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Vinicius Torres Freire: O arroz com feijão e Bolsonaro

Dólar, exportação, auxílio emergencial e problemas em certos mercados explicam carestia

O dólar subiu, o Brasil está exportando muito grão, houve tropeços nos mercados de alguns produtos e, novidade da calamidade, pode ser que o povo miúdo esteja comendo mais com o dinheiro auxílio emergencial. Mas há ruídos de que talvez esteja acontecendo alguma coisa esquisita em alguns mercados, de soja, milho e arroz em particular.

Gente do agronegócio conta que há criadores e indústrias importando grão a preço mais alto do que o das exportações. Sim, podem ocorrer turbulências em alguns cantos do país. Mas, em tese e em geral, não faz sentido que se exporte a preço menor do que seria possível obter aqui dentro. No entanto, é gente do ramo que aponta o problema, reclamando da inexistência de um regulador eficaz de estoques.

Jair Bolsonaro, que é do ramo da demagogia, sentiu a panela esquentando e tenta tirar o corpo fora com uma mistura de ignorância com oportunismo. Pede “patriotismo” aos comerciantes (como pediu ao mercado financeiro) e que os supermercados vendam comida a preço de custo. Nada disso funciona no que interessa, mas a propaganda pode evitar algum desgaste político.

Inflação da comida rodando a mais de 9% ao ano costuma lascar um pouco da popularidade de governantes. A “inflação do tomate” (dos alimentos em geral, na verdade) em março de 2013 foi um dos motivos do mau humor que contribuiria para o clima ruim que explodiria enfim em junho de 2013.

Em abril do ano passado, um motivo da irritação com Bolsonaro pode ter sido a inflação de alimentos rodando também a 9%. No entanto, o preço da comida sobe a essa velocidade praticamente desde maio. O prestígio de Bolsonaro cresceu desde então.

Ainda não há dados suficientes para estimar a causa do aumento da comida, que se concentra em arroz, em alta recorde de 15 anos, feijão, leite, soja, aves e ovos, na farinha de trigo e, mais recentemente, na batata.

A alta do dólar deve ser um motivo forte –afeta qualquer produto “comercializável” no exterior. A inflação geral dos comercializáveis é quase o dobro da inflação geral. Em quarenta anos, a inflação no atacado e no varejo jamais foi tão díspar.

Há problemas em alguns mercados. A área plantada do arroz diminuiu, por causa de preços ruins no passado. Segundo análise do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Escola Superior de Agricultura da USP, a Esalq, os produtores de arroz ainda seguram estoques a fim de esperar preço ainda melhor, o que acontece também com o milho.

A demanda mundial está forte. A quantidade de soja exportada pelo Brasil neste ano até agosto foi quase 34% maior que a do ano passado; a de arroz, 163%.

No caso de laticínios, os produtores não fizeram estoques bastantes em abril, como é de costume, diz análise do Cepea. Dada a pandemia, a perspectiva era de consumo reduzido. Não foi o que aconteceu.

O faturamento nos supermercados era no início de setembro 16% maior que em fevereiro, imediatamente antes do choque do vírus, pelos dados das vendas com cartões, da Cielo. Parte disso foi substituição alimentos que deixaram de ser consumidos fora de casa. Parte pode ter sido aumento de consumo das pessoas que mal comiam ou comiam mal antes do auxílio de R$ 600.

Em suma, a carestia parece se dever à conjunção de mercado mundial quente, real desvalorizado, problemas técnicos em alguns mercados e aumento de consumo doméstico. É terrível e espantoso que o fato de o povo comer um pouco mais tenha efeito na inflação de alimentos.


Vinicius Torres Freire: Pobres devem perder o trem de volta para a economia pobre de 2019

Epidemia longa, retomada parcial e fim de auxílios massacram a vida miúda das cidades

Em julho do ano passado, quase 36 milhões de pessoas pagaram bilhetes nos trens da CPTM, empresa que atende a região metropolitana de São Paulo. No mês de julho deste ano de calamidade, os pagantes eram apenas 20,5 milhões, queda de 43%.

No Metrô estatal paulista, a baixa do número de passageiros nos dias úteis era de 60%. Ainda não saíram os dados de agosto, mas dá para ter uma ideia do tamanho da desgraça, que já foi pior, mas continua desgraça.

Muitas pessoas assustadas com o vírus ou com o futuro deixam de gastar na lojinha de rua, no quilo, na lanchonete, no café com bolo da calçada, no pastel, no dogão, no ambulante. Não vai à manicure, ao barbeiro. A economia se recupera, na verdade apenas despiora, dizem os grandes números.

Mas a vida miúda dos pequenos negócios que são o sustento de tanta gente ainda é duríssima. Vai depender do que será dos auxílios e do espalhamento do vírus, como explica qualquer estudioso capaz, economista ou epidemiologista, psicólogo ou sociólogo.

Pelos grandes números, o segundo trimestre teria sido o pior. O PIB caiu 9,7% em relação ao primeiro trimestre do ano. No terceiro, estima-se que haveria crescimento de 6%. Há sinais disso. O consumo de energia elétrica de julho e agosto foi praticamente o mesmo desses meses no ano passado.

A produção das fábricas até cresceu mais do que o esperado em julho (mas a indústria de transformação ainda está mais de 10% abaixo do baixo nível de 2019).

Essa escalada a partir do fundão do poço obviamente é e será desigual. Os dados de faturamento no cartão, da Cielo, mostram que o varejo no fim de agosto ainda vendia 11% menos que em fevereiro. Mas o setor de bens não duráveis vendia cerca de 2,5% mais, e o de duráveis, 4,4% menos. O de serviços, brutais 43% menos.

As vendas de combustíveis em julho ainda eram mais de 8% menores que no ano passado, segundo dados da Agência Nacional do Petróleo. No final de agosto, os postos de gasolina vendiam 24% menos que em fevereiro, diz a Cielo.

A circulação reduzida massacra a vida real das cidades.

O problema dos serviços e do comércio não para aí, em restaurantes e similares, o tipo de empreendimento mais comum do Brasil, e nas lojas.

Ainda não há perspectiva de retomada ou recuperação notável para entretenimento ao vivo, serviços pessoais como salões de beleza, serviços de saúde e terapias diversas (com cirurgias e tratamentos adiados em hospitais, clínicas, consultórios de dentistas), de educação (tantos cursos cancelados), viagens, hotéis.

Muita empresa está com as finanças arrebentadas, da grande firma de transporte ao restaurante. A redução do auxílio emergencial vai arrebentar os negócios menorzinhos.

Diz-se que a poupança aumentou (isto é, gastou-se menos do que a renda disponível). É verdade, na soma de todos os dinheiros do país, “no agregado”. Esse saldo pode sustentar o nível geral de consumo depois do corte do gasto público. Mas isso vai chegar à manicure ou à vendinha da comunidade?

Os economistas parecem saber um pouco disso, da recuperação desigual e parcial. O pessoal do Bradesco e do Itaú agora prevê igualmente que o PIB afunda 4,5% neste ano e aumenta 3,5% em 2021 —estão entre os otimistas.

Assim, ao final do ano que vem a recuperação do nível de renda e produção seria de apenas 74% do que se perdeu na calamidade de 2020. Ou seja, apenas em 2022 voltaríamos à pobreza de 2019. Um problema é que o povo miúdo não deve nem pegar esse trem de volta para um passado menos ruim.


Vinicius Torres Freire: Congresso abre mercados de gás, teles e saneamento

Confiança e regras claras importam, mas não enchem barriga e não destravam investimentos

Em teoria, estão abertas as porteiras para que empresas privadas invistam em saneamento e gás; deve ser enfim destravado o investimento na tecnologia 5G e na expansão das telecomunicações em geral. Quando, quanto e se dinheiro vai aparecer em novos negócios é questão mais nebulosa.

É muito improvável que empreitadas nessas áreas tenham algum papel em uma possível retomada econômica, se é que se vai ver investimento notável antes de 2022. Mas, goste-se ou não do que se passa, de privatização em particular, houve mudança legal relevante nesses setores.

Desde outubro de 2019, o Congresso aprovou as novas leis de telecomunicações e de saneamento. Está para aprovar a nova lei do gás. Nesta semana, Jair Bolsonaro facilitou o caminho para a expansão do 5G e das teles, regulando a instalação de antenas e o uso de outras infraestruturas. O atrasado leilão das frequências de 5G deve acontecer em meados de 2021.

Falta um monte de regulamentações extras e outros acertos para definir com clareza as regras do jogo, da concorrência e dos preços no caso de saneamento e gás. Faltam agências reguladoras funcionais e comprometidas com o público. Até agora, mudou a base dos negócios: houve abertura do mercado e desregulamentação. Dinheiro firme é outra história. A cada vez que se trata da aprovação das leis gerais para cada setor, a gente ouve e lê que aparecerão dezenas de bilhões de investimentos. Não é assim.

No caso do saneamento, a lei facilita a persistência do antigo regime de predominância estatal. A depender dos arranjos locais, lugarejos pobres ainda podem ficar sem o serviço. Mas algum governante mais esperto pode desde já tentar atrair investimento privado, ainda mais para lugares em que o povo pode pagar a conta. É mais emprego, é progresso sanitário e não custa para o cofre do governo —ao contrário.

Ainda assim, gestores de dinheiro grosso e entendidos do setor dizem que a coisa vai começar devagar, tentativamente, e algum progresso começaria a ficar visível apenas em dois anos e olhe lá. Por falar em dois anos, é a estimativa mais otimista para que se perceba algum resultado na mudança no gás. Isto é, para que se note o começo de investimento relevante e algum efeito nos preços.

O caso aqui é ainda mais enrolado, pois são necessários acertos na distribuição estadual do gás, na prática sob controle do governo dos Estados, há risco de empresas privadas de transporte (por dutos) de gás atropelarem a concorrência e de outras mumunhas, como as que tentaram enfiar na lei.

No Brasil, a maior parte do consumo de gás é industrial —na química, nas fábricas de cloro, fertilizantes, alumínio, vidro, biocombustíveis ou cerâmica, por exemplo. O segundo maior destino do gás é a produção de eletricidade. Até o ano passado, a Petrobras era quase um monopólio de produção e distribuição (mas suas transportadoras estão sendo vendidas).

Em teoria, pode haver mais concorrência. Em tese, com mais competição haverá preços menores, o que pode beneficiar a indústria e permitir a abertura ou reabertura de empresas.

Além do investimento extra, o 5G também pode permitir a criação de novos negócios, sabe-se lá quais, a depender da imaginação de empreendedores e do custo de capital.

Uma dúvida grande é a demanda. Ao fim deste ano, o PIB per capita do Brasil deve ser ainda 13% menor do que em 2014. Confiança e regras claras importam, mas não enchem barriga, não destravam investimentos: falta uma perspectiva de crescimento.


Vinicius Torres Freire: Desastre do PIB mostra erros de Guedes

Queda inédita era prevista, mas economia já andava muito mal antes de ser infectada pelo vírus

A economia brasileira foi o desastre mais ou menos esperado no segundo trimestre. O que se descobriu agora é que, mesmo antes da calamidade do vírus, o PIB já dava com a cara no chão e quebrava uns dentes, em vez de decolar, como dizia Paulo Guedes, o ministro da Economia.

Segundo a revisão do IBGE, o PIB caiu 2,5% no primeiro trimestre (ante o final de 2019), não apenas 1,5%. Ou seja, estamos em um buraco um pouco mais profundo do que o previsto. Em março, quando o coronavírus já caçava vítimas pelo Brasil e o mundo inteiro fechava as portas, Guedes dizia que o Brasil cresceria 1% em 2020. A previsão mais recente do povo do mercado era de queda de 5,3%, antes de saber dos dados ainda piores do primeiro trimestre.

Guedes agora diz que a economia brasileira vai se recuperar em “V” (ou seja, cai e se levanta tão rapidamente quanto). Tomara. Até agora, não parece.

O desempenho brasileiro foi horrivelmente similar à média das maiores economias do mundo e melhor que o da maioria da Europa ocidental. No segundo trimestre, o PIB dos países da OCDE baixou 9,8% (o do Brasil, 9,7%). A OCDE é um clube de três dúzias dos países com os maiores PIBs do mundo (mas China e Brasil não estão lá).

O resultado brasileiro não foi ainda pior porque:

  1. o gasto do governo foi relevante, grande na comparação internacional;
  2. o setor externo ajudou (com uma contribuição de 2,3 ponto percentual para o PIB): as exportações resistiram, as importações caíram

Por falar em auxílio do governo, note-se que por volta de março Guedes também dizia que com “uns R$ 5 bilhões” se resolveria o problema da pandemia (o governo acabará gastando mais de meio trilhão de reais extras) e propunha auxílio emergencial de R$ 200 (é no mínimo de R$ 600).

Guedes acha que o resultado do segundo trimestre é um ruído de um acontecimento que está agora a uma distância astronômica, tão astronômica quanto seus erros de previsão e e desvarios quantitativos, entre outros (o Brasil decolava no início do ano, cresceria 1% neste ano, privatizaria empresas no valor de R$ 1 trilhão, teria déficit zero em 2019 etc.).

O terceiro trimestre decerto está sendo melhor. Sim, saímos do fundo do poço mais recente, mas ainda estamos dentro do buracão e há problemas sérios na recuperação adiante:

  1. o auxílio emergencial vai ser cortado pela metade, de R$ 600 para R$ 300. A economia vai ter de despiorar muito rápido para criar renda bastante para compensar essa diferença;
  2. o setor de serviços está muito estropiado e ainda ficará assim por meses, dada a longa duração da epidemia no Brasil;
  3. o investimento em novas instalações produtivas, casas, máquinas e equipamentos se arrastava antes do vírus; difícil ver como vai sair do chão (na verdade, do buraco) em uma economia ainda mais deprimida e com investimento público ainda mais reduzido.

Nas categorias em que o IBGE divide o PIB, o setor mais desastroso foi “outros serviços”: caiu quase 19,8% em relação ao primeiro trimestre (inclui atividades como alimentação fora de casa, hotéis e similares, serviços pessoais, profissionais liberais, saúde e educação privadas, entretenimento, cultura, esportes). A seguir, veio o setor de transportes, armazenamento e correios, com queda de 19,3%.

Juntos, “outros serviços” e “transportes” fazem quase 29% da economia brasileira. Com o comércio, são 42,4% do PIB.

Os dados mais recentes do setor de serviços indicam uma despiora lenta. Em agosto, as vendas no setor de serviços em geral ainda estavam 46% abaixo do registrado em fevereiro, antes da pandemia (ante alta de 3,2% nas vendas de bens não-duráveis e queda menor, de 4,8%, nas vendas de bens duráveis). Os dados são da Cielo, de despesas com cartão no varejo.

“Nós humanos somos átomos que raciocinam. Economia não é uma ciência exata. Como a velocidade da luz é diferente da velocidade do som, você vê um raio muito cedo e o som chega muito depois. É a mesma coisa com a economia”, discursou Guedes sobre o PIB nesta terça-feira (1º).

Guedes enxerga a luz dos astros antes de nós.

Dados os seus erros de anos-luz de distância e conversas desvairadas assim, parece que o ministro anda vendo coisas. Estrelas, pelo menos.


Vinicius Torres Freire: Baderna no Ambiente e no Renda Brasil são sintomas de que país afunda na vala

Brasil vai cair no buracão, pois verba de investimento míngua a cada ano; dinheiro para obra nova praticamente não há

O vice-presidente Hamilton Mourão disse, em outras palavras, que o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) mente ou é incapaz de ler uma planilha do governo. É mais um sintoma da baderna do governo e um exemplo da mixórdia orçamentária, que vão levando o país para o buraco.

Na sexta-feira (28), Salles anunciara o cancelamento dos trabalhos restantes de combate à destruição da Amazônia. Teria sido informado pelo Ministério da Economia de que os ministros-generais do Planalto haviam decidido que ele perdera a verba para apagar incêndios. Mourão disse que não era nada disso, que o ministro criara caso à toa e que mandara Salles pensar no que havia feito, não se sabe se ajoelhando no milho.

Essa turumbamba se deve a uma disputa por R$ 60,7 milhões, a verba que, sabe-se lá, teria sido tirada do Meio Ambiente. Esse dinheiro equivale a 0,004% do Orçamento de R$ 1,48 trilhão do governo federal (excluídos os gastos extraordinários com a pandemia).

Salles foi uma brasinha soprada pelo esquecido Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo. Um dia expoente do Partido Novo, o ministro espalhou-se como um incêndio no Ambiente de Jair Bolsonaro. Generais do Planalto e Mourão, que tutela Salles desde janeiro, querem apagar o fogo dele.

O motivo fundamental da confusão nem é esse. O sururu se deve à falta geral de dinheiro e do desejo de Jair Bolsonaro de criar um Bolsa Família Verde-Amarelo. Assim indicou Mourão, ao tentar explicar de onde teria saído a ideia de que houvera corte no Ambiente. “O governo está buscando recursos para poder pagar o auxílio emergencial, é isso que eu estou chegando à conclusão”, disse o vice-presidente.

Foi o segundo pito ministerial da semana. Bolsonaro passara um sabão público em Paulo Guedes por causa do Renda Brasil. Também na sexta, o ministro da Economia disse, meio brincando, que a bronca bolsonariana foi “um carrinho”, jogada perigosa, quase “dentro da área” (se fosse pênalti, era cartão vermelho?).

Em suma, não há dinheiro para bancar políticas públicas, caso existissem, ou para a política assistencial de Bolsonaro. Todo o mundo deve se lembrar daquelas cenas de estradas interrompidas por crateras, abertas pelos aguaceiros das chuvas de verão. Os temporais vão levar rodovias, e a coisa pode ficar assim, caindo aos pedaços, assim como em hospital, na universidade e na ciência.

O Brasil vai cair no buracão, pois a verba de investimento (em obras, equipamentos etc.) míngua a cada ano. Dinheiro para obra nova praticamente não há.

O investimento, com R$ 43 bilhões previstos para 2020, fica com apenas 2,9% do Orçamento. As maiores obras levam apenas R$ 300 milhões cada uma; 17% do investimento é despesa militar (avião, submarino etc.).

Quase todo o gasto federal vai para benefícios previdenciários, assistenciais e salários. Mas, mesmo com cortes aí, não haverá dinheiro bastante para investimento, ainda menos se houver um Renda Brasil gordo.

O establishment não quer tributar e gastar mais (reformar o teto).

Os reformistas liberais dizem que sobra capital privado no mundo (verdade); que, com boa regulação e bons projetos, haveria dinheiro privado para investimento (mesmo para aqueles com retorno social alto e retorno privado baixo?), que não se precisa do Estado.

Mas o partido reformista está no poder desde 2016 e não fez nada disto: nem bons projetos, nem nova regulação, nem abertura comercial, nem outros liberalismos. Sua grande obra, no momento, é escorar o governo de baderna desaforada de Jair Bolsonaro.


Vinicius Torres Freire: BC dos EUA toma decisão histórica e que pode ajudar até o Brasil

Fed muda sistema de metas de inflação e talvez enterre o modelo dessa política tal como a conhecemos

O Banco Central dos Estados Unidos tomou uma decisão que pode dar uma mãozinha para o Brasil e para o controle da nossa dívida pública. Trocando em miúdos, quer dizer que as taxas de juros por aqui talvez também possam ficar mais baixas por mais tempo, tudo mais constante. Como é historicamente óbvio, sempre podemos nos arrebentar por vontade própria, não importa o ambiente econômico mundial. Mas é uma ajuda.

A decisão do Fed é uma providência candidata a entrar para os livros de história econômica. Altera ou talvez enterre a política de metas de inflação tal como a conhecemos, ideia que dominou a teoria e prática de política monetária no último quarto de século.

No que tem de essencial e mais simples, a decisão é uma formalização de providências que vêm sendo adotadas pelo menos desde 2019. O Fed agora afirma explicitamente que vai procurar atingir sua meta de inflação de modo ainda mais flexível. Declara de antemão que não vai elevar sua taxa básica de juros assim que a inflação estiver perto de 2% e subindo. Caso não esteja ocorrendo de fato uma alta de preços desembestada ou alguma anomalia qualquer, vai tolerar inflação além de 2% e deixar como está para ver como é que fica.

Isto é, o Fed vai mirar em uma espécie de média móvel de inflação, apurada em alguns anos, aliás como já se acha correto fazer com metas fiscais (de contenção de déficit das contas públicas).

Qual o motivo? O Fed quer evitar uma alta precoce dos juros, os básicos e os da praça financeira, logo que a inflação esteja perto da meta. Caso a meta seja perseguida a ferro e a fogo, pode haver uma alta de juros que prejudique a recuperação do nível máximo ideal de emprego ou que crie a expectativa de que os preços possam congelar ou cair de novo, em seguida ao aperto monetário: recessão ou estagnação inúteis.

Mais que isso, o presidente do Fed, Jay Powell, disse que um baixo nível de desemprego pode ser compatível com inflação controlada. Um mercado de trabalho aquecido parece estar deixando de causar pânico. Na prática, não era esse o entendimento do Fed em 2015, quando o BC americano passou a elevar os juros, havia quase sete anos no nível zero.

Bom nível de emprego e inflação baixa foi o que se viu Estados Unidos nos anos de crescimento depois da Grande Recessão. Aliás, por motivos variados e objeto de grande controvérsia, não tem havido inflação no mundo rico, seja por repressão salarial, salários baixos, globalização, tecnologia, demografia, “estagnação secular”, o que seja.

Outro motivo da mudança do Fed é a dificuldade dos BCs de estimular a atividade econômica quando as taxas de juros de curto prazo estão a zero ou perto disso; quando, mesmo bulindo com taxas de prazo mais longo, as economias mal reagem. Qual a alternativa? Indicar que as taxas ficarão baixas por muito tempo, o que já vinha sendo feito na base de conversa (“forward guidance”), agora formalizada: a meta de inflação será encarada de modo muito mais flexível.

Em suma, acredita-se que seja possível reduzir a volatilidade econômica se existir uma compreensão de que a inflação vai flutuar em torno de certo nível (baixo), por vezes abaixo, por vezes acima, sem levar o BC a adotar medidas dramáticas.

Não é uma lição a ser imediatamente aproveitada no Brasil, ocioso dizer. No entanto, o experimentalismo pragmático que se tem visto desde 2008, mais por precisão do que por boniteza, poderia inspirar também nossos economistas.


Vinicius Torres Freire: Doria teve a péssima ideia de fazer um rapa nas universidades e na ciência de SP

Governo estadual teve a má ideia de tapar déficit com dinheiro de ciência e pesquisa

O governo de João Doria quer fazer um rapa nos fundos das três universidades estaduais, USP, Unicamp e Unesp, e na Fapesp, a fundação que financia pesquisa científica. Quer raspar o tacho do dinheiro que a contabilidade chama de “superávit financeiro”. Na conta dos balanços de 2019, trata-se de R$ 1,5 bilhão. O Orçamento do governo estadual é de R$ 239 bilhões. O déficit de 2020 está estimado em uns R$ 10 bilhões.

O plano vai abalar as universidades e arrebentar a ciência paulista, que faz boa parte da pesquisa nacional, que está sendo arrebentada por Jair Bolsonaro. Além do mais, o projeto paulista parece ilegal, pois universidades têm autonomia. Deve ser emendado na Assembleia Legislativa. Ainda assim.

Do ponto de vista da administração pública, é um incentivo ao desperdício e à falta de planejamento. Em tese, essa faca no pescoço induz o gestor a imediatismos corporativos, como torrar o dinheiro enquanto pode, antes que o Estado leve o que eventualmente possa sobrar. Logo, prejudica planos de investimento a longo prazo, plurianuais, e outras prudências e eficiências no uso dos recursos.

Esse “superávit financeiro” consiste basicamente de caixa e equivalentes de caixa. Mais não se sabe sobre esses dinheiros, pois os balanços das universidades e da Fapesp não especificam a natureza das reservas. Essas e outras satisfações poderiam constar das notas explicativas, por falar nisso, que são pouco mais do que citações da lei e de normas contábeis. Não explicam nada.
A Fapesp diz em público que esses dinheiros estão reservados e comprometidos com o pagamento futuro de projetos em andamento. Seja como for, a fundação e as universidades precisam de reservas.

O rapa na ciência faz parte de um pacotaço fiscal. O governo Doria diz que o estado está na pindaíba e que seria injusto não usar essas “sobras” das universidades e da Fapesp em gastos essenciais, em especial com pobres. Pode ser, mas com esse argumento também se pode fechar a universidade.

Quais outros recursos estão “sobrando”? A gente não sabe. Doria pretende diminuir incentivos fiscais (favores com o ICMS), fechar autarquias e assemelhados e demitir parte de seus funcionários. No projeto de lei, não mostrou as contas, o que é uma atitude que não presta. O projeto coloca em questão a utilidade de manter certas instituições, o que parece razoável, dada a multiplicidade de burocracias, e pede autorização para privatizar outras tantas, mas não explica em que condições serão prestados certos serviços, o que não é razoável.

As universidades estão no aperto em parte porque fizeram bobagem nos anos de bonança, de crescimento e arrecadação alta (as universidades paulistas têm direito a uma porcentagem fixa da arrecadação estadual). Elevaram despesas fixas (basicamente salários), tendo receitas que flutuam com o ciclo econômico. É assim que o governo do estado do Rio de Janeiro vai à falência ano sim, outro também.

As universidades são autônomas, mas não para fazer besteira, embora não exista um sistema racional de controle, um método que não submeta as universidades à politicagem e a desmandos de governantes chucros. Seria conveniente ter uma regra “anticíclica”: em anos bons de receita de impostos, seria necessário colocar o dinheiro em um fundo, por exemplo.

Agora, as universidades estão fazendo reservas, um “fundo”. A Fapesp de fato faz planos de médio prazo. O governo do estado quer arrombar uma porta de cofre que estava sendo consertada.


Vinicius Torres Freire: O teto tem de cair, mas não com a fritura de Guedes e gambiarras eleitoreiras

Limite de gastos precisa de reforma profunda, mas governismo tenta avacalhar

As feias necessidades politizaram de modo imediato e ruim a discussão do teto de gastos: a necessidade da pobreza ora atenuada pelos auxílios emergenciais e a necessidade eleitoreira de Jair Bolsonaro.

Não haverá Renda Brasil sem um talho fundo em outras despesas sociais ou implosão do teto; não haverá nem breve temporada de investimentos “em obras” sem gambiarra para burlar o limite de gastos.

Essa tensão, como é óbvio, resultou na tentativa de neutralizar ou fritar Paulo Guedes a fim de dar um jeitinho no teto. Em decorrência, surgiu uma campanha reativa de defesa do teto que é muito razoável até certo limite, que é o de impedir uma avacalhação politiqueira do limite constitucional de gastos federais. Daí em diante, o movimento pende para a sacralização do que é apenas uma regra pragmática.

No caso de Bolsonaro e de seus novos amigos, a politização vulgar é bem evidente. Guedes apenas não foi chutado para escanteio ou para fora do estádio porque até este governo parece perceber que derrubar o teto de modo muito descarado seria contraproducente. Ou seja, teria efeitos econômicos negativos imediatos.

Mas Bolsonaro e seus aliados continuam com um problema eleitoral. O teto continua com seus problemas congênitos —mais dia, menos dia, será inviável econômica, social e politicamente. Logo, é preciso impedir a avacalhação do limite de gastos e ao mesmo tempo pensar em como reformá-lo.

Tal reforma, no entanto, exigiria um governo com um programa sério, profundo, e capacidade de negociar acordos amplos. Seria necessária uma política em que tal negociação fosse possível, mas o debate político está entre a paralisia e a imundície avacalhada.

Para o bem ou para o mal, o teto fazia efeitos em câmera lenta. A ruína de estradas, hospitais e pesquisa progrediria de modo gradual, afora algum desabamento. O corte do auxílio emergencial pode ser explosivo, porém.

Bolsonaro terá seu Renda Brasil apenas se der cabo do abono salarial, benefício anual de até meio salário mínimo para uns 23 milhões de trabalhadores, se der cabo do seguro-desemprego sazonal para pescadores e se cancelar algumas concessões tributárias. Difícil.

Haverá obras extras em quantidade perceptível, mas muito insuficiente, apenas se a manobra fura-teto tiver sucesso, o que provocará efeitos colaterais negativos.

Em si mesmo, o teto é inviável, como se sabia desde 2016. Mesmo que se reajuste o salário mínimo apenas pela inflação, que os servidores não tenham nem correção da inflação, que venham cortes de salários, não haverá dinheiro para aumentar investimentos. O funcionamento do governo (verba de saúde, pesquisa, universidade etc.) estará comprometido, para dizer o mínimo.

Economistas como Fabio Giambiagi, Guilherme Tinoco ou Bráulio Borges, para citar apenas alguns, têm feito sugestões sérias de mudança. Derrubar o teto, sem mais, é suicídio; sacralizá-lo é erro, tentativa de abafar uma discussão inevitável ou um modo de não explicitar um projeto puro e simples de redução do tamanho do Estado.

Difícil imaginar mudança que não combine limite de despesas com servidores, grande aumento de eficiência, contenção de reajustes do mínimo e da Previdência, gasto adicional em renda mínima, aumento e redistribuição de carga tributária, mais dinheiro para investimento público e alguma regra nova de teto.

Nota-se, pois, o tamanho da revolução que seria uma mudança séria. A reviravolta dessas entranhas é necessária, no entanto.


Vinicius Torres Freire: Fatalismo, pobreza e alívio da reabertura ajudam Bolsonaro

Oposição ficou consternada com o aumento da popularidade presidencial

Muita gente que se opõe a Jair Bolsonaro ficou consternada com o aumento da popularidade presidencial. Não deveria, não tanto, pois havia indícios do que veio, enfim, a ser confirmado pelo Datafolha. Não levou também em conta o fato de que o prestígio de presidentes eleitos não se esboroa facilmente ou pelos motivos desejados pelos oposicionistas.

Os números da pesquisa permitem especular de modo razoável que a melhora da avaliação de Bolsonaro parece se dever a três efeitos: descompressão, pobreza e fatalismo.

O efeito descompressão fica evidente no sentimento declarado de alívio. O Datafolha perguntou se, de forma geral, a situação do coronavírus no Brasil está melhorando ou está piorando. Em fins de maio, a situação melhorava na opinião de 28% e piorava para 65%.

No início deste agosto, melhorava para 46% e piorava para 43%, avaliação constante não importa a classe de renda ou nível de instrução. Nesse intervalo de tempo, o número oficial de mortos passou de 24 mil para 104 mil.

Nessas semanas, pagou-se muito auxílio emergencial, o comércio voltou ao nível de vendas anterior à calamidade, houve reabertura econômica, gente de volta às ruas e disseminou-se algum sentimento de fuga da prisão e de normalidade no desastre.

Quanto ao morticínio, pode ser revoltante, mas não desarrazoado, dizer que o número de vítimas talvez não abale a maioria de modo decisivo. Ou seja, 10 milhões ou 20 milhões choram pelos 100 mil parentes e amigos que se foram, levados pelo vírus. O país tem 212 milhões de habitantes e habituou-se a 80 mil mortes anuais no trânsito e por homicídio, por exemplo.

Pode parecer uma explicação de mentalidade bolsonariana. Mas este é um país que elegeu Bolsonaro faz menos de dois anos, tempo em que também foi possível conhecer muito bem as ideias de morte do presidente e talvez gostar delas.

O efeito pobreza é o agora mui sabido aumento do prestígio presidencial entre os mais pobres, salvos do desespero pelo auxílio votado pelo Congresso.

Em dezembro de 2019, o governo Bolsonaro era ótimo/bom para 30%; ruim/péssimo para 36%; agora em agosto, respectivamente 37% e 34%. Dos sete pontos extras na nota ótimo/bom, quase 90% vieram da melhoria da avaliação presidencial entre famílias que ganham menos de dois salários mínimos (cerca de 50% da amostra do Datafolha). Mesmo assim, ainda é o grupo de renda mais crítico de Bolsonaro.

O efeito pobreza vai perdurar? Depende do efeito gratidão depois que os auxílios forem terminados ou reduzidos, da retomada econômica e do compromisso que Bolsonaro terá com os mais pobres. Mas o auxílio mexeu com as entranhas políticas e socioeconômicas do país.

Há o efeito fatalismo. Para 22%, nada que o país fizesse evitaria as mais de 100 mil mortes. Outros 6% não sabem o que dizer a respeito. Então, um de cada quatro brasileiros não imagina que algo poderia ser feito para evitar o morticínio. Para outros 24%, fez-se o que era necessário. Mais da metade do país, pois, é em alguma medida fatalista ou assim ficou, entorpecida talvez pela devastação também psicológica causada pela epidemia.

Para arrematar, note-se que o comportamento público de Bolsonaro e seu governo mudaram. O presidente produz menos notícias negativas sobre si mesmo e reorientou sua campanha eleitoral permanente.

Talvez ele e seu governo tenham aprendido alguma coisa, o que não foi o caso da oposição, que ainda quase nada sabe ou quer saber dos motivos de quem vota em Bolsonaro.


Vinicius Torres Freire: Chororô liberal e o desgoverno Bolsonaro

Fracassos do reformismo se devem à desordem política e administrativa do Planalto

O episódio da “debandada” provocou um chororô dos liberais, além de escancarar intrigas no Ministério da Economia.

Paulo Guedes forçou um recuo dos “fura-teto”, mas tem dificuldade de avançar porque ele mesmo não tem plano organizado, porque o governo não tem iniciativa, programa, competência e está dividido quanto ao que fazer da economia. Se não fosse por um general “fura-teto” e pelo Congresso, Jair Bolsonaro e seus “liberais” estariam com uma corda no pescoço.

Guedes depende de conveniências menores de Bolsonaro e do programa passivo do comando da Câmara. Do pouco que sai do Planalto, Rodrigo Maia e seu grupo vetam ou autorizam o que pode tramitar —não há plano organizado em acordo com uma coalizão no Congresso.

Tais decisões talvez mudem um pouco de figura, pois todos os líderes do governo e da maioria são agora deputados e senadores do MDB e do PP; todos menos um foram ministros de Dilma Rousseff e de Michel Temer, aliás.

Os liberais reclamam que são minoritários, preteridos e tratados como corpos estranhos no malévolo paquiderme estatal. Queixam-se do “deep state”, burocratas que andariam por porões brasilienses a sabotar privatizações etc. Talvez devessem mandar um telegrama de protesto para Guedes, pois em tese o ministro nomeou sua equipe e toma decisões.

Talvez se lembrem também de que os governos “social-democratas” privatizaram mais do que eles, os liberais. Os “comunistas” do primeiro governo FHC, como diz Bolsonaro, quebraram o monopólio estatal do petróleo, venderam a Vale, as teles, ferrovias e uma estatal elétrica, pelo menos. Os de Itamar Franco abriram a economia e venderam a CSN, a Açominas, a Cosipa e a Embraer.

Não quer dizer que reformas liberalizantes não vão passar. Esse é o programa de parte do establishment e do movimento que depôs Dilma Rousseff. Lembram-se de 2015, da “Ponte para o Futuro” do MDB, de Temer e companhia? Pois é.

Essas coisas ganham impulso e perduram por mistura de interesses e da feia necessidade, de pressões sociais e econômicas, de ideias da alta burocracia e dos acadêmicos. Mesmo um teto de gastos, diferente desse que está aí, foi plano de Nelson Barbosa, ministro da Fazenda na fase terminal de Dilma 2, que até queria fazer umas reformas, mas foi sabotada pelo PSDB e largada pelo PT.

O pessoal “Ponte para o Futuro”, também uma coalizão contra a Lava Jato, e o puro creme do milho da “velha política” passaram a liderar o governo no Congresso e seguram a cabeça de Bolsonaro. O próprio Temer agora é “brother”.

Se Bolsonaro tivesse um programa de administração, teria feito um governo Temer 2, mas não entende nem queria saber de nada disso, não reuniu quadros (nem conhecia algum), não organizou bancada e não tem articulação social (mafuá em rede social é outra coisa). Dedica-se a fazer guerra ideológica autoritária e a resolver os problemas da família com a polícia.

Em suma, um problema de Guedes e dos “liberais” é que não há propriamente governo. Reclamam dos generais, mas foi deles, de Braga Netto em particular, o plano de criar uma coalizão parlamentar mínima, em abril, e alguma articulação administrativa.

Reclamam do Congresso, que aprovou a reforma da Previdência e o auxílio emergencial, contra o plano pífio dos “liberais” para a epidemia, sem o que o país estaria em convulsão social e econômica, com saques, mais fome e quebradeira ainda maior.

Se algo andar, será por causa dessa geringonça que tenta dar forma a algo que pareça um governo.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro ainda não tem dinheiro para bancar seu Bolsa Família

Governo não tem dinheiro para o programa, crucial na política e para a pobreza

O programa de renda básica de Jair Bolsonaro deve chegar a algo em torno de 19 milhões de famílias —atualmente, 14,3 milhões estão no Bolsa Família. É o que está na prancheta; é o que Paulo Guedes deu a entender nesta quinta-feira (5), em uma entrevista, ao mencionar o aumento estimado do número de beneficiários.

O programa por ora não está com uma cara muito diferente dos rascunhos do Renda Brasil, do final de 2019. A diferença é que, depois da epidemia, as expectativas em relação ao valor do benefício aumentaram. Antes da calamidade, o Bolsa Família pagava em média R$ 190 por família; o auxílio emergencial rende no mínimo R$ 600.

No final de 2019, o plano era pagar uns R$ 232 por família, em média, o que daria quase R$ 53 bilhões por ano (sem “13º”). O Bolsa Família pagou R$ 33,7 bilhões em 2019 (em termos reais, valor corrigido pela inflação). Faltariam uns R$ 20 bilhões, portanto. De onde viriam?

O abono salarial custou R$ 18 bilhões em 2019 (é um benefício anual de até um salário mínimo pago a trabalhadores formalizados que recebem menos que dois mínimos, em média). O seguro-defeso pagou R$ 2,85 bilhões (é um seguro desemprego para pescadores que não podem trabalhar em época de proibição sazonal de pesca, mas recebido por um monte de gente mais. É um rolo). Juntando, dá mais ou menos os R$ 20 bilhões. Guedes e equipe dizem faz tempo que querem pegar esses dinheiros e leva-los para um programa social que consideram mais eficiente.

Problemas:

  1. o fim do abono depende de emenda à Constituição (é direito definido no artigo 239);
  2. ainda que passe a emenda, levaria pelo menos um ano para que o benefício deixasse de ser pago (haveria direitos adquiridos) e, portanto, para que o dinheiro para o Renda Básica aparecesse;
  3. gente no Congresso não gosta da ideia de dar cabo do abono;
  4. muita gente no Congresso quer apenas reformar o seguro-defeso, reservando o benefício, dizem, a pescadores de fato.

Logo, não vai ser fácil arrumar esses R$ 20 bilhões. Além do mais, esse dinheiro extra bastaria para bancar um benefício de apenas R$ 232 por família, recorde-se. Mais de 65 milhões de pessoas recebem auxílio emergencial; no Renda Brasil, o dinheiro cairia na conta de umas 26 milhões de pessoas. A clientela seria diminuída e o valor do benefício também, o que é razoável, pois não há dinheiro, mas politicamente é um problema.

Aumentar imposto não adianta, pois a despesa está limitada pelo teto de gasto. Dentro do teto, seria possível arrumar alguns dinheiros com o fim de algumas reduções de impostos e de gambiarras do Orçamento federal.

Tirar dinheiro de outro lugar, no curto prazo, é difícil. Sairia de onde? Dos parcos recursos para investimento “em obras” (para as quais há uns R$ 40 bilhões reservados neste ano)? Cortar despesa significativa com salário de servidor, além de uma guerra, depende provavelmente de emenda constitucional.

Neste 2020, é possível estourar ainda mais as contas e pagar um benefício entre R$ 200 e R$ 300 até o final do ano, uma extensão do auxílio emergencial. O déficit ficaria no “orçamento de guerra” deste ano de calamidade. No ano que vem, não dá, a não ser que o período de calamidade ou coisa que o valha seja estendido. Mas Guedes jura para sua audiência que 2021 é ano de cumprimento do teto.

Fazer com que o Renda Brasil caiba no teto de gastos é um problema sério para algo que parecia uma solução para Bolsonaro: o benefício político da ampliação do Bolsa Família.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro, o comunista

Governo quer tributar 1% mais rico e Bolsa Família gordo; presidente faz comício no Nordeste

Jair Bolsonaro fez caravana pelo Nordeste. Fez um minicomício em São Raimundo Nonato, sul do Piauí, cidade que está no quinto daquelas de menor desenvolvimento humano do país, segundo o ranking da Firjan, mas que muito progrediu nos anos lulistas. Inaugurou uma obra de abastecimento de água em Campo Alegre de Lourdes, na Bahia, ainda mais pobrinha que sua vizinha piauiense.

De dezembro de 2019 a junho de 2020, o Nordeste foi a única região em que Bolsonaro ganhou algum prestígio, segundo o Datafolha. Quando se trata de renda, apenas entre as famílias que ganham menos de dois salários mínimos o presidente ganhou pontos.

Os economistas de Bolsonaro querem tributar o 1% mais rico do país, embora também desejem uma CPMF, que não pega só a elite, pega 1%, pega geral, imposto especialmente detestado por banqueiros.

Paulo Guedes propôs um tributo que deve aumentar o custo de serviços consumidos pelos mais ricos (escola e saúde privadas, advogados etc.), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços. Seus economistas dizem pelos jornais que querem diminuir as deduções de saúde e educação no Imposto de Renda (em geral, coisa de ricos).

Querem tributar lucros e dividendos, o que vai mexer com profissionais que são empresas de si mesmo no Simples, entre outros, além de pegar parte do dinheiro que rendem aquelas ações da Bolsa. Querem uma alíquota de IR maior do que 27,5% para “pegar” quem ganha mais de R$ 36 mil (que está no 1%), como disse a esta Folha Guilherme Afif Domingos, assessor de Guedes, como se fora um líder do Occupy Faria Lima.

Guedes quer criar um Bolsa Família ampliado. É verdade que o dinheiro extra do seu Renda Brasil é por ora apenas um catadão de recursos de outros programas sociais. Mas já poderia discutir o assunto com sociólogos de esquerda.

Como todos os governos da esquerda que domina o Brasil faz 30 anos (de acordo com Guedes), Bolsonaro se alia ao PP e suas variantes de ontem, hoje e sempre. Pelo menos desde abril, corre o boato de que alguns de seus generais querem mais obras públicas, intervenção do Estado. O presidente aceitou a contragosto a reforma da Previdência, coitado.

O presidente agora ataca não apenas Sergio Moro, ex-cruzado e trânsfuga do bolsonarismo, mas também a Lava Jato e o lava-jatismo, tal como petistas. Por isso ganhou um “Fora, Bolsonaro” do Vem pra Rua, parte marchadeira da frente que depôs Dilma Rousseff.

Com essa ficha, um Jair qualquer passaria por “comunista” ou “esquerda lixo” nas redes insociáveis da extrema direita. Não é bem o caso, né, mas os planos de gastos e impostos do governo têm interesse político.

A CPMF não vai passar, repete Rodrigo Maia, mas Bolsonaro (e o próprio Maia) vão levar adiante a tributação dos mais ricos? A fim de abrir espaço para um programa de renda básica mais gordo e não mexer no teto, vão confiscar parte dos salários dos servidores federais (além de juízes e procuradores. Militares inclusive?)?

O protesto do 1% (ou dos 10%) vai derrubar parte relevante da reforma tributária? Ou vai ter “reforma na marra” e o Congresso vai pagar o preço de aumentar os impostos da “classe média” (como quase todos os ricos se chamam)?

Como não se trata de um governo normal ou racional, é difícil discutir direito tais assuntos. Mas as realidades da penúria e da sobrevivência político-eleitoral vão fazer Bolsonaro trombar com essas questões. Como dizia a propaganda do Exército, chega um momento em que o jovem tem de escolher a sua carreira.