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Vinicius Torres Freire: Calote em bancos está na mínima histórica, mas refresco pode acabar no Natal
É um mistério o que vai ser da economia e da política brasileiras se e quando o auxílio emergencial e outras ajudas acabarem, no final do ano. Uma das dúvidas é o que o vai acontecer com a inadimplência, atrasos no pagamento e calotes de empréstimos bancários.
A inadimplência jamais esteve em nível tão baixo desde março de 2011, o registro comparável mais antigo. O motivo não é difícil de entender, mas a situação ainda assim é impressionante, de modo positivo, dado o tamanho da calamidade neste 2020.
Dados do Banco Central, dos bancos e da Febraban indicam que o aumento do prazo de carência e outras renegociações aliviaram pelo menos temporariamente o serviço das dívidas, em particular para famílias de menor renda e empresas pequenas. Facilidades de empréstimos bancados ou regulados pelo governo também ajudaram, além do fato das taxas de juros mais baixas. O auxílio emergencial e o auxílio-salário seguraram a renda das famílias. Tudo isso em tese começa a vencer em dezembro.
Ainda assim, os bancos concedem mais crédito. O valor total dos empréstimos de dinheiro novo para as famílias cresce quase nada em relação ao ano passado, mas está em níveis próximos do que se viu nos meses pré-epidemia. No total, o valor das concessões de empréstimos do trimestre julho-setembro é maior do que no mesmo período do ano passado. O nível de endividamento das famílias (total de empréstimos em relação à renda) também é o mais alto desde 2005, quando começa essa série de dados do Banco Central.
Em suma, os bancos não apertaram a corda. Ao contrário.
Diz-se por aí que o valor das provisões bancárias aumentou –trata-se do dinheiro que os bancos separam para cobrir calotes, grosso modo. É verdade. Mas, pelo menos na média dos bancos, vem caindo desde junho (pela medida das provisões como proporção do total de empréstimos). Além do mais, as provisões subiram menos e para níveis relativamente mais baixos do que os registrados nas crises de 2008-2009 e no fundo da recessão de 2016.
Esses eram os números até setembro, segundo as estatísticas do Banco Central. Se essa situação vai durar é um mistério, como se escrevia no início destas linhas. Como também tantas vezes já se escreveu por aqui, o possível tombo de 2021 depende: 1) Da recuperação do emprego: haverá gente trabalhando e ganhando a ponto de compensar o baque do fim do auxílio? 2) Se haverá confiança para gastar a poupança acumulada pelas famílias, na média, neste ano; 3) Se os mais pobres, que gastam toda ou quase toda sua renda, puderam guardar algum; 4) Se famílias e empresas continuarão a tomar empréstimos, incentivadas por juros menores; 5) Duração da epidemia.
Entre os donos do dinheiro grosso, a confiança caiu, o que está explícito na alta das taxas de juros no atacadão de dinheiro, desde agosto, e no preço do dólar ainda nas alturas do degrau de R$ 5,60. Essa pressão financeira pode desanimar investimentos produtivos. A balbúrdia do governo pode assustar também consumidores. Os mais pobres terão ainda mais problemas se a carestia da comida continuar depois que o dinheirinho do auxílio acabar.
Praticamente não há governo nem para cuidar das emergências financeiras de curto prazo, menos ainda projeto de política econômica. Apenas depois da eleição vai se saber o que Jair Bolsonaro e turma vão aprontar. Por enquanto, estão ocupados com o dote do casamento com o centrão (ministérios) e, como sempre, com problemas policiais.
O risco feio, enfim, é esse, como de costume: Bolsonaro.
Vinicius Torres Freire: Na guerra da vacina e do general Maria Fofoca, bomba econômica está armada
O custo da comida ainda não incomoda porque ainda se pagam auxílios, mas se a carestia continuar e o povo perder esse dinheirinho, haverá problemas
A diversão está garantida nessas próximas semanas em que o pavio da bomba econômica continuará queimando, sem que o país em geral se importe muito. A diversão maior, no sentido de desvio de atenção, virá da guerra da vacina que ainda nem existe, das decisões que o Supremo deve tomar sobre a obrigação de tomá-la e da aprovação da "vacina chinesa paulista" pela Anvisa e pelo governo.
Enquanto isso, o centrão e alas do governo se ocupam de disputar cadeiras ministeriais. Jair Bolsonaro trata de sua preocupação maior, livrar filhos da cadeia. Parlamentares articulam a eleição dos novos comandos do Congresso.
Até fins de novembro, as eleições nos EUA e nas cidades brasileiras vão dizer qual o valor de mercado eleitoral de extremistas e lunáticos em geral.
Eventual derrota de Donald Trump e de candidatos bolsonaristas nas cidades maiores pode aumentar o passivo político de Bolsonaro, embora esse débito talvez não seja cobrado tão cedo.
O risco maior para o presidente é a política econômica, ora em estado de animação suspensa.
Parte do centrão e gente do governo disputam a cadeira do general Luiz Ramos, ministro da Secretaria de Governo. Com o general Braga Netto, ministro da Casa Civil, Ramos levou Bolsonaro a criar uma coalizão bastante pelo menos para evitar um impeachment.
Foi chamado na sexta-feira de Maria Fofoca pelo ministro do Mau Ambiente, Ricardo Salles, desafeto dos militares.
Não importa muito a rixa que detonou o mexerico vulgaríssimo, portanto condizente com este governo. Interessa que isso explicitou movimentos para decapitar Ramos. Outra disputa de boquinha-mor é a do Ministério do Desenvolvimento, que Bolsonaro estuda recriar. Enquanto o país morre, queima e se endivida, é disso que tratam no Planalto.
A revista Época revelou que Bolsonaro recorre à Polícia Federal, a seus espiões e a outros recursos do governo para cuidar de rolo de filho. É disso, talvez um crime de responsabilidade, que trata o presidente.
Não se liga muito para os sinais de infecção na economia. Desde fins de agosto, as taxas de juros subiram degraus e lá no alto ficaram. O dólar não baixa da casa perigosa dos R$ 5,60, dado o rebu incompetente de um governo endividado.
A combinação de desvalorização da moeda e de auxílio emergencial levou os preços dos alimentos às maiores altas em mais de década (como em 2008, 2013 e 2016).
O custo da comida ainda não incomoda de modo generalizado, como de costume, porque ainda se pagam auxílios. Se a carestia continuar e o povo perder esse dinheirinho, haverá problemas.
Juros de longo prazo e dólar foram às alturas em grande parte porque o país não tem Orçamento para 2021, porque pode ser que tenha até dois (um outro "emergencial") e porque os donos do dinheiro temem furos no teto de gastos. Bolsonaro e a elite política empurraram a discussão dessa crise para depois de novembro.
As soluções para o impasse orçamentário não são politicamente boas. Bolsonaro pode decidir estourar o orçamento, o que vai dar em besteira feia. Pode ignorar o auxílio aos pobres, o que vai dar em fome feia. Pode arrochar outrem a fim de financiar alguma renda básica. Terá de enfrentar reformas, como a politicamente divisiva mudança tributária, sem o que o país vai ficar mais encalacrado (não se trata de dizer que vai ficar melhor ou pior para esta ou aquela gente, mas ficará encalacrado).
Mesmo que não se tomem as piores decisões, a retomada da economia ainda será incerta. Mas a gente se diverte com outros horrores.
Vinicius Torres Freire: A 'vacina paulista' no outro lado do mundo
Indonésios correm, mas ainda não têm certeza de quando começam a usar a Coronavac
A Indonésia pode ser um dos primeiros países do mundo a vacinar sua população contra a Covid-19. De início, vai usar a mesma vacina comprada pelo governo paulista, a CoronaVac, da empresa chinesa Sinovac. Mas pretende começar uma vacinação emergencial e por ora apenas prevista para fins de novembro. Pode ser bem depois, talvez em janeiro ou depois. Não é bem como dizem por aqui.
Um ex-colega de faculdade deste jornalista trabalha no governo da Indonésia, embora não no ministério da Saúde. Conta que eles ficaram tão interessados no que se passa no Brasil como nós agora começamos a nos informar sobre o que se faz por lá com a “vacina paulista”.
A associação dos médicos e parlamentares indonésios dizem que o governo não deve se apressar e deve esperar a publicação dos testes. O próprio governo diz que precisa da aprovação da vigilância sanitária, permissão por ora apenas para vacinação emergencial, e das autoridades religiosas.
Meu ex-colega conta que a resistência às vacinas aumentou faz uns anos, depois de um rolo com a vacinação contra o sarampo. Certas autoridades islâmicas disseram então que a vacina talvez não fosse “halal”, permitida pela religião (talvez fosse contaminada por algum produto proibido pela lei religiosa). O rolo foi tamanho que as autorizações religiosas foram distribuídas por três instituições diferentes –cerca de 87% dos indonésios são muçulmanos.
Outra preocupação meio “pop” é se a vacina seria adequada às etnias indonésias (centenas) e apropriada para evitar o vírus que circula no país.
A vacinação vai começar em cerca de 9 milhões dos 270 milhões de indonésios, prioritariamente em trabalhadores de saúde ou em situação de risco, em pessoas de 18 a 59 anos, sem comorbidades. Os pesquisadores responsáveis pelos testes clínicos diziam no início deste mês, em entrevistas à imprensa local, que os primeiros exames de eficácia ficariam prontos apenas em dezembro. E então, como fica?
É esse o debate, diz meu ex-colega. Todo mundo quer a vacina, mas não quer ser cobaia, embora exista confiança na universidade, na estatal que vai fabricá-la e na vigilância sanitária, diz.
Brasil e Indonésia estão quase no mesmo estágio de teste da Coronavac. Os indonésios começaram a avaliação em agosto, três semanas depois do programa brasileiro. Há testes em estágios ainda mais preliminares na Turquia e um para começar no Chile. Os indonésios vão comprar a Coronavac e outras duas vacinas chinesas, além daquela desenvolvida pela Astra Zeneca e pela Universidade Oxford. Desenvolvem uma vacina nacional, que pretendem testar em massa a partir de meados do ano que vem.
A Indonésia conta muito menos mortos de Covid que o Brasil, 12.857, ante mais de 155 mil –em termos relativos, o número de vítimas por aqui é 15 vezes maior. O país é uma das 20 maiores economias do mundo. A renda (PIB) per capita do Brasil é 26% superior, o Índice de Desenvolvimento Humano é maior e a expectativa de vida também, embora não muito mais.
O país é uma democracia desde o fim da ditadura de Suharto (1966-1998). O presidente Joko “Jokowi” Widodo foi acusado de causar confusão na política anticoronavírus, de ter subestimado a doença etc., entrando em conflito com governos locais que impuseram medidas de distanciamento social. Mas Jokowi jogou a toalha ainda em abril. O governo central agora diz que, mesmo com a vacina, não será possível relaxar no distanciamento e no uso de máscaras.
Parece uma situação bem melhor do que a nossa. Né.
Vinicius Torres Freire: EUA ganham mais batalhas contra o 5G chinês e atacam também no Brasil
Mais países proíbem, oficialmente ou na prática, compra de equipamentos da Huawei
A em geral pacífica Suécia proibiu as teles do país de comprar equipamentos de infraestrutura de telecomunicações das chinesas Huawei e ZTE. Seguiu orientação de seus militares e do seu serviço de segurança. As empresas chinesas vão ficar fora também do 5G sueco.
E daí a Suécia? É mais um exemplo da lista agora bem relevante de países que baniram a tecnologia chinesa, oficialmente ou na prática. A restrição a essas empresas é uma discussão que ultrapassa a mera maluquice diplomática subalterna de Jair Bolsonaro.
Funcionários americanos estão oficialmente no Brasil para convencer o governo brasileiro a proibir a Huawei de fornecer equipamentos para as redes 5G. Até abril de 2021, devem ser leiloadas as frequências para 5G (“estradas” de dados) entre as teles.
Pelo menos desde 2012, há campanha americana contra as firmas chinesas que vendem infraestrutura de telecomunicações. A Huawei é a líder mundial do setor. Sob Donald Trump, a campanha se tornou conflito aberto. Entre outras medidas, Trump quer estrangular o fornecimento de softwares, chips e outras tecnologias para as empresas chinesas, além de criar rede de comunicação mundial “limpa”, livre de ciberameaças –isto é, sem participação da China.
O Japão não se comprometeu com os EUA, mas a empresa japonesa que usava a Huawei vai deixar de fazê-lo. O governo, de resto, quer aproveitar a oportunidade para aumentar a participação ínfima das companhias japonesas nesse mercado, assim como os sul-coreanos. A Índia parece que discretamente vai evitar as empresas da rival China e estimula a criação de tecnologia nacional.
A Alemanha prepara leis que, na prática, vão barrar as chinesas, plano que têm apoio dos três principais partidos do país, apesar da oposição de teles e de outras empresas alemãs, que exportam muito para a China.
O Reino Unido baniu as chinesas. A França não vai fazê-lo, mas seu serviço de cibersegurança baixou normas que inviabilizam a opção chinesa. Emmanuel Macron faz lobby pelas empresas europeias do ramo, Nokia e Ericsson, que dividem com a Huawei cerca de 75% desse mercado. A Itália discute o que fazer. A Espanha não baniu ninguém, mas, como em vários países, as teles se sentem pressionadas a mudar de fornecedor.
Em suma, o mercado para as empresas da China pode se limitar a partes da Ásia, do mundo islâmico, da América do Sul e da África. Empresas e mesmo governos da Europa dizem que vai ficar mais caro e demorado implementar o 5G sem a Huawei. Ainda assim, os americanos ganham batalhas importantes.
Os especialistas discutem o futuro da Huawei, destino que pode influenciar decisões de comprar seus equipamentos. Será econômica e tecnologicamente sufocada pela ofensiva dos EUA, ficando atrasada? Ou, ao contrário, o setor pode ter dificuldade de avançar sem a presença, patentes e colaboração tecnológica da gigante chinesa? A empresa pode tentar se virar com pesquisa própria ou com “vazamentos” de insumos e tecnologias?
Um fato é que essas empresas se tornaram assunto militar e de segurança. As acusações não vêm apenas dos EUA. Na página da Polícia de Segurança sueca, seu diretor diz em entrevista oficial que a China é uma das maiores ameaças à Suécia, que o governo chinês faz espionagem cibernética e rouba tecnologia a fim de promover seu desenvolvimento econômico e militar; que isso precisa ser levado em conta na legislação do 5G. Por lei, a agência reguladora sueca de comunicações tem de seguir orientações das Forças Armadas e do Serviço de Segurança.
Vinicius Torres Freire: Como vai a 'vacina chinesa' pelo mundo
Teste paulista é seguro, dizem cientistas; Brasil e EUA são maiores campos de prova
João Doria disse que a vacinação contra a Covid começa no dia 15 de dezembro em São Paulo, desde que seu governo tenha autorização da Anvisa. Em fins de março, a população paulista inteira estaria vacinada.
Até meados de dezembro, menos de dois meses, já será possível saber se a vacina é mesmo segura e funciona?
Duas pessoas envolvidas nos trabalhos dos testes científicos da Coronavac, a “vacina chinesa”, da Sinovac, dizem que sim.
Pelo menos em uma avaliação de uso emergencial, será possível ter dados para aplicar a vacina com segurança, embora o estudo de seu grau de proteção ainda vá depender de acompanhamento mais demorado —pelo menos até meados de 2021.
Os efeitos colaterais da vacinação com a Coronavac seriam raros ou leves, como os de uma vacina de gripe ou ainda menos, dizem esses pesquisadores de São Paulo.
Na opinião dessas pessoas, que não têm cargo político ou de direção superior, o governador paulista não está atropelando a análise científica. Dizem que o pessoal da Sinovac obviamente também não quereria colocar em risco sua reputação comercial e o prestígio diplomático da China com um desastre em país como o Brasil.
Observam que Doria correria o mesmo risco, na raia política, se avançasse o sinal.
Em suma, o prazo seria bem apertado, mas não maluco. No entanto, ninguém quis explicar quais são os critérios desse calendário da responsabilidade.
O Brasil e os Estados Unidos são os campos de prova de vacinas mais importantes do mundo, dadas a extensão e a gravidade da epidemia e o estágio em que estão os testes em fase três (o último antes da aprovação para uso geral ou regular da vacina).
Nos EUA, os testes começaram no dia 27 de julho. No Brasil, no dia 21 do mesmo mês.
A Coronavac está sendo testada apenas aqui, na Indonésia e na Turquia, que começou os exames em setembro. Nas próximas semanas, começa a ser avaliada no Chile. O acordo para o teste em Bangladesh deu chabu.
Logo, São Paulo e, por tabela, o Brasil estão por sua conta e risco de pioneirismo. Risco de grande sucesso inclusive.
Na Indonésia, país de 270 milhões de habitantes e algo mais de 12.500 mortes pela Covid, testes começaram em 11 de agosto.
A universidade e a estatal farmacêutica que fazem a pesquisa esperam concluir o acompanhamento das pessoas submetidas ao teste até o final de dezembro. O governo quer começar a vacinar um pouco antes disso, o que a Sinovac acha possível. Os indonésios também compraram vacinas de outras duas firmas chinesas. Desenvolvem ainda um produto nacional, com apoio coreano, a “vermelha e branca”, cores da bandeira do país.
A China fez também seus testes da Coronavac, mas afortunadamente não deve ter meios de verificar com facilidade o sucesso da vacinação em massa, pois o país quase não tem casos da doença. A imprensa chinesa diz que mais de 350 mil pessoas foram vacinadas no país até setembro. No final de junho, havia sido autorizada essa aplicação emergencial de quatro tipos de vacinas em pessoas que trabalham em situação de risco e nas empresas que desenvolvem os imunizantes.
Na semana que passou, a província de Zhejiang começou a oferecer justamente vacinas da Sinovac para a população em geral, com prioridade para profissionais de saúde, funcionários de portos, aeroportos, alfândegas e trabalhadores de serviços essenciais.
Se houver mais vacina, o interessado pode pagar 400 iuans (cerca de R$ 330) pelas duas doses, tomadas em intervalos de 14 a 28 dias.
Mas não há liberação oficial para a vacinação em massa.
Vinicius Torres Freire: Roubança do coronavírus expõe crise política maior no país
Cinco governadores estão ameaçados, mas corrupção é apenas parte do problema
A história repugnante do dinheiro sujo do senador Chico Rodrigues (DEM-RR) e o fato de essa criatura ser amiga de Jair Bolsonaro ofuscaram um outro fato. O político é acusado de desviar recursos para o combate à Covid, que teria destinado a empresas de parentes e agregados.
Acusações de roubança de dinheiro reservado para atenuar a epidemia ameaçam o mandato de pelo menos cinco governadores, três deles da “nova política”. A cúpula de pelo menos nove governos estaduais é investigada, além de dezenas de prefeituras. Além do problema do roubo, em si, essas crises político-policiais explicitam mais uma vez quão longe do fim está a ruína brasileira.
Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, foi afastado, deve ser deposto e provavelmente preso. Foi surfista eleitoral do bolsonarismo e é do PSC, partido religioso agregado do governo.
O impeachment quase certo de Carlos Moisés, de Santa Catarina, deve ser votado na quarta-feira que vem. É do PSL que elegeu Bolsonaro, partido ora cortado ao meio feito uma laranja.
Um processo de impeachment contra Wilson Lima, do PSL do Amazonas, foi arquivado pelo voto de deputados estaduais, mas o governador é investigado pela Polícia Federal, que uma vez pediu sua prisão, negada pelo STJ. Sua secretária de Saúde passou um tempo na cadeia.
Ibaneis Rocha, do Distrito Federal e do MDB, toureia a Câmara Legislativa (a Assembleia distrital) a fim de evitar a CPI da Pandemia e abanar fumaças de impeachment. Seu secretário de Saúde foi preso. Sim, rolos nos negócios da Covid.
Embora não se saiba a dimensão dos desvios, roubou-se de tudo um pouco na pandemia, em vilarejo e em capital de estado: na compra de máscaras, aventais, fraldas para pacientes, testes, vários fajutos, e de respiradores, alguns imprestáveis. Roubou-se, diz a polícia, na contratação de leitos de hospitais particulares, de hospitais de campanha e de organizações sociais privadas que deveriam gerir a saúde de modo mais eficiente. Hum.
A súbita fartura de dinheiro e as contratações emergenciais facilitaram a lambança, embora não a expliquem. Os seis anos de lavajatismo não passaram o país a limpo, claro, e a administração pública continua uma zorra mesmo quando não se rouba, vide o caso de tanto estado criminosamente falido.
A roubança, por si só, não explica a derrubada de governadores. O farisaísmo e a demagogia moralista ajudaram a levar ao poder gente sem articulação social e política, sem conexões com quadros administrativos e intelectuais relevantes, quando não evidentemente lunática. Para dar um exemplo mesquinho de horro, 2% mais de habilidade política do que Witzel foi o bastante para manter Marcelo Crivella (Republicanos, bolsonaristas) na cadeira de prefeito do Rio.
O desmonte ruinoso da política e das instituições já dura faz sete anos e, como dizia o clichê jornalístico sobre festas de Carnaval, não tem hora para acabar, vide a degradação sem fim do Supremo. Bárbaros da “nova política” e o patriciado cafona da “velha política” são candidatos a tomar as prefeituras em novembro.
Cruzadas moralistas não dão conta de reconstruir a administração pública ou de vaciná-la contra bucaneiros privados. Menos ainda são capazes de abrir o sistema político para gente nova e de repensar um Estado que gasta muito, mal e agasalha interesse privado grosso, escândalos muito maiores, em qualquer aspecto, do que a corrupção
Vinicius Torres Freire: TI e finança se viram na crise e vida nas cidades continua crítica
Tecnologia de informação estão no azul e vida urbana está longe de se recuperar
As empresas de tecnologia de informação faturaram mais em agosto do que logo antes do início da epidemia, em fevereiro. É alta pequena, algo mais do que 2%, e esse tipo de serviço era o que crescia mais rápido antes da calamidade, mostram os dados do IBGE.
Dada a devastação na média do setor de serviços, é um alívio, compartilhado com o mercado financeiro, aliás. Não por acaso, volta a se ouvir das firmas de TI que falta gente para contratar.
Para voltar ao nível de faturamento de fevereiro, o conjunto dos serviços precisa ainda crescer quase 11%. No caso dos ditos “serviços às famílias”, terríveis 72%. No rótulo “serviços às famílias” estão hotéis, restaurantes e similares, cultura, recreação, lazer, esportes, cursos, academias, lavanderias, salões de beleza e afins.
Em um resumo muito estilizado, dá para dizer que a transformação tecnológica é prioridade e continua; a vida nas cidades, nas ruas, continua muito abaixo do que se chamava de normal, no início do ano.
Para o IBGE, a categoria “serviços de tecnologia de informação” inclui desenvolvimento de programas de computador, consultoria em TI, tratamento de dados, provedores de conteúdo, portais e hospedagem na internet. É intuitivo que a demanda desses serviços tenha resistido. A mudança tecnológica é forte, empresas tiveram de reforçar ou expandir sua infraestrutura de TI para trabalhar durante o distanciamento e devem ter experimentado meios de poupar custos por causa do choque do vírus.
Empresas talvez tenham descoberto que podem manter parte de seus empregados em teletrabalho permanente, que podem contratar empregados em outra região ou até país, contratar por empreitada (por horas ou tarefa), substituir trabalho por automação ou terceirizar. Parte do trabalho no “home office” pode ser uberizado.
Em um primeiro momento, pelo menos, pode haver impacto negativo no número de posto de trabalho, embora cortes em um setor não impliquem necessariamente redução geral do nível de emprego. A vida nas cidades pode mudar, no entanto, se não houver alternativas à vitalidade urbana dessas aglomerações de trabalhadores que são as empresas tradicionais, digamos. Pode ser que a queda de preços de escritórios, por exemplo, estimule o surgimento de ocupações desses espaços por outros negócios ou finalidades. Mas não sabemos.
Sabemos que a vida nas cidades ainda está em situação crítica. O movimento de passageiros no Metrô de São Paulo em setembro ainda era 43% inferior ao do mesmo mês do ano passado (em abril, fundo do poço, fora 80% menor). Em agosto, na CPTM, a empresa de trens metropolitanos, 47% menor em relação a 2019. A venda de gasolina no país em agosto era 10% menor que em agosto do ano passado, dado da ANP.
Em outubro, as vendas nos postos de gasolina com cartão, dados da Cielo, ainda estavam 13% abaixo do registrado em fevereiro. Em bares e restaurantes, 26% abaixo. O tráfego de veículos leves pelas estradas privatizadas em setembro era 8% menor que em 2019, dado da ABCR.
A cidade ainda está travada, sete meses depois do paradão da praga do vírus. Menos viagens de metrô ou carro, escolas fechadas e teletrabalho resultam em menos gente a comprar nas lojas de rua e dos ambulantes, a comer nos restaurantes (majoritariamente “quilos”, lanchonetes e similares), a ir ao barbeiro, ao cinema, ao curso, à lavandeira ou a fazer qualquer atividade corriqueira dessas que põem sangue para circular na vida das cidades e na economia. Não dá para todo mundo ser entregador de aplicativo.
Vinicius Torres Freire: A teoria do esgoto de Bolsonaro e Russomanno
Problemas graves borbulham, podem ferver e país parece ainda mais anestesiado
Celso Russomano (Republicanos) é o candidato de Jair Bolsonaro e da Igreja Universal à prefeitura de São Paulo. Disse a empresários da Associação Comercial desta cidade que os moradores de rua podem ser “mais resistentes do que a gente” ao coronavírus. Como não pegaram Covid em massa, diz o candidato, talvez tenham a imunidade das ruas, onde “convivem o tempo todo” e não têm como tomar banho todos os dias.
Para dizer a coisa de modo sarcástico, é uma teoria higienista ao contrário. Existe “a gente” e existem “eles”, os sem-banho, talvez imunizados pela aglomeração em uma espécie de espurcícia salubre. É uma variante da teoria do esgoto, de Bolsonaro.
Em 26 de março, quando ainda estavam para morrer 150 mil pessoas de Covid, o presidente desta República esgotada dizia o seguinte: “… o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele. Eu acho até que muita gente já foi infectada no Brasil, há poucas semanas ou meses, e ele já tem anticorpos que ajuda a não proliferar isso daí”.
Bolsonaro e Russomano devem se banhar em alguma fonte de sabedoria estranha para “a gente” que esperava alguma revolta ou pelo menos comiseração por causa do morticínio. A indiferença, quando não troça, não causa danos relevantes ao prestígio “deles”. Não há organização ou interesse políticos suficientes para cobrar consequências dessas barbaridades.
Os poucos sinais de ira manifesta e coletiva contra o governo se esvaneceram desde julho. Não houve tumulto social algum, menos ainda saques, o que é fácil de entender. Os auxílios emergenciais mais do que cobriram a perda de renda dos mais pobres, na média, embora pesquisas registrem o aumento do número de pessoas que padecem de fome e o emprego para o povo miúdo não venha reaparecendo.
Mesmo as tretas, sururus e indignações entre as elites se dissipam rapidamente, embora alguns de seus motivos continuem a queimar ou ferver nos subterrâneos. Assim que chegaram algumas chuvas, foram passando os protestos mais ruidosos contra as queimadas e outras destruições da natureza. Parece que faz tempo, mas foi no final de setembro que o governo e seu centrão anunciou com estrondo e cara de pau que financiaria um Bolsa Família encorpado com uma pedalada, com o calote dos precatórios.
Como não há oposição política organizada ou partidos políticos com alguma articulação social mais relevante e extensa, tais reações em parte se dissolvem na espuma das mídias sociais, onde a cada minuto há nova maré alta de sujeira e bobagem.
É ilusão de que tudo passa, porém. Parte da finança e da grande empresa se organizou para evitar danos maiores da política do mau ambiente de Bolsonaro, por exemplo. Por falar em finança, as taxas de juros estão quase no mesmo nível para onde pularam no anúncio da pedalada dos precatórios. A degradação financeira e a desconfiança no país estão borbulhando e podem ferver.
Decisões sobre assuntos centrais e urgentes da política econômica foram adiados “sine die”: se haverá burla do teto, se o talho de mais de meio trilhão no gasto federal pode provocar recaída econômica, se haverá “reformas”, se haverá auxílios para os famintos de 2021, sem emprego, se o Brasil será rebaixado à última categoria dos párias ambientais e diplomáticos etc.
O país está anestesiado, imune à indignação geral, talvez por ter se acostumado à aglomeração de sujeira juntada por governantes e candidatos bárbaros.
Vinicius Torres Freire: Pense em Maria, 109, que o vírus levou
Epidemia vai se arrastar e já pode ter matado quase 1 em 100 idosos de São Paulo
Duas mulheres de 109 anos morreram de Covid na cidade de São Paulo. A doença levou 46 paulistanos de cem anos ou mais.
A gente sabe que esta é uma peste ainda mais cruel com os idosos. As pessoas de mais de 65 anos são cerca de 75% dos mortos pela doença tanto aqui na cidade como no estado de São Paulo. Mas a gente vai bulir nas estatísticas por outros motivos e vê lá então que duas paulistanas de 109 anos morreram de Covid. É outra história.
Dá o que pensar: nessas mulheres, no paulistano de 104 anos que o vírus levou, nessa morte muitas vezes dolorosa e sempre solitária, de nenhuma despedida. Penso na minha avó Maria, que morreu aos 101, antes desta praga, que esteve muito bem até pouco antes de partir, quando então ainda cozinhava e teria ido à feira sozinha, se deixassem.
Penso nas outras Marias centenárias ou nem perto disso, todas muito ameaçadas pela indiferença geral e crescente, que não deve diminuir agora que São Paulo entrou na “fase verde” da epidemia.
Penso nos amigos e nos parentes do homem de Man Bac.
Ele viveu faz mais de 4 mil anos no que é hoje o Vietnã. Arqueólogos descobriram que esse homem sofria de um mal que o deixou paralisado da cintura para baixo desde antes da adolescência. Quase não podia mexer os braços, se tanto, ou se alimentar sozinho, mas sobreviveu pelo menos uma década depois do ataque da doença.
Sua gente cuidou dele, pessoas que não tinham quase nada, que viviam apenas de caça, pesca e talvez criassem uns porcos meio selvagens.
Há outras histórias assim, de neandertais de 45 mil anos atrás ou de indígenas da Flórida de 7.000 anos.
“E daí?”, diria um ogro tal como um desses que nos governam e que não são capazes de uma palavra compassiva, que dirá do sacrifício amoroso desses nossos parentes da pré-história.
Daí que a epidemia está longe de terminar. Ainda podemos nos redimir um pouco do nosso barbarismo. O vírus continua a matar diariamente cerca de 700 pessoas no Brasil. Na cidade de São Paulo, são mais de 20 por dia. Nenhuma doença mata tanto assim. As mais letais, infarto e pneumonias, levavam 20 paulistanos por dia antes da calamidade do vírus.
Pelo menos cerca 0,6% dos moradores de São Paulo com mais de 65 anos perderam a vida para a Covid. Ainda não está chocado? É pelo menos 1 de cada 169 paulistanos com mais de 65. Pode ser mais, se considerados também os casos suspeitos: 1 de cada 114.
Sim, o pico da doença nesta cidade aconteceu no início de junho, quando morriam em média 120 pessoas por dia por causa do coronavírus. Sim, como muita gente deve ter ouvido tantas vezes, o risco é muito baixo para quem tem menos de 50 anos. É baixo o risco de morrer, mas não o de espalhar morte, o que deveria ser muito sabido também.
Se o argumento mortal não basta, pense que, quanto mais a epidemia se arrastar, por mais tempo ficará travada a vida nas cidades e, assim, o ganha-pão de tanta gente, a mais pobre em particular.
A peste e esses tipos que nos governam fazem pensar também em Tucídides, o historiador, um grande escritor e também um militar. Lutou em guerra de verdade. Não passou a vida vadiando como escoteiro marmanjo até ser expulso da tropa por baixezas várias.
O quase sempre comedido Tucídides escreveu com horror e desamparo sobre os montes de mortos largados sem cerimônia, vítimas de uma praga sem remédio na Atenas de 430 a.C.
Pense nos gregos, pense no homem de Man Bac. Pense em “Maria”, 109, que o vírus levou e que um dia foi bela e jovem como você.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro adia o Brasil para dezembro, enquanto acerta casório com o centrão
Economia está em suspenso e depende de acordos políticos do presidente
A política adiou para dezembro a grande decisão relevante da economia pelos próximos meses ou anos. Isto é, se vai ou não haver mexida ou gambiarra no teto de gastos. Como Jair Bolsonaro deixou o assunto para depois das eleições municipais, seria razoável especular que ele pretende financiar o Renda Brasil com algum arrocho de outra despesa social e de servidores. Mas Bolsonaro também continua a negociar o dote de seu casamento com o centrão. O acordo inclui conversa de desmembramento do ministério da Economia de Paulo Guedes, retoques na política econômica e a disputa do comando da Câmara em 2021. É política, política, política –e tem mais.
Até lá, fica malparada a situação das taxas de juros em alta, uma das duas notícias econômicas mais importantes desde meados do ano. A outra é a despiora da economia, que continua mais rápida do que se esperava, embora não se saiba se dura até dezembro.
Os resultados do comércio em agosto foram, na média, muito bons. Mas apenas daqui um ou dois meses vamos saber se a retomada econômica vai perder ritmo com a diminuição dos auxílios emergenciais e se o nível de emprego vai crescer o bastante para compensar o corte desses benefícios. Parte dessa retomada depende ainda de epidemia e da vacina.
Na política, o resultado da eleição americana e das disputas municipais podem indicar como anda o valor de mercado eleitoral da psicopatia política. No caso de derrota do trumpismo e de suas variantes periféricas, pode haver um desincentivo ao reacionarismo lunático, no entanto com efeitos de médio prazo.
De imediato, mais importante é saber se o casamento de Bolsonaro com o centrão vai lascar ainda mais poder de Guedes e do “programa liberal”. Importa saber o tamanho e o lugar do desprestígio. Vai envolver aumento de despesa? Vai apenas entregar a partidos aliados a negociação de lobbies de empresas, como ocorreria no caso da recriação de ministérios tais como o do Trabalho e do Desenvolvimento?
Ainda se entende mal como essa conversa de ministérios se relaciona a eleição do comando da Câmara em 2021. De qualquer modo, preste-se atenção. A palermice do comando político de Dilma Rousseff na eleição da Câmara em 2015 foi o começo do fim da presidente.
Na economia, não acontece mais grande coisa. Não há um grande ciclo de investimentos a ponto de deslanchar. As mudanças no gás, no petróleo, no saneamento e concessões dependem ainda de um monte de regulações adicionais, da confiança de que não são regras para inglês ver e da expectativa de algum crescimento para que apareça o dinheiro para o investimento. Não vai acontecer nada até 2022, e olhe lá.
Não há outro projeto que mexa decisivamente com a economia. Mesmo boas reformas, ainda que apenas do ponto de vista mercadista, vão demorar e teriam efeito incremental.
Sim, um pacote completo de arrocho fiscal e “reformas” poderia animar os donos do dinheiro, evitar um revertério decisivo nos juros e garantir uma das condições da continuação da despiora. Mas vamos saber da perspectiva dessas decisões apenas em dezembro, com algum resultado legislativo visível já bem entrado 2021 e consequências práticas ainda mais tardias. Isto é, se esse “programa reformista” der certo e se a economia não embicar para baixo com o corte de mais de meio trilhão de gastos do governo de 2020 para 2021.
Assim, afora novas ocorrências policiais na familiocracia, o Brasil de daqui a pouco depende do grande diálogo político de Jair Bolsonaro com o centrão.
Vinicius Torres Freire: Sobra dinheiro na poupança, mas não se sabe se todo mundo volta a gastar
Reservas podem compensar fim dos auxílios, mas não se sabe se todo mundo volta a gastar
Está sobrando dinheiro na caderneta de poupança e aumentou a poupança no país durante a epidemia, como bem se sabe. O que vai ser feito desse dinheiro nos próximos meses vai influenciar o ritmo da despiora da atividade econômica.
Supõe-se que o gasto dessa poupança extra possa compensar, em parte, uma baixa no consumo provocada pela redução do valor do auxílio emergencial e de seu fim, previsto para dezembro. Mas pode ser que as coisas não funcionem assim, como em uma balança de pratos; o que sai por uma porta talvez não seja compensado pelo que entra pela outra.
Antes de mais nada, note-se que o valor dos recursos depositados na caderneta de poupança aumentou R$ 163,7 bilhões de setembro de 2019 para setembro de 2020 (em termos reais, considerada a inflação). Desconte-se desse total o valor dos depósitos que teriam ocorrido “normalmente” (no ritmo em que vinham no anterior ao do início da pandemia). Ainda seriam R$ 143,6 bilhões a mais, em um ano. Equivale a 2% do PIB. É muito dinheiro.
Poupança, ocioso dizer, não significa “depósitos na caderneta de poupança”, mas o que deixou de ser consumido, dada a renda disponível. Além do mais, as pessoas podem ter deixado o dinheiro até no colchão. Mais provável, o guardaram em um fundo de renda fixa ou em alguns tipos de título do Tesouro Direto, para citar duas versões mais “pop” de uma espécie de conta remunerada. Os mais remediados ou ricos, em investimentos mais complexos.
O conjunto inteiro de fundos de investimento captou R$ 178 bilhões nos 12 meses até agosto de 2020, segundo dados da Anbima (excluídos os fundos ditos estruturados). Mas o patrimônio dos fundos fica perto de R$ 6 trilhões; o da poupança, de R$ 1 trilhão. Logo, o aumento dos depósitos na poupança foi brutal.
Faça-se um exercício muito simples do que “tem para gastar” no país, poupado em cadernetas, opção provável dos mais pobres, que não raro as utilizam como conta corrente. O valor dos auxílios emergenciais e do benefício de manutenção de emprego foi de R$ 49,8 bilhões por mês (média de julho e agosto). Mal e mal, o excesso da caderneta banca o equivalente à renda de três meses de vida sem esses auxílios. Considerado o pagamento dos auxílios de R$ 300, digamos que o “excesso” de depósitos nas cadernetas compensaria a perda de renda até fevereiro.
Questão: as pessoas vão gastar essas e outras reservas? As mais pobres vão. Mas, primeiro, não sabemos quem guardou dinheiro, para começar. Segundo, quem guardou por precaução pode continuar preocupado, pois a epidemia desacelera, mas vai longe. Terceiro, o brasileiro escaldado por sete anos de crise pode ficar na retranca até que veja algum sinal de terra econômica à vista.
Há meses, faz-se a conta de quanto o rendimento do trabalho precisa crescer a fim de compensar o buraco que o fim dos auxílios vários vai deixar no potencial de consumo (os emergenciais, o seguro-desemprego ampliado, os dinheiros para estados e municípios). A poupança extra (o que se deixou de consumir na pandemia) seria um contrapeso, mas essa é apenas uma hipótese aritmética.
Um Renda Cidadã aliviaria a situação de parte dos mais pobres, mas não do consumo em geral, caso seja financiado por cortes em outras áreas. A despiora econômica até agora foi melhor do que a esperada, mas os auxílios começaram a minguar apenas neste outubro, quando a recuperação da renda do trabalho ainda é pequena.
A hipótese do balanço pode dar certo. Se não der, o risco de entrarmos em estagnação precoce ou em parafuso.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro não entende planos econômicos, Guedes tem manias e indecisão ameaça o país
'Paulo Guedes precisa falar menos', teria dito o presidente
No furdunço da pedalada desta semana, Jair Bolsonaro ouviu também conselhos de Roberto Campos, presidente do Banco Central, e gostou. Disse a um assessor do Planalto que Campos não entra em “brigalhada”, não faz barulho, é calmo e “joga para o time, sem vaidade”.
O assessor conta que perguntou se Bolsonaro estava então convencido de que seria preciso evitar manobras “fura-teto” para fazer o Renda Cidadã. O presidente respondeu algo como “é, isso a gente vai ver depois”. Importante mesmo era todo mundo do governo fechar a boca e deixar de “brigalhada”.
O presidente teria dito algo assim: “O Paulo Guedes precisa falar menos, precisa ficar uns dois meses quieto. O Braga Netto não fala nada. O Heleno parou de falar”.
Esse assessor pede para ressaltar que não há perspectiva de Guedes sair do governo e que os rumores velhos de que Campos ocuparia o lugar do ministro teriam sido plantados por inimigos pessoais.
Pelos relatos de quem anda perto de Bolsonaro, o presidente parece acreditar na última conversa que ouve a respeito de algum plano econômico, desde que o projeto não mexa com militares, policiais, aposentados e servidores. Fica feliz quando um grupo de políticos ou assessores apresenta o que parece ser uma solução definitiva e rápida, de modo efusivo e efervescente; “vai na onda”. Se o plano dá errado ou é mal recebido, tem dificuldade de entender os motivos e procura um culpado ou conspirador.
O presidente teria grande desconfiança da equipe econômica, que “não joga para o time”, não acha soluções, que inventa soluções burocráticas. Não seria o caso de Guedes, que teria ingenuidades e vaidades, mas seria leal e merece gratidão por ter apoiado Bolsonaro desde antes da campanha eleitoral.
Seja como for, Guedes é incapaz de convencer Bolsonaro de um plano ordenado e completo a respeito de quase qualquer coisa, vide a novela do Renda Cidadã. Por outro lado, acredita que vai tourear o presidente e convencê-lo de suas ideias fixas, como a CPMF. Mesmo com os vetos gritantes de Bolsonaro ao imposto, desde antes da posse do governo, o ministro jamais desistiu da ideia, como ficou evidente. São dois anos de cabo de guerra, problema que ora ameaça afundar a reforma tributária.
Gente do próprio ministério da Economia diz, de resto, que o ministro leva a Bolsonaro ideias que ainda não estão prontas, que acabam sendo chanceladas com pouca base, ou volta do Planalto com planos novos que acertou com o Planalto, mas que ainda não têm ou não terão fundamento. Sim, além do mais há secretários de Guedes que não gostam de Guedes.
E daí? É fácil perceber que esse método, digamos, produz indecisão sistemática, problema até para um governo que é fundamentalmente desvairado e apartado do universo da razão.
Os economistas do governo agora trabalham em um plano de cortes de despesas sociais “aos poucos”, de modo a não afrontar Bolsonaro, evitar um estouro do teto de gastos e financiar um Renda Cidadã, enquanto tentam ainda levar adiante as emendas emergenciais que permitirão um talho na renda dos servidores. Políticos do governismo e parte do ministério tentam ainda uma saída alternativa, que envolve sim um fura-teto, talvez extraordinário, como uma extensão do período de calamidade, do que Guedes está bem ciente e fala em público.
Não, não é esse o grande debate sobre o Brasil, mas é o que temos. É do acerto de pelo menos essa desordem vulgar que depende o futuro imediato da economia, goste-se ou não da solução.