Viktor Orbán
Revista online | Breve notícia da terra devastada
Luiz Sérgio Henriques*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)
Em Washington, mal começado o governo e já na primeira viagem internacional, o presidente Jair Bolsonaro (PL) cunhou a epígrafe definitiva da obra a que se dedicaria com afinco nos anos seguintes. Conservadores de variado coturno – ou melhor, reacionários do calibre de Olavo de Carvalho e Steve Bannon – ouviram-no proclamar o sentido da “missão divina” que se autoatribuía e que consistia em “desconstruir” e “desfazer” regras e valores, hábitos e instituições, antes de começar a pôr de pé a parte supostamente positiva da sua agenda.
Livramo-nos há pouco da promessa bolsonarista da “construção” a ser cumprida em mais um mandato, mas é forçoso admitir que só quatro anos bastaram para legar um cenário de terra devastada. Em outras palavras, a metade inicial do projeto está realizada. A celebração grosseira do “politicamente incorreto” contaminou parte das elites e infiltrou-se por toda a sociedade, criando um reacionarismo de massas agressivo e destruidor.
Juristas defenderam uma leitura golpista da Constituição – em particular, do artigo 142, simultaneamente curto e prolixo, que na aparência dá voz a quem numa democracia deve ser o “grande mudo”. Médicos militaram, e talvez militem ainda, no movimento antivacina, deixando um traço lastimável de retrocesso civilizatório. E a violência política tornou-se um recurso, quando não legítimo, ao menos aceitável para setores da sociedade contaminados pelo culto às armas e pela tentação de eliminar fisicamente o inimigo interno – se preciso for.
Confira, a seguir, galeria de imagens:
Na verdade, a contrarrevolução política e cultural a que fomos submetidos desde 2019 – e a que, em certa medida, assistimos “bestializados” – teve mais de uma vertente. Desde logo, vimo-nos arrastados pela grande crise das democracias contemporâneas, que está longe de ter se esgotado e parece renovar-se em cada eleição e em cada momento.
Uma crise estrutural, certamente, com aspectos até bizarros. Não é comum que alguém como Viktor Orban, autocrata de um país distante e pequeno (ainda que culturalmente muito relevante), torne-se uma espécie de ídolo global dos “revolucionários” da extrema-direita, inclusive no país-chave do Ocidente, os Estados Unidos. Mais do que ídolo, um modelo para o programa de corrosão das democracias aplicado em várias realidades nacionais. Pois a Viktor Orban fomos também apresentados na posse mesma do presidente Bolsonaro, sinalizando uma aliança e uma afinidade que até então inocentemente ignorávamos.
Há também uma dimensão propriamente interna – ou, mais do que isto, um emaranhado de contradições que são coisas nossas e nos levaram à beira do precipício. A exasperação do conflito político, especialmente a partir de 2013, teve efeitos desastrosos, cuja enumeração exaustiva não cabe aqui.
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Mencionemos só um exemplo. Não soubemos lidar nada bem com o instituto do impeachment. Todos os governos não petistas, sem exceção, foram alvo de insistentes pedidos de impedimento por parte do PT ou de figuras próximas. E, no entanto, o impeachment de Dilma Rousseff, num contexto de recessão brutal e perda de apoio parlamentar, teve como contrapartida a acusação inapelável de “golpe”, como se 2016 tivesse sido o marco zero da ruptura institucional – o que, a bem da verdade, não tivemos em momento algum, sequer em 2018 e menos ainda, obviamente, em 2022. Aliás, com seus sinais de nova esperança, a data mais recente reuniu numa só trincheira todos os personagens de vocação democrática, inclusive os que antes se contrapuseram duramente.
Coisa bem diferente é postular que o segundo mandato do aspirante a autocrata teria aprofundado a ação da toupeira ou, para usar termo militar, o trabalho de sapa contra as instituições consagradas na Constituição. Uma democracia fortemente tutelada e uma sociedade conflagrada poderiam, em conjunto, somar a repressão “tradicional” dos aparelhos de Estado e a violência nascida das entranhas do corpo social, violando todas as dimensões da liberdade duramente conquistadas após a ditadura. E assim terminariam por se desenhar as linhas de um pós-fascismo, ou de um fascismo do século XXI, encerrando tragicamente, com um grau maior ou menor de coerção, o mais longo período de vida democrática que tivemos sob a República.
Há quem diga que construções intelectuais dizem pouco, quase nada, sobre as lutas cruas pelo poder a que se entregam de corpo e alma as forças políticas e que são sua razão única de ser. Afinal, o cinismo autoriza a dizer que programas convincentes sempre podem ser encomendados na primeira esquina e nunca falta gente para fornecer discursos altissonantes.
A vantagem de conjunturas críticas, como esta que ainda não deixamos para trás, é que evidenciam a conexão mais íntima entre ideias e atitudes, ideólogos e políticos – mesmo que uns sejam farsantes e os outros toscos. Uma conexão que funciona para o bem e, como acabamos de ver, vezes sem conta para o mal, o que talvez seja uma das advertências mais poderosas sobre as possibilidades de degradação social e política sempre latentes em qualquer circunstância.
Sobre o autor
*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta
* O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de novembro de 2022 (49ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Mathias Alencastro: Jair Bolsonaro é um Viktor Orbán da série B
Analogias entre brasileiro e autocratas mais bem-sucedidos parecem cada vez mais desproporcionais
Depois de mais uma semana de acontecimentos tirados de um episódio de "Família Soprano", a aura de Jair Bolsonaro, que tanto intimidava no começo do mandato, nunca esteve tão abalada.
Declarar que o presidente será lembrado como uma gripezinha da democracia brasileira seria completamente prematuro. Mas as analogias entre Bolsonaro e os autocratas mais bem-sucedidos da nossa era parecem cada vez mais desproporcionais.
Tome-se por exemplo o caso do húngaro Viktor Orbán, idolatrado por Ernesto Araújo. Objeto de fascínio dos analistas políticos, o seu regime iliberal é frequentemente apontado como o destino natural do governo Bolsonaro.
Se esse for o caso, o caminho ainda é longo. Ativista político desde os anos 1980, Orbán preparou o fechamento do regime durante décadas. Criou um partido que se tornou indissociável do Estado e um império midiático para instaurar um culto à sua personalidade e mobilizar a sociedade em torno do ódio aos imigrantes.
Transformou a luta anti-soviética numa cruzada eurocética e organizou uma frente regional, atrelando graúdos como Marine Le Pen e Matteo Salvini ao seu país de 10 milhões de habitantes.
Bolsonaro comanda um partido que cabe numa planilha de Excel, a Aliança pelo Brasil. Entra em parafuso com uma investigação sobre um punhado de blogueiros e uma horda de robôs iletrados. Apoiou golpes em países vizinhos, mas nunca chegou perto de liderar o Mercosul. Precisa recorrer a truques de tiranos de araque da África do Norte e da América Central para contrabandear para o exterior o seu ministro mais assanhado.
Falando no fugitivo, a educação é o coração da batalha de todo aspirante a autocrata. Orbán desencadeou a sua revolução cultural com uma ofensiva contra a Universidade Centro-Europeia, fundada pelo seu inimigo designado George Soros. A instituição era, segundo ele, o templo do cosmopolitismo que estava arrastando a Hungria à decadência moral. Hoje, seus professores continuam ensinando, mas a partir da Áustria.
Abraham Weintraub chegou para implementar o “Future-se”, um programa de destruição do Ministério da Educação travestido em reforma neoliberal. Entregou uma montanha de medidas provisórias e portarias mal escritas, muitas delas derrubadas na Justiça.
Pretendentes a autocratas fracassados e falidos não são necessariamente mais inofensivos e impopulares do que os seus modelos.
O vandalismo barroco de Weintraub pode provocar danos tão profundos como a meticulosa subversão praticada por Orbán e companhia. Mas são danos de natureza diferente, causados por pessoas com ambições e capacidades distintas.
Há um longo debate para saber se os homens fortes definem a história ou se a história avança à revelia deles. Hoje poucos discordam que Vladimir Putin, Narendra Modi e Viktor Orbán estão escrevendo o futuro das suas nações.
Quiçá Bolsonaro virá a ganhar um lugar nesse sinistro panteão. Mas por enquanto temos de deixar no ar a possibilidade de que uma parte dos brasileiros, na sua ânsia suicida de alçar ao poder um homem forte, tenha comprado gato por lebre.
*Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Luiz Sérgio Henriques: A filósofa e o autocrata
Agnes Heller adverte que a democracia liberal é nossa única chance de sobrevivência
Talvez não seja vezo, vício, muito menos viés o que tem garantido no debate corrente a fortuna do termo “ideologia”, especialmente no seu mau sentido, aquele segundo o qual, se não formos capazes de um esforço severo e constante, terminaremos por ver o mundo com lentes deformadas ou mesmo de ponta-cabeça. A acreditarmos em Agnes Heller, filósofa de sólida formação marxista e há décadas influenciada pelo liberalismo político, passamos rapidamente de uma sociedade de classes para uma sociedade de massas, em que, se as classes obviamente não desapareceram, foram fortemente redefinidas e deixaram de ser percebidas como o motor único ou mesmo principal do comportamento político.
Neste contexto de massas, ideologias tóxicas de novo tipo, manipuladas por aventureiros, tomam a cena, insuflam atitudes irracionais e servem de escora para modalidades inéditas de tiranos e tiranias. As palavras de Heller, registradas por Le Nouvel Observateur e reproduzidas por O Globo, provêm de um dos vários laboratórios atuais dessas perigosas experiências, a sua Hungria natal. Nela, com efeito, Viktor Orbán, personagem com quem nos familiarizamos já no primeiro dia do ano, com sua presença na posse do novo presidente, radicaliza o projeto de democracia iliberal, oposto ao liberalismo não democrático que, segundo ele, assinalaria uma Europa extenuada, sem cultura e sem alma, termos afins aos do nosso ministro das Relações Exteriores.
A “democracia cristã” do autocrata húngaro nada tem que ver com grupos e correntes da mesma denominação que, no segundo pós-guerra, reuniram partes muito expressivas de eleitores influenciados pelo catolicismo, muitas vezes em confronto aberto, mas institucionalmente regulado, com setores do mundo laico, fossem eles liberais ou socialistas. Conflitos ásperos à parte, a velha democracia cristã incorporava amplos contingentes populares à vida do Estado democrático, vitalizando-o e tornando-o mais representativo, transformando-o, por conseguinte, na arena por excelência da disputa política civilizada. Nessa arena preciosa, resultado de longo e cruento percurso histórico, o conflito, então, poderia ser produtivo para todos, tal como provado por décadas de políticas de bem-estar social que não se restringiram à Europa ou aos Estados Unidos de Roosevelt, mas deixaram marcas por toda parte, até no Brasil.
A nova “democracia cristã”, ao contrário, gostaria de generalizar ideias fora de lugar e de tempo – ideologias, exatamente –, como, em particular, o recurso demagógico a egoísmos nacionais e a extremado conservadorismo de valores. O primeiro de tais recursos choca-se, evidentemente, com os traços de uma época em que o gênero humano, provavelmente pela primeira vez, deixa de ser construção mais ou menos abstrata dos filósofos e passa a ser realidade imediata para cada indivíduo, em qualquer canto que esteja. Difícil contornar essa evidência apontando o dedo contra “globalistas”, uma vez que cada país se vê às voltas com fenômenos de todo tipo que escapam às próprias fronteiras. A interdependência, por isso, é o horizonte do nosso tempo para o bem ou, certamente, para o mal, se não soubermos construir os instrumentos capazes de governá-la.
O conservadorismo de valores assenta-se, no caso de Orbán, e não só nele, numa religião singularmente reativa aos processos de modernização e secularização, além de amputada da dimensão solidária e fraterna que nos acostumamos a encontrar nos fatos religiosos. Não há aqui nem sombra de períodos marcados pelo ecumenismo ou pelo “diálogo” com os não crentes, mas, ao contrário, espírito de cruzada a ser invocado na perspectiva de uma guerra de civilizações. Imigrantes são mal-vindos, as religiões que trazem maculam a pureza dos valores locais, o multiculturalismo próprio de uma vida cosmopolita deve ser desprezado. E não é complicado, para demagogos, explorar ressentimentos incrustados no senso comum e produzir tiradas em série contra o “politicamente correto”, denunciado como insuportável “ditadura” de minorias, quando, nos casos melhores, ele é sinal de atenção e reconhecimento de sujeitos e realidades antes invisíveis.
Viktor Orbán, como dizíamos, não está só no mundo. Pertence a uma galeria de personagens autocráticos que pouco a pouco passaram a fazer parte das nossas preocupações cotidianas. Alguns deles, mais agressivos, certamente por agirem em contextos de tradições democráticas mais frágeis, chegaram a concretizar os elementos iliberais com que sonharam. Outros, como Trump ou Salvini, mesmo implementando políticas regressivas, veem-se constrangidos ou limitados por aquilo que se tem chamado de “regras não escritas da democracia”, as quais, materializando amplo consenso em torno das instituições, impedem que as liberdades morram, para aludir ao livro conhecido de Levitsky e Ziblatt. E não se entende muito bem por que o Brasil, segundo palavras recentes do presidente Bolsonaro, deva se aproximar de países, como esses, ideologicamente vizinhos. Só haveria perdas reais e ganhos imaginários, a não ser que a realidade passe a ser percebida de cabeça para baixo.
A voz da outra Hungria, a de Agnes Heller, adverte-nos que a democracia liberal é a nossa única chance de sobrevivência, ainda que nem todas as suas promessas tenham sido cumpridas nem tenham sido exploradas todas as dimensões da liberdade. Mas nenhuma hipótese de mudança social poderá doravante cancelar o regime de liberdades “liberais”, ao contrário do que políticas puramente classistas do passado admitiram e promoveram, com resultados em geral negativos ou até catastróficos. E não há “populismo dos povos” a ser contraposto ao “populismo ideológico” dos grupos de extrema direita. Mas essa é uma outra frente de combate ideal que se deve travar no âmbito dos progressistas. Incessantemente, aliás.