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Vera Magalhães: Quem banca?

Investigação do Facebook pode dar caminho do dinheiro ao STF e à CPMI

O medo ronda o bolsonarismo. Diferentemente de outras vezes em que a rede de destruição de reputações, disseminação de notícias falsas e de desinformação e conclamação de atos antidemocráticos por meio das redes sociais e WhatsApp foi exposta, um silêncio acovardado, seguido de alguns muxoxos só para constar, foi a tônica das reações à ofensiva do Facebook (e do Instagram, por extensão) contra essas práticas.

Não é à toa a mudança de tom. Desta vez, foi uma gigante das mídias digitais, contra a qual não adianta nada vociferar bobagens como “comunista!”, “globalista!”, “bancada pelo George Soros!” que tomou a iniciativa de investigar o uso de plataforma pelo que chamou de perfis ou páginas inautênticos. E foi essa auditoria, independente e levada a cabo pelo Atlantic Council, que ligou diretamente as práticas de disseminação de conteúdo falso à Presidência da República e a assessores lotados em gabinetes no Congresso e em Assembleias Legislativas. Portanto, funcionários públicos.

Há outro aspecto importantíssimo revelado pelo relatório que resultou no banimento de dezenas de perfis e páginas nas duas redes sociais. O gasto milionário para impulsionar esses conteúdos. Mais especificamente de US$ 1,5 milhão. E é aí que a ligação com o que já vem sendo apurado pelo Supremo Tribunal Federal e a CPMI das Fake News pode complicar a vida de Jair Bolsonaro.

São dois os inquéritos do STF que têm pontos de contato com o pente-fino levado a cabo pelo Facebook: o das fake news e o dos atos golpistas, ambos relatados por Alexandre de Moraes. Se com os dados que o Facebook será instado a compartilhar com o inquérito e a CPMI constar a chave para traçar o caminho desses impulsionamentos, mostrando quem bancou os tais perfis inautênticos e por quanto tempo, será possível cotejar a lista dos financiadores com a dos empresários que custearam os atos e o conteúdo que foi impulsionado com as fake news contra ministros do STF investigadas no outro feito.

A CPMI também já solicitou à empresa o compartilhamento das informações. Assim, será possível comparar o que existe ali contra assessores do deputado Eduardo Bolsonaro e de outros que já foram mencionados pela deputada Joice Hasselmann, por exemplo.

A investigação do Facebook atestou a existência do gabinete do ódio na sala contígua à de Bolsonaro, comandado pelo assessor especial da Presidência Tercio Arnaud Tomaz, responsável por uma série de páginas e perfis derrubados nas duas redes.

Tercio foi assessor de Jair e Carlos Bolsonaro antes de atuar na campanha e, de lá, ser nomeado para a Presidência. Diante de insistentes pedidos de informações da imprensa a respeito de suas atividades, as respostas dos ministros são sempre vagas. Seria responsável pelas redes sociais do presidente, mas não se sabe exatamente que expediente cumpre, e se usa o horário de trabalho para alimentar as páginas agora banidas, que, como informou o Facebook, se dedicavam, entre outras atividades, a atacar instituições, a imprensa e jornalistas.

Os relatórios do Facebook podem conter IPs usados para as postagens e mostrar se eles coincidem com computadores do Planalto ou do Congresso em postagens para convocar atos golpistas, atacar adversários e outros Poderes e disseminar desinformação, inclusive a respeito da pandemia, como apontou a auditoria.

Se a investigação do Facebook contiver ainda dados a respeito de impulsionamentos desse tipo durante a campanha eleitoral, ela pode alimentar outra: a dos disparos ilegais de mensagens pela campanha de Bolsonaro que corre no Tribunal Superior Eleitoral, também com suspeita de participação de empresários.

O caminho para seguir o dinheiro está dado.


Vera Magalhães: Bolsonarice contagiosa

Tal qual um vírus, impostura do presidente infecta o País

A notícia de que Jair Bolsonaro, depois de tanto desafiar as regras de bom senso em uma pandemia, foi contaminado pelo novo coronavírus deflagrou um outro surto: a ira irracional daqueles que colocam adesivos antifascistas em seus perfis nas redes sociais e passaram a desejar a morte do presidente da República.

A onda não ficou restrita à internet. Chegou a colunas de jornais, travestida de exercício filosófico-linguístico, mas cujo único resultado prático é vitimizar o presidente que até agora destilou sua falta completa de empatia diante da tragédia. Perde a imprensa, perde o País, perdemos todos nós, que nos desumanizamos a cada dia, sem perceber que, aos poucos, nos transformamos naquilo que mais desprezamos.

Bolsonaro não ganhou apenas corações e mentes dos minions que os segue nas portas dos palácios e em posts ensandecidos. O presidente conseguiu comprometer o fígado e o cérebro de parte daqueles que o criticam, num jogo que apenas rebaixa todos ao seu patamar e permite que ele ganhe espaço, porque no lodaçal é imbatível.

Não há nada que justifique que democratas, pessoas e instituições se ponham a “torcer” pela morte desse ou daquele. Muito menos as indignidades de Bolsonaro, uma vez que é justamente contra elas que se conclama a união de esforços daqueles que prezam a vida, a ciência, a educação, a cultura e a civilidade.

Sim, o presidente colhe de volta a absoluta falta de compaixão que cuspiu na cara de um país estarrecido ao longo dos últimos cinco meses. Andou a cavalo, passeou de jet ski, subiu em boleia de caminhão, assoou o nariz e cumprimentou velhinhos em seguida, receitou cloroquina sem ser médico, mandou invadirem hospitais, chegou ao cúmulo de vetar o uso de máscaras e passeou por aí já infectado, possivelmente transmitindo coronavírus para os poucos com os quais diz se importar.

Diante de tanta atrocidade, merece morrer? Não. Porque esse pensamento nos prende à barbárie que o presidente, sua família e seu núcleo insano tratam de cultivar desde antes mesmo da campanha, como terreno fértil para permitir a supressão da razão, único ambiente em que alguém tão virulento pode ser eleito presidente da República.

Aqueles que são de fato a antítese de Bolsonaro só têm um caminho: torcer pela medicina, pela ciência e pela sua cura. E para que ele responda diante dos órgãos competentes pelos crimes de responsabilidade que cometeu e diante dos eleitores pelas vezes em que brincou com a vida como um déspota de quinta categoria.

O oposto de Bolsonaro não é a hashtag “força, corona”. Essa é sua consagração, seu triunfo, o caminho para sua perpetuação.

Construir de forma inteligente e lúcida o caminho para que nos curemos de Bolsonaro significa mostrar com dados e evidências o quanto seu comportamento colocou em risco não apenas a si mesmo e seus familiares, mas um país inteiro.

Como sob a falácia de salvar a economia acabou condenando vidas e boicotando qualquer chance de minimizar o estrago econômico.

É acompanhar seu tratamento e repetir aos incautos que não, cloroquina não tem efeito preventivo nem curativo comprovado. E que um presidente da República virar mascate de remédio e impor a um ministério sem ministro há quase dois meses que enfie esse remédio goela abaixo da população é mais um dado que o inabilita para exercer o cargo que exerce.

A morte de Bolsonaro em nada contribuiria para que o Brasil tivesse alta de sua doença crônica e generalizada, em que a política virou uma peste e que, ao se curar de um vírus, você automaticamente cai acamado por outro ainda mais letal. A vacina para isso se chama democracia, já está disponível e permite a imunidade a esse comportamento de rebanho que nos desumaniza.


Vera Magalhães: Quem sabe sabe

Pragmáticos superam Guedes, militares e ideológicos e fazem a cabeça de Bolsonaro

Quando a coisa fica feia, quem você chama para resolver? Se o problema é de natureza política, o risco é um impeachment e ao seu redor só há neófitos no assunto, alguns claramente perturbados por delírios ideológicos, é melhor você chamar os profissionais do ramo.

Foi o que Jair Bolsonaro fez, quando a insensatez com que vinha conduzindo o País desde janeiro ameaçava de fato desaguar numa interdição de seu mandato, por alguma das muitas frentes abertas para conter seu ímpeto autoritário e genocida.

Foi buscar logo os mais experientes. Convencionou-se falar em “Centrão”, mas é bom dar nomes aos bois. Hoje, quem faz a cabeça do presidente em primeiro lugar não são os militares, alquebrados pela forma como as Forças Armadas foram desgastadas pelo delírio golpista do presidente, nem Paulo Guedes, cuja agenda liberal foi solapada pela crise da pandemia e pelo populismo que o chefe vai adotando sem cerimônia, nem os malucos ideológicos, dos quais o “capitão” parece que vai se cansando.

O conselheiro-geral da República se chama Gilberto Kassab, preside o PSD, avalizou dois ministros em um mês, ajudou a calar a matraca presidencial e – milagre dos milagres – ainda escapa incólume da artilharia dos filhos e dos fanáticos da internet.

Surpreendente, mas não para o personagem em questão. Kassab foi vice de José Serra na chapa para a Prefeitura de São Paulo em 2004 e virou prefeito quando o tucano foi disputar o governo, dois anos depois. Contra todas as apostas, foi reeleito em 2008, derrotando a ex-prefeita Marta Suplicy e o ex-governador Geraldo Alckmin, cuja teimosia em disputar o cargo rachou a aliança PSDB-DEM.

Dessa fissura começou a ser gestado o plano de Kassab de ter o próprio partido, ao qual dedicou seu segundo mandato. Se em 2010 ainda manteve a aliança com Serra, passou os quatro anos do primeiro mandato de Dilma Rousseff num processo de aproximação com o PT que lhe rendeu o Ministério das Cidades no segundo mandato da petista.

Dali saiu em 15 de abril de 2016, exatos dois dias antes de o impeachment ser aberto na Câmara. Um mês depois, assumia o Ministério de Ciência e Tecnologia de Michel Temer, a mais rápida metamorfose política até para a exótica política brasileira.

Em 2018, se aliou ao antes arqui-inimigo Alckmin e se aproximou de João Doria, de quem recebeu logo na transição a Casa Civil, pela lealdade. Virou alvo de inquérito na Lava Jato e a nomeação foi “congelada”, em outra peripécia desse personagem sui generis na política nacional: está há 550 dias licenciado sem vencimentos de uma pasta que nunca ocupou! Isso no governo do maior adversário atual do novo “brother”, o presidente Bolsonaro.

Graças a Kassab, Bolsonaro nomeou Fábio Faria para as Comunicações, neutralizando as bobagens que o voluntarioso Fábio Wajngarten vinha fazendo. Faria já começou um trabalho silencioso de aproximação com os veículos de mídia que o presidente se esmerou em ter como inimigos. Também foi do novo ministro o conselho para que o presidente diminuísse suas declarações, que quase sempre produziam uma nova crise para si mesmo em meio à maior pandemia do século.

Percebendo o efeito concreto da aproximação com o Centrão em geral e com Kassab em particular, Bolsonaro acelera no caminho que, a seu ver, pode evitar sua única preocupação como presidente: a de perder o mandato.

A escolha de Renato Feder vai nessa linha, e os olavistas fazem piti para tentar derrubá-lo antes de assumir. Se Bolsonaro ceder ao lobby da ala histérica e começar a rifar o Centrão pragmático, voltará a correr riscos. Esse pessoal, Kassab à frente, não esquenta lugar em governo condenado a cair e sente o gosto de sangue na água.


Vera Magalhães: Até o totó era fake

Cãozinho Augusto e ministro mitômano povoam anedotário bolsonarista

E eis que, quando as atenções do Brasil estavam voltadas para o currículo a la “jogo dos sete erros” do novo-ex-ministro da Educação, vem a bomba, por avisos de push dos jornais: “Cachorro adotado pela família Bolsonaro já tem dono e será devolvido”.

É verdade que estamos calejados com tantos absurdos, que parecem pastiches de livros de realismo mágico e viraram diários nesses tempos de pandemia. Mas essa manchete, combinada às sucessivas erratas no currículo lattes (até aqui cabe trocadilho) de Carlos Decotelli, foi demais até para quem acompanha o enredo dia a dia.

Sim, faltava um mascote ao anedotário do bolsonarismo. Agora não falta mais. Augusto (talvez nunca saibamos se o nome era homenagem a algum dos Augustos próximos ou a Augusto Pinochet, ditador de estimação da família) na verdade era Zeus. Já tinha dono e teria de ser devolvido, depois de acolhido pela primeira-dama, Michele Bolsonaro.

Os memes vieram imediatamente: nem cachorro Bolsonaro consegue fazer durar no posto; nem o cachorro aguentou esse governo, e por aí vai. A hashtag Bolsonaro ladrão de cachorro (!) foi levada aos temas mais comentados do Twitter. O fato é que a piada foi elevada a categoria política na nova era, dada a dificuldade, em vários episódios, de se encontrar balizas sérias para analisar os acontecimentos.

Basta lembrar que não faz uma semana que, em meio a lives históricas de artistas como Gilberto Gil e Milton Nascimento, fomos submetidos a um show de sanfona do presidente da Embratur, Gilson Machado Neto, que pretendeu entoar a Ave Maria em homenagem aos mortos pela covid-19 na transmissão semanal de Bolsonaro nas redes sociais, para visível constrangimento de Paulo Guedes.

O que tudo isso quer dizer? Que este governo virou um sitcom de mau gosto, e não de hoje. Os Bolsonaros sempre foram um elenco para lá de cafona, mas, por circunstâncias também elas dignas de um roteiro rocambolesco, seu patriarca chegou à Presidência, levando a tiracolo a “família buraco”, como bem definiu Eduardo em seu inglês avançado.

Os ministérios da Saúde e da Educação viraram a ribalta principal desse pastelão. O primeiro não tem ministro já mais de 40 dias em plena pandemia. O segundo se livrou de um maluco para ser entregue a um mitômano. A linha sucessória Vélez Rodríguez – Weintraub – Decotelli é a demonstração cabal do desapreço que o presidente dedica à Educação – que, não por acaso, é o único caminho seguro para que o País supere a miséria que fideliza o eleitorado a populistas de diferentes cortes ideológicos, mas práticas em muito similares.

Nada disso deveria estar numa coluna de política em pleno 2020 em que mais da metade da população ativa do Brasil está sem ocupação, que o vírus avança sem controle e que o governo não sabe como, por quanto tempo e em que valor vai pagar o auxílio emergencial a quem precisa, esses sim temas urgentes e nacionais.

Mas Bolsonaro consagrou a petecagem como política de Estado. Vulgarizou de tal maneira a Presidência à qual se agarra com o temor dos covardes que temos de comentar pessoas que jamais teriam, com currículo fake ou real, de estar nos postos que estão.

Houve farialimer e passapanista aos borbotões enchendo a boca para falar do ministério “técnico” de Bolsonaro. Já era uma lorota bem antes de Decotelli, basta ver as mentiras sinceras dos currículos de figuras como Ricardo Salles e Damares Alves.

Agora que tudo está descortinado e que o presidente ou nomeia Decotellis ou entrega os cofres ao Centrão sem intermediários, há quem ainda se agarre a Guedes ou a nomes como Tarcísio Gomes de Freitas. Triste sina a deles: virar coadjuvantes de filme sessão da tarde de cachorrinho. Ou plateia de sanfoneiro de beira de estrada.


Vera Magalhães: Sapo na festa do céu

Enquanto esquerda discute quem pode integrar frente, Bolsonaro lhe rouba a agenda

A discussão em torno da formação de uma frente, que se pretendia “ampla”, em defesa da democracia e dos direitos e em reação às investidas de Jair Bolsonaro contra esses dois pilares empacou em critérios tão adultos e democráticos como birra, picuinha, ciúme, ressentimento e cálculo eleitoral para 2022.

Enquanto entidades, políticos e partidos do espectro que vai da centro-direita à esquerda discutem quem pode integrar a frente, tirando dela qualquer amplitude, Jair Bolsonaro vai, na surdina, lhes roubando a principal agenda: a discussão da renda básica universal.

Mais esse erro crasso dos que se opõem a Bolsonaro me remeteu à fábula da festa no céu. Poderiam participar todos os animais voadores. Mas o sapo deu um jeito de burlar as restrições e entrar no céu escondido na viola do urubu.

O sapo é Bolsonaro. Assiste subitamente calado aos desdobramentos do caso Fabrício Queiroz, sabendo que pode se complicar feio por aí, enquanto vai, por meio do auxílio emergencial, entrando no baile da esquerda, que se perde na distração de discutir quem pode ou não fazer parte da tal frente.

Quando o necessário auxílio emergencial de R$ 600, por três meses, foi aprovado, alguns analistas logo enxergaram o potencial que aquilo, dinheiro na veia dos mais pobres, teria para dar a Bolsonaro uma nova base social. Me lembro de textos nesse sentido de Carlos Pereira, no EstadãoCarlos Andreazza, no Globo, e Fernando Canzian, na Folha, para ficar nos primeiros que trataram do tema.

Não deu outra. Dados da Pnad Covid divulgados pelo IBGE mostram o efeito rápido e impressionante do auxílio – mesmo com todos os seus problemas de logística na distribuição, fraudes e exclusão de gente que preenche os critérios para recebê-lo – na redução da pobreza e da extrema pobreza.

Mesmo Bolsonaro, cuja inteligência não é tão grande quanto à do engenhoso sapo, já percebeu o filão de recuperação de sua popularidade, assolada pela absoluta incompetência que ele demonstrou para conduzir o País na pandemia e por seus arreganhos autoritários, entre outras inadequações ao cargo que ficaram escancaradas desde janeiro.

Com a costumeira falta de sutileza, foi ao Twitter expor um casal “muito humilde” do Vale do Jequitinhonha que lhe agradecia pelo auxílio. “De tudo o governo está fazendo, dentro do possível, para garantir a mínima dignidade ao povo”, postou, assumindo o populismo e já despido da fantasia liberal que vestiu para a eleição.

A renda básica universal é uma pauta que Eduardo Suplicy carregou como um Quixote por décadas. Era ridicularizado até no PT. Com a pandemia, o assunto voltou à discussão pelos escritos de economistas como Monica de Bolle, no Brasil, e ganhou também outros países. 

Paulo Guedes a princípio resistiu, tentou limitar a R$ 300 o benefício e achou que seria possível circunscrevê-lo a três meses, mas agora já trabalha com a possibilidade concreta de a transformação do Bolsa Família num programa turbinado e rebatizado ser a única agenda possível daqui para a frente, já que as reformas parecem ter perdido o bonde.

E Bolsonaro vê seus índices nas pesquisas pararem de despencar em pleno caso Queiroz. “Como?”, perguntam os desatentos. É o auxílio, estúpido. Bolsonaro já sacou, e daqui para a frente apostará tudo que puder na fidelização de uma nova base social, nas classes D e E e nas periferias das cidades e rincões do País, ao passo que coopta o Centrão para não ver o impeachment avançar.

Alheia a tudo isso, a esquerda deixa de constituir a frente e construir uma agenda que era sua, para ficar fiscalizando quem tem asa para entrar na festa do céu. E lá vai o sapo escondidinho na viola.


Vera Magalhães: Um ano perdido

Fuga de Weintraub é símbolo final de desastre da Educação na pandemia

A fuga canhestra de Abraham Weintraub do País e seu desembarque caricato em Miami foram o apogeu de uma gestão daninha na Educação.

O pior ministro da Educação que o Brasil já teve se despediu com um bilhete em papel de pão, um abracinho no presidente e uma banana para o País. Para poder entrar nos Estados Unidos, se valeu de uma fraude ao Diário Oficial, mais um expediente que vai se tornando rotina no governo coalhado de ilegalidades de Jair Bolsonaro.

Antes de mais essas cenas de pastelão, no entanto, o dono da cachorrinha Capitu entregou um ano perdido, em que os alunos não foram apenas expostos aos riscos para a saúde física e mental decorrentes da pandemia, mas à completa falta de perspectiva para seu futuro escolar graças à inépcia do Ministério da Educação.

Depois de, por pura birra, tentar obrigar alunos do Ensino Médio a fazer o Enem sem ter aulas, ou tendo sido jogados de paraquedas num ensino à distância com mais buracos que a superfície da Lua, e ser forçado a recuar pela Justiça e pelo Congresso, Weintraub simplesmente desligou as operações.

Não houve, por parte do MEC, uma diretriz sequer de retomada a Estados e municípios de como planejar a retomada das aulas, e a que tempo.

Além disso, o ministério, que já era um ator tardio e secundário na discussão do financiamento da educação básica a partir do ano que vem, se esqueceu deliberadamente do assunto.

O ministro-clown preferiu gastar seus últimos dias à frente da pasta conspirando contra a democracia, confraternizando com milicianos golpistas, tentando impor às universidades federais reitores biônicos e exterminar as políticas de ação afirmativas adotadas para franquear o acesso à pós-graduação a negros, indígenas e deficientes.

Numa calamidade sanitária, empenhou toda a sua energia na destruição, na apologia ao golpismo, à obsessão de fechar portas àqueles para os quais a Educação deveria ser uma ponte para o futuro.

O estrago é tão indisfarçável que Bolsonaro, que também não está nem aí para a Educação, tem de cobrar dos candidatos a ministro um plano para a volta às aulas, já que a equipe que o fujão deixou não tem nada a apresentar, ao que parece.

As consequências recaem sobre alunos de todos os ciclos, de todo o País e das redes pública e privada. E a borduna, como sempre, vai bater mais forte na cabeça dos mais pobres. As iniciativas municipais e estaduais de ensino à distância são um conjunto irregular e fake, em que uns saíram levemente na frente e outros não conseguiram nem se organizar três meses depois.

Não há compensação possível, por exemplo, para alunos de universidades federais cujas instituições nem tentaram implementar ensino à distância. Jogados em casa, muitas vezes sem acesso a entretenimento ou cultura, esses alunos questionam se o plano que haviam traçado para o próprio futuro ainda fará sentido após a pandemia ter varrido perspectivas acadêmicas, empregos e cadeias produtivas inteiras.

Os pais dos estudantes de escolas e faculdades privadas podem até ter a ilusão de que as aulas online supriram esse buraco, mas basta acompanhar um dia da rotina de alunos jogados diante de telas que jogam conteúdos incompatíveis com a nova realidade para saber que isso é conversa mole para cobrar mensalidade integral.

Cabe a esses pais e estabelecimentos se entenderem, mas no caso da Educação pública a responsabilidade é dos governantes. É urgente que o MEC exume o fantasma Weintraub e assuma um mínimo de articulação de estratégia educacional. E governadores e prefeitos têm de deixar de pensar em reabrir shoppings e focar em dar a pais e alunos um protocolo responsável para redução de danos de um ano perdido.


Vera Magalhães: E agora, Paulo?

Saída de Mansueto abre debate sobre legitimar governo Bolsonaro

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?

Numa semana pródiga em escândalos até para os aberrantes padrões bolsonaristas, peço licença para não falar de Sara Giromini, Fabrício Queiroz ou Abraham Weintraub, que já foi tarde.

Figura bem menos exótica, o ex-secretário do Tesouro Nacional Mansueto Almeida, economista e pesquisador do Ipea, virou pivô de um debate sobre em que medida, diante dos arreganhos autoritários do presidente e de suas investidas diárias contra a democracia, aqueles que permanecem em cargos de confiança em sua gestão são cúmplices de seus atos.

A discussão sobre Mansueto foi enviesada e serviu de pretexto para fazerem aflorar velhas antipatias contra o economista, um dos idealizadores do teto de gastos. Mas se um assessor do segundo escalão – que, afinal, pediu demissão – gerou tamanha celeuma, isso é sinal de que existe, sim, uma discussão importante a ser feita sobre quem fica neste governo apesar de tudo.

O título desta coluna procura direcionar a discussão a quem de direito. No caso, ao ex-chefe de Mansueto, o ministro da Economia, Paulo Guedes.

O decano dos liberais em atividade no Brasil, filho da escola de Chicago e até 2018 um outsider no debate de política econômica no Brasil, foi o Cavalo de Troia que Bolsonaro – um corporativista praticante de rachadinha e filhotismo político sem a menor noção de quem tenha sido Adam Smith – usou para se apresentar como liberal.

Era um dos disfarces que lhe faltava. Já tinha a fantasia do combatente da corrupção, que também nunca foi, e do renovador das práticas políticas, que Queiroz et caterva mostram que era mais um delírio coletivo.

No primeiro ano de mandato, Guedes viveu a ilusão de que ser liberal bastaria, tomando emprestado, depois dos versões de Drummond, a reflexão de Gil. A aprovação da reforma da Previdência ajudou a embalar este sonho.

Mas veio a pandemia e, tal qual o José do poema, Paulo “está sem discurso, está sem carinho”, porque “a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia, e tudo acabou, e tudo fugiu, e tudo mofou”.

A utopia do Bolsonaro liberal ruiu na reunião ministerial, à qual Guedes não só assistiu calado como para qual contribuiu com alguns maus momentos.

O mofo que cobre tudo é o do golpismo barato e da nostalgia da ditadura, reforçado todos os dias pelo clamor dos aliados ao uso indevido das Forças Armadas para se contrapor ao Judiciário e ao fechamento das instituições.

A permanência de Guedes ajuda a legitimar um governo que desmorona sem ministro da Saúde na pandemia, sem titular da Educação quando alunos estão perdidos em casa, povoado de indicados do Centrão para evitar o impeachment e frequentando cada vez mais as páginas policiais – não por uma “rachadinha inocente”, como dizem os passadores de pano compulsivos, mas por um engenhoso esquema de lavagem de dinheiro público de gabinetes legislativos e ligação comercial e financeira com a milícia do Rio.

O governo Bolsonaro é a negação absoluta da “sociedade aberta” de Karl Popper, o mantra que Guedes segue entoando, alheio ao fato de que sua agenda foi tragada pela pandemia e pelo populismo e que, neste momento, quem faz a cabeça do presidente não é mais o Posto Ipiranga, mas os ideólogos do golpe.

Para ele e os demais ministros “técnicos” ficar é, sim, chancelar. Está claro que não virão “notáveis” para fazer parte dessa gestão que arrasa tudo que toca. O nível daqui para a frente será de Mário Frias para baixo.

“Sozinho no escuro, qual bicho do mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha”, Paulo. Paulo, para onde?


Vera Magalhães: Ao discutir prisão de Queiroz com aliados, Bolsonaro se aproxima da crise

Vai ficando difícil, de novo por iniciativa própria de um presidente que não para de se enrolar sozinho, defender o discurso de que a crise de Queiroz não tem nada a ver com o presidente

A crise de Fabrício Queiroz não tem nenhuma relação, por ora, com o governo federal. Ele é investigado por atos cometidos quando era assessor parlamentar de Flávio, e não de Jair Bolsonaro, na Assembleia Legislativa do Rio.

É o filho senador e ex-deputado estadual que está no epicentro da crise Queiroz.

Ao usar o Palácio do Planalto e o horário do expediente para se reunir com ministros de Estado e líderes governistas no Congresso para discutir a prisão do amigo e ex-assessor do filho, o presidente passa um imenso recibo, leva para o Executivo federal mais uma de “n” crises que tem para administrar simultaneamente, todas elas com potencial explosivo e em concomitância com uma pandemia que ainda ceifa milhares de vidas no Brasil.

Bolsonaro não tratou com esses ministros da demissão do ministro da Educação, Abraham Weintraub, esse sim um tema de governo, nem da decisão, por 9 votos a 1, do Supremo Tribunal Federal de manter o inquérito das fake news, preocupação número 1 até quarta-feira.

Ao chamar para si a crise, Bolsonaro reforça aquilo que disse Sérgio Moro: que uma das grandes preocupações do presidente é usar as estruturas de Estado para proteger familiares e amigos, notadamente os filhos numerados e políticos.

Vai ficando difícil, de novo por iniciativa própria de um presidente que não para de se enrolar sozinho, defender o discurso de que a crise de Queiroz não tem nada a ver com o presidente. Ele mesmo tentou fazer isso depois da reunião, à noite, na live semanal nas redes sociais. Mas seu semblante catatônico, o corpo arqueado e o desânimo ao tratar do assunto, sem esconder o pavor, surtiram o efeito radicalmente contrário.


Vera Magalhães: Esqueçam o artigo 142

Generais, com cargos no 1º escalão e de pijama, usam interpretação golpista da Constituição para ameaçar demais Poderes

O maior fator de instabilidade da democracia hoje vem da caserna. As Forças Armadas contribuem de forma definitiva para que paire sobre a Praça dos Três Poderes a sombra de risco de um autogolpe por parte de Jair Bolsonaro à medida que generais com cargos no primeiro escalão e os de pijama em clubes militares nas redes sociais, meio en passant, usam a interpretação golpista do artigo 142 da Constituição para ameaçar os demais Poderes.

Virou moda. O Tribunal Superior Eleitoral vai investigar a chapa Bolsonaro-Mourão? Opa aí não, olha o artigo 142 aí. Pedidos de impeachment são apresentados? Não vamos admitir, temos o artigo 142. O STF usa sua atribuição constitucional de exercer o controle jurisdicional sobre atos do presidente que ferem os princípios da administração pública? Estão exagerando e podemos puxar da manga o artigo 142.

Não, senhores militares, não podem. Diz o famigerado artigo: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Garantia dos Poderes, e não da permanência do presidente no poder.

Não são a guarda de inverno do presidente tresloucado que quer armar a população, acha que pode fazer escambo do Ministério da Educação com a blindagem dos seus extremistas.

Governo teme que saída de Mansueto cause ‘efeito fim de feira’
Causou celeuma na esquerda a saída de Mansueto Almeida do Tesouro. Chegaram a compará-lo a burocratas do nazismo que assistiam aos horrores de Hitler calados – embora ele tenha pedido demissão e não haja comparação entre os horrores do bolsonarismo, que são atentados à democracia e à saúde pública, e os do nazismo, que são crimes contra a Humanidade. Já no governo a saída gerou pânico: na equipe econômica e nos poucos ministérios ocupados por não ideólogos a sensação é de que ficar, de agora em diante, significa ter a reputação para sempre arranhada. E o temor no entorno fiel a Bolsonaro é de que haja debandada semelhante à do fim do governo Collor.

STF vai esvaziando inquérito das fake news e transfere ações para outro
O Supremo Tribunal Federal já começou, mesmo antes da decisão do plenário da Corte, a sanear o inquérito das fake news. Primeiro, Alexandre de Moraes franqueou aos advogados dos investigados acesso às provas obtidas e aos indícios que balizaram as diligências determinadas por ele. As novas operações realizadas pela Polícia Federal e as quebras de sigilo de bolsonaristas se deram já no inquérito dos atos antidemocráticos, também relatado por Moraes, que teve trâmite padrão: foi aberto a partir de representação, e não por decisão do próprio STF, teve relator sorteado, e não designado, e o Ministério Público participa desde o início. Isso porque Moraes tem boas razões para crer que, no julgamento a ser retomado nesta quarta-feira, seus pares optem por estipular prazo, objeto e limites para o inquérito “supertrunfo” das fake news, aberto por determinação de Dias Toffoli há mais de um ano e no qual cabe tudo e mais um pouco.


Vera Magalhães: Derrotados

Crimes de Bolsonaro levam Brasil a perder a batalha da pandemia

Perdemos. O Brasil não se recuperará da derrota acachapante nesta pandemia. Caminhamos resolutos para romper a barreira de 50 mil mortes e 1 milhão de infectados relegados à própria sorte: sem ministro da Saúde, sem isolamento social em canto algum, sem estratégia, sem governos.

E com um presidente da República que comete crimes diariamente e não é impedido de fazê-lo ou porque os que o cercam, seus ministros e seu vice, são cúmplices, ou porque os que tentam têm à sua disposição instrumentos legais e institucionais que não são capazes de lidar com a sanha autoritária e genocida que Jair Bolsonaro já não faz questão de esconder. O que vai pará-lo? Ou vamos assistir inertes a uma escalada que não tem limites?

Em fevereiro, quando informei que Bolsonaro estava escondidinho no WhatsApp convocando atos golpistas contra o Supremo e o Congresso, ele mentiu e me ofendeu.

Agora, aquelas mensagens parecem coisa de criança perto do que o capitão já fez às claras, ao vivo, em rede nacional, nos palácios que ocupa como se fossem a casa da mãe Joana.

Um breve retrospecto: o presidente já participou, de carro, a cavalo, de helicóptero, a pé ou na boleia de caminhonetes de pelo menos seis atos de natureza claramente antidemocrática. Os convocou, chancelou, festejou, apoiou e abriu a rampa do Planalto para eles; Bolsonaro mandou censurar e maquiar os números de covid-19 no Brasil. Só recuou depois que o Supremo exigiu; em sua sanha persecutória, demitiu um ministro da Saúde e viu outro se demitir porque queria que eles prescrevessem remédio sem eficácia comprovada ou maquiassem os números que depois o general interino topou torturar; agora o presidente deu de flertar abertamente, inclusive em notas nas redes oficiais, com a interpretação golpista do artigo 142 da Constituição, com a assinatura de Hamilton Mourão e dos demais generais ministros, para tentar acossar o Supremo; como se não bastasse tudo isso e muito mais que não cabe em uma coluna, o presidente atingiu o suprassumo da bestialidade ao conclamar (e ser imediatamente atendido) seus apoiadores igualmente lunáticos a invadirem hospitais para filmarem leitos vazios.

Isso precisa parar. O presidente precisa ser instado, a partir de representação imediata do Ministério Público Federal ou dos partidos ao Judiciário, a se retratar de maneira inequívoca dessa última sandice que é crime contra a saúde e a ordem públicas e afronta de maneira textual vários artigos de textos legais, da Constituição à Lei de Abuso de Autoridade, passando pelo Código Penal de cabo a rabo.

É uma vergonha que ministros que se dizem democratas aceitem jogar sua biografia na lata do lixo servindo a um regime que condena o País a esses atentados diários ao bom senso, à paz social, à saúde pública e à economia, porque ninguém mais é capaz de acreditar na balela cínica de que alguém que age dessa forma tresloucada tem qualquer preocupação com empregos e crescimento.

Paulo Guedes pode até fingir que acredita que vamos voltar (voltar?) a crescer depois desse pesadelo, mas não é possível que coloque a cabeça no travesseiro à noite e não reconheça que nenhum investidor com juízo vai colocar dinheiro num País desgovernado.

E governadores e prefeitos, que tiveram do STF a delegação de cuidar das suas populações já que o governo federal não era capaz? Jogaram a toalha e resolveram também se fingir de loucos.

Reabrir a economia na base do vale-tudo, como estão fazendo de Norte a Sul, é tão criminoso quanto o show de horrores diário de Bolsonaro. As ruas abarrotadas, as filas em shoppings, as festas cobrarão seu preço em mortes e hospitais colapsados. E não será possível jogar a culpa toda em Bolsonaro. Fracassamos como País.


Vera Magalhães: Bafo do impeachment

Somando a gravidade da pedalada com as vidas e o fato de que as ruas começam a encher, Bolsonaro viu a cara do impeachment

Jair Bolsonaro conduziu uma reunião do conselho de ministros nesta terça-feira no Palácio da Alvorada em que quase parecia um estadista. Comedido, falou sobre as declarações da véspera da especialista da Organização Mundial da Saúde (OMS) que minimizou os riscos de contágio da covid-19 por pessoas assintomáticas. Não tripudiou, não comemorou, não desancou a OMS. Não falou palavrões.

No domingo anterior, não fez sua tradicional aparição cercado de apoiadores na rampa do Palácio do Planalto.

Depois de esticar a corda ao máximo, ao determinar que o Ministério da Saúde revisasse e escamoteasse os dados de contágio e óbitos da pandemia, recuou diante de mais uma invertida do Supremo Tribunal Federal (STF), numa semana plena de potenciais encrencas para o governo no Judiciário.

Todos esses recuos são do conhecido comportamento ciclotímico de Bolsonaro, mas agora foram ditados por avisos muito claros que auxiliares fizeram ao presidente: o apagão de dados da covid-19 era o que de mais cristalino em termos de crime de responsabilidade o “capitão” cometeu até aqui, e não passaria incólume só com notas de repúdio.

Tanto que a reação da sociedade, da imprensa, dos Poderes, do Ministério Público, do Tribunal de Contas, da CNBB, do papa, da OMS, da universidade John Hopkins não deixou margem para dúvida.

Somando a gravidade da pedalada com as vidas e o fato de que as ruas começam a encher, Bolsonaro viu a cara do impeachment, e, pela primeira vez, ela estava viva.

ARMAS

Ideia de zerar alíquota é novo
Se o discurso de Bolsonaro está no modo de contenção desde segunda-feira, as ações do presidente continuam mostrando a propensão de ampliar a influência política do bolsonarismo sobre as Forças Armadas e as polícias. Diante de tanta coisa que o presidente fala, passou quase batida sua declaração de que vai zerar a alíquota de importação de armas para “ajudar o pessoal do artigo 142 e 144 da Constituição”. Mais uma vez Bolsonaro investe na leitura golpista dos dois artigos para associá-los à possibilidade de usar os militares e as polícias como forças de “defesa” de um governo ameaçado por riscos reais ou imaginários.

PT EM TRANSE

Novos líderes já não escondem incômodo com ‘lulocentrismo’
As recentes bolas foras de Lula na tentativa de mostrar que é uma liderança de peso na pior crise política, econômica, de saúde e social que o Brasil enfrenta em anos já levam boa parte da nova geração não só de líderes petistas, mas de toda a esquerda, a demonstrar em público o incômodo com a forma autocentrada com que o condenado na Lava Jato conduz a sigla. No Roda Viva na segunda-feira, o governador do Ceará, Camilo Santana, fez algo que seria sacrilégio no partido até outro dia: disse com todas as letras que Lula está “equivocado” ao negar fazer parte de uma frente ampla pela democracia, e disse que o PT tem de fazer aliança em Fortaleza sem estar na cabeça da chapa, outra heresia. Não demorou a que Gleisi Hoffmann lançasse a candidatura de Lula em 2022, para mostrar que o establishment petista segue alheio à irrelevância da sigla também na oposição a Bolsonaro, depois de ser apeada do poder com Dilma Rousseff.


Vera Magalhães: Domingo, o dia D

Bolsonaro busca pretexto para golpe enquanto comete crimes em série

A questão atual não é se Jair Bolsonaro cometeu ou não crimes de responsabilidade desde que resolveu rasgar a fantasia de democrata ainda em janeiro, mas notadamente a partir do início da pandemia do novo coronavírus.

É notório que o presidente da República usa a crise de saúde e econômica para afrontar os demais Poderes, avacalhar as instituições, avançar em seu projeto armamentista e de cooptação das Forças Armadas e das polícias militares para defendê-lo das tentativas de contenção constitucional dos demais Poderes.

A cada fim de semana, o Brasil agrava seu estado de anomia, caminhando de forma perigosa, sob o beneplácito de muitos dos que teriam obrigação legal de agir, para algo próximo de uma ruptura. Este domingo pode fornecer o pretexto que o presidente busca, mas não é este o único risco colocado diante de uma nação perplexa, apavorada e, em grande medida, ainda inerte.

Na última semana, o presidente resolveu incluir outro crime no rol dos que já cometeu: atentado à saúde pública. Diz o artigo 267 do Código Penal que é crime contra a saúde pública causar uma epidemia. Isso pode se dar por ação ou omissão, e ao verbo “causar” pode-se incluir ações para agravar uma epidemia em curso.

Bolsonaro determinou a revisão do horário e da metodologia de divulgação de dados da covid-19. Pior: depois de efetivar um general como interino na pasta, de coalhá-la de militares e exonerar técnicos em massa e de estabelecer, por medida provisória, um “excludente de ilicitude” para ações de servidores ao longo da pandemia, pressiona pela revisão de todos os dados até agora. O site do Ministério Interino da Saúde também passou a omitir dados divulgados desde o início da crise.

Tudo isso configura atentado oficial, deliberado e com documentação contra um País que vive um pico desordenado de covid-19 enquanto seus governantes discutem uma reabertura prematura e também ela criminosa.

Para agravar o que já é uma situação-limite, neste domingo, tudo conspira para que haja confrontos entre manifestantes e que esse seja o pretexto que Bolsonaro aguarda para tentar medidas ainda mais autoritárias.

Opositores do governo, com pautas justificadas, organizam atos em várias cidades contra o racismo e o fascismo. Mas o fazem também eles ignorando a necessidade de distanciamento social e não percebendo que levar o enfrentamento do governo para esse campo é tudo que a natureza golpista e belicosa do bolsonarismo quer neste momento.

Não por outra razão o presidente e seus 300 fanáticos afrontam mais de 70% da população do País semana após semana. O que o presidente, o vice, os filhos do presidente, as milícias bolsonaristas e os deputados teleguiados querem é que haja violência que justifique tentar enquadrar grupos antigoverno na Lei Antiterrorismo, num claro movimento de cerceamento ao direito de manifestação e sem tratar com o mesmo critério aqueles que pedem intervenção militar ou fechamento do Congresso e do Supremo.

O domingo pode fornecer a desculpa que o presidente está buscando para tentar empastelar as investigações do STF, impedir que elas cheguem à Justiça Eleitoral e calar ainda mais um Congresso que já está com o rabo entre as pernas enquanto os partidos do Centrão vão às compras nas gôndolas, antes fechadas a eles, do bolsonarismo.

É preciso que os líderes dos movimentos de oposição entendam a armadilha e orientem seus seguidores a não caírem em provocações e não deem pretexto para policiais simpatizantes do presidente agirem com truculência. Os governadores também precisam comandar suas polícias efetivamente, sob pena de serem as primeiras vítimas de um golpe que, se vier, terá nas PMs a força motriz.