Vice-presidente

Oliver Stuenkel: Mourão entra em campo contra os antiglobalistas

Vice-presidente, chamado informalmente de "o adulto na sala" por diplomatas estrangeiros, é visto como âncora de estabilidade de um Governo cuja atuação externa é volátil e confusa

Fica cada vez mais evidente que a estratégia da política externa brasileira, articulada pelo chanceler Ernesto Araújo, o presidente Bolsonaro e seu filho Eduardo, está deixando inseguros investidores internacionais e outros governos. Araújo é visto como ideológico demais (algo que os investidores sempre temem, não importa se a ideologia é de esquerda ou de direita). Já Eduardo, que atua como um ministro das Relações Exteriores informal, passa a imagem de ignorante e muito radical para inspirar confiança no exterior, mesmo por parte de funcionários do governo dos EUA, que veem com bons olhos o Governo Bolsonaro. O péssimo discurso de Bolsonaro em Davos pareceu resumir a atuação da turma antiglobalista até agora, desapontando investidores que tinham aguardado uma fala mais séria – e que, de certa maneira, estavam torcendo para o novo presidente.

"Ainda bem que eles têm Mourão" é um comentário que se ouve com cada vez mais frequência no exterior. De fato, o general da reserva e vice-presidente é agora visto pela comunidade internacional como a âncora de um navio que, sem ele, estaria à deriva no que diz respeito à estratégia internacional.

Mourão difere do resto da equipe de política externa de Bolsonaro em estilo e substância. Enquanto os outros atores do governo são conhecidos por sua retórica estridente e agressiva, Mourão é moderado e calmo. Em uma entrevista recente, o vice-presidente não se esquivou de responder perguntas difíceis – ao contrário de seu chefe, que frequentemente ataca jornalistas quando estes discordam dele. Mourão chamou a atenção no exterior quando, em entrevista a uma repórter espanhola e a um brasileiro, respondeu as perguntas em espanhol fluente, o qual aprendeu como adido militar em Caracas.

Quando se trata de conteúdo, Mourão resiste sabiamente às ideias mais radicais e mal concebidas dos antiglobalistas, como transferir a embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, deixar o Acordo de Paris sobre mudança climática, abrigar uma base militar dos EUA e, a mais perigosa de todas, adotar tom agressivo em relação à China. Não é coincidência que um número crescente de embaixadores esteja procurando Mourão, o qual – eles esperam – continuará a impedir Bolsonaro de cometer graves erros políticos no âmbito externo. Nenhum vice-presidente na história recente foi tão necessário para a estabilidade da política externa do Brasil, já nas primeiras semanas de Governo, quanto Hamilton Mourão.

Ainda assim, previsivelmente, o papel estabilizador do vice-presidente na política externa do Brasil lhe rendeu a ira dos radicais (inclusive Olavo de Carvalho e Steve Bannon, dos EUA). A questão-chave é: até que ponto Mourão será capaz de vetar todas as ideias esdrúxulas que certamente ainda virão da ala antiglobalista do governo?

A verdade é que, idealmente, Mourão não deve ser apenas bombeiro-chefe e jogar na defesa para proteger a política externa brasileira de erros graves. Também tem potencial para adotar um papel mais ativo e propor novas iniciativas no âmbito externo. Três em particular vêm à mente.

Primeiro, Mourão seria o homem certo para liderar a posição do Brasil em relação à Venezuela, maior desafio em curto e médio prazos na política externa hoje. De longe a pessoa mais bem informada no gabinete sobre o assunto, Mourão também tem a vantagem de ser um militar, capaz, portanto, de lidar com a instituição que determinará o futuro do país vizinho: as Forças Armadas. Isso envolveria a articulação da resposta complexa à crise migratória venezuelana em todo o continente. Mourão poderia, ainda, convocar uma cúpula regional para discutir o assunto e decidir como coordenar conjuntamente o registro, a distribuição e a integração dos migrantes venezuelanos. Juntamente com outros países da região, ele também poderia organizar a criação de um fundo para compensar os países mais afetados pela crise migratória, como Colômbia, Equador e Peru. Além disso, coordenaria, com a Colômbia e outros, o envio de ajuda médica e humanitária à Venezuela, assim que o Governo Maduro – ou qualquer governo sucessor – o permitir.

Em segundo lugar, como projeto de médio prazo, Mourão poderia liderar um processo de aprofundamento da cooperação entre as Forças Armadas na América do Sul, dando continuidade a um movimento deflagrado por Nelson Jobim, ministro da Defesa de Lula. Isso poderia funcionar por meio de uma instituição existente, como o Conselho de Defesa Sul-Americano, e deveria envolver, entre outras iniciativas, exercícios militares conjuntos, missões para lidar com desastres naturais e participação em missões de paz da ONU. Isso até poderia ajudar a aumentar a pressão sobre suas contrapartes nas Forças Armadas da Venezuela – que perderão muito com uma transição para a democracia, dados os privilégios que acumularam sob Maduro – para permanecerem em seus quartéis independentemente de quem seja o futuro líder. A plataforma revigorada poderia, em futuras crises desse tipo, oferecer aos países vizinhos um canal adicional para o diálogo e a coordenação.

Finalmente, Mourão poderia se tornar responsável pela estratégia do Brasil em relação a Pequim, um tema de extrema relevância para o futuro do Brasil em curto, médio e longo prazos. Isso poderia incluir assumir o portfólio do grupo BRICS, que nem o presidente nem o ministro das Relações Exteriores consideram de grande relevância. Enquanto o presidente Bolsonaro, seu filho e o ministro das Relações Exteriores expressaram, até agora, ideias simplistas e preocupantes sobre a China, Mourão seria capaz de encontrar um meio-termo entre o receio legítimo sobre o que a ascensão chinesa implica e o otimismo quanto às muitas oportunidades na crescente presença do país na América Latina.

A queda de braço entre Hamilton Mourão e os antiglobalistas deverá marcar a estratégia internacional do governo Bolsonaro. Resta saber se Mourão sairá vitorioso e conseguirá salvar a política externa brasileira dos próximos anos.

*Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo, onde coordena a Escola de Ciências Sociais em São Paulo e o MBA em Relações Internacionais. Também é non-resident fellow no Global Public Policy Institute (GPPi) em Berlim e membro do Carnegie Rising Democracies Network.


Cláudio Gonçalves Couto: O vice à espreita

Desgaste precoce do presidente dá espaço ao vice

Tradicionalmente, a escolha do candidato a vice nas chapas majoritárias é parte da construção da coligação eleitoral. Isso vale nas eleições de prefeito, governador e presidente da República. Assim, é comum que algum partido aliado daquele do cabeça de chapa seja responsável pela indicação do eventual substituto. Frequentemente, escolhe-se também um vice que agregue algo que falta à imagem do candidato principal, ampliando-o em termos regionais, de extração social, gênero ou ideologia.

Desse modo, homens se fazem acompanhar de mulheres; sindicalistas de empresários; sulistas de nordestinos; conservadores de progressistas e assim por diante. É raro optar voluntariamente por uma chapa puro-sangue, já que ela normalmente não amplia a mensagem. Mas sempre há exceções, que inclusive obtêm sucesso eleitoral.

Exemplo disso foi a chapa vitoriosa de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão. Embora de legendas diferentes, o que menos importava para ambos eram seus respectivos partidos, meros veículos para as candidaturas - apesar de o PSL de Bolsonaro ser muito ajudado pelo entusiasmo com a mensagem do candidato presidencial, elegendo por tabela congressistas, parlamentares estaduais e governadores. Tanto Bolsonaro como o vice eram militares reformados de discurso radical e estilo simples, pouco se distinguindo. O descarte de uma vice mulher, como Janaína Paschoal, ou de um civil de nome aristocrático, como o "príncipe" Luiz Felipe de Orleans e Bragança, mostrava que a intenção era mesmo transmitir uma mensagem sem nuances.

Tal escolha talvez se justificasse pelos tempos radicalizados que vivemos e que marcaram a última campanha eleitoral, com o discurso contra o politicamente correto, contra a moderação e prometendo até mesmo "fuzilar a petralhada". Sendo assim, nada melhor do que um vice que reforçasse a imagem dura de Bolsonaro, tendo inclusive já defendido intervenção militar para resolver crises e sendo, assim como ele, um admirador do torturador Brilhante Ustra.

A ideia foi apoiada pelo sempre influente núcleo familiar do presidente. Disse Eduardo Bolsonaro, o filho 03, em agosto de 2018, durante a Convenção do PSL que confirmou a chapa: "Sempre aconselhei o meu pai: tem que botar um cara faca-na-caveira para ser vice." Contudo, não se tratava apenas de reforçar a mensagem radical da chapa; era também uma salvaguarda contra eventuais conspirações. Nos termos do mesmo 03: "Tem que ser alguém que não compense correr atrás de um impeachment."

Sob esse aspecto, o acerto da escolha excedeu as expectativas ao ponto de causar problemas, com o vice sendo "mais realista que o rei" - ou dando declarações mais radicais do que aquelas que o próprio Bolsonaro daria. Mourão investiu contra o décimo-terceiro salário, ponderou que em certas condições seria defensável um autogolpe, definiu negros como malandros e índios como indolentes, além de associar a beleza de seu neto ao branqueamento da raça. Foi necessário que o cabeça-de-chapa desautorizasse o vice, apontando seu desconhecimento da Constituição e sua inexperiência política, determinando-lhe que se calasse e afirmando que apesar de ser Mourão o militar reservista de mais alta patente, seria ele, Bolsonaro, o presidente - e, portanto, o chefe.

Eis que ambos são eleitos e o país experimenta a transição de governo mais tumultuada de que se tem notícia desde a redemocratização, com repetidas decisões seguidas de recuos, brigas dentro da bancada do PSL, bate-bocas entre os filhos de Bolsonaro e integrantes da equipe, anúncios de nomeações não confirmados, mal-entendidos do czar da economia em relação ao Congresso e aos políticos. Começa o governo, mas os problemas não cessam: entre diversas batidas de cabeça, o filho 01, Flávio Bolsonaro, vê-se enrascado num imbróglio que o vincula a movimentações estranhas de dinheiro e grupos de milicianos; e o presidente tem performance vexaminosa em Davos - como observou a imprensa internacional.

Nesse cenário de caos, o vice reemerge, ironicamente, como possível reserva de sensatez em meio ao contexto brancaleônico capitaneado por presidente e família. Não que o próprio Mourão não enfrente percalços, inclusive também envolvendo a própria família. Porém, diante do enrosco de Flávio Bolsonaro e dos rompantes dos outros dois "garotos" do presidente, a meteórica ascensão do filho do vice no Banco do Brasil perde relevo - assim como suas declarações erráticas sobre a reforma da previdência e a possível intervenção no comando da Vale.

A questão é que, diferentemente de Bolsonaro e familiares, Mourão parece ter-se despido de vez do figurino de candidato em campanha e adotado postura mais comedida e, por consequência, presidencial. O contraste ficou claro em dois casos envolvendo opositores: primeiro, o posicionamento diante do autoexílio do deputado reeleito Jean Wyllys; enquanto Mourão manifestou preocupação, Bolsonaro e seus filhos escarneceram (e seguem escarnecendo) do anúncio. O segundo foi a declaração de Mourão relativamente à possibilidade de Lula comparecer ao velório do irmão, quando afirmou se tratar de "questão humanitária".

A mudança de postura do vice, associada à percepção das maiores preocupações institucionais dos militares que se fazem presentes no governo, contrasta com a permanente beligerância do presidente e seu clã, assim como dos sinais de seu despreparo para o cargo - conforme apontado nesta semana tanto em reportagem da "Folha de S.Paulo", como em matéria do tradicional newsletter "Relatório Reservado". Com isto, com menos de um mês de governo, já se discute a possibilidade de tutela sobre o presidente - para o quê Mourão seria fundamental.

A situação já produz irritação nas hostes bolsonaristas, ao ponto de - ainda segundo a "Folha" - um dos filhos do presidente reconhecer que o vice tenta se mostrar mais confiável que o pai. Para um governo que mal completa seu primeiro mês é péssimo sinal que já haja tão pouca confiança entre seus membros - ainda mais quando se acreditava serem tão parecidos.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP


Eliane Brum: Mourão, o moderado

A volta dos generais ao poder no governo do capitão que vai virando o bode na sala

Em agosto de 2018, Eduardo Bolsonaro disse à Folha de S. Paulo: “Sempre aconselhei o meu pai: tem que botar um cara faca na caveira pra ser vice. Tem que ser alguém que não compense correr atrás de um impeachment”. Depois de várias tentativas fracassadas, Jair Bolsonaro acabou escolhendo o general da reserva Hamilton Mourão para ser seu vice na chapa que acabou vitoriosa. Ele atendia ao requisito exposto pelo terceiro filho, o de proteger o presidente, a partir da sombra das Forças Armadas.

Por um lado, um país que viveu 21 anos de ditadura militar, no qual centenas foram sequestrados, torturados e mortos, deveria ter resistência à volta de um general no comando da nação. Até então, os defensores do retorno da ditadura militar formavam um grupo minoritário, meio amalucado e sempre apontado nos movimentos da “nova direita”, na Avenida Paulista, epicentro das manifestações de rua no Brasil. Por outro lado, o vice estaria sintonizado com os quartéis para garantir a presidência, muito mais do que um capitão que chegou a ser preso por indisciplina e que, nas últimas três décadas, tornou-se político profissional. O vice “faca na caveira” seria um seguro anti-impeachment para Bolsonaro.

Hoje, ao final de um primeiro mês de governo com mais crises do que qualquer um dos anteriores, o “mito” começa a ser desmitificado por parte dos mitômanos que o elegeram, já recebe críticas pesadas dentro do seu partido e os descontentamentos no núcleo duro do governo são perceptíveis. Mourão, que até então era conhecido como uma língua solta e truculenta acima das quatro estrelas do peito, tornou-se, por comparação, um exemplo de sensatez, diplomacia e bons modos. Com o bode na sala, outros espécimes tornam-se subitamente aceitáveis.

O “faca na caveira” é elogiado por diplomatas como o embaixador da Alemanha, que diz ter tido uma conversa “excelente” com Mourão, e manda afagos à imprensa pelo Twitter, a mesma rede social em que a família Bolsonaro ataca os jornalistas, algo que funcionou na campanha mas está dando sinais de esgotamento. Mourão, o gentleman, tuitou em 23 de janeiro: “Quero agradecer a atenção e cumprimentar pela dedicação, entusiasmo e espírito profissional a todos os jornalistas que me recebem na minha chegada e de mim se despedem quando deixo o anexo da vice-presidência. Boas matérias a todos!”.

Tudo é uma questão de referência. E, quando a referência é Bolsonaro, é fácil um Mourão soar moderado. Em caso de naufrágio, qualquer tábua de pinho vira navio.

Era melhor ele “Jair se acostumando”, mas Jair não se acostuma

Mourão melhorou? Não. Bolsonaro piorou? Não. O que acontece é que agora Bolsonaro é o presidente. Era melhor ele "Jair se acostumando", mas Jair não se acostuma. Segue acreditando que ainda está fazendo campanha e que continuará ganhando no grito das redes sociais.

A série de tuítes que publicou após a divulgação de que o deputado federal eleito Jean Wyllys (PSOL) deixaria o país por ter medo de ser morto é a expressão do comportamento de Bolsonaro. Wyllys, o primeiro deputado declaradamente gay a assumir uma cadeira no Congresso, iniciaria em fevereiro o terceiro mandato. Recebendo ameaças de morte semanais, andava com escolta policial desde março de 2018, quando sua colega de partido, a vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, teve a cabeça arrebentada a tiros, um crime até hoje não apurado e impune.

Entre as ameaças que o parlamentar recebeu, estavam as seguintes, conforme divulgou o jornal O Globo: “Vou te matar com explosivos", "já pensou em ver seus familiares estuprados e sem cabeça?", "vou quebrar seu pescoço", "aquelas câmeras de segurança que você colocou não fazem diferença". E esta: “Vamos sequestrar a sua mãe, estuprá-la, e vamos desmembrá-la em vários pedaços que vamos te enviar pelo Correio pelos próximos meses. Matar você seria um presente, pois aliviaria a sua existência tão medíocre. Por isso vamos pegar sua mãe, aí você vai sofrer”.

Duas horas depois da notícia de que deixava o Brasil, uma mensagem foi enviada a Jean Wyllys: "Nossa dívida está paga. Não vamos mais atrás de você e sua família, como prometido. Mesmo após quase dois anos, estamos aqui atrás de você e a polícia não pôde fazer nada para nos parar".

O que deveria fazer o presidente de um país em que um parlamentar é obrigado a abdicar do mandato para salvar a vida? Certamente não mandar uma série de tuítes, começando por “Grande dia!”, seguido por um sinal de positivo. Depois, claro, Bolsonaro disse que se referia ao cumprimento de sua “missão” no Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça.

Bolsonaro tinha 45 minutos para falar sobre o Brasil, mas só usou seis: “grande fracasso”, definiu um dos principais jornais do mundo

Também no nível escolar (ruim) foi o seu discurso em Davos. Tinha 45 minutos disponíveis para falar sobre seu projeto para o Brasil para uma plateia internacional altamente qualificada e influente. Só ocupou seis minutos e meio. Aparentemente não tinha o que dizer. Diante do público de Davos, sua apresentação foi um “big fail” (grande fracasso), como definiu o jornal americano Washington Post. No púlpito, o presidente do Brasil soava como um estudante medíocre de colégio, apresentando um trabalho copiado de um colega, porque nem convicção havia. As frases não se conectavam umas com as outras.

“Fiasco” foi a palavra usada por uma colunista do jornal francês Le Monde, no Twitter, para definir a participação do presidente do Brasil. Para ampliar o vexame, Bolsonaro, o superministro da economia, Paulo Guedes, o superministro da Justiça, Sergio Moro, e o superdelirante chanceler, Ernesto Araújo, não apareceram para a entrevista coletiva à imprensa. Foram três explicações diferentes, nenhuma convenceu sobre o porquê do desrespeito que chocou jornalistas e os organizadores do fórum. Desconfia-se, porém, que Bolsonaro temia perguntas difíceis sobre o escândalo que ronda o primeiro filho e alcança a conta bancária de sua mulher. Afinal, os jornalistas que cobriam Davos não eram repórteres de estimação.

Bolsonaro, como presidente, é o que sempre foi, aquele tio que constrange as pessoas na festa, porque tosco e sem noção. De esconder sua natureza, ninguém pode acusá-lo. Ele sempre foi isso aí. Dava para fingir que era “mito” enquanto tudo ficava no nível de torcida de futebol. Na presidência da República, porém, sua figura se desloca para outro lugar.

Não é mais Bolsonaro, “o mito”; também não é Bolsonaro, “o coiso”. É a presidência da República, lugar com mística própria, ocupada pela mediocridade. E a mediocridade é perigosa. Os olhos de parte do mundo, como em Davos, percebem e se horrorizam. "Ele me dá medo”, disse Robert Shiller, prêmio Nobel de Economia e professor na Universidade de Yale, depois de ouvi-lo. “O Brasil é um grande país. Merece alguém melhor."

Brasileiros que votaram em Bolsonaro pelas mais diversas razões, mas que não perderam a capacidade de fazer sinapses, passam a enxergar Bolsonaro agora com olhos de fora do gueto. O deslocamento de lugar, do palanque para o palácio, torna a bolha ocular permeável. Não é por acaso que Bolsonaro tampouco consegue deixar o discurso de candidato. Ele não sabe como ocupar o lugar de presidente. Também ele acusa a dificuldade do deslocamento. Afinal, não era uma brincadeira. Não basta mais arrotar bravatas. Do presidente as pessoas querem resultados na vida cotidiana. E não querem ver o mundo rir do despreparo pelas suas costas.

A divulgação da imagem de Bolsonaro almoçando no bandejão de Davos foi uma tentativa de candidato em campanha, de forjar a identificação, mas foi ofuscada pelo desempenho real do presidente eleito. O mundo não está gritando “mito!”, “mito!”. O mundo está perplexo com o vazio de Bolsonaro, o medíocre, liderando um país com o tamanho do Brasil e a maior porção da floresta amazônica em seu território.

Bolsonaro ocupa o cargo, está dado, já é. Vai para diante do mundo e faz um discurso de garoto de escola que estuda pouco e não presta atenção às aulas. Mesmo quem fez campanha contra tudo o que ele representa, torceu nesta hora para que algum assessor tivesse feito o trabalho para o qual é pago. Porque agora é o Brasil. O vexame de Bolsonaro é a vergonha de todos.

Neste mundo em que Bolsonaro é presidente do Brasil há garotas de escola como a sueca Greta Thunberg, de 15 anos, que no fim de agosto iniciou uma greve pelo clima. Deixou de ir às aulas e postou-se diante do parlamento, em Estocolmo, para protestar dia após dia contra a incompetência e a omissão dos políticos no enfrentamento da crise climática. Desde então, Greta inspira jovens e protestos estudantis em diversas partes do planeta.

Convidada a discursar na Cúpula Mundial do Clima, na Polônia, Greta, uma trança de cada lado do rosto redondo, fez uma fala que se tornou viral pela inteligência. Terminou com o seguinte recado à plateia sênior e ilustre: “Viemos até aqui para informar (aos líderes mundiais) que a mudança está a caminho, queiram eles ou não. As pessoas se unirão a este desafio. E já que nossos líderes se comportam como crianças, teremos que assumir a responsabilidade que eles deveriam ter assumido há muito tempo”.

Se Bolsonaro quer se comportar como garoto de escola, que seja com o nível de maturidade de Greta. É neste mundo que Bolsonaro passa a representar o Brasil. Não há paciência para um presidente que não tem o que dizer e para um chanceler que afirma que aquecimento global é um complô marxista. Como aponta Greta, os problemas do mundo são grandes demais para que os adultos abdiquem da maturidade necessária a uma época de crise climática, condenado jovens como a ela a ter um futuro muito ruim – ou mesmo nenhum futuro.

Homens como Paulo Guedes e Sergio Moro podem sofrer um tanto por desfilar seus peitos de peru de Natal ao lado de Bolsonaro

É possível supor que homens com a vaidade de Paulo Guedes e Sergio Moro devam sofrer um tanto por desfilar seus peitos de peru de Natal ao lado de Bolsonaro e sua entourage, em salões internacionais onde gostariam de brilhar por seu verniz intelectual. Mas se a questão fosse só a mediocridade, talvez fosse tolerável.

O problema é que o primeiro mês de governo acaba, e é só o primeiro mês de governo, com evidências contundentes de que a família Bolsonaro – e não apenas o primeiro filho, Flávio Bolsonaro – pode estar envolvida em corrupção. E corrupção foi a grande bandeira que moveu as massas nos protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff e no apoio à candidatura Bolsonaro.

Como então explicar os depósitos na conta bancária do primeiro filho pelo ex-policial militar Fabricio Queiroz, ex-assessor, ex-motorista e sempre amigo de Flávio Bolsonaro? Como explicar os 40 mil reais na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro? Como explicar o enriquecimento de Flávio Bolsonaro, incompatível com seus ganhos? Como explicar que Flávio Bolsonaro pediu foro privilegiado ao Supremo Tribunal Federal – e por enquanto levou, graças ao inacreditável (em vários sentidos) ministro Luiz Fux? Como explicar o que todos os envolvidos têm feito tudo para não explicar?

Bolsonaro se atrapalha com os próprios pés. Não sabe se deve se comportar como presidente do Brasil ou como pai de filho mimado. Possivelmente porque não há como desfazer os nós desse novelo. Como quando disse ao jornal O Globo: “Não é justo atingir o garoto, fazer o que estão fazendo com ele, para tentar me atingir. (...) Ao meu filho, aquele abraço. Fé em Deus que tudo será esclarecido, com toda certeza”.

O “garoto” tem 37 anos, é senador eleito da República e foi deputado estadual do Rio de Janeiro por quatro mandatos. Além de enriquecer rapidamente, o primeiro filho desenvolveu o dom divino da onipresença, ao conseguir a façanha de estar em duas cidades, dois estados, ao mesmo tempo. Como revelou a BBC News Brasil, entre 2000 e 2002 ele trabalhou em Brasília como assistente técnico de gabinete do PPB, partido de Bolsonaro em seu terceiro mandato como deputado federal, um emprego de 40 horas semanais. Ao mesmo tempo, cursava a faculdade de Direito na Universidade Cândido Mendes e fazia um estágio na Defensoria Pública do Estado, no Rio de Janeiro.

Ao ser indagado pela jornalista do Washington Post Lally Weymouth sobre o escândalo envolvendo seu filho, que teria “empregado pessoas com laços estreitos com membros de gangues”, Bolsonaro quase deu piti : “Este não é um assunto de governo – ou da sua conta – mas eu vou dar a minha opinião. Seu nome de família, Bolsonaro, é a razão. É resultado de acusações políticas ao meu governo”. Neste momento, até mesmo bolsonaristas fiéis começam a achar que as suspeitas que pairam sobre o primeiro filho são da conta de todos os brasileiros, sim.

Aliados estratégicos como o MBL e Janaína Paschoal começam a afastar o corpinho

Aliados estratégicos tanto no impeachment de Dilma Rousseff quanto no apoio à campanha de Bolsonaro começam a afastar o corpinho para o lado, a exemplo do Movimento Brasil Livre (MBL), que só tem compromisso com seu próprio projeto de poder. E como a deputada estadual Janaína Paschoal (PSL), uma das autoras do pedido de impeachment que acabou afastando Rousseff, eleita por São Paulo com dois milhões de votos. Não há espaço para bobos nesse jogo pesado.

“Não sou guru dessa porcaria”, diz o guru

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Janaina Paschoal afirmou: "(Flavio Bolsonaro) tem todo o direito à defesa, a entrar com todas as medidas, mas me parece complicado ver uma reação parecida com a que foi a do Aécio (Neves), e com a que é a do Lula até hoje”. E, em outro trecho: “O sigilo sobre a investigação não pode haver. Vamos imaginar que haja alguma coisa errada com o senador. Se isso tivesse aparecido antes da eleição, ele provavelmente não teria sido eleito". Paschoal contou também que seu pai perguntou a ela se continuaria no PSL após essas denúncias. Ela está pesquisando a legislação para ver se é possível deixar o partido sem perder o mandato.

Até mesmo o guru do governo Bolsonaro, Olavo de Carvalho, anda se irritando por ser chamado de guru do governo Bolsonaro. Quando um grupo de parlamentares do PSL foi para a China, ele gravou um vídeo dizendo: “E eu sou guru dessa porcaria? Não sou guru de merda nenhuma”.

Um escândalo de corrupção no primeiro mês de qualquer governo é um problema. Um escândalo de corrupção no primeiro mês de um governo que apoiou sua plataforma no discurso fácil da anticorrupção é um pesadelo. As suspeitas, porém, vão muito além da corrupção. Elas alcançam relações mais perigosas. E não com qualquer crime, mas um crime de repercussão internacional: o assassinato de Marielle Franco, uma vereadora negra, lésbica e moradora da Maré, ocorrido há quase 11 meses sem que a polícia tenha concluído a apuração. Quando 2018 terminou, as autoridades responsáveis chegaram ao fundo do buraco sem fundo: tentavam apurar porque não conseguiam apurar o crime. Hoje, finalmente, a investigação começa a avançar. E chega bem perto da família do presidente.

Flávio Bolsonaro pode estar envolvido com a milícia Escritório do Crime, principal suspeita do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes. A mãe e a mulher do ex-capitão da PM Adriano da Nóbrega, um dos líderes da milícia e hoje foragido, trabalhavam no seu gabinete. Como deputado estadual, Flavio deu a Nóbrega a medalha Tiradentes, a maior honraria da Assembleia Legislativa do Rio. Na ocasião, o então PM estava preso por um dos homicídios atribuídos a ele.

As milícias cariocas são organizações criminosas formadas majoritariamente por agentes do Estado ligados às forças de segurança, como policiais civis e militares, bombeiros, agentes penitenciários e integrantes do Exército. Os vários episódios em que Flavio apoiou e protegeu esses criminosos que extorquem e aterrorizam as comunidades pobres, assim como matam por encomenda, são agora lembrados. As conexões tornam-se mais explícitas à luz dos novos fatos.

Dois pesos, duas medidas: o filho de 37 anos, que pode estar envolvido com milícias e corrupção, é “garoto”; já para os garotos dos pobres têm que reduzir a maioridade penal já

O presidente que, tão logo assumiu, liberou a posse de armas de fogo num país com quase 64 mil assassinatos por ano tem um filho próximo das milícias que produzem crimes. É interessante observar a diferença dos pesos e medidas: o filho de 37 anos, senador eleito, seria um “garoto” vítima de uma campanha difamatória para atingir seu governo, na versão do presidente do Brasil. Já para os filhos dos outros, a maioria negros e pobres, os que de fato são garotos, a turma de Bolsonaro defende cadeia já. Quando não pena de morte. Para o próprio filho, maioridade penal aumentada para, quem sabe, 40 anos. Para os filhos dos outros, maioridade penal reduzida.

Queiroz é uma bomba-relógio bem no meio da mesa de pão com leite condensado e copos de plástico da família Bolsonaro, aquela que apostou no marketing do gente como a gente na campanha eleitoral. Mas quem quer agora ser gente como essa gente?

Apenas no primeiro mês de governo, a família Bolsonaro aparece com suspeitas de envolvimento com corrupção e de proximidade com a milícia que pode ter assassinado uma das mais atuantes vereadoras de esquerda da nova geração de parlamentares. O que virá nos próximos meses ou nos próximos quatro anos? A pergunta não assombra apenas os opositores, começa a tirar o sono dos aliados.

Este pode não ser um problema para Paulo Guedes, já que os chamados Chicago Boys não tiveram dilemas morais ou éticos para comandar a economia na ditadura de Augusto Pinochet, entre os anos de 1973 e 1990, no Chile. Lá implantaram um programa extremista neoliberal só possível num regime de exceção, que não precisa convencer a sociedade ou negociar com ela, apenas impor medidas pelo caminho autoritário.

Pode, porém, ser um problema para Sergio Moro, que quer muito passar para a história como o herói anticorrupção, o superjuiz da Lava Jato que “limpou” o Brasil. Moro pode estar se perguntando como fará para não manchar sua capa no esgoto dos Bolsonaro. Já não estava fácil conviver com ministros que veem Jesus em goiabeira e acusam a esquerda de criminalizar o ar-condicionado. Mas o dedão do Queiroz na conta bancária da primeira-dama é de outra ordem.

Quando Bolsonaro despontou como o possível vitorioso desta eleição, diferentes elites se aproximaram dele com a certeza de que poderiam usar sua popularidade para chegar ao poder – ou apenas para mantê-lo. Setores do Exército sabiam que ele era um capitão que não respeitava hierarquia, um subordinado que já tinha se mostrado fora de qualquer controle, o que determinou tanto sua saída das Forças Armadas quanto o início de uma carreira de quase três décadas como deputado bufão. Mesmo assim, decidiram arriscar.

Estavam errados? Depende do ponto de vista e dos objetivos. A operação que levou ao poder um capitão reformado notável pelo despreparo, mas que se mostrou altamente popular, é brilhante. Bolsonaro não representava as Forças Armadas. O que ele podia representar, com quase 30 anos no baixo clero do Congresso, é o baixo clero do Congresso. Mas Bolsonaro usou o Exército e foi usado por ele.

O terceiro filho, Eduardo Bolsonaro, não estava totalmente errado ao dizer que o pai se colocaria além do risco de impeachment se tivesse como vice um general. Ele estava, ao mesmo tempo, reconhecendo o trauma deixado pela ditadura e usando o trauma deixado pela ditadura a favor da família. Aparentemente, seria muito difícil um general se eleger presidente pelo voto num país que amargou 21 anos de um regime de exceção comandado por uma sequência de generais. Aparentemente, seria difícil que os brasileiros desejassem que um vice que também é general passasse a ocupar o posto máximo da República. Aparentemente, Mourão usaria sua proximidade com as forças armadas para proteger o mandato de ambos.

Ao apoiar a eleição de Bolsonaro, os generais conseguiram uma façanha como estrategistas políticos

Ao apoiar a eleição de Bolsonaro, os generais da ativa e da reserva conseguiram uma façanha como estrategistas políticos. A composição do governo Bolsonaro é complexa. Mas, de tudo o que é, este é um governo militarizado: o vice-presidente é general da reserva, o porta-voz é um general da ativa e sete ministros são militares, o equivalente a um terço do ministério. Segundo o jornalista Rubens Valente, em reportagem da Folha de S. Paulo de 20 de janeiro, já passam de 45 os militares nomeados ou prestes a serem nomeados em 21 áreas do governo, “da assessoria da presidência da Caixa Econômica ao gabinete do Ministério da Educação; da diretoria-geral da hidrelétrica Itaipu à presidência do conselho de administração da Petrobras”.

O número de militares no governo cresce a cada dia. É um grande poder não apenas de influência, mas de ação, com “uma força econômica que ultrapassa as centenas de bilhões de reais”. O que falta para ser um governo militar? Esta é uma pergunta que não tem resposta fácil, mas cuja resposta já está sendo construída.

As Forças Armadas devem a Bolsonaro a volta dos militares ao poder na democracia

As Forças Armadas, e especialmente o Exército, consumaram a proeza de voltar ao poder na democracia. Devem isso a Bolsonaro. O então deputado, com sua estridência e histrionismo, prestou vários serviços às fardas. O Brasil não lidou com o seu passado. Os sequestradores, torturadores e assassinos a serviço do Estado no período da ditadura militar (1964-85) nunca foram punidos, como foram exemplarmente em países vizinhos, caso da Argentina e do Chile. A operação de apagamento da memória teve um custo alto para o Brasil e é um dos principais fatores que levaram o país à situação atual, como já escrevi neste espaço mais de uma vez.

Até mesmo o tímido esforço que foi feito, no governo de Dilma Rousseff (PT), para esclarecer os crimes do período de exceção, incomodou a cúpula militar. Ainda hoje há mais de 200 desaparecidos pelo regime. Suas famílias estão condenadas a viver sem conseguir enterrar seus mortos e fazer o luto. Mesmo assim, os generais detestaram a Comissão Nacional da Verdade, que apontou mais de 300 agentes do Estado envolvidos com sequestros, torturas e assassinatos. E olharam com muita preocupação para as pressões de vários atores da sociedade civil para revisar a Lei da Anistia no Supremo Tribunal Federal.

Ao homenagear o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais sádicos torturadores e assassinos da ditadura, em seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff, Jair Bolsonaro presta um grande serviço à revisão da história que uma parcela dos militares de alta patente tanto desejam. Tinha que ser alguém fora de controle para homenagear um torturador no impeachment de uma presidente que foi torturada pelo regime de exceção e, assim, romper a barreira do que os ultradireitistas chamam erroneamente de “politicamente correto”. O descontrole que levou Bolsonaro a deixar as forças armadas e iniciar a carreira política, neste novo momento do país passara a se tornar útil para alguns peitos estrelados. Sempre é preciso um fanfarrão sem escrúpulos para que os moderados possam continuar polindo as suas espadas.

A eleição de Bolsonaro significou a chance de mudar a história. E uma parcela dos militares de alta patente quer muito mudar a história. Ou evitar que ela seja finalmente passada a limpo.

Em 2017, o atual vice-presidente, Hamilton Mourão, defendeu um golpe militar caso o judiciário não punisse os corruptos: ou o judiciário punia os corruptos do país “ou então nós (do Exército) teremos que impor isso”. Antes, em 2015, já havia perdido o prestigioso comando das forças militares do sul pela soltura da língua, ao afirmar numa palestra que a substituição da presidenta Dilma Rousseff teria como vantagem “o descarte da incompetência, má gestão e corrupção”. No início de 2018, Mourão foi para a reserva.

Mourão, o recém convertido ao evangelho da moderação, ocupa hoje o único cargo em que não pode ser demitido por Bolsonaro

Vejam só onde está agora: no único cargo em que não pode ser demitido por Bolsonaro, porque também foi eleito. Mourão, o que afirmou à Globo News admitir o “autogolpe” com “o emprego das Forças Armadas”, em caso de “anarquia”. Mourão, aquele que defendeu uma constituinte sem participação popular, feita por uma “comissão de notáveis”. Mourão, o que chamou os africanos de “malandros” e os indígenas de “indolentes”. Mourão, o que disse que as famílias chefiadas por mães e avós nas comunidades pobres eram “uma fábrica de desajustados”. Mourão, aquele que chamou o décimo-terceiro salário de “jabuticaba nacional”. Mourão, que também admira o torturador Ustra, a quem justificou os atos criminosos com a seguinte frase: “Heróis matam”.

Este homem despontou no primeiro mês de governo como Mourão, o moderado. Ou Mourão, o sensato. Ou ainda Mourão, o gentil. Não apenas porque Bolsonaro vai se tornando rapidamente um bode com odor cada vez mais forte numa sala que se tornou apertada pelo acúmulo de fardas e estrelas no peito, mas também porque Mourão tem se esforçado bastante para poder convencer o Brasil da autenticidade do seu novo papel.

Até mesmo o escândalo da promoção do filho do vice, que numa canetada teve o salário elevado de 14 mil para 36.500 reais, desidratou diante das suspeitas que pesam sobre o filho do presidente. Afinal, nesta disputa inglória, o que é uma promoção de um funcionário de carreira do Banco do Brasil comparada à suspeita de corrupção e envolvimento com milícias? Este é o tipo de escolha que o Brasil precisou fazer no primeiro mês do governo.

Não é de hoje que Mourão desautoriza Bolsonaro, tratando-o como o garoto que ele parece ser. Como quando disse à jornalista Mônica Bergamo, na Folha de S. Paulo: “Não podemos nos descuidar do relacionamento com a China (...) Aquilo (a declaração de que a China está tentando comprar o Brasil) é mais uma retórica de campanha, né? Com as redes sociais, muita coisa flui e não é a realidade. Uma briga com a China não é uma boa briga, certo?”. Ou: “Não resta dúvida de que existe aquecimento global, não acho que seja uma trama marxista”.

Na segunda-feira (28/1), encontrou-se com o embaixador da Palestina e botou em dúvida a várias vezes anunciada transferência da embaixada do Brasil em Israel, de Tel Aviv para Jerusalém, uma promessa de Bolsonaro aos evangélicos neopentecostais que veem a cidade como o futuro palco do Armageddon. “O Estado brasileiro, por enquanto, não está pensando em nenhuma mudança da embaixada”, afirmou no dia em que Bolsonaro fez sua terceira cirurgia após o atentado à faca sofrido durante a campanha eleitoral.

Enquanto sorri e distribui fofoletices, Mourão acaba, na prática, com a Lei de Acesso à Informação

Enquanto sorri para embaixadores e empresários e manda recados amistosos para a imprensa pelo Twitter, Mourão diz bastante sobre o quê de fato representa. Ao assumir a presidência do país quando Bolsonaro estava em Davos, ele na prática acabou com a Lei de Acesso à Informação, promulgada por Dilma Rousseff, uma conquista da sociedade e da democracia em favor da transparência. O decreto de Mourão amplia – e muito – o número de pessoas que podem classificar documentos do governo como ultrassecretos, o que os torna inacessíveis por 25 anos, que podem ser prorrogados por mais 25 anos. Agora, até uma parcela dos funcionários comissionados têm o poder de evitar que a população tenha conhecimento dos atos do governo. É a ação mais contundente de censura – e é só o primeiro mês. É também uma canetada compatível com um regime de exceção.

Diante do anúncio de Jean Wyllys de que não assumiria o mandato para o qual foi eleito e deixaria o país para não ser morto, Mourão soou mais moderado na imprensa. Mas comparado a quem? Ao presidente que faz molecagens no Twitter.

A declaração mais valorizada de Mourão foi: “Quem ameaça parlamentar está cometendo um crime contra a democracia. Uma das coisas mais importantes é você ter sua opinião e ter liberdade para expressar sua opinião. Os parlamentares estão ali, eleitos pelo voto, representam cidadãos que votaram neles. Quer você goste, quer você não gosta das ideias do cara, você ouve. Se gostou bate palma, se não gostou, paciência”.

A declaração que mais demanda atenção é: “Temos que aguardar quais são essas ameaças, porque ele falou de forma genérica. Se ele está ameaçado tem de dizer por quem e como. Não estou na chuteira do Jean Wyllys. Ele que sabe qual é o grau de confusão que ele está metido”.

Primeiro: quem tem que investigar e descobrir os culpados é a Polícia Federal. Segundo: não há nada de “genérico” nas denúncias que foram feitas por Jean Wyllys e que geraram uma medida cautelar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, determinando que o Estado brasileiro garantisse a proteção do deputado e de sua família. As ameaças de morte contra o deputado tanto não são genéricas que o ministério da Justiça de Sergio Moro se apressou a dizer que a Polícia Federal estava investigando e que já tinha prendido pelo menos um dos responsáveis. Terceiro: a frase sobre “o grau de confusão que ele está metido” claramente busca culpar a vítima. Ameaça de morte não é “grau de confusão”. É ameaça de morte, é crime.

Mourão se moderou, mas ainda sofre de incontinência verbal, afinal não se muda de uma hora para outra os hábitos de uma vida inteira. O vice que já assumiu duas vezes a presidência no primeiro mês de governo é como o escorpião da fábula: quase chega à outra margem do rio, mas não consegue deixar de picar o sapo que o transporta. Um problema, possivelmente, para o grupo de generais no poder.

Por enquanto, porém, Mourão tem encarnado o adulto na sala. É o pai do garoto. Que, por sua vez, é pai de outro garoto, o amigo e ex-empregador do Queiroz. Este, por sua vez, não é garoto – e sim a primeira sombra do governo de Bolsonaro. E que sombra.

Qualquer declaração de Mourão soa melhor do que os emoticons de Bolsonaro. A operação mental que caracteriza o desespero faz com que mesmo os mais céticos se agarrem a qualquer promessa de equilíbrio. Bolsonaro tem feito uma parcela crescente de brasileiros se sentirem muito inseguros. Mesmo quem votou nele e segue brigando por ele nas redes sociais, com a elegância habitual, sabe que não faz sentido. Ele já está eleito. O problema agora é que governa.

Amador, o clã Bolsonaro acreditou cedo demais que tinha enterrado a imprensa

Entre os erros do clã Bolsonaro e de seu entorno está o de acreditar que a imprensa está morta. Não é tão fácil assim. As redes sociais e plataformas da internet têm poder, especialmente quando são fraudadas as regras eleitorais usando o WhatsApp, mas a TV ainda é o principal veículo de informação da população no Brasil. Parte da imprensa brasileira tem feito jornalismo como há tempo não se via. Uma pena que não tenha sido sempre assim.

Todos ganham com a imprensa fazendo bem o seu trabalho. É preciso continuar prestando atenção no jogo pesado que se faz por cima, no andar dos donos do poder. Bolsonaro se tornou impossível de engolir, porque entrou em confronto direto com parte das famílias proprietárias dos grandes meios de comunicação. Mas isso sempre pode ser alterado. Pesa contra ele, porém, sua imprevisibilidade, já que ele costuma mudar de ideia e descumprir os acordos. Por outro lado, esses mesmos proprietários cultivam boas relações jamais perdidas com a cúpula militar. Os próximos dias mostrarão quem faz bom jornalismo sempre, e não só conforme a ocasião.

Quando fez o seu vaticínio, o terceiro filho não poderia saber que efeito Bolsonaro teria no poder. Feito à imagem e semelhança do pai, o filho se olha no espelho e também se acha o máximo. Circula apenas pelas bolhas e todos dizem que sua família é incrível. A realidade vem mostrando que, diante de um Bolsonaro ameaçado pelo escândalo da corrupção e do envolvimento com a milícia suspeita de assassinar Marielle, o vice “faca na caveira” pode assustar menos. Muito menos. O vice “faca na caveira” vem se tornando uma referência de autoridade, confiança e equilíbrio, objetivo claro de todos os movimentos de Mourão num jogo que o clã Bolsonaro tem a ilusão de dominar, mas só conhece meia dúzia de estratégias.

Manter Bolsonaro com a faixa e como fachada, mas sob controle, pode se tornar impossível se as investigações aprofundarem as conexões familiares com a corrupção e as milícias

O Bolsonaro fanfarrão pode ser tolerado. Alguns dos grupos que sustentam seu governo acreditaram, em minha opinião com excesso de otimismo, que poderiam manipular e controlar o cabeça de chapa. Mas o Bolsonaro que pode estar envolvido com corrupção e tem um filho próximo às milícias assassinas do Rio de Janeiro é muito mais complicado. Começa a ficar constrangedor e impossível de justificar. Conforme o desenrolar dos fatos, o barulho do ralo pode ameaçar o projeto de poder. Já não há como voltar atrás: os militares foram fundo, já se tornaram fiadores do atual governo.

O que fazer então com Bolsonaro, este que chega ao final do primeiro mês com a popularidade começando a desidratar? O que era o plano de alguns, mantê-lo com a faixa e como fachada, afinal ele é o “mito”, mas sob controle, pode deixar de ser uma alternativa viável se as investigações descobrirem mais esqueletos no armário dos Bolsonaro. Conforme a apuração, tanto da corrupção quanto do assassinato de Marielle, um impeachment pode ser inevitável, como alguns articulistas já apontaram. Mas é traumático demais e muitos tentarão evitar o segundo afastamento de um presidente eleito na sequência, o terceiro desde a redemocratização. Há outras possibilidades, entre elas o afastamento por problemas de saúde, por exemplo. Tudo depende do que as investigações vão revelar nas próximas semanas e meses.

Bolsonaro já sentiu na nuca o bafo de Mourão, tanto que decidiu despachar, pelo menos oficialmente, da cama do hospital onde se recupera de uma cirurgia. Afinal, em pouco mais de três décadas o Brasil já teve três vices assumindo o poder – um por morte do titular, os outros dois por impeachment. Até Olavo de Carvalho, o guru de Bolsonaro, anda nervoso. Fez um vídeo desancando Mourão. Sem seu adorador, o guru perde o prestígio recém adquirido. Os constrangedores ministros que indicou – e emplacou – também podem virar passado.

O futuro próximo do governo depende em grande parte do desempenho da economia. Os brasileiros já comprovaram que podem conviver com qualquer coisa se a vida cotidiana melhorar ou se sentirem que tem alguma vantagem. As várias vitórias de Paulo Maluf, no maior colégio eleitoral do país, estão aí para não deixar ninguém esquecer.

O que os militares querem? Reescrever a história

O que os militares querem? Muito. Talvez o que mais queiram seja mudar o passado e reescrever seu papel na história do Brasil, como já ficou claro. Penso que também queiram escrever um futuro que redima a imagem que desejam de todo jeito apagar. Já começam a aparecer como heróis, como repositório de confiança num governo povoado por delirantes, no sentido estrito da palavra, e/ou oportunistas.

Não é aconselhável tentar prever o futuro, só é possível ler os sinais do presente. O fato mais revelador do primeiro mês do governo militarizado de ultradireita é: o parlamentar que cuspiu em Bolsonaro quando ele homenageou Ustra, um torturador da ditadura que levava crianças pequenas para ver os pais torturados, foi obrigado a deixar o Brasil para não ser assassinado.

(Volto à coluna em 27 de fevereiro. Até lá.)

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


Bernardo Mello Franco: Mourão virou a voz moderada do governo

Na sexta-feira, o vice-presidente Hamilton Mourão afirmou que quem ameaça um deputado “está cometendo um crime contra a democracia”. Não foi só uma manifestação de solidariedade a Jean Wyllys, que desistiu do novo mandato. Ele aproveitou o caso para demarcar mais uma divergência em relação a Jair Bolsonaro, que preferiu debochar do desafeto.

Num governo que insiste em manter a retórica agressiva da campanha, Mourão tem se destacado como uma voz moderada. Ele reforçou essa diferença nos últimos dias, ao estrear como presidente em exercício.

O vice não ocupou o gabinete do titular, mas ignorou a recomendação para permanecer calado. Falou à vontade, quase sempre na contramão do companheiro de chapa.

Na terça-feira, Bolsonaro faltou a uma entrevista coletiva em Davos e se gabou, no Twitter, de supostamente “deixar a imprensa aterrorizada”. Meia hora depois, Mourão usou o microblog para agradecer “pela dedicação, entusiasmo e espírito profissional” dos repórteres que acompanham suas atividades em Brasília.

No dia seguinte, o vice descartou a possibilidade de expulsão da embaixada da Palestina em Brasília. Em agosto, Bolsonaro havia ameaçado desalojar a representação diplomática, em mais um aceno ao governo ultraconservador de Israel. “Não tem nada disso. Os dois Estados são reconhecidos”, retrucou Mourão.

O vice também lançou dúvidas sobre o decreto das armas. Ele sugeriu que a medida não produzirá os resultados prometidos. “Eu não vejo como uma medida de combate à violência. Vejo apenas, única e exclusivamente, como um atendimento de promessa de campanha do presidente”, afirmou.

O tom moderado de Mourão é uma boa surpresa. Na campanha, o vice estimulou temores ao falar em “autogolpe” e defender que uma Constituição “não precisa ser feita por eleitos pelo povo”. Ele já havia sido punido por declarações impróprias em 2015, quando era general da ativa. Na época, criticou o governo e permitiu uma homenagem a um torturador da ditadura militar.

Agora ele tenta se reposicionar depois de ser escanteado na montagem do governo. Sem função definida, o vice tem conversado com parlamentares, empresários e diplomatas estrangeiros. Deputados que foram ao Planalto nos últimos dias dizem que ele evita reclamar de Bolsonaro, mas deixa claro que se sente subutilizado.

“Ele ficou numa situação embaraçosa, mas está mantendo o equilíbrio. Até o parabenizei por isso”, conta Otoni de Paula (PSC-RJ). “Tem um duelo de opiniões com o presidente, né? O general quer mostrar que não é quadrado, que é mais evoluído”, avalia Léo Moraes (Podemos-RO).

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A tragédia de Brumadinho não é culpa do novo governo, mas deve servir como lição a Bolsonaro. O presidente tem alegrado as mineradoras ao repetir que há uma “indústria da multa” e atacar os órgãos de fiscalização ambiental. Este discurso vale como incentivo a quem já lucra com a exploração predatória da natureza.


João Domingos: Mourão vence a guerra

As notícias consideradas positivas deram uma goleada nas negativas

Se fosse um jogo de futebol, poderia ser dito que o jogador reserva, convocado para uma ou algumas partidas no lugar do centroavante matador afastado por algum motivo, talvez uma viagem ao exterior, deu um show e marcou quantos gols foram possíveis. Como não é uma partida de futebol, mas a forma como se exerce o poder, é preciso então mudar o sentido da comparação. O reserva deu um show. Em outras palavras, o general Hamilton Mourão, vice-presidente, venceu a batalha da comunicação no seu primeiro teste à frente do governo. Um feito raro, muito raro, pois essa é uma das guerras mais difíceis de vencer.

Na semana em que substituiu o titular Jair Bolsonaro, de viagem para Davos, na Suíça, Mourão evitou portas laterais ou de fundos para entrar em seu gabinete. Passou sempre entre um pequeno exército de repórteres, acampado na entrada do anexo do Palácio do Planalto onde está instalado o gabinete do vice. Fez charme na entrada e na saída, só para dar tempo a um pequeno suspense, parou e deu entrevistas, sobre tudo e sobre todos. A pergunta é sobre reforma da Previdência? O tempo de serviço dos militares deve ser aumentado de 30 para 35 anos e o projeto não deve ser enviado junto com a peça principal. É sobre as suspeitas que envolvem o senador eleito Flávio Bolsonaro, filho do presidente? Apurar e punir, se for o caso. Há solução para a Venezuela? Maduro e seu bandão deveriam procurar um país que os queira. Segue o baile. E assim a semana se passou. Mais do que responder aos repórteres, Mourão deu seu recado.

Indagado sobre decreto assinado por ele que ampliou o número de pessoas – servidores comissionados também, e quase todos por indicação política –, o que vai comprometer a transparência do governo, Mourão não fugiu. Disse que a assinatura do decreto não foi ideia sua, que o ato foi combinado com o presidente e que o documento foi preparado pelo governo anterior. Simples assim. Como deve ser a comunicação.

Quando questionado sobre o que acha da decisão do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) de abrir mão do mandato de deputado e ir embora do País por causa das ameaças que vem sofrendo, Mourão respondeu que o parlamentar deve ter suas razões, sobre as quais não tinha mais detalhes. Em seguida, fez uma defesa do estado democrático de direito: “Quem ameaça parlamentar está cometendo um crime contra a democracia. Nela você tem sua opinião e liberdade para expressá-la. Parlamentares, eleitos, representam os cidadãos que votaram neles. Quer goste ou não, você ouve. Gostou, bate palma. Não gostou, paciência. É assim”. No meio disso tudo, Mourão ainda postou nas redes sociais um foto dele cercado de jornalistas. No texto, os agradeceu por tê-lo esperado todos os dias.

Goste-se ou não do general Mourão, o resultado foi que as notícias consideradas positivas por empresas especializadas nesse tipo de medição deram uma goleada nas negativas.

Até agora, só o ministro da Economia, Paulo Guedes, vinha conseguindo tal feito.

O ministro da Justiça, Sérgio Moro, um campeão da comunicação durante a Operação Lava Jato, o que fez com que entrasse em sintonia com todo o País e fora dele, ainda está meio lá e meio cá desde que aceitou o convite para ser o superministro encarregado de criar um plano para salvar a arruinada segurança pública do País e criar métodos eficazes de combater o crime organizado e devolver o domínio dos presídios ao Estado. Talvez mais pra lá do que pra cá, pois atrapalhado pelo noticiário que envolve Flávio Bolsonaro, além de assistir, sem nada que fazer, à divulgação, gota a gota, do relatório do Coaf, órgão sob sua jurisdição, a respeito da movimentação bancária de familiares do presidente da República.


El País: Hamilton Mourão, gabinete aberto e opinião formada sobre tudo

Na estreia, presidente em exercício faz declarações sobre reforma da Previdência e recebe diplomatas. "É uma voz moderada", elogia embaixador alemão

Pela primeira vez desde fim da ditadura militar, há 34 anos, um alto comandante militar tem a caneta presidencial em suas mãos no Brasil. Até a madrugada da próxima sexta-feira, o general da reserva Hamilton Mourão exerce o cargo de presidente do Brasil no lugar de Jair Bolsonaro, que está na Suíça e faz nesta terça-feira seu discurso de estreia num palco estrangeiro, o do Fórum Econômico Mundial em Davos. Se os investidores seguirão palavra a palavra as promessas de Bolsonaro, não faltarão também holofotes para avaliar como Mourão se sai no Planalto. É que mesmo dizendo-se um aliado leal, que “toca a bola de lado” e nada decide sem o aval do chefe, Mourão rapidamente tem ocupado espaço relevante nas primeiras semanas do novo Governo –em que não faltaram sobressaltos, desgaste precoce por causa do escândalo envolvendo Flávio Bolsonaro e recuos. Ao mesmo tempo em que é uma sombra para o presidente –suas quatro estrelas de general reluzem e se apresentam por vezes maior do que o capitão –, Mourão também acaba sendo seu contraponto, uma espécie de moderador das falas e validador dos atos do mandatário.

Tanto é assim que a agenda de Mourão, um vice que só entrou na fórmula presidencial na reta final da campanha, é recheada de encontros com empresários de multinacionais ou embaixadores de países estrangeiros. Um leque mais variado do que o próprio Bolsonaro nos primeiros dias do poder. Em sua estreia na presidência em exercício, não foi diferente: das sete audiências que Mourão protagonizou nesta segunda, por exemplo, uma foi com um membro da siderúrgica CSN e duas foram com representantes da Alemanha e da Tailândia.

“O vice-presidente se mostrou uma pessoa muito construtiva e bem informada. É uma voz moderada e interessada pela cooperação internacional. Algo importante para nós”, afirmou ao EL PAÍS o embaixador alemão, Georg Witschel, após conversa com Mourão. Witschel disse ter conversado com inquilino temporário do Planalto sobre direitos humanos, proteção ao meio ambiente, comércio bilateral, crise na Venezuela, acordo comercial entre União Europeia e Mercosul. Tratou também da má reputação que a gestão brasileira tem em seu país, que já provoca até problemas concretos, como o reforço da campanha contrária ao acordo comercial da UE com o bloco sul-americano. “É uma imagem que queremos mudar, juntos”, disse o embaixador alemão.

Outros dois diplomatas que estiveram recentemente com Mourão ressaltaram características semelhantes. “Ele é a sensatez que muitas vezes falta ao presidente em falas oficiais”, afirmou, em caráter reservado, um dos representantes de países estrangeiros que se encontrou com o general da reserva.

Opinião formada sobre quase tudo
A percepção de sensatez por contraste vem desde a campanha eleitoral. Mourão, um oficial defensor da ditadura militar assim como o presidente ultradireitista, também provocou controvérsia ao falar, por exemplo, que as famílias sem figuras masculinas tinham propensão a fabricar delinquentes. Também disse impropriedades sobre a dívida pública. Mas tudo isso foi esquecido quando, ainda na campanha, começou a matizar a retórica anti-China de Bolsonaro ou passou a defender diante dos microfones, como fez nesta segunda-feira, a ansiada reforma da Previdência, inclusive alguma modalidade para os militares, a categoria que espera escapar das mudanças.

Desde que foi escolhido como candidato na chapa encabeçada por Bolsonaro, Mourão já dizia que não seria um vice decorativo. E, de fato, não tem sido. Como não ocupa posições de destaque, como algum ministério, ele tem emitido opinião sobre quase tudo. Sua voz é a mais evidente entre o braço militar da gestão, composta por ao menos sete ministros e outros 36 representantes em postos-chave de segundo e terceiro escalão. De um lado, é o general da reserva Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, quem tem mais acesso aos ouvidos do presidente e goza de sua confiança. Do outro, Mourão, que pode até não ser o integrante mais assíduo do ninho, mas é o único que Bolsonaro não pode destituir: afinal, ele foi eleito ao lado do presidente nas urnas e está na linha de sucessão.

Não é um fator menor diante do cenário confuso de um Governo Jair Bolsonaro que nem completou um mês e já se depara com crises de gestões desgastadas por anos no poder. “É o início de Governo mais confuso desde a redemocratização”, avalia o cientista político Carlos Ranulfo, professor na Universidade Federal de Minas Gerais. A razão, em sua opinião, é que o presidente se cercou de pessoas com pouca ou nenhuma experiência em gestão pública, em Governo. “Não há eixo, coordenação, não há nada. Há muito desentendimento entre o sol Bolsonaro e os astros que giram em torno dele. É apenas um ajuntamento de peças. Por isso, tantas trombadas”, diz.

Além do herdeiro presidencial – o senador eleito Flávio Bolsonaro –, que não consegue se descolar de uma suspeita de desvios de recursos supostamente cometidos por ele e por um ex-assessor, sobram idas e vindas em anúncios, frases desastradas, como a do ministro comparando uma arma de fogo a um liquidificador. Nas áreas mais centrais, há planos claros, como os da área econômica, mas eles também esbarram na acomodação de uma classe neófita no poder do Executivo.

Ao lado do general Heleno, tem ficado com Mourão a tentativa de chutar para longe a crise de Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz, o filho do presidente e seu antigo assessor que são investigados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Ao sair de seu gabinete e se deparar com um batalhão de jornalistas, o vice-presidente disse, nesta segunda, que falaria pela última vez sobre Flávio-Queiroz. “Esse assunto não comento mais. Não vem pra cima do Governo e é um problema do Flávio. Ele vai resolver”.

O cuidado sobre o quanto essa crise pode respingar na gestão é semelhante a que o próprio presidente tem tido. Desde dezembro, quando descobriu-se uma movimentação incompatível de recursos pelas contas de Queiroz e, agora, o recebimento de depósitos em dinheiro vivo por Flávio, o presidente quase não se manifestou sobre o tema. “Ele faz o que qualquer presidente teria de fazer, fica quieto. Não se envolve”, avaliou o professor Ranulfo, da UFMG.

Sobre política externa, contudo, Mourão não mede palavras. Se já havia dito que o presidente aprenderia a ser pragmático, à revista Época, por exemplo, afirmou que o chanceler Ernesto Araújo – um diplomata antiglobalista, trumpista e aliado do escritor e ideólogo de Bolsonaro, Olavo de Carvalho – ainda não mostrou a que veio. “Se alguém espera que Mourão vai ficar quieto, está enganado. Ele fala pelos cotovelos. E está pronto para atuar. Basta ter a brecha”, concluiu Ranulfo.

Até a madrugada de sexta-feira, quando está prevista a chegada de Bolsonaro ao país, é Mourão quem dá as cartas no Palácio do Planalto. Bolsonaro fica em Brasília até sábado. No domingo, segue para São Paulo, onde no dia seguinte se submeterá a uma cirurgia para retirada de uma bolsa de colostomia que carrega no abdômen desde setembro, quando levou uma facada. Em princípio, Mourão assumiria novamente a presidência no período em que Bolsonaro estivesse hospitalizado. Mas, agora, a tendência é que o presidente fique dez dias despachando do hospital, enquanto se recupera.


Bruno Boghossian: Mourão ainda espera o elevador no edifício do poder

General buscou posição de destaque, mas tenta esconjurar fantasma do vice decorativo

Entre a vitória na eleição e os primeiros dias de governo, Hamilton Mourão foi forçado a descer alguns metros no edifício do poder. O vice-presidente esperava despachar ao lado do gabinete de Jair Bolsonaro no terceiro andar do Planalto. Sua cadeira, porém, foi colocada no anexo que se conecta ao palácio por um túnel subterrâneo.

Em outubro, a ideia era outra. “Eu me vejo como um assessor qualificado do presidente, um homem próximo ali, junto dele, dentro do Planalto. Nossas salas serão juntas”, disse o general ao jornal O Globo, a três dias da eleição. “Não seremos duas figuras distantes, como já aconteceu.”

Ao entrar na terceira semana de governo, Mourão tenta esconjurar o fantasma do “vice decorativo” —que assombrou um Michel Temer maltratado por Dilma Rousseff.

Mesmo antes da vitória de Bolsonaro, o general se oferecia para funções de peso. Indicou publicamente que poderia ser um coordenador de ministérios. Ofereceu-se ainda para comandar parcerias público-privadas na área de infraestrutura.

Mourão ficou sem o gabinete, sem autoridade sobre os investimentos e sem o papel de líder da Esplanada. Com humildade, afirmou à Folha que esta última ideia “não vingou”. Agora, sugere cooperar com Bolsonaro nas relações internacionais. “Vamos aguardar o que o presidente vai definir”, disse, pacientemente.

O vice tenta se alinhar ao homem forte da economia para acumular influência no governo. O general é um dos poucos militares em cargo alto a defender a ideia de Paulo Guedes de rever as regras de aposentadoria dos homens de farda. Bolsonaro não parece estar convencido disso.

Mourão pegará as chaves do terceiro andar duas vezes em janeiro: quando o presidente for a Davos, na Suíça, e quando se internar para uma cirurgia. Será um teste de prestígio. Em 1981, quando o general Figueiredo foi parar no hospital, os ministros Leitão de Abreu (Casa Civil) e Delfim Netto (Planejamento) mal apareceram no Planalto para despachar com o vice Aureliano Chaves.


Valor: Governo fará 'desmanche' do Estado, diz Mourão

Por Claudia Safatle, Carla Araújo e Andrea Jubé, do Valor Econômico

Prestes a assumir a vice-presidência do país, o general Hamilton Mourão defende que o governo de Jair Bolsonaro envie ao Congresso uma proposta de emenda constitucional para desvincular o Orçamento da União. "A Constituição engessa o país", disse, em entrevista ao Valor. Mourão afirmou que governo não começará "na base de impactos e pacotes", mas que todos os ministros deverão no dia 14 de janeiro, data marcada para acontecer a primeira reunião ministerial, apresentar metas e objetivos para "desregulamentar" e "desburocratizar" suas áreas.

O general defende que o texto da reforma da Previdência enviado pelo governo Michel Temer seja aproveitado e diz que os militares também estão dispostos a dar a sua contribuição com mudanças. O vice-presidente sugeriu ainda que Bolsonaro dê explicações da situação das contas públicas aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que, a aprovarem um aumento de 16,38% nos vencimentos, mostram" desconhecer a realidade".

Mourão defende ainda que, com as reformas aprovadas, será possível conversar com os investidores sobre o alongamento do prazo dívida mobiliária interna. O vice-presidente eleito se negou a comentar a situação do ex-motorista de Flavio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, que se apresentou como comerciante de carros para justificar a movimentação milionária em sua conta corrente: "Isso é um assunto do Ministério Público do Rio de Janeiro", resumiu. A seguir os principais trechos da entrevista:

Valor: Como estão distribuindo as missões no início do governo? A economia dará respostas nos primeiros dias.

Hamilton Mourão: A economia é o carro-chefe para arrumar essa situação que o país está enfrentando. Nós tivemos uma reunião preliminar na semana passada e foi dada a orientação que no dia 14 de janeiro, que vai ser a primeira reunião ministerial para valer, todos os ministros terão que apresentar o seu planejamento e as suas metas para os primeiros 100 dias, para serem aprovadas pelo presidente. Nessa reunião preliminar, alguns ministros que já dispunham de algum conhecimento anterior apresentaram alguma visão mais objetiva do que eles têm pela frente, outros ainda estão tomando pé da situação.

Valor: O ministério da Economia está entre esses que estão mais avançados?

Mourão: Na economia nós temos uma noção muito clara, isso é uma visão do conjunto, que as reformas são muito importantes. Se a gente não conseguir levar adiante tanto a reforma da previdência como a tributária nós vamos ter muita dificuldade.

Valor: Os senhores irão aproveitar o texto atual da reforma da previdência que já está na Câmara?

Mourão: Eu acho que vai ter que ser aproveitada, até pelo problema de prazo. Se a gente for voltar para a estaca zero não vamos conseguir produzir nada no ano que vem. Poderia ser feito um adendo aqui outro ali dentro da visão que se tem. Mas o que está sendo trabalhado, eu não tenho dado concreto disso, vai ser colocado só nessa reunião de janeiro. Mas temos que usar o que está lá e colocar uma coisa a mais, que isso é permitido pelo regulamento [sic] interno do Congresso, para que a gente consiga no primeiro semestre tentar passar isso aí.

Valor: Antes dessa reunião de 14 de janeiro tem alguma coisa que já pode ser anunciada?

Mourão: Nós não vamos começar na base de impactos e pacotes. Eu acho que gente tem que ser mais objetivo e não fazer coisas espalhafatosas que vão resultar em muito pouco resultado depois.

Valor: Mas tem coisas também que podem dar uma sequência, por exemplo, abertura comercial, não?

Mourão: Abertura comercial vamos ter que fazer um trabalho que tem que estar em fases, porque a nossa indústria não suporta um choque de abertura da noite para o dia. Nós vamos ter que fazer um faseamento. Numa reunião que eu tive com o pessoal da indústria eu usei um termo que era do presidente (Ernesto) Geisel (1974-1979) que dizia que era "lenta, gradual e segura" e acho que a abertura comercial tem que ser dessa forma, porque nós não vamos resistir a um choque.

Valor: E sobre a intromissão do estado na vida do cidadão?

Mourão: Todos receberam orientações sobre desregulação. Todos os ministros receberam orientação e têm que apresentar trabalhos e metas neste sentido, de você soltar um pouco, liberar as pessoas para que possam empreender com mais segurança.

Valor: Antigamente, se dizia que era impossível empreender com os juros altos, hoje os juros não são tão pesados, mas a carga tributária...

Mourão: A nossas carga tributária está aí na faixa de 35% a 37% do PIB. O Estado leva 45% do PIB e não devolve. Se devolvesse, se tivéssemos hospitais de primeira qualidade, escolas maravilhosas, estradas fantásticas, estava todo mundo bem, mas não temos. É só para sustentar uma máquina pesada em termos de pessoal e pesada em termos de estrutura.

"O acúmulo de recursos nas mãos do governo cria espaço para a política do toma-lá-dá-cá, para a corrupção"

Valor: Além da reforma da previdência e tributária, tem a reforma do estado, dá para ser feita?

Mourão: É um troço difícil, por que qual é a margem de manobra que existe? São os cargos em comissão, que dentro do governo federal tem um número cabalístico ai que serão em torno de 23 mil, mas se somar em toda a estrutura da federação chegaria a 120 mil. Incluindo função gratificada, cargo em comissão, estatal, isso aí você tirando os concursados. De todos os entes somados, os três níveis. É um exército.

Valor: Dá pra reduzir para quanto?

Mourão: Não para chegar e dizer: 'vou reduzir em 50%'. Cada um vai ter que avaliar dentro da sua estrutura qual é quantidade que ele pode manter, tem que ser um processo de estrangulamento e nós temos o problema do próprio funcionalismo público que a gente não consegue reduzir, porque isso mexe com as igrejinhas. Lá em São Paulo foi aprovado o novo regime de previdência do funcionalismo e já está colocada greve.

Valor: Como convencer os parlamentares sobre a necessidade da reforma da Previdência?

Mourão: Temos que fazer uma campanha de esclarecimento, tanto no Congresso como da população. O homem comum, o cidadão que não estuda muito, tem ideias preconcebidas do papel do estado na vida futura dele. A gente tem que explicar isso, porque se não ocorrer (a reforma) ninguém vai ter futuro. Mas se ela for aprovada vai trazer mais confiança para o país dos investidores.

Valor: Vocês querem romper com o fisiologismo, o Congresso vai corresponder?

Mourão: Vai ser um governo de persuasão. A gente tem que mostrar pra eles a responsabilidade que eles têm. Não querendo jogar a população contra, mas é tentar ser mais coerente. Tem muito parlamentar ali que não entende. Você tem ali - como em qualquer grupo social - tem 30% que são realmente esclarecidos, tem 40% que é a 'meiuca' que vai pra onde sopra o vento, e mais 30% que não sabe nem onde é a "curva do A".

Valor: Isso é atribuição do presidente?

Mourão: Acho que do presidente, do coordenador político, o general Santos Cruz (Secretaria de Governo). Se o presidente me delegar essa tarefa eu vou lá conversar. Vamos expor didaticamente.

Valor: E os filhos dos presidente, dois deles são parlamentares, qual vai ser o papel deles?

Mourão: Os filhos devidamente orientados pelo presidente podem auxiliar e muito. Compete ao presidente conversar e orientar eles. É a primeira vez que temos na história da República presidente com filhos parlamentares. Eles têm uma interação muito grande, são muitos amigos. Estamos num momento de acomodação. Quando começar a nova legislatura em fevereiro eles estarão com as tarefas bem definidas.

Valor: E a previdência dos militares, ela também será feita?

Mourão: O que tem que ficar muito esclarecido é que o militar não tem uma previdência, eles têm um sistema de proteção pelas peculiaridades da profissão. Mas já estão colocadas as questões que entrariam, como o aumento de permanência do serviço ativo. Hoje precisa de 30 anos de serviço e a ideia é passar para 35 no primeiro momento. E também as pensionistas passariam a descontar, seria uma forma a mais de contribuição. A questão dos militares é infraconstitucional.

Valor: O senhor tem recebido investidores estrangeiros?

Mourão: Alguns. Recebi o Bank of America, JP Morgan. O dado que eu tenho é que existem US$ 9 trilhões no mundo sendo negativados porque não estão sendo investidos em atividade de risco, então temos que absorver alguma coisa disso.

Valor: Há anos se fala em fazer reforma tributária, como ela seria?

Mourão: A reforma tributária tem de estar atrelada à reforma do Estado, e essa reforma é a do pacto federativo. Temos que colocar o recurso o mais cedo possível nas mãos do Estado e do município, e não ficar distribuindo migalhas. Caberá ao Governo Central ficar com menos recursos na mão dele. O governador do Estado e o prefeito são aqueles que têm a melhor noção das carências e necessidades.

Valor: Mas para fazer isso tem que ter uma desvinculação geral.

Mourão: Essa é a outra ideia que nós temos que eu considero extremamente pertinente, e isso daria um papel relevante para o Congresso. O Congresso hoje discute - sem querer desmerecer o papel dos congressistas -, assuntos periféricos. Se eles tivessem todo o Orçamento para realmente dizer o que vai para cada um eles teriam uma responsabilidade maior e o Executivo ficaria com a função de executar o Orçamento. O Executivo tem 8%, 9% para mexer.

Valor: Como isso será feito?

Mourão: Essa desvinculação teria que ser feita por emenda constitucional, porque a Constituição diz que tanto vai pra saúde, outro tanto para a educação. A Constituição foi feita na saída do que foi o período militar, quando várias corporações estavam batalhando um naco. Então se colocou coisa demais na Constituição. A Constituição da forma como está engessa o país.

"O militar não tem uma previdência; eles têm um sistema de proteção pelas peculiaridades da profissão"

Valor: O presidente Jair Bolsonaro vai sancionar ou vetar a prorrogação dos incentivos fiscais para empresas que investirem nas áreas da Sudam, Sudene e Sudeco, diante de possível rombo?

Mourão: Não conversei esse assunto com o presidente. Ali no dia 2 a gente vai ter bastante trabalho. Há os outros prejuízos lançados, como o aumento do Judiciário e dos funcionários públicos.

Valor: O STF está fora da realidade?

Mourão: Há um certo ativismo lá dentro, ora político, as simpatias políticas que alguns dos ministros têm, e às vezes uma coisa pessoal. A gente tem que conversar. Sentar um dia com os 11 ministros e expor para eles a situação do país. Acho que eles não conhecem. Sou favorável a que o presidente vá lá um dia e explique que se os senhores aprovam medidas dessa natureza, vamos cada vez mais nos encalacrar. Levaria o ministro da economia a tiracolo.

Valor: O Brasil está quebrado...

Mourão: Eu sei disso, pagamos R$ 400 bilhões por ano de juros, temos um déficit de R$ 139 bilhões, isso na conta de padeiro. Por isso precisamos aprovar essas reformas, porque com a melhoria do nosso rating nós poderemos até emitir títulos pagando juros menores. Podemos fazer uma repactuação dessa dívida, podemos alongar o prazo, diminuir o pagamento anual dos juros para R$ 350 bilhões; R$ 50 bilhões a mais é muito pra gente investir em coisas que a iniciativa privada talvez não queira.

Valor: Esse é um tema muito delicado: a repactuação não pode ser interpretada como um calote?

Mourão: O PPI vai ficar com o general Santos Cruz na Secretaria de Governo. O que ele precisar, a gente apoia. Eu montei uma equipe multidisciplinar capaz de oferecer soluções caso seja necessário.

Valor: Mas é como um suporte, um conselho?

Mourão: Não é um conselho, é uma equipe capacitada a trabalhar em qualquer assunto temático. Por exemplo: precisamos discutir o Acordo de Paris, tem gente para dar esse subsídio. É o meu dream team: são oito analistas.

Valor: O presidente se encontra com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu nesta sexta-feira. O governo vai ter uma relação especial com Israel?

Mourão: Não sei ainda. O que eu vejo é que hoje Israel tem uma aproximação muito grande com o presidente, já de algum tempo. Vamos ver até que ponto isso vai acontecer. Até porque temos que olhar, dentro do sistema internacional, pragmaticamente, o que se pode auferir nesse processo. Não podemos ficar só com o ônus, a gente tem que ter bônus também.

Valor: Pode haver alguma retaliação dos países árabes com essa aproximação de Israel?

Mourão: Depende do grau da aproximação, né? Isso aí tem que ser estudado até porque o presidente não tomou nenhuma decisão a respeito, e quando chegar a hora, a gente vai apresentar uma visão pra ele, e ele poderá decidir em melhores condições.

Valor: E essa relação com os Estados Unidos, será de adesão automática?

Mourão: Não, o que existe, e que acho inegável, é que nós temos hoje um governo pró-Trump que tem uma visão pró-valores da democracia americana, que admira esses valores. Mas não é um concorde imediato com qualquer coisa que for produzida por lá. É uma relação de governo, que não pode ultrapassar esses limites.

Valor: Logo no início, o governo vai ter que decidir sobre o subsídio do diesel aos caminhoneiros.

Mourão: Sim, o general Heleno fez uma reunião a esse respeito. Acho que a tendência é manter o subsídio até que se consiga uma solução melhor. Tem a questão da tabela de frete, que o [ministro da Infraestrutura] Tarcísio Freitas está trabalhando em cima também. Nós não temos condição de, de hoje para amanhã, solucionar esse problema.

Valor: Quando haverá uma solução?

Mourão: Na minha visão, onde está a raiz desse problema todo? No sistema tributário. Então, se a gente consegue dar uma acertada na questão da tributação, e os combustíveis, qual o índice maior da tributação? É o ICMS, que é de onde os Estados tiram o dinheiro. Onde eu moro, no Rio de Janeiro, é absurdo. É a gasolina mais cara do Brasil, custa R$ 5, é 35% o ICMS lá sobre o combustível.

Valor: Tudo virou uma indústria pra arrecadar...

Mourão: Mas arrecadar por que? Porque você tem que alimentar o dragão. É isso tudo que tem que ser explicado pra um conjunto de parlamentares e população, porque nós temos que domar o dragão. Domamos o dragão da inflação, mas esse outro dragão do Estado ainda não está domado. Está solto aí. Temos muito para fazer, na realidade, pra desfazer. Um desmanche, se fizer um desmanche. Eu já fiz essa comparação, eu gosto de cavalo, gosto de montar, já disse que Brasil é um cavalo olímpico capaz de saltar 1m80, mas tá todo amarrado, só salta 0,70 cm. O Paulo Guedes falou, tem que tirar as bolas de ferro do pé industriais.

Valor: Como chegamos a esse ponto?

Mourão: Porque aqui existe a associação do patrimonialismo com essa visão de que o Estado é o grande protetor. E depois pronto. E aí você junta o populismo, que tivemos tanto de direita como de esquerda.

Valor: Talvez a principal tarefa seja esse desmanche

Mourão: É, no Exército a gente tem um ditado: chefe bonzinho morre coitadinho. Não pode ser bonzinho, porque depois as próximas gerações serão beneficiadas. Hoje as próximas gerações não têm futuro, do jeito que tá.

Valor: O que o senhor achou das explicações do ex-assessor e motorista de Flavio Bolsonaro, que disse que as movimentações atípicas identificadas pelo Coaf eram resultado de compra e venda de carros?

Mourão: Sem comentários. Hoje isso é um problema do Ministério Público do Rio de Janeiro, não tenho nada a ver com isso.

 


Míriam Leitão:Ideias e papel do vice-presidente

Mourão defende pragmatismo na política externa, desvinculação do Orçamento, arrendamento de terra indígena apenas fora da Amazônia

O vice-presidente eleito, Hamilton Mourão, defendeu com entusiasmo a ideia de desengessar o Orçamento, proposta pelo futuro ministro Paulo Guedes, e afirmou que isso dará “mais poderes ao Congresso”. Ele explica que a reforma da Previdência deve ser ampla, porém com uma implementação por etapas. Sobre relações internacionais, ele resgata a expressão “pragmatismo responsável” e diz que temos que ter relações de global partners (parceiros globais) tanto com a China quanto com os Estados Unidos, mas esclarece: “Tenho muita admiração pela democracia americana. Tenho identificação com os valores deles.”

Em uma longa conversa ontem em seu gabinete, no grupo de transição, o vice-presidente ainda falava um pouco anasalado, resultado de uma sinusite que o afetou nos últimos dias. Perguntei se não estaria havendo muita bateção de cabeça na equipe do futuro governo e ele disse que isso é natural em qualquer administração que está se instalando.

Sobre seu papel no governo, disse que será o mesmo de qualquer vice-presidente:

—Esto uaqui para substituir o presidente, por isso acompanharei todos os assuntos de governo, pensarei em soluções, para estar preparado caso o presidente me chame para conversar.

O fatiamento da reforma da Previdência, ele explica de outra forma. Diz que seria uma reforma ampla, com implementação por etapas, começando pela idade mínima. A mudança para o regime de capitalização teria que ser num tempo futuro. Perguntei sobre a previdência dos militares:

—Estudei o assunto e formulei uma proposta, tempos atrás. Amplia-se o tempo de serviço para 35 anos e a pensionista que hoje não contribui passa a contribuir. A mudança que foi feita em 2000 já acabou com algumas vantagens.

Diz que atualmente já não há mais promoção quando sevai para a reserva eque quem pede baixa ganha proventos proporcionais ao tempo trabalhado.

Hamilton Mourão acha que o melhor lugar para a Funai é ficar onde está, no Ministério da Justiça, e defende a ideia de que os índios possam arrendar suas terras, desde que não seja em área sensível:

—Não pode ser na Amazônia, por exemplo, mas nem todos os índios estão na floresta.
Explicou que um projeto sobre isso seria cuidadoso e estabeleceria as áreas onde seria possível o arrendamento para não aumentar o desmatamento:

—Mas hoje já existe, só que não está regularizado. Pensamos em coisas como, ao fim do arrendamento, os equipamentos seriam dos índios.

Segundo ele, há duas formas devera Amazônia, e ele demonstrou discordar da primeira:

—Como uma área que deve permanecer como um zoológico do mundo, ou os que advogam uma exploração sustentável. Temos também que defender nos fóruns internacionais que se pague pela preservação da Amazônia, pelo oxigênio, serviços ambientais—diz o general Mourão, que não se diz favorável às a ída do Acordo de Paris.

Na economia, é entusiasta da ideia do futuro ministro da Economia de desvincular as receitas que têm destinação certa. Acha que como está fica inviável, e o Congresso briga por parcela cada vez menor sobre a qual pode dispor:

— É preciso dar ao Congresso poderes de formular o Orçamento. Os parlamentares teriam um ano produtivo fazendo de fato o Orçamento a ser cumprido pelo Executivo. Isso fortaleceria o Congresso.

De fato, o caminho tem que ser reduzir o engessamento, mas isso é muito difícil de fazer. Cada área temerá o risco de perder financiamento.

Sobre política externa, o vice-presidente defendeu que não haja alinhamento automático com os Estados Unidos, apesar de ser boa e natural a proximidade entre os dois países. Não é pelo presidente Trump, disse, argumentando que “governos são passageiros”, mas pelos valores comuns:

—Na minha opinião, a diplomacia não pode ser irresponsável como foi nos governos do PT. Tem que ser o pragmatismo responsável —disse, resgatando um termo que definiu a política externa dos últimos dois governos militares e que foi mantida por vários governos civis.

Na área de energia, o vice-presidente disse que se o país quiser crescer não haverá energia. Por isso acha que é preciso estimular o crescimento das fontes solar, eólica e gás natural. Acha que se pode pensar em nuclear, que as usinas hidrelétricas na Amazônia devem ser bem estudadas. “O que não se pode é ficar queimando óleo diesel em termelétrica.”