desconfiança aumenta.
Por exemplo, há cada vez mais fofoca sobre a permanência de Guedes no governo, o que não está em questão, mas é um exemplo dos efeitos nocivos do rumorejo constante, desde janeiro em nível de gritaria graças às crises de Bolsonaro.
No dia depois do pibinho, Guedes:
1) disse que, se "fizer muita besteira", "se o presidente pedir para sair, se todo o mundo pedir para sair", o dólar pode ir a R$ 5;
2) observou que as notícias da relação conturbada de Bolsonaro com o Congresso e o risco de atraso nas reformas contribuem para alta do dólar (não deu para entender se o ministro atribuiu a responsabilidade ao tumulto ou ao fato de o tumulto ser noticiado);
3) fez observações azedas sobre uma declaração de seu secretário do Tesouro ("se o Mansueto [Almeida] estava esperando que fosse crescer 3%, ele deve estar frustrado");
4) disse que sua previsão de crescimento da economia é diferente da estimativa da Secretaria de Política Econômica.
"Se todo o mundo pedir para sair"? Do que se trata?
Guedes disse ainda que, como o Brasil é uma economia fechada, a crise mundial não terá efeitos tão grandes ("quando ventou a favor [no mundo], não pegou, quando ventar contra, também não pega tanto"). Hum.
Não tem sido esse o caso do último quarto de século, por exemplo, quando a economia brasileira passou a sentir especialmente as variações da economia chinesa e seus impactos nos termos de troca (a relação entre os preços das exportações e das importações brasileiras). Uma queda relativa do preço dos bens que exportamos, dominados por commodities, tende a reduzir o crescimento brasileiro. Não é destino, mas é provável.
Em si mesmas, em um ambiente e país mais normais, uma afirmação dessas de Guedes não faz lá diferença. Soltar todas elas em apenas um dia, dia de paniquito, em país ainda mais conturbado pela sensação crescente de desgoverno, confirma essa impressão de que a coisa está desgovernada.
Vinicius Torres Freire: No país do pibinho e da revolução conservadora, paciência do povo é a dúvida
Geringonça política e econômica da direita deve continuar, assim como o arrocho do povo miúdo
O Brasil está em crise política ou econômica faz seis anos. Mais pobre do que era faz dez anos. Com o sistema político tradicional desacreditado pelo menos desde 2013 e desmoralizado desde 2015. Caberia perguntar por quanto tempo o país ainda pode se desmilinguir sem revolta social ou rompimento político.
A pergunta parece mais oportuna por causa da renovação da perspectiva de quase nenhum crescimento da economia, como agora. Até quando seria paciente a maioria silenciosa do povo miúdo, que parece ainda mais quieta por causa da algazarra atroz das milícias digitais?
Mas algum rompimento houve, pela via institucional. Jair Bolsonaro é o resultado disso. De certo modo, o tempo de tolerância da crise voltou a ser contado na eleição de 2018. As urnas são momento de renovação de otimismo, por mais estranha ou monstruosa a forma que essa esperança possa tomar.
O sentimento de que o país se esboroa se deve também ao fato de que acontecem mudanças profundas, goste-se ou não. Mudam a Previdência, a poupança pública e privada, as relações trabalhistas, o emprego. Há contenção do gasto público por asfixia.
Houve desmonte da organização do trabalho, em particular das desmoralizadas centrais sindicais. Muda o comando do capital. Empresários com proeminência política são outros. O país não está apenas se desmilinguindo. Sofre uma mutação, que talvez dê em um monstro, mas não se trata dessa história aqui, agora.
Aconteceu também um rearranjo político importante, talvez provisório. O parlamentarismo branco coloca certa ordem no país desgovernado e sujeito aos golpeamentos de Bolsonaro, tolerados pela maioria da elite econômica, incentivados por parte dela. É a geringonça da direita.
Até por falta de opção dos envolvidos, o arranjo político deve continuar com a aprovação de algumas reformas, caso Bolsonaro não promova mais baderna atroz.
Parece uma geringonça estável enquanto os golpeamentos, as tentativas de demolição institucional bolsonariana, não balançarem estruturas (badernas de subalternos em quarteis?). Enquanto não sobrevier um escândalo decisivo dos Bolsonaro ou uma recaída na recessão. No mais, é insondável de quando pode vir nova revolta ou queda relevante do prestígio do governo.
O PIB de 2019, muito parecido com o de 2018, não revelou nada que não se soubesse faz tempo. Uma economia que cresce com consumo baseado em lerdo aumento dos salários e sem investimento vai se recuperar de modo muito lerdo, sujeita a recaídas fáceis devido a qualquer choque. O investimento não virá tão cedo, pois o governo não gastará mais, as empresas têm capacidade ociosa ou medo e gastos maiores em infraestrutura pública e privada só começam a pingar no final deste ano, se tanto.
Nada disso vai mudar tão cedo, embora Rodrigo Maia, em uma atitude meio enigmática no dia do pibinho, tenha criticado a falta de investimento público e esteja pelas tampas com o governo; embora o país esteja desgovernado desde que Bolsonaro resolveu golpear até geringonça.
Mas o arranjo de contenção da ingovernabilidade deve continuar, assim como o crescimento quase nulo; não há movimento social ou partidário de oposição relevante.
A paciência da população é mais imprevisível. Por quanto tempo o povo, passando mal, terá fé nessa geringonça com promessa de revolução de extrema direita e transformação agônica das relações socioeconômicas?
Vinicius Torres Freire: Economia não tem bala para enfrentar o coronavírus
Apenas para amainar crise, BC teria de jogar taxa real de juros para zero
O Banco Central do Brasil indicou que também vai cortar os juros: a crise mundial deve causar mais danos do que uma alta daninha do dólar.
Entenda-se: taxa de juros menor em tese favorece mais desvalorização da moeda brasileira; um real rapidamente desvalorizado pode provocar alta de preços. Porém, o risco de a economia brasileira travar é maior do que o de termos alguma inflação por causa do câmbio.
Foi o que o BC disse em nota publicada no fim da tarde desta terça-feira (3). Disse daquele "jeito BC", de contador diplomata fazendo neurocirurgia. Mas disse.
Se o BC vai mexer mesmo na taxa básica de juros, são outros quinhentos. A próxima decisão agendada sobre a Selic ocorrerá em duas semanas. Até lá, o mundo pode ter entrado em colapso financeiro ou ressuscitado para a primavera do hemisfério Norte.
Como se sabe, o BC dos EUA, o Fed, deu um talho grande na taxa básica de juros deles, em reunião extraordinária, o que não acontecia desde a epidemia provocada pela grande finança global, a crise de 2008.
O BC do Brasil, por sua vez, disse "estamos atentos, mas vai indo que (por ora) eu não vou". Em vez de cortar a Selic, soltou uma nota que, em parte, chancela a redução que já ocorreu na taxa básica de juros na praça financeira.
O mercado já derrubou os juros. Quer dizer, os negociantes no atacadão de dinheiro levaram a taxa básica da praça financeira para a casa de 3,8% ao ano. Na prática, não havia tanta confiança de que o BC baixaria os juros desde o início de dezembro de 2019.
E daí? Caso o BC reduza a Selic de 4,25% para 4% vai fazer diferença notável? Vai aumentar a imunidade contra o choque da desaceleração da economia mundial? Hum.
Desde os anos 1990, a variação do crescimento da economia brasileira está associada em 60% da variação do crescimento da China, pelo menos. Claro que, desde 2012, no mínimo, fazemos besteira suficiente para nos destruirmos sozinhos. Isto posto, uma derrocada chinesa é um problema grande, ainda mais nesta economia brasileira já doente.
O preço das commodities, do ferro, petróleo ou comida que o país vende, vai sofrer. Apesar de uma economia fechada, o Brasil vai sentir ainda a falta de insumos que importa da China para alimentar as fábricas.
Corremos também algum risco de choque de confiança e de medo em geral, como no resto do mundo: medo de aglomeração, comércios, viagem, feiras etc.
Um corte de 0,25 ponto percentual ou até maior não deve evitar a pancada externa nem diminuir o medo da doença. O BC pode ajudar a conter algum estrangulamento financeiro, que não é visível, por ora.
No mais, pouco a fazer. A prestar atenção: se as expectativas de inflação não baixarem e o BC tomar medida mais forte (Selic a 3,5%?), a taxa real de juros vai a zero no Brasil.
Muito importante, para nós também, será a atitude dos governos dos países centrais.
Os bancos centrais deles vão ter de recorrer de novo a políticas ditas heterodoxas. Juros negativos em quase todo o mundo rico tornam nulo o efeito de política monetária convencional. Está na pauta repetir as mirabolâncias para amainar a crise de 2008 (imprimir muito dinheiro, em última instância) e ajudar até pequenos negócios.
Se essa coisa não passar, os governos do mundo rico vão ter de gastar: em obras, no sistema de saúde, nas contas dos doentes e suas famílias (é uma proposta de Elizabeth Warren, senadora democrata e candidata a presidente dos Estados Unidos).