Vinicius Muller

Arte: João Rodrigues/FAP

Vinícius Müller: “Novo federalismo pode gerar avanços na educação básica”

João Rodrigues, da equipe da FAP

Na sequência da série de entrevistas sobre o Bicentenário da Independência, o quarto episódio do podcast Rádio FAP propõe a reflexão sobre a forma de partilha do poder do Estado brasileiro. O professor Vinícius Müller, doutor em histórica econômica pela Universidade de São Paulo (USP), explica a importância de um novo federalismo.

Integrante do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), Vinícius Müller é professor do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP) e do Centro de Liderança Pública (CLP). Ele também é autor de diversos livros, entre eles “Educação Básica, Financiamento e Autonomia Regional” e a "A História como Presente".



Os maus resultados econômicos, os desafios para descentralização de poder na organização e atuação do Estado e a relação entre a má qualidade da Educação e o desenvolvimento econômico também estão entre os temas do programa. O episódio conta com áudios da BRS Explica, TV Amazônica e CNN Brasil.

O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Youtube, Google PodcastsAnchorRadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues.

RÁDIO FAP




Horizontes Democráticos: O presente como história

Já se disse que a História não é o que passou, mas o que, no presente, permanece do que passou, desafiando a consciência que se pode ter sobre o tempo e o mundo dos contemporâneos. É por isso que muitos historiadores são convocados a emitirem suas opiniões sobre os fatos do presente. Não há, portanto, nenhuma contradição nessa convocação. O conhecimento e a reflexão historiográfica parecem ser cada vez mais reconhecidos como parte da inteligência especializada em refletir sobre permanências, muitas vezes ocultas – não só para o homem comum –, que sustentam e dão base aos embates e conflitos que nos envolvem cotidianamente.


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Para além dessa dimensão pontual, está cancelada, da mesma forma, a possibilidade de o pensar historiográfico estar afastado da investigação sobre as formações culturais comumente entendidas como alicerces do mundo, desde aquelas que possibilitaram que se projetasse um futuro melhor – mais progressista ou simplesmente fazendo par com a ideia de progresso – até aquelas, contrario sensu, que, uma vez cristalizadas, condenam pessoas ou gerações inteiras a viverem como se o tempo não se alterasse ou os fatos, mesmo os moleculares, não fossem capazes de mudar a vida.

Reconhecer no passado uma instância permanente do nosso presente é entender que os tempos humanos são estruturas fundantes da nossa cultura, no sentido lato do termo. Assim, pensar em como se lida com a História e fazer com que ela seja útil, científica ou mesmo moralmente, é o que move os historiadores do nosso tempo. Como parte disso, a História que produzimos no Brasil, por historiadores de profissão ou não, deve ser vista como uma das expressões particulares do métier historiográfico que vai da produção desse conhecimento até a função social que desempenha. E uma das dimensões essenciais desse conhecimento especializado, compartilhado por historiografias que se desenvolvem em outras latitudes, é a perspectiva de atualização constante. Assim, cada vez mais o que é entendido como interdependência em outras dimensões da atividade humana invade da mesma maneira o campo da História. Isso é notável no percurso da historiografia que hoje se produz e não poderia deixar de estar presente na reiterada proposta dos capítulos desse livro, a saber, repensar o presente brasileiro a partir de critérios que superem demarcações restritivas, notadamente as ideológicas, e possibilitem novas visões sobre o passado que insiste em demarcar sua presença nas estruturas da nossa sociedade.

No livro que o leitor tem em mãos, o mundo das narrativas, aparentemente inevitável no nosso tempo, é submetido, capítulo a capítulo, a uma operação que visa estabelecer um inventário amplo e diversificado daquilo que coloniza o território das ciências humanas e sociais, com destaque especial para a reflexão historiográfica. Essa operação é muitas vezes ampliada no sentido de incorporar também a essa reflexão o complexo de narrativas intelectuais que a vida cultural assimilou como o mainstream da opinião pública. Ambas dimensões – para mencionarmos apenas duas delas – estão aqui seletivamente recrutadas em agudos diálogos, todos pertinentemente compostos em análises rigorosas e estimulantes.

Caio Prado Jr (1907-1990)

Cada capítulo deste livro é dedicado, conforme o tema e a abordagem, tanto a sondar o que há de mais atual no debate intelectual a respeito de questões decisivas relativas às teorias e metodologias que orientam a produção do conhecimento histórico quanto a problemas análogos referentes à História do Brasil, selecionando para o debate as narrativas que, em seu tempo, ajudaram a construir as visões que temos sobre o país. Muitas delas, enfatiza o autor, contribuíram enormemente para encobrir uma visão mais complexa e plural da realidade brasileira, obstaculizando uma perspectiva política e cultural ampla e renovada que hoje a imensa crise que vivenciamos se encarrega de evidenciar com notável eloquência.

Em meio a tantas narrativas que brotam no terreno da nossa historiografia, duas merecem ser mencionadas. A primeira é de caráter metodológico e convida o leitor a ultrapassar uma visão modelar que por décadas gerou um apego a explicações e hipóteses calcadas no antagonismo como elemento explicativo da história do país. Como reafirma criticamente o autor, “lamentavelmente para muitos, quando a História não se encaixa no modelo, errada está a história, não o modelo. Assim, continuamos a reproduzir tal modelo e nele ‘encaixar’ tudo o que queremos saber. Inclusive aquilo que ele, o modelo, não é capaz de explicar”. Nesse momento do livro se faz uma crítica clara à sobrevivência de muitos equívocos da abordagem de Caio Prado Jr. a respeito da nossa história, mesmo relevando seus inúmeros acertos, mas, tal apreciação tem caráter mais geral e deve ser entendida como uma referência crítica a outras temáticas e/ou autores. A ênfase no caso mencionado se reporta ao fato de que a abordagem sistêmica com base na oposição metrópole/colônia como determinante explicativo não possibilitou uma leitura mais acurada de processos específicos de desenvolvimento que o país vivenciou, chamando atenção para sua diferenciação regional ou mesmo local, o que nos leva à segunda dimensão que queremos destacar.

Brasilia, capital do Brasil

Trata-se da perspectiva de ver na hipertrofia do Estado na história brasileira não um modelo de afirmação ou condenação, mas uma história eivada de ambiguidade ou mesmo um paradoxo que acabou gerando um labirinto para as forças políticas que buscam estabelecer projetos de futuro para o país. Acertadamente, Vinicius Müller aponta para o fato de que a centralização do Estado que marca a história brasileira desde o Império passou a ser entendida até hoje como responsável pela má distribuição dos recursos e consequentemente dos determinantes do desenvolvimento regional”. O paradoxo é que esta narrativa imagina que apenas um Estado altamente centralizado seria capaz de inverter esta tendência. Ela trabalha com a noção de que há “uma dívida histórica creditada ao Estado central, dada sua culpa em ter criado as desigualdades regionais a partir de seu arbitrário comportamento em relaçãà distribuição dos recursos e incentivos públicos. Müller nos alerta para o fato de que alguns trabalhos começam a chamar a atenção para o fato de que os descaminhos e entraves do nosso desenvolvimento residem também no modo como os poderes locais se comportam frente aquilo que a eles cabia ou lhes cabe hoje, ou seja, a oferta, a qualidade e o alcance de bens públicos que são transferidos para seu gerenciamento e aplicação. O que envolve analisar dimensões políticas e administrativas locais e regionais nem sempre relevadas como importantes ou mesmo como elementos explicativos para nossos problemas de desenvolvimento.

Haveria muito mais a explorar a respeito destes e de outros pontos apresentados nesta coletânea. Em cada um dos pequenos ensaios que a compõe há o grande mérito de buscar, por meio do debate intelectual, compreender as incompletudes e os déficits da nossa formação nacional. Não é sem razão que aqui se convoca o passado para pensar o nosso presente como História.

(Publicado originalmente como Prefácio ao livro de Vinícius Müller, A História como Presente – 46 pequenos ensaios sobre a História, seus caminhos e meios. Brasília: FAP, 2020)


Blog Horizontes Democráticos

https://horizontesdemocraticos.com.br/o-presente-como-historia/

Ensaios, caminhos e meios da História em novo livro de Vinícius Müller

Editada pela FAP, nova obra “A História como presente” reúne 46 ensaios e será lançada em evento online no dia 6 de agosto, às 19h

Cleomar Almeida, da equipe da FAP

Marca da história brasileira desde o Império, a centralização excessiva do Estado é ainda vista como “responsável pela má distribuição dos recursos e consequentemente dos determinantes do desenvolvimento regional”. Esta hipótese, porém, carrega o paradoxo de que apenas um Estado altamente centralizado seria capaz de inverter esse cenário. “Nada mais enganoso”.

Confira o vídeo do webinário!



A avaliação é do historiador e doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) Vinícius Müller, que se afasta do que chama de “turva visão”, criadora de narrativas exageradamente amparadas no comportamento do governo federal. Por isso, ele observa a importância dos municípios para o desenvolvimento.

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“É na ponta do sistema, ou seja, no município, que se revela e se manifesta de modo mais concreto a relação entre os indivíduos e o exercício da cidadania. Nesta relação que se encontra boa parte do segredo do desenvolvimento ou de seu contrário, o subdesenvolvimento”, escreve ele.

Lançamento virtual

A análise consta do novo livro “A História como presente: 46 pequenos ensaios sobre a História, seus caminhos e meios” (240 páginas), de autoria de Vinícius Müller. Editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília, a obra será lançada em evento on-line da entidade, no dia 6 de agosto, das 19h às 20h30. Está à venda na internet.

Professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (Fecap) e do Centro de Liderança Pública (CLP), Müller reúne na obra textos escritos por ele entre setembro de 2017 e junho de 2020, divididos em 12 capítulos. Todos eles publicados na Revista Digital Estado da Arte, hospedada no portal do jornal O Estado de S. Paulo.

“Os textos, com algumas poucas exceções, não foram em princípio pensados e escritos para que formassem um corpo único e coerente entre si. Ao contrário, refletiam antigas preocupações e leituras que, ao calor dos acontecimentos, foram sendo rememoradas e refeitas”.

“Além da dicotomia”
Em um de seus ensaios, o autor sugere que o debate sobre o desenvolvimento “deve ir além da dicotomia entre ‘centralização e descentralização’ para alcançar níveis mais sofisticados de questionamentos”. Por isso, na avaliação dele, deve-se ampliar o olhar para os contextos locais.

Segundo Vinícius Müller, itens fundamentais ao desenvolvimento econômico e ao exercício da cidadania se encontram no entendimento do cotidiano das cidades. “Saneamento básico, educação, oportunidade de trabalho e geração de riqueza, habitação, acesso à saúde e segurança são, no mínimo, tão capitais ao desenvolvimento quanto debates sobre proteção à indústria ou taxas de juros”, analisa.

“Faltam-nos trabalhos sobre os municípios que superem seus isolamentos e nos revelem de forma mais orgânica e integrada como a riqueza, a desigualdade, a cidadania, os direitos e o desenvolvimento estão mais vinculados ao modo como as regiões se comportaram do que aos desígnios do poder central”, afirma, em outro trecho do livro.

 O autor se sustenta em estudos como o da historiadora econômica Anne Hanley, norte-americana especializada em História do Brasil e pesquisadora com amplo trânsito na academia brasileira (The Public Good and the Brazilian State: Municipal Finance and the Provision of Public Services in São Paulo, Brazil 1822-1930).

Alberto Aggio assina o assina o prefácio do livro de Vinícius Müller. Ele vai participar de debate virtual de lançamento da obra. Foto: Flávia Pulino

“Antagonismo explicativo”
Historiador e professor aposentado da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Alberto Aggio assina o prefácio e vai participar de debate virtual de lançamento da obra. Segundo ele, Vinícius Müller “convida o leitor a ultrapassar uma visão modelar que, por décadas, gerou um apego a explicações e hipóteses calcadas no antagonismo como elemento explicativo da história do país”.

Em outro trecho, ao analisar a obra, destaca a questão de desenvolvimento levantada pelo autor. “Trata-se de ver na hipertrofia do Estado na história brasileira não um modelo de afirmação ou condenação, mas uma história eivada de ambiguidade ou mesmo um paradoxo que acabou gerando um labirinto para as forças políticas que buscam estabelecer projetos de futuro para o país”, ressalta.

O editor-chefe do Estado da Arte e responsável pela apresentação da obra, Eduardo Wolf, diz que “Vinícius Müller acertadamente recusou o ilusório do extremismo, aceitou o desafio do complexo tempo que nos coube viver e encontrou o caminho do meio”.

“Um exemplo nada óbvio disso o leitor encontrará no artigo ‘Pelo fim da ética do enfrentamento’, em que Müller fornece com discreta convicção sua aposta: ‘falta-nos a construção de uma ética que nos reorganize’”, diz Wolf. Ele também vai participar do debate online de lançamento do livro.

“Caminho incontornável”
Segundo o editor, o historiador não recorre a uma grande doutrina política vista como salvadora. “Não passa lições acerca do mercado ou das relações produtivas para ordenar em novos princípios as sociedades humanas; nada disso: é de um novo modo de valorar nossa relação com o outro que precisamos, e repassar a experiência histórica é caminho incontornável”, afirma.

Toniol: “Livro que nos faz olhar para os ecos da história de um país em vertigem”. Foto: Unisal/Divulgação

Na avaliação do antropólogo e professor da Universidade de Campinas (Unicamp) Rodrigo Toniol, os 46 ensaios que compõem o livro não carregam as marcas das análises de conjuntura, apesar de refletirem o presente.  “Inclusive, talvez esta seja a razão pela qual muitos dos textos aqui incluídos tenham antecipado debates que apenas meses ou anos mais tarde tenham ganhado fôlego no debate público mais amplo”, diz.

“Este é um livro que nos faz olhar para os ecos da história de um país em vertigem. Certamente isso não desfaz a gravidade dos fatos, mas é capaz de transformar o modo como nos relacionamos com eles”, assevera Toniol.

Além de dividir seu tempo com aulas e palestras, Vinícius Müller também é autor de “Educação básica, financiamento e autonomia regional: Pernambuco, São Paulo e Rio Grande do Sul” (Alameda, 280 páginas).Serviço

Lançamento virtual de livro
Título: A História como presente: 46 pequenos ensaios sobre a História, seus caminhos e meios” (Vinícius Müller)
Data: 6/8/2021
Horário: das 19h às 20h30
Onde:  Portal, página no Facebook e canal no Youtube da Fundação Astrojildo Pereira (FAP)
Realização: Fundação Astrojildo PereiraLeia também:

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Eric Hobsbawm: Uma história em carne e osso

Vinicius Müller / Blog Horizontes Democráticos

Já avançava por mais de 200 páginas do caudaloso livro do acadêmico inglês Richard J. Evans quando fui atropelado por um trecho: “Em junho (de 1950), Muriel admitiu que tinha um amante; mas nem assim Eric se sentiu magoado; ficou mais preocupado pelo homem não ser membro do Partido Comunista do que com o adultério da esposa”. O marido traído é Eric Hobsbawm, um dos mais influentes intelectuais do século XX e dono de uma trajetória tão fascinante que quase não cabe na biografia escrita por Evans. Eric Hobsbawm – Uma Vida na História retrata a longa jornada humana – o intelectual morreu em 2012, aos 95 anos – de uma personalidade genial envolta por grandes eventos do século passado. Uma existência também marcada, porém, por fragorosos enganos.

Eric Hobsbawm (1917-2012)

Nascido no Egito em 1917, Hobsbawm viveu com sua família judia em Viena antes de mudar-se para Berlim. Encantou-se pelo comunismo em meio à ascensão nazista. E nunca mais abandonou suas convicções marxistas, substituindo a errática identidade familiar pelo aconchego promovido pelos companheiros de partido. Também transformou algumas de suas características pessoais, reveladas pelo título de um dos capítulos (“Feio como o pecado, mas que cabeça”), em algo charmoso. Como se nos dissesse que a pobreza da infância e sua pouco apreciada aparência foram sublimadas por sua erudição comunista.

E foi nisso, um intelectual comunista, que Hobsbawm se transformou quando se instalou na Inglaterra, onde se formou em História por Cambridge, serviu ao Exército durante a II Guerra e construiu uma vasta e respeitada obra. Ainda foi fundador de duas das mais importantes revistas acadêmicas de todos os tempos, a Past & Present e a New Left Review, por onde passaram autores fundamentais da historiografia marxista britânica, como Edward Thompson e Christopher Hill.
Boa parte dessa história é conhecida.

A novidade apresentada por Evans é o modo como Hobsbawm se equilibrou entre os inúmeros galhos que formavam sua vida (aliás, Hobsbawm significa ‘árvore frutífera’). Tal qual um pêndulo, o autor do clássico A Era das Revoluções oscilou entre a singularidade e a generalização capaz de lhe oferecer algum sentido de pertencimento. Assim, o judaísmo, em princípio pouco relevante, foi fundamental para sua oposição ao nazismo. Do mesmo modo, sua fidelidade ao Partido Comunista foi relativizada quando os horrores do stalinismo foram revelados. Mas também justificou e condenou, concomitantemente, os crimes soviéticos nas invasões da então Tchecoslováquia e Hungria.

Ou seja: Hobsbwam buscava por um difícil equilíbrio entre a fidelidade às posições ditadas pelo Partido Comunista e o apego às suas idiossincrasias. Condenava os caminhos que alguns intelectuais marxistas tomavam nos anos 60, como Herbert Marcuse e sua aproximação entre Psicanálise e revolução. Buscou, por outro lado, formas originais de abordar as noções de classe e os novos agentes desta mesma utopia revolucionária. Ficou entusiasmado com o fenômeno do “banditismo social”, o que talvez explique porque gostava tanto do Brasil.

Revolta na Hungria em 1956 contra o domínio soviético

Hobsbawm enxergava na América Latina um local privilegiado para a ascensão de uma nova consciência de classe, antessala para a transformação social por meio da revolução. Ele esteve por aqui em muitas ocasiões e ainda exerce fascínio sobre brasileiros com alguma erudição. Era amigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e uma rápida olhada na bibliografia de cursos de História, do ensino médio ao superior, comprova sua condição de ídolo pop entre nós. Mesmo em seu cabotinismo, o ex-presidente Lula, na apresentação que faz no livro, nos revela esta popularidade.
Hobsbawm se manteve ambíguo também em questões pessoais. Sentia-se cidadão britânico, assim como seu pai. Mas, ao escrever em seu diário, o fazia em alemão, língua da mãe. Até o jazz, paixão relacionada à fase de sua vida composta por breves amores regados por muito álcool, foi tema de inúmeros artigos escritos sob o pseudônimo de Francis Newton. Dessa racionalização nasceu o brilhante A História Social do Jazz, livro dos mais conhecidos de seu vasto catálogo.

Afinal, era inteligente e viveu o suficiente para perceber que suas previsões amparadas no marxismo eram derivadas muito mais de desejo que de seus estudos. Talvez como John Lennon – cujo sucesso Hobsbawm achava que seria efêmero -, em certo momento da vida virou herói da classe trabalhadora. A biografia de Hobsbawm prova que é possível ter uma obra significativa e uma vida brilhante mesmo estando quase sempre errado.

A ambiguidade revela-se, ainda, pela reação inusitada à traição da primeira esposa: sua vida amorosa subordinada à posição ideológica, ainda que tenha levado anos para superar a separação. Tempos depois, casou-se com Marlene Schwarz e teve um casal de filhos. Foi nesse período de estabilidade familiar que viveu seus dias mais produtivos e lucrativos. Trabalhou nos EUA financiado pela Fundação Rockefeller, comprou uma ampla casa em Londres e contratou um advogado para fazer seu testamento. Tudo bem burguês.

(Publicado originalmente em Veja, em 25 de junho de 2021; https://veja.abril.com.br/cultura/biografia-examina-vida-do-historiador-eric-hobsbawm-idolo-da-esquerda/; o titulo desta publicação é de Horizontes Democráticos)


RPD || Entrevista Especial - Marcos Nobre: 'Se Bolsonaro se reeleger, acabou a democracia no país'

Jair Bolsonaro “tenta destruir as instituições por dentro”, avalia o cientista social Marcos Nobre. Para ele, é preciso que as forças democráticas de direita, de centro e de esquerda se unam em torno da queda do presidente

Por Caetano Araujo e Vinícius Müller

O projeto autoritário do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para o Brasil é de longo prazo e se a oposição insistir na estratégia de fidelizar parcelas separadas do eleitorado, sem pensar numa grande coalizão de forças, será impossível derrotar o atual presidente em 2022, avalia o professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), Marcos Nobre, entrevistado especial desta 27a edição da Revista Política Democrática Online (RPD).

Para Marcos Nobre, Bolsonaro governa para um terço do eleitorado, no qual se apoia para não sofrer impeachment e chegar ao segundo turno das próximas eleições. E faz um alerta: "Nós temos que conversar com esse eleitorado e convencê-los de que é necessário levar Bolsonaro ao impeachment. Se não for possível o impeachment, em convencê-los de que é necessário votar em uma candidatura do campo democrático", acredita.

Marcos Nobre, entre outros, publicou, pela Companhia das Letras, Imobilismo em movimento. Da redemocratização ao governo Dilma (2013) e, pela Todavia, Como nasce o novo. Experiência e diagnóstico de tempo na Fenomenologia do espírito de Hegel (2018) e Ponto-final. A guerra de Bolsonaro contra a democracia (2020). A seguir, os principais trechos da entrevista.

Revista Política Democrática Online (RPD) - Como interpretar a mudança de comportamento do governo após a reação do Supremo Tribunal Federal às ameaças de manifestantes governistas radicais?  

Marcos Nobre (MN): Acho importante ressaltar, em primeiro lugar, que Bolsonaro fez apenas um recuo tático, o projeto autoritário, vale dizer, o confronto dele com as instituições, continua em curso. O que aconteceu foi que uma parte do sistema político decidiu apoiar um projeto de extrema direita. O que se chama de Centrão são muitos, como ficou claro nas eleições municipais e, agora, no processo conducente à eleição das mesas da Câmara e do Senado. Ainda não conhecemos o resultado dessa disputa, mas sabemos que o sistema político se dividiu em três: um bloco de apoio ao governo, ou seja, um bloco que decidiu apoiar um presidente de extrema direita; um outro bloco que está à direita, que chamaria de direita tradicional, que também se organizou de maneira independente do governo Bolsonaro; e existe a esquerda. Qual é o elemento fundamental da situação atual? É que nós temos um presidente abertamente golpista, com um projeto autoritário. Aí diz-se: "Não, mas as instituições estão segurando". Peço para se fazer uma única comparação, entre o Brasil de 2020 ou de 2021 com a Hungria de 2012 e 2013. Ou seja, naquele momento de primeiro mandato de Orbán, quantas pessoas achavam que a democracia estivesse de fato em risco na Hungria? Temos de ter clareza quanto à gravidade do momento.  

RPD - Na conjuntura presente, quais são as tarefas imediatas das forças democráticas de oposição?   

MN: Quando se tem uma situação como a nossa, o que se pode fazer é uma frente ampla em defesa da democracia, não existe outra saída. A não ser que se continue a subestimar, tanto o projeto autoritário do Bolsonaro, como a capacidade dele de se reeleger em 2022. Se todo mundo achar que as instituições estão funcionando, que a democracia não está em risco e que se o Bolsonaro se reeleger o Brasil vai continuar democrático, aí realmente não precisa fazer nada. O que tem que ser feito é um acordo para isolar Bolsonaro, ou seja, as forças democráticas precisam sentar e fazer um acordo em torno de coisas muito básicas. Não vai poder mais acontecer o que aconteceu no Brasil desde a eleição de 2014, ou seja, não se pode dizer que a eleição foi fraudulenta, não se pode dar golpe, não se pode dar rasteira no adversário e tentar jogar o adversário para fora do campo político, de fora do sistema político. Isso tem reflexo eleitoral? Tem. Por quê? Terá de ser um acordo de reconstrução institucional, um pacto de convivência democrática entre as forças políticas. Qualquer que seja a candidatura que passar para o segundo, terá de contar com o apoio da integralidade do campo democrático, não importando se é da esquerda ou da direita.  

"Se ele (Bolsonaro) se reeleger, acabou a democracia no país. O primeiro mandato é de destruição de instituições e o segundo mandato é de implantação do autoritarismo"

É um projeto difícil, mas a alternativa é perder a democracia. Basta olhar para a eleição americana. O Trump tentou – e continuou tentando – dar golpe, ao insistir em manipular os resultados do pleito. Agora, vamos transferir isso para o Brasil. O Bolsonaro vai querer sair do poder tranquilamente? Ele sabe que o risco dele, da família e dele próprio irem para a cadeia é muito alto. Então ele não tem nada a perder. Se ele se reeleger, acabou a democracia no país. O primeiro mandato é de destruição de instituições, e o segundo será de implantação do autoritarismo, como o fez Viktor Orban, na Hungria. Esse é que é o script autoritário do populismo da década de 2010.   

 
RPD: Quais os principais obstáculos à cooperação entre as diversas forças e oposição e como superá-los?
MN: Primeira coisa: o exemplo dos Estados Unidos não nos serve. Ou seja, nós não teremos uma candidatura única do campo democrático em 2022. Então não nos serve esse exemplo.  

Mas há elementos que permitem pensar uma saída. Um sinal disso é o que se está insinuando na organização de forças para a escolha do novo presidente da Câmara dos Deputados. Uma direita tradicional se descolou da extrema direita e propôs à esquerda um acordo em torno da presidência, isso é muito importante. Não é pouco importante. Então talvez se possa pensar no seguinte. A pergunta central tem de ser formulada com clareza e a resposta dada com consciência: É grave risco para a democracia a reeleição de Bolsonaro? È preciso com que o campo democrático repactue entre si a democracia brasileira? Vejam bem; não é uma discussão a ser enfrentado no nível dos partidos, do sistema político, mas conduzida desde baixo. Caso contrário, a pretendida repactuação ocorrerá simplesmente no topo do sistema político, nas cúpulas.   

Na democracia, só existem adversários, mas Bolsonaro é um inimigo, porque ele é um inimigo da democracia. Então como fazer para que essas forças aceitem se sentar para negociar? Primeira coisa, muita política, precisam conversar. Diante da atual correlação de forças, a julgar pelos resultados recentes das eleições municipais, o projeto de esquerda – se é que a esquerda tem um projeto – consegue se impor? Não é provável, a correlação de forças lhe foi claramente desfavorável, tendo alcançado algo como 25% dos votos.   

Mas lembremos que um projeto de esquerda precisa da democracia, é um oxigênio sem o qual não dá para construir seu projeto político. A conversa à que me referi como caminho obrigatório para a repactuação tanto almejada terá, portanto, de consolidar a visão de que a democracia é também objetivo maior para a direita tradicional. Somente assim será possível construir algo como uma frente ampla comprometendo os campos da direita democrática e da esquerda democrática.  

A direita democrática não pode atrapalhar a reconstrução da esquerda, assim como a esquerda não pode atrapalhar a reconstrução da direita, dessa direita democrática, não da extrema direita, que evidentemente, está fora da mesa de negociação. Esse é que é o ponto: não só fazer política, mas também discutir política, porque isso é que desapareceu. Não se pode mais ficar nesse joguinho de lacrar em rede, "Você me deu um golpe, não converso com você", "Você votou no Bolsonaro, não converso com você", pois isso é o levará exatamente à reeleição do Bolsonaro. É importante empurrar os partidos na direção de discutir política como gente grande, sem o quê não há saída.  

"A primeira coisa que eu acho importante é que Bolsonaro fez apenas um recuo tático, o projeto autoritário dele continua em curso, o confronto dele com as instituições continua em curso"

Volto a mencionar o que estamos presenciando na disputa em torno do novo presidente da Câmara, para mim sinais alentadores de que, de alguma forma, já se vem insinuado uma frente ampla democrática no Congresso. Se não, como explicar a convergência de esforços que viabilizou a aprovação do FUNDEB e do auxílio emergencial? Isso é a frente democrática na prática. Para mim, pouco importa se a direita tradicional resolve fazer suas declarações de amor à democracia, por pragmatismo, ao não ter conseguido dirigir e ocupar o governo Bolsonaro, como achava que pudesse. Isso para mim pouco importa. O que importa é que demonstrou que está realmente preocupada com o que pode acontecer com uma reeleição do Bolsonaro, isso para mim está claro, e abandonou o barco do governismo.   

"Qual é o elemento fundamental da situação atual? É que nós temos um presidente abertamente golpista e que tem um projeto autoritário"

A esquerda, por outro lado, considera necessário o impeachment, na avaliação de que não é possível deixar Bolsonaro chegar até 22, no exercício do mandato, porque concorreria com mais poder. Se a direita democrática vai topar um impeachment ou não, vai depender da esquerda convencer a sociedade. Esta, sim, é uma tarefa da esquerda - convencer a sociedade da necessidade do impeachment. Por quê? Porque as condições para o impeachment são muito exigentes. Será preciso subtrair apoio social do Bolsonaro, muito. E sabemos que a aprovação do governo Bolsonaro é altíssima, 37%, algo enorme, sobretudo depois de tudo o que aconteceu. Se formos capazes de convencer a sociedade dessa necessidade, se conseguirmos retirar apoio ao governo Bolsonaro, se conseguirmos fazer pressão sobre o Congresso, se conseguirmos convencer a direita democrática das vantagens do impeachment, teremos feito a coisa mais importante para a democracia brasileira, a mais importante de todas.   

RPD: Estas dificuldades em mantermos um ambiente democrático não revelam, na verdade, um problema estrutural da sociedade brasileira? A ascensão de Bolsonaro não é fruto de uma combinação entre uma conjuntura -  que vem sendo alimentada desde os anos 90 e que foi potencializada a partir de 2013 - , e traços estruturais e mais enraizados da sociedade brasileira?  

MN: Para mim, o marco temporal é 2013, porque, em 2013, ficou claro que a democracia brasileira, tal como estava funcionando até ali, não estava mais funcionando para a população brasileira. Qual foi a resposta do sistema político a junho de 2013? Blindar-se. A resposta do sistema político foi lamentável, porque foi uma resposta de se blindar, de se fechar em si mesmo, colocando-se em um modo de autodefesa, de sobrevivência, e, com isso, permitindo que essa energia social, já dispersa, solta na rua, não fosse canalizada para o sistema político. E, não sendo canalizada para o sistema político, para onde foi, então? Foi, de um lado, para a Marielle Franco, para um monte de mandatos coletivos, para novas intervenções. Mas foi também, de outro lado, para a Lava Jato, para maneiras de vampirizar essa energia social difusa que vendiam a ilusão de que poderiam fazer a reforma que o sistema político se recusou a fazer. Foi uma vertente que favoreceu também Bolsonaro, que aproveitou para proclamar: ‘Esse sistema nunca vai se autorreformar, então você tem que votar em alguém que é contra o sistema, e o único que é contra o sistema sou eu’. Esse populismo antiestablishment é característico da extrema direita dos anos 2010.  

"O que tem que ser feito é um acordo sobre isolar o Bolsonaro, ou seja, as forças democráticas precisam sentar e fazer um acordo em torno de coisas muito básicas"

RPD: Por que Bolsonaro, com seus ataques à democracia e às instituições e mesmo com uma conjuntura desfavorável - pandemia e crise econômica - mantém sua popularidade?  

MN: Vamos fazer uma diferenciação no caso do Bolsonaro. É difícil estimar qual que é o núcleo duro de apoio ao Bolsonaro, é difícil. Mas é alguma coisa entre 12 e 15% do eleitorado. Estamos falando de uma coisa enorme, cerca de 20 milhões de votantes no núcleo duro do Bolsonaro. Agora, para chegar a 37%, faltam ainda 22%. Esses 22% não pertencem a esse núcleo autoritário do Bolsonaro, embora também comprem a história do antissistema. O Bolsonaro continua sendo, como presidente, contra o sistema, ele continua se colocando como outsider, e nós continuamos tratando o Bolsonaro como se ele fosse de fato um outsider. E isso é extraordinário, é a hegemonia total, a vitória total do Bolsonaro no campo cultural, se a gente quiser usar a expressão antiga. É isso, ele destrói as instituições porque as instituições devem ser destruídas porque elas são injustas. E ele tem apoio por isso.   

Então o que a gente, como democratas, temos que fazer? Temos que conversar com esse eleitorado, esses 22%, que apoiam o Bolsonaro, mas que não pertencem ao núcleo duro, e convencê-los de que é necessário levar Bolsonaro ao impeachment. Se não for possível o impeachment, em convencê-los de que é necessário, em 2022, votar em uma candidatura do campo democrático. Essa é a nossa tarefa política. Porque se a gente considerar que 37% são autoritários, então esquece, não tem mais saída. A tática do Bolsonaro sempre foi de governar para um terço, que é esse um terço do eleitorado que é claramente antissistema. Que vota em quem for antiestablishment, e como eles não têm alternativa, eles ficam com o Bolsonaro, porque não apareceu nenhuma alternativa. Então o Bolsonaro decidiu: "Eu vou governar para esse um terço, eu não vou governar para a maioria". Isso é uma tática, e por que é um terço? Porque com um terço você continua não dando maioria e, portanto, você convence todo mundo de que você é antissistema mesmo, porque você não consegue ter o apoio da maioria, então você só pode ser antissistema, certo? Segundo, você consegue com isso uma vaga no segundo turno em 2022 com um terço, e você tem um seguro anti-impeachment. Você tem as três coisas. Isso é muito relevante para entender como o Bolsonaro funciona. Sem entender bem como o Bolsonaro funciona, o campo democrático não vai saber onde tem que bater, porque precisa ter tática, precisa ter estratégia muito clara, porque se não nós vamos perder. E vamos perder feio.    


‘Projeto da frente democrática deve ser mantido’, diz José Álvaro Moisés

Em entrevista à revista da FAP de dezembro, professor da USP afirma que ‘bolsonarismo não vai se desmilinguir’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo) José Álvaro Moisés diz que o projeto da frente democrática deve ser mantido, já que, segundo ele, a premissa é que “o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria”. “Isso é uma presunção em relação a um governo que não tem rumo, tem muitos defeitos e muitas vezes comete crimes de responsabilidade que quase potencializam seu impeachment”, afirma, em entrevista exclusiva concedida a Caetano Araújo e Vinicius Müller, publicada na revista Política Democrática Online de dezembro.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, Moisés explica que o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria porque, segundo ele, seria como se os bolsonaristas abrissem mão de governar. “Isso não vai acontecer”, afirma.

O professor da Unesp avalia que existe hoje, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do país e que possam se opor com chances reais de vencer o presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2022. Ele é especialista em temas como transição política, democratização, cultura política e sociedade civil.

Moisés publicou diversos livros de análises políticas como “Os brasileiros e a democracia” (Ed. Ática, SP 1995),"Democracia e confiança: Por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas?" (edUSP), “O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão” (2011), e "Crises da Democracia: O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos (2019), entre outros.

Na avaliação do entrevistado, o grande desafio da oposição para superar o bolsonarismo - tanto os partidos de centro-esquerda como os da esquerda - é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País. De acordo com o cientista político, isso envolve o enfrentamento das desigualdades sociais e a necessidade de promover o crescimento econômico.

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Vinicius Müller: A Nova História do Capitalismo - Do algodão ao Black Lives Matter

Por qual lente devemos enxergar o capitalismo? Pelo empreendedorismo de Bill Gates ou pelo trabalho de crianças nas fábricas de camisetas em algum país asiático? Pelo aumento exponencial da riqueza nos últimos dois séculos ou pelas persistentes desigualdades?  Pela competição do mercado ou pela formação de monopólios? Pelo consumismo ambientalmente inconsequente ou pelos ganhos de produtividade?

Todas essas questões, e mais tantas outras, foram inúmeras vezes responsáveis por longas teses sobre os fundamentos e funcionamento da economia e suas implicações históricas e sociológicas. E, a depender de quem olha, servem como uma gangorra que justifica desde pesquisas muito sofisticadas como, em seu avesso, posicionamentos ideológicos nebulosos.

Estas variadas possibilidades também estão apresentadas em outras possíveis divisões. Por exemplo, a depender de sua formação, onde estudou, o que lê, ouve e assiste, estará convencido de que o capitalismo é a competição, riqueza, empreendedorismo e produtividade. Já se sua leitura tiver outra preferência quanto ao veículo de comunicação, ou sua formação acadêmica for feita em outra instituição, possivelmente não enxergará o capitalismo para além da exploração da mão-de-obra, desigualdade, monopólios e consumo inconsciente e predatório. E terá, em ambos, um arsenal secular de autores, autoras, teses, livros, escolas de pensamento e afins que podem confirmar sua posição. Cachorro correndo atrás do próprio rabo.

Outros exemplos podem ser pertinentes. Tenho um pessoal e, portanto, de curto alcance — mas, mesmo assim, simbólico: comecei minha graduação em História no longínquo ano de 1994. Pensava que meus interesses maiores estariam vinculados à História das Religiões, com interfase com a Antropologia e a Filosofia. Os cursos de História e Historiografia Medieval Europeia confirmavam o interesse. Mas, logo depois, apareceu a fascinante História da América lecionada por professores ainda mais brilhantes. No meio do caminho, História do Brasil Monárquico e História Política do Brasil. A dúvida começava a me incomodar. Até que apareceu a História Econômica, tímida em meio às tantas outras leituras. Anos depois, interessei-me por um programa de Pós-Graduação em Economia. Grupo docente de primeira grandeza, leituras do que de mais atualizado existia no mundo e muita microeconomia e métodos quantitativos. Em meios aos economistas, me agarrei à bibliografia de História Econômica e, principalmente, àquela ligada à Nova Economia Institucional. Dali, claro, li Douglass North. A partir disso, Deirdre McCloskey, Joel Mokyr, Stanley Engerman, Kenneth Sokoloff, Daren Acemoglu,  Phyllis Deane e Stephen Haber. E também outros, distantes da abordagem institucionalista, como os consagrados Robert Fogel e Richard Tilly. Descobri assim a força da obra de North, premiado pelo Nobel de Economia em 1993, um ano antes do inicio de minha graduação. E descobri também que, mesmo assim, na graduação de História, eu nunca tinha ouvido falar do economista que ganhara Nobel um ano antes e que cunhou a frase “A História Importa”. Imaginei, invertidamente, a quantidade de autores e obras importantes que havia lido e que os economistas ali comigo não tinham sequer ouvido falar: Edward Thompson, Christopher Hill, Perry Anderson, Fernand Braudel, John Galbraith, Charles Boxer, Paul Mantoux, Immanuel Wallerstein e, claro, o ‘já ouvi falar’ Eric Hobsbawm.

Douglass North

Ou seja, as dúvidas eram muito maiores do que as certezas e, sinteticamente, eram formuladas em duas ou três questões: O sucesso da indústria e do capitalismo britânico ocorreu devido à exploração, ao mercado externo e à acumulação primitiva de capitais ou pelas transformações institucionais, mentais e políticas que ocorreram internamente? O crescimento dos Estados Unidos no século XIX deveu-se às oportunidades geradas pelo território e pela forma de ocupação, pelas ferrovias, pelo empreendedorismo, pela imigração e pela formação dos belts ou pela exploração da mão de obra, pelo escravismo e suas consequências, pelo massacre de povos nativos, pela exploração dos mexicanos e pelo imperialismo? E, por fim, o capitalismo contemporâneo, tecnológico, industrial, financeiro e globalizado é incompatível com a escravidão ou, ao contrário, não só é compatível como foi forjado sobre o sangue dos escravos?

Não sei a resposta, mas desconfio que para todos os casos já existe um conhecimento acumulado suficientemente grande para confirmar qualquer opinião. Do mesmo modo que, em uma hipótese mais otimista, há respostas que podem nos surpreender exatamente pelo contrário: são tão boas que conseguem colocar em dúvida aquilo que até então tínhamos como certo e indubitável. Por isso, lamento quando noto, por exemplo, que muitos historiadores não dão a atenção que julgo necessária ao magistral texto de Engerman e Sokoloff e penso em como não ficar fascinado pelos dados sobre avanço da alfabetização nos EUA na passagem do século XIX ao XX que os autores apresentam.[*]

Contudo, esta gangorra não é só definida pelas escolhas determinadas pelas preferências pessoais ou pelos programas de graduação e pós-graduação. Também pende em função do contexto. E, depois de décadas de brisa soprando em favor da visão que enaltecia o capitalismo e suas relações com o aumento da riqueza, das oportunidades, da globalização e do empreendedorismo, a crise de 2008, a reviravolta no processo de globalização, a ascensão de governos iliberais, a ampliação da desigualdade e, principalmente, a persistência de formas variadas de racismo e discriminação de matizes diferentes, fazem com que o nosso atual contexto ofereça outras formas de se contar a história do capitalismo.

Foi nesse contexto, e ainda é, que ganha força, a princípio nas academias norte-americanas, mas também na brasileira, a corrente conhecida como “A Nova História do Capitalismo”, que teve recentemente uma de suas principais obras traduzidas no Brasil. Trata-se de A Metade que nunca foi contada, de Edward Baptist (Editora Paz e Terra, 2020; no original, The half has never been told). Baptist, professor de História na Universidade de Cornell, traça uma linha por onde reconstrói a história da escravidão nos EUA, suas particularidades e, fundamentalmente, como esteve ligada à formação do capitalismo norte-americano. Uma verdadeira barreira à reprodução ingênua, esquemática, e às vezes irresponsável, de certa visão que ilumina apenas os aspectos engrandecedores desta história.

Edward Baptist

A obra de Baptist, ao mesclar uma narrativa centrada na experiência pessoal de ex-escravizados e seu descendentes com análises sociológicas, busca e consegue mostrar que a suposta incompatibilidade entre o avanço do capitalismo e a escravidão é mentirosa. Ao menos parcialmente esta relação é não só visível como, principalmente, simbiótica. Ou seja, o capitalismo norte-americano foi construído a partir do resultado do trabalho escravo e do tráfico e também sobre o aumento da produtividade do trabalho escravo na produção do algodão. Sim, não está errado: aumento de produtividade. Desta forma, ataca diretamente a relação estabelecida por muitos entre capitalismo e produtividade, mas que não admite ganhos de produtividade pelo trabalho escravo. E, a partir disso, mostra como este aumento de produtividade do trabalho escravo na produção de algodão foi fundamental para a aceleração da indústria têxtil europeia no século XIX. Ou seja, como a escravidão esteve na base também do avanço do capitalismo fora dos EUA.

Mas, certamente, esta não é a novidade da obra de Baptist. O que mais convence pela originalidade é o apontamento que faz sobre questões sensíveis à História daquele país. Por exemplo, ao colocar em pauta que uma das causas centrais da Guerra Civil de 1861 não foi uma indisposição do norte do país com a escravidão do sul, mas sim porque a expansão da escravidão nos moldes sulistas daria um poder político aos estados escravistas que desequilibraria o delicado federalismo norte-americano. E que logo após o fim oficial da escravidão em 1863 e o fim da Guerra dois anos depois, as restrições ao avanço dos direitos civis aos libertados e seus descendentes foi uma engenhosa construção política que envolveu não só a persistência da mentalidade racista, mas também a deliberada ação das lideranças tanto do sul quanto do norte. Neste sentido, há um fio que liga a presidência do ‘racista e alcoólatra’ (nas palavras de Baptist) Andrew Johnson (1865-1869) ao declaradamente racista Woodrow Wilson (1913-1921). E, indispensável dizer, entre os anos posteriores à guerra de Lincoln e os movimentos pelos direitos civis ligados à Rosa Parks, aos nove de Little Rock, Martin Luther King e Malcolm X. E se o livro não tivesse sido publicado originalmente em 2014, ao Black Lives Matter e a George Floyd.

Manifestação após a morte de George Floyd nos EUA (Foto: Reuters/Yuri Gripas)

Contudo, certamente, a força maior da obra de Baptist está na narrativa que constrói, na qual histórias pessoais, dados, análises de discursos, política, economia e mentalidades se misturam em nome da luz que pretende lançar sobre a ‘metade que não foi contada’. Portanto, uma história que por mais que seja, ao menos em partes, conhecida, ficou eclipsada por outra mais simpática ao modo como os EUA construíram sua riqueza e sobre quais seriam os fundamentos do capitalismo; em outras palavras, que o trabalho escravo também gerava ganhos de produtividade, que o capitalismo não é incompatível com a escravidão e que foi sim determinado e beneficiado pelas relações estabelecidas internacionalmente e não só pelas instituições internas. E, no caso dos EUA, que a ‘terra das oportunidades’ dos empreendedores, da liberdade e de ‘gigantes’ como Rockefeller, Carnegie e Vanderbilt não devem ser vistos como fundamentos do crescimento econômico e do funcionamento do capitalismo dominante nos últimos 150 anos. Em seus lugares, diz Baptist, está o sangue dos escravos.

John D. Rockefeller por John Singer Sargent, 1917

Embora ambas trajetórias sejam corretas, o contexto sinaliza para a recuperação, aprofundamento e importância da história contada por Baptist. O que significa dizer que, se concordamos com a versão de que o capitalismo é exploração de mão de obra, monopólio, desigualdade e consumismo, ler os autores da chamada “Nova História do Capitalismo”, entre eles Baptist, pode ser um conforto e uma confirmação da pertinência de nosso modo de entender a história e a sociedade capitalista. O risco, como sempre, é esquecer que Douglass North ganhou Nobel e que Stanley Engerman é genial. Baptist corre este risco e nele, ao flertar com certo ativismo, expõe o pior de sua obra.

Se, diferentemente, formos do grupo que entende o capitalismo como o sistema do empreendedorismo, da competição, da ampliação de riqueza e da produtividade, ler a obra de Baptist pode ser revelador da limitação de nossas narrativas e formações, mesmo que não haja a menor chance de esquecermos que McCloskey e Mokyr são imprescindíveis e, assim como Engerman, geniais.

Porém, se formos ‘tipos ideais’ de economistas ortodoxos, mas tivermos o mínimo de responsabilidade para entendermos por que o capitalismo e a sociedade que o comporta não funcionam como nossos coerentes modelos preveem e supostamente comprovam, ler Baptist é um imperativo que, diria, é de ordem moral.

A Ride for Liberty, Eastman Johnson, c. 1862

Nota:[*] Engerman e Sokoloff escreveram um artigo sobre os diferentes processos de colonização na América. No artigo History Lessons: Institutions, Factor Endowments, and Paths of Development in the New World (2000) defendem que condições iniciais na colonização de diversas regiões do continente americano determinaram parte das instituições que se reproduziram e se adaptaram ao longo do tempo. Desta forma, indicam quais seriam as diferenças entre a  América do Norte (Canadá e EUA) e o restante do continente quanto à concentração da propriedade sobre a  terra, a expansão do sufrágio e a educação básica. Artigo disponível em <https://www.econ.nyu.edu/user/debraj/Courses/Readings/SokoloffEngerman.pdf>

*Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.


Vinicius Muller discute ética e política no sexto webinar Reinventar o Rio de Janeiro

Professor vai interagir com internautas, em evento com transmissão no site e página da FAP no Facebook

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Internautas poderão discutir ética e política com o historiador Vinicius Muller, professor do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa) em São Paulo, durante o sexto webinar da série Reinventar o Rio de Janeiro, nesta quinta-feira (2), das 19h30 às 21h. Aberto a todo o público online, o evento é realizado pelo Cidadania 23 do município com apoio da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que é responsável pela transmissão ao vivo do debate em seu site e em sua página no Facebook.

Muller é doutor em história econômica, mestre em economia e bacharel em história. Atua como professor de história, história Econômica, ética e desenvolvimento há mais de 20 anos, com experiência em educação básica, pré-vestibular, ensino superior e pós-graduação. Além da docência, já atuou como autor de material didático e, por muitos anos, como gestor escolar, tanto em coordenação quanto em direção de Instituições de Ensino. Atualmente, além de ser professor de instituições de ensino, é palestrante e colaborador do Blog Estado da Arte, do jornal O Estado de S. Paulo.

Assista ao vivo:

https://www.facebook.com/facefap/videos/343650469964349

O objetivo da série de webinar Reinventar o Rio de Janeiro é mobilizar lideranças para interferir nas discussões e possíveis intervenções sobre o futuro da cidade maravilhosa. A ideia é manter o comprometimento do partido de buscar sempre melhorias para a cidade, mesmo no período de isolamento social decorrente da pandemia do coronavírus. Webinar evita a aglomeração física de pessoas no mesmo local e possibilita grande participação online de interessados.

Veja vídeos de outros webinars da série Reinventar o Rio de Janeiro:

Raul Jungmann avalia segurança pública em webinar Reinventar o Rio de Janeiro

Danielle Carusi discute desigualdade no quarto webinar Reinventar o Rio de Janeiro

Ligia Bahia aponta desafios da saúde no terceiro webinar Reinventar o Rio de Janeiro

Washington Fajardo discute cidade em webinar Reinventar o Rio de Janeiro

Confira a abertura da série Webinar Reinventar o Rio de Janeiro


‘Quadro político mais radicalizado ameaça democracia’, alerta Vinicius Muller à Política Democrática online

Doutor em histórica econômica e professor do Insper publicou artigo na 11ª edição da revista produzida pela FAP

A formação de um novo quadro político-eleitoral mais radicalizado em nosso país, com a ascensão de Jair Bolsonaro, ameaça as instituições, em particular, a democracia. A avaliação é do doutor em histórica econômica e professor do Insper Vinícius Muller, em análise publicada na 11ª edição da revista Política Democrática online. A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), vinculada ao partido político Cidadania 23.

» Acesse aqui a 11ª edição da revista Política Democrática online

De acordo com ele, há razoável dificuldade em compreender as origens e causas das recentes mudanças no Brasil, com reflexos, em certa medida, em outros e variados países. “Tais mudanças envolvem um conjunto de questões que podem ser vistas em seus aspectos econômicos, políticos e sociais”, afirma.

Entre elas, segundo o autor, certo esgotamento do processo de globalização, o recrudescimento da desigualdade, o surgimento de novas ferramentas tecnológicas e a ampliação das preocupações ambientais e sociais. “Neste quadro, um sem-número de questionamentos ganhou forma e conteúdo. A ampliação da riqueza promovida pela liberdade produtiva e financeira que caracteriza a globalização foi questionada pelo aumento da desigualdade econômica, principalmente entre grupos internos aos países”, analisa.

Desta forma, conforme acrescenta o professor do Insper, na mesma medida em que houve ampliação da riqueza, alguns grupos se viram mais distantes das cadeias produtivas globalizadas e, portanto, enfrentando problemas como desemprego e queda significativa de renda. “A reação, muitas vezes, foi voltada ao questionamento do próprio processo de globalização, entendido como resultado de uma economia aberta e liberal”, acentua.

Contestada a globalização, diz o analista, contestaram-se, fundamentalmente, os princípios da economia aberta, dando origem a discursos protecionistas e nacionalistas. “A diferença foi que, enquanto em um passado recente, os questionamentos ao processo de globalização e à economia de mercado partiam de grupos mais à esquerda no espectro político, desta vez os ataques originam-se em grupos mais conservadores”, destaca.

“Houve, assim, uma aproximação entre a defesa de certo nacionalismo e protecionismo econômico e valores considerados mais conservadores no plano moral e dos costumes. Esta associação, historicamente não muito original, ganhou no Brasil alguns elementos adicionais”, acentua. Segundo ele, em meio à crise do desemprego e aos escândalos de corrupção envolvendo os governos do Partido dos Trabalhadores, ganharam força, desde 2013, movimentos que deram voz a desconforto promovido, em partes da população, pelos caminhos que o país adotava, ao menos desde a eleição de Dilma Rousseff.

“E esta voz não mais entendia a disputa política brasileira nos quadros que estavam dados até então, mas, sim, a partir da ascensão de um discurso que envolvia a repulsa aos escândalos de corrupção e que defendia suposto resgate de valores tradicionais embalados em um discurso nacionalista”, avalia.

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Vídeos - Abertura do Seminário Desafios da Democracia || Sociedade brasileira vive possível ameaça à democracia, diz Vinicius Muller

A abertura do Seminário Desafios da Democracia - Um programa político para o Século XXI contou com participação de Roberto Freire, Presidente do Cidadania 23; Luiz Carlos Azedo, Jornalista e diretor geral da Fundação Astrojildo Pereira e Vinicius Muller, Secretário Executivo do Seminário e professor do Insper.

Confira, a seguir, a entrevista com Vinicius Muller, Secretário Executivo do Seminário e professor do Insper:

Há possibilidade de a sociedade brasileira estar vivendo uma ameaça à democracia. A avaliação é do historiador e professor do Insper, Vinicius Muller. Ele atuou como secretário-executivo do seminário Os Desafios da Democracia: um programa política para o século XXI, realizado pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em São Paulo, no dia 24 de agosto de 2019.

 

https://www.youtube.com/watch?v=E1fbMdlHP-Y


Política Democrática: Globalização promoveu aumento da riqueza, afirma Vinícius Müller

Doutor em História Econômica e professor do Insper observa que fenômeno também provocou separações sociais

Por Cleomar Almeida

O doutor em História Econômica e professor de Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) Vinícius Müller diz que a globalização é um “fenômeno mais complexo que promoveu aumento da riqueza na mesma medida em que desarticulou antigas estruturas produtivas e sociais”. “A globalização não era, como pensávamos há mais de vinte anos, um novo imperialismo encabeçado pelos norte-americanos”, afirma ele, em artigo publicado na edição de novembro da revista Política Democrática online, produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Partido Popular Socialista (PPS).

De acordo com Vinícius Müller, as novas separações sociais produzidas pela globalização na sociedade norte-americana não são exclusivamente econômicas. “Elas estão relacionadas ao questionamento que parte da sociedade faz em relação aos valores que construíram aquela nação. De um lado políticas identitárias, de outro, xenofobia. Entre eles um hiato. É neste espaço que mora o diabo”, ironiza ele.

» Acesse aqui a edição de novembro da revista Política Democrática online

No fim do século passado, de acordo com o doutor em História Econômica, quando a combinação entre o fenômeno da globalização e a retomada dos valores liberais se arvorava como o modelo único, duas posições antagônicas se estabeleceram, conforme ele escreve. “Uma delas dizia que a abertura dos mercados nacionais, a maior velocidade nas trocas de mercadorias e moedas, assim como a formação de cadeias produtivas globais, garantiriam a ampliação da riqueza e melhoria significativa no padrão de vida de pessoas espalhadas pelo globo”, afirma, para continuar: “Outra, contrária, apostava na hipótese de que a globalização em sua vertente neoliberal nada mais era do que retomada do imperialismo do século XIX, agora liderado pelo EUA. Os resultados, depois de 30 anos, não cabem em slogans tão simples assim”.

No plano geral, conforme destaca o professor do Insper, a produção e a circulação de riquezas aumentaram. “Grupos populacionais imensos foram beneficiados pela ampliação do mercado, descentralização produtiva e aumento da produtividade e da riqueza”, acentua ele, e um trecho do artigo. “A urbanização de contingentes populacionais maiúsculos na China e na Índia, a transferência de partes significativas da produção industrial para países como o Vietnã e o aumento da qualidade de vida em países do leste europeu são visíveis. Em uma constatação anti-intuitiva, os países que mais ganharam com a globalização não foram aqueles que, no início do século, pareciam ser os impositores desta ordem”.

Na avaliação do autor, portanto, o que parecia ser uma imposição voltada à abertura de mercado mundial aos EUA, como um “neoimperialismo”, segundo ele, não se confirmou na medida em que tal processo produziu mais efeitos benéficos, ou que foram proporcionalmente maiores, em países como Chile, Coreia do Sul, Austrália e Lituânia do que nos EUA.

“A constatação de que a globalização, de fato, produziu mais riqueza e ampliou a qualidade de vida de enormes contingentes populacionais, e que hoje a tese de um imperialismo norte-americano parece fruto da ingenuidade da juventude, não significam a confirmação de que tal processo ocorreu sem efeitos colaterais que hoje batem à nossa porta. O mais importante entre eles é a ampliação da desigualdade. Não aquela que os críticos da globalização imaginavam que ocorreria entre os países”, diz outro trecho.

Vinícius Müller também diz que um argumento que atenuava o avanço da desigualdade afirmava que “é melhor viver em um país desigual e rico do que em um igualitário e pobre”. “Tem sentido, até porque a riqueza quando cresce beneficia a todos, mesmo que em níveis diferentes. O exercício retórico era simples: em uma sociedade na qual vive Bill Gates, a renda per capita cresce, mas a desigualdade também”, acrescenta o autor. “E, certamente, é melhor viver numa sociedade que tem a oportunidade de ampliar sua produção de riqueza a partir do uso das ferramentas criadas pelo fundador da Microsoft. O problema é que tamanha desigualdade começa a impactar em outras questões que fogem do escopo deste argumento”, assevera ele.

 

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Vinícius Müller: Mark Lilla e seu liberalismo universal

No terceiro e último artigo dedicado à obra e ao pensamento de Mark Lilla, Vinícius Müller escreve sobre "O progressista de ontem e o de amanhã", obra mais recente do pensador americano. Lilla estará no Brasil em novembro para o Fronteiras do Pensamento.

O que Franklin Delano Roosevelt e Ronald Reagan têm em comum? Além de terem sido presidentes dos Estados Unidos, o que mais os une? Um democrata, presidente do país entre 1933 e 1945, quando pouco antes do término da Segunda Grande Guerra faleceu. Outro republicano, ator de destaque intermediário em produções hollywoodianas, que governou o país entre 1981 e 1989, ano da queda do muro de Berlim. Na verdade, um olhar superficial nos revela que poucas coisas os aproximam.

Roosevelt enfrentou dois dos mais graves momentos do século XX, a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial. Na primeira, em meio à crise considerada como a maior que o país já enfrentou e, por muitos, como a grande crise já experimentada pelo capitalismo, venceu a eleição com a proposta que entrou para a história como o New Deal. Seu plano, implementado nos primeiros anos de governo, previa uma ampla reformulação tanto da economia quanto do comportamento do Estado frente aos desafios imputados pelos efeitos da crise de 1929. Na contramão da tradição do país e de certos valores enraizados na sociedade, Roosevelt propôs a ampliação da participação estatal na economia, como regulador, como incentivador da demanda e como gerador de empregos, além de fornecedor de certos fundamentos mínimos ao bem estar social. Isso em um país de tradição liberal e de baixa tolerância com as intervenções estatais na economia e/ou na determinação de padrões de comportamento e de costumes. Por isso, gerou polêmicas e ódios que, mesmo menores do que os admiradores e eleitores (Roosevelt venceu quatro eleições seguidas – 1932, 1936, 1940 e 1944), foram suficientes para gerar pesado boicote por parte daqueles que o chamavam de socialista e ditador. Para além dos exageros de seus críticos, deixou também uma legítima controversa acerca dos resultados de seu programa de recuperação econômica e social, principalmente em relação à retomada do emprego no país. Se já não fosse suficiente para entrar no rol dos grandes presidentes da história norte-americana, Roosevelt ainda enfrentou a Segunda Grande Guerra, tendo sido fundamental para a formação da aliança entre seu país, a Inglaterra e a antiga União Soviética, responsável pela derrota do nazismo.

Já Ronald Reagan, republicano, assumiu a presidência em 1981 cercado pelo descrédito derivado da crise que o país vivenciara durante a década anterior. Crise esta que começara em 1970, com o abandono pelo país do acordo de Breton Woods e pela renúncia de Richard Nixon em 1974. Também pelas reviravoltas promovidas pelos choques do petróleo de 1974 e 1979, este último vinculado à revolução islâmica no Irã. Paralelamente, o fim da Guerra do Vietnã, ainda sob o governo Nixon, assim como a aproximação com a China e a assinatura de acordos voltados à diminuição das tensões com a URSS no ambiente da Guerra Fria, significava, para muitos, um atestado de fragilidade norte-americana ante a resiliência do bloco socialista. Mesmo com o choque dos juros de 1979 – e a sensível melhora na economia do país – a sensação mais comum no início da década de 80 apontava para a ‘derrota’ dos EUA na Guerra Fria e para a superação de sua liderança no mundo capitalista pelo Japão. O sucesso dos Jogos Olímpicos de Moscou em 1980, mesmo com a ausência da equipe norte-americana, parecia ser a prova final da derrocada do país.

Contudo, pouco mais de dois anos após a posse de Reagan, a sensação era oposta. A economia se recuperava, os Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, eram sucesso estrondoso e Gorbatchev, líder soviético, anunciava em 1985 suas reformas que, ao fim, significaram a queda do regime socialista no país. Os EUA ‘venciam’ a Guerra Fria, o que foi confirmado em 1989, poucos meses depois do fim do mandato de Reagan, pela queda do Muro de Berlim e pela ampliação, em escala mundial, do modelo norte-americano de democracia liberal associada à economia de mercado. Era a Globalização (neo) liberal ou o “Fim da história” de Francis Fukuyama. Mas, ao contrário de Roosevelt, Reagan foi mentor de uma proposta econômica que ampliava a abordagem liberal, diminua a presença do Estado e de seus gastos em bem estar e resgatava de modo quase que irrestrito a noção de individualismo, de empreendedorismo e de valorização do ‘self made man’. Ou seja, após cinco décadas do New Deal e de sua proposta de reconstrução do país a partir da redefinição do papel do Estado como condutor do desenvolvimento e da coesão social, Reagan resgatava a tradição liberal mais exaltada, valorizando o individualismo e a livre iniciativa como valores fundamentais daquilo que caracterizaria a trajetória do país.

Neste sentido e aparentemente, eram opostos. Mas, ambos, em suas versões particulares, só obtiveram sucesso porque ofereceram à sociedade uma narrativa e um projeto que, por motivos e caminhos diferentes, se associavam aos valores que compõe a história norte-americana. E, principalmente, a uma história que remete à formação de certo sentimento de coletividade. Roosevelt ecoava a solidariedade que estaria na origem dos colonos da Nova Inglaterra frente aos desafios de uma terra fria e inóspita. Já Reagan, na recusa que une os norte-americanos aos avanços e abusos do poder público em detrimento dos direitos individuais. Ou seja, por caminhos diversos, ambos apostaram em versões amparadas em uma narrativa que mais do que qualquer coisa, apelava àquilo que une, e não divide, a população do país.

Por outro lado, o fortalecimento de pautas e propostas que, ao contrário do que foi apresentado pelos dois ex-presidentes, mais separam do que unem os norte-americanos, estaria na origem da imensa incapacidade dos liberais do país em obter a simpatia de partes significativas da sociedade neste quarto inicial do século XXI. Assim entende o historiador da Universidade de Columbia Mark Lilla em sua obra “Os Progressistas de ontem e do amanhã” (Cia das Letras, 2018), que aponta, quase como uma denúncia, a incapacidade dos democratas (partido ao qual é associado) em propor alguma narrativa que resgate o sentido de unidade e não de separação da população do país. Para Lilla, este equívoco reside na opção por políticas identitárias e hipersensíveis feita pelos democratas em detrimento de uma outra, voltada aos valores fundamentais que deveriam ser defendidos pelos liberais. Ou seja, abdicaram de uma visão verdadeiramente política que dialogue com uma ampla tradição de defesa de igualdade de oportunidades e de direitos de todos os indivíduos pelo simples fato de que qualquer um é um cidadão. Por isso, são mais eficientes em criar polêmicas que servem ao ensimesmamento dos indivíduos em seus grupos identitários do que em vencer eleições.

Mais grave ainda, segundo Lilla, é a expansão da abordagem anti-política dos movimentos identitários em espaços que, em tese, deveriam ser universais. Tamanha expansão teria criado indivíduos que, ao olharem mais para si mesmo do que para os outros, se tornam ressentidos, assim como são incapazes de sequer perceber quais valores que levaram, ao longo da história do país, legítimas lideranças como Martin Luther King (e, porque não, Barack Obama?) a oferecer aquilo que realmente representaria o liberalismo norte-americano: uma cidadania amparada em direitos que qualquer norte-americano, independentemente de sua origem étnica e social, de sua condição econômica e de seus estilos e preferências, pudesse chamar de sua.

Em uma frase, tamanha sensibilidade e ensimesmamento, assim como as consequências pouco alvissareiras das (anti) políticas identitárias, são revelados por Lilla. Em resumo, “o paradoxo do liberalismo identitário é que ele paralisa a capacidade de pensar e agir em um sentido que realmente o levará a alcançar resultados que professa querer. É hipnotizado por símbolos: alcançar diversidade superficial nas organizações, recontar a história para focar em grupos marginais e mesmo minúsculos, inventar eufemismos inofensivos para descrever a realidade social, proteger jovens ouvidos e olhos, já acostumados a filmes de terror, de qualquer encontro perturbador com pontos de vista alternativos.” Ou seja, a insistência na narrativa identitária estimula a formação de indivíduos que, ao olharem e valorizarem apenas as suas aparentes diferenças, pouco se voltam a descobrir os valores que nos trouxeram, juntos, até aqui. Com isso, causa mais repulsa do que empatia, o que apenas reforça seu ressentimento. Por isso prefere a resistência à proposta, a anti-política à política. Por isso também não honra as lideranças que fizeram de suas posições e condições minoritárias trampolim para a defesa de uma política realmente inclusiva e cidadã. E por fim, mas não menos importante, não criam uma narrativa que identifique o coletivo, ou o que nos une. Por isso, ao contrário de Roosevelt e Reagan, não ganhará as eleições e, muito menos, marcará indelevelmente nossa história.

*Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper