vergonha
Projeção em prédio da ONU em Nova York chama Bolsonaro de 'vergonha brasileira'
Fernanda Mena*, Folha de São Paulo
Horas antes de o presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) chegar à sede da ONU em Nova York para o discurso de abertura da 77ª Assembleia-Geral, era possível ver imagens gigantescas suas projetadas na lateral do prédio ladeadas por expressões como "Brazilian shame" (vergonha brasileira).
A intervenção no edifício das Nações Unidas, de 39 andares e 155 metros de altura, foi iniciativa da US Network for Democracy in Brazil (Rede nos Estados Unidos pela Democracia no Brasil), que reúne acadêmicos de mais de 50 universidades americanas, ativistas e organizações da sociedade civil, como a Coalizão Negra por Direitos e a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), entre outras.
As imagens projetadas nas primeiras horas desta terça (20) trazem palavras como "vergonha", "desgraça" e "mentira" em quatro das línguas oficiais da ONU —inglês, francês, espanhol e mandarim—, além do português.
"Somos opositores ferrenhos desse governo brasileiro por todas as atrocidades que ele representa", diz Mariana Adams, organizadora nacional do US Network for Democracy in Brazil. "Nossa ação comunica ao mundo que Bolsonaro está apoiado em um sistema de fake news para avançar seu projeto pessoal de poder e de enriquecimento, não um projeto nacional de desenvolvimento do Brasil."
Segundo ela, as aparições internacionais de Bolsonaro "desmantelaram, de maneira sistemática, a imagem do Brasil no exterior, seja pela desastrosa política externa brasileira, seja pelas aparições internacionais que visam benefícios políticos eleitorais".
Exemplo recente, afirma ela, foi a passagem do presidente pelo Reino Unido para participar do funeral da rainha Elizabeth 2ª. Em meio às cerimônias solenes, o brasileiro usou a viagem para fazer campanha eleitoral, discursando a apoiadores.
"A ideia é retomar e subverter o palanque de que ele tem feito as instituições internacionais. Para nós, isso é vergonhoso", diz Adams, que afirma que os integrantes da rede atuam de forma voluntária e não são ligados a partidos políticos ou a ONGs. O grupo coletou fundos para a ação a partir da doação coletiva de seus membros.
Os ativistas elaboraram as combinações de imagens com palavras e contrataram um projetor capaz de lançá-las na empena cega do edifício a cerca de 1 quilômetro de distância.
"No momento em que o Brasil está sendo discutido de maneira tão fervorosa no cenário internacional, queremos que a comunidade internacional e os brasileiros que vivem fora do país não sejam enganados pelas tentativas de legitimação que Bolsonaro faz de seu projeto, que não é de país."
A menos de duas semanas das eleições presidenciais, em um momento em que aparece em segundo lugar nas pesquisas, Bolsonaro passará menos de 24 horas em Nova York. Ele chegou à cidade pouco antes das 20h, no horário local (21h em Brasília), desta segunda (19).
Nesta terça, o presidente abre os discursos da Assembleia-Geral antes de almoçar, em uma churrascaria brasileira, com apoiadores que viajaram em esquema de caravana de outras cidades americanas.
Além da intervenção desta madrugada, os arredores do prédio da ONU —projetado pelo arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer e pelo franco-suíço Le Corbusier e inaugurado em 1952—, podem virar campo de batalha entre bolsonaristas e ativistas, que devem protestar contra a passagem e o discurso de Bolsonaro.
Passagens anteriores de Bolsonaro por Nova York para o evento das Nações Unidas também contaram com intervenções com críticas ao presidente. No ano passado, um caminhão com telões o chamou de criminoso climático.
*Texto publicado originalmente no portal da Folha de São Paulo.
Cristovam Buarque: A tristeza de Felipe, a paralisia do Artur e a minha vergonha
Uma amiga falou que até recentemente seu neto Felipe, de seis anos, gostava de assistir às notícias nos telejornais e perguntar sobre elas. Há pouco tempo, disse que perdeu o interesse porque ficava triste com o que via. A simplicidade dessa criança é um exemplo eloquente do mal que estamos fazendo na formação do Brasil.
Que sociedade está surgindo em uma realidade que assusta crianças de seis anos de idade, como se elas estivessem no meio de uma guerra?
O que sentem nossas crianças ao assistirem a tiroteios, ao saberem das mortes de pessoas, inclusive de menores de idade, que estavam na trajetória de balas perdidas que invadem escolas, cruzam ruas, chegam nas salas e até mesmo na barriga de uma mãe grávida ferindo o bebê de nome Artur, antes dele nascer, condenando-o talvez à morte ou a sobreviver paraplégico desde o nascimento?
O que sentem ao ver, dia após dia, canos de esgoto descarregando dinheiro de propinas roubadas, que se não tivessem sido desviadas teriam evitado a tragédia a que assistimos?
Aos seis anos, Felipe ainda não percebe essa lógica maldita, mas os adolescentes já conseguem entender o significado das palavras e as correlações entre elas. Certamente não ficam apenas tristes, devem cair no desencanto ou pior ainda, no desprezo aos políticos que deveriam ser seus líderes.
Pior é saber que os tristes, ao verem o espetáculo na televisão, fazem parte de uma casta privilegiada. Milhões não apenas assistem, estão dentro do inferno da ausência de paz, no risco das balas, do desemprego, da falta de escolas, cultura e perspectiva.
Dividido, sem coesão nem rumo, o Brasil naufraga e leva com ele nossas crianças que, sem barcas, não conseguem atravessar o “mediterrâneo invisível” que as levaria ao futuro: a escola em paz e com carinho. Cada dia o país demonstra odiá-las, porque despreza o futuro delas e de toda nação brasileira.
Síria, Iraque, Afeganistão e outros países têm gerações perdidas pela guerra que deixa suas crianças e adolescentes sem escolas, assistindo aos adultos na incansável tarefa de destruírem suas pátrias. O Brasil é maior, tem mais recursos, é mais tolerante com suas maldades, mas estamos trabalhando fortemente para seguirmos nesta direção: saindo da crise para a decadência e desta para a desagregação.
O desencanto dos adolescentes e jovens, a tristeza do Felipe e a paralisia de Artur são gritos para aqueles que, apesar da eloquência, não chegam aos ouvidos aos quais são dirigidos, pedindo apenas duas coisas: um tempo de coesão, sem corrupção na política, com compaixão social, e um rumo histórico com sentimento nacional.
Nosso maior problema é a surdez de sentimentos, esta forma maior de corrupção na política.
E, surdamente, sem ouvir os gritos, pomos a culpa na realidade, como se a política não fosse para modificá-la. Por isso minha vergonha por sentir a impotência diante da tragédia construída pela vontade egoísta ou a omissão incompetente, vergonha diante de Felipe e Artur, aos quais peço desculpas.