Vicente Costa Pithon

RPD || Vicente Costa Pithon: A promessa do clube-empresa

Validade da Lei das SAFs ainda provoca intensos debates e pode representar mudança estrutural e profunda no futebol brasileiro

Vicente Costa Pithon / RPD Online

Tal qual um fla x flu dos anos 80, cujos embates entre os times de Zico e Assis manipulavam as atenções da massa no Maracanã, o clássico atualmente em voga no futebol brasileiro se dá entre os entusiastas da transformação de nossos clubes de futebol em empresas formalmente constituídas, com suas características legais inerentes, versus os defensores da manutenção de sua atual estrutura associativa hegemônica, sem a figura de “donos” e cujos desígnios (em tese) são decididos pela comunidade de sócios (não confundir com torcedores). Nesse debate, perpassam sentimentos atávicos de identidade cultural, palavras de ordem, interesses comerciais, preconceitos ideológicos, saudosismos e um antagonismo entre visões românticas e econômicas do ludopédio. 

Quase a totalidade de nossos clubes de futebol foi criada entre o final do século passado e o começo deste século por meio de entidades associativas e recreativas, sem fins lucrativos e de caráter sócio-cultural. E assim se mantiveram ao longo dos anos, angariando grande número de adeptos e simpatizantes e se consolidando como fortes ícones culturais. O simples jogo de bola criado por estudantes ingleses iria, no curso do século XX, se transformar num verdadeiro fenômeno de massa, atraindo não só torcedores (transformados em consumidores), mas também grandes interesses econômicos e políticos. 

Transitamos, neste período, entre o amadorismo puro de sua era inaugural, passando por um semi-amadorismo de arrumação, até a década de 1970/80 com a explosão do marketing esportivo, da espetacularização do jogo e do “sport business”

Se dentro de campo abríamos a vanguarda, até aquele momento do tricampeonato mundial, fora dele, na arena das cifras, começávamos a ficar para trás.  

É simbólico que Pelé tenha terminado a carreira no Brasil e recomeçado fora pouco tempo depois, atraído pelos milhões dos americanos. 

Ali era inaugurada a diáspora de nossos craques, cujos destinos preferidos variaram no tempo conforme a força econômica das ligas importadoras. Nesse período, nossas associações se mantiveram como entidades fechadas e autocentradas, em sua maioria comandadas por feudos políticos e dirigentes eleitos por uma parcela de sócios ou conselheiros que não representam nem 1% de seus adeptos. A título de ilustração, a última eleição no Flamengo teve um universo de pouco mais de 3 mil votantes, para uma torcida calculada em cerca de 40 milhões de pessoas. 

No começo da década de 90, a chamada Lei Zico foi a primeira que autorizou a transformação de nossos clubes em empresas. Poucos anos mais tarde, em 1998, a Lei conhecida por outro craque, Pelé, chegou a obrigar essa transformação. Mas logo depois essa imposição viria por terra, deixando novamente a critério dos clubes seu formato jurídico.  

Posteriormente, houve uma avalanche de investimentos no futebol mundo afora. Grandes multinacionais, fundos de investimento e até mesmo soberanos de países autocráticos entraram no mundo da bola. O formato empresarial alcançou a maioria das grandes ligas europeias, sendo mandatório em boa parte delas e incrementando significativamente seu poder financeiro. Ao mesmo tempo, problemas surgiram com casos de investidores ineptos, lavagem de dinheiro e o chamado “sportswashing”, ou o uso do esporte para melhorar a imagem ou reputação de países e líderes nacionais. 

Nesse período, nossos clubes mais tradicionais acumularam dívidas, sob o beneplácito estatal. O teto de receitas em um ambiente sem fair play financeiro ou uma liga profissional que torne o produto dos jogos mais rentável, associado a dirigentes amadores que usaram seus clubes apenas como trampolins políticos, formaram a equação que levou instituições como Vasco da Gama, Cruzeiro e Botafogo à bancarrota. E a solução apontada foi o clube-empresa. 

Os ecos chegaram ao Congresso Nacional em 2019. Inicialmente, aprovou-se na Câmara dos Deputados projeto de lei de formato empresarial aberto, pró-mercado e sem levar em conta as particularidades bastante específicas do futebol. Por uma mudança de forças políticas, o Senado acabou por aprovar outro projeto (e que prevaleceu), criando a Sociedade Anônima do Futebol-SAF, de inspiração ibérica e com condicionantes e formatação exclusivas para o futebol.  

A validade da Lei das SAFs provoca, desde então, intensos debates na dinâmica interna do futebol brasileiro. De solução à ameaça, de aposta necessária a risco, ela pode, sem dúvida, representar uma mudança estrutural e profunda no futebol brasileiro. Se será bem executada, como uma falta magistralmente cobrada por Zico, só o tempo dirá. 


Saiba mais sobre o autor
Vicente Costa Pithon é consultor legislativo do Senado, mestre em Direito pela UnB e especialista em Direito Desportivo.