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Vera Magalhães: Não vai mudar

Bolsonaro não mudará e o entorno já acha formas de se adaptar – em alguns casos, alienando o presidente das discussões

“Ele não vai mudar.” Sem nuances, este foi o diagnóstico que colhi na minha ida a Brasília na última semana, relativo a Jair Bolsonaro, feito com a mesma convicção por ministros, assessores do presidente e parlamentares.

Havia uma expectativa, durante a campanha e ainda depois das eleições, de que a Presidência trataria de conferir certa noção de institucionalidade a Bolsonaro, cuja trajetória sempre foi de “outsider" nas corporações (Exército, Congresso, partidos) às quais pertenceu.

Não vai acontecer, e o entorno já começa a encontrar formas de se adaptar a isso – em alguns casos, alienando o presidente de discussões importantes de seu governo.

As análises segundo as quais Bolsonaro moldaria suas declarações, ideias e ações aos limites do cargo foram classificadas pelos seus opositores mais radicais como tentativas de setores da imprensa, da sociedade e do eleitorado de “normalizá-lo”.

É um dilema de difícil resolução. Nos Estados Unidos, já se vão quase três anos de Presidência de Donald Trump, e ele e a imprensa seguem numa relação para lá de conflituosa. Mas o caminho de expor as inverdades e de confrontar os insultos do presidente tem sido adotado com mais convicção por veículos antes perplexos com sua retórica incendiária.

O aprendizado americano serve para o Brasil. Quando um presidente eleito democraticamente insiste até hoje em questionar o sistema de urnas eletrônicas, investe contra a imprensa propagando fake news nas redes sociais e propõe a comemoração, no dia de hoje, de um golpe militar que instituiu uma ditadura, querendo rever e debochar da História, a imprensa tem se imbuído de seu papel de expor, checar, propor o contraditório e criticar essas práticas.

Para Bolsonaro, esse exercício equivale a questionar a legitimidade de sua eleição. Para os opositores mais radicalizados, a imprensa pecou justamente ao não fazê-lo. Eis um dos muitos exemplos de como a polarização política doentia na qual o Brasil mergulha a cada dia apenas interdita o debate.

Bolsonaro foi eleito legitimamente. Negar isso abre as comportas para que ele próprio arreganhe seus pendores autoritários e dê asas à ala de seu governo que flerta com saídas nada democráticas para o Supremo, a imprensa e o Congresso. Não é por aí.

Fora da imprensa, em setores do próprio governo, do Parlamento e do empresariado que se veem diante do desafio de lidar com um presidente avesso a qualquer institucionalidade, no entanto, as formas de fazê-lo são diferentes das da mídia: já surgem arranjos, como o ensaiado por Paulo Guedes e Rodrigo Maia, em que Bolsonaro é deixado de lado, como café com leite, enquanto os adultos cuidam dos temas importantes, como a reforma da Previdência.

De novo, a gritaria nos extremos. O “bolsonarismo sem Bolsonaro” desagrada tanto a opositores, como manifestou o ex-deputado Aldo Rebelo em entrevista na semana passada, quanto aos seguidores fiéis do “mito”, como vociferam os filhos, que enxergam tentativa de golpear o pai a cada esquina.

Apoiadores de Bolsonaro, preocupados com a sua queda de popularidade, elaboraram um gráfico com três esferas com fotos dele: uma como presidente, com a faixa; outra do “mito”, em que aparece chutando um Pixuleco de Lula, e a terceira do “homem”, com uma lata de leite condensado na mesa do café. O ruído excessivo que gerou as crises desses três meses estaria na intersecção das três figuras.

Bom diagnóstico. Mas, como cravam os próprios circunstantes, isso não vai mudar. Cabe aos atores do debate público encontrar meios de lidar com Bolsonaro sem achar que o “novo normal” são seus ataques às instituições, mas reconhecendo que seu governo é legítimo e assim deve ser encarado. Vamos nessa.


Vera Magalhães: Guedes se preserva

Em meio à guerra que virou a (des)articulação política do governo, Paulo Guedes mostrou ter mais noção dos riscos políticos que aqueles que se dedicam à atividade há mais tempo e disputam eleições.

O ministro da Economia sabia que poderia ser entregue aos leões e virar presa fácil de uma Comissão de Constituição e Justiça que é presidida pelo PSL, mas sobre a qual o partido do governo não tem nenhum controle. Tanto é que nem relator da reforma da Previdência existe ainda.

Conhecedor do próprio gênio forte e pouco afeito a levar desaforo para a casa, Guedes preferiu se preservar como interlocutor ainda imune à desconfiança generalizada que tomou conta das relações entre Executivo e Legislativo – como forma, justamente, de ser o fiador da retomada da tramitação da reforma. Agiu como estrategista quando todos agem com o fígado.

Guedes tem mantido as pontes com Rodrigo Maia (DEM-RJ), a quem avisou previamente que não iria à CCJ. Tem sido uma voz no governo a tentar convencer Bolsonaro da importância de ter o presidente da Câmara como aliado, e do risco de tê-lo como inimigo.

Mas prega no deserto: mesmo depois de assegurar ao núcleo de ministros mais próximos que desarmaria a difamação a Maia nas redes, o próprio Bolsonaro postou vídeo com ataques ao deputado no Twitter. Ainda ontem esses petardos continuavam a ser lançados, alguns direto da Virgínia, por meio de posts chulos do “guru” Olavo de Carvalho. Dado o nível do embate, Guedes fez a única coisa sensata: se recolher.

EM SP
Michelle Bolsonaro será a estrela de evento beneficente

A primeira-dama Michelle Bolsonaro será a principal estrela de um encontro com 200 casais da alta sociedade paulistana que acontece nesta quarta-feira na casa de Elie Horn, fundador da incorporadora Cyrela e um dos empresários mais próximos de Jair Bolsonaro. O encontro será para angariar fundos para a União Brasileiro Israelita do Bem-Estar Social (Unibes). Aliados ainda tentam assegurar a presença do próprio Bolsonaro, mas a agenda presidencial prevê a ida à Universidade Mackenzie para conhecer pesquisas sobre o grafeno – visita que preocupa a área de segurança do governo pela previsão de protestos.

COMUNICAÇÃO
Mudança de estratégia visa conter desgaste de Bolsonaro

A mudança na comunicação do governo, com a provável entrada do empresário Fábio Wajngarten na Secom, tem como objetivo principal conter algo que os apoiadores do presidente negam em público, mas já detectaram em pesquisas: a queda abrupta de sua aprovação nos grandes centros urbanos, sobretudo em São Paulo. A ideia é que Wajngarten, que atuou na campanha construindo pontes com grupos de comunicação, amplie essa aproximação.

O diagnóstico no governo é de que é preciso separar a imagem institucional do presidente daquela da campanha. Wajngarten deve vitaminar também a publicidade oficial. A avaliação é de que a propaganda da Previdência, por exemplo, passou batida do grande público e precisa ser intensificada para vender a mensagem de que se quer combater privilégios. Isso ajudaria no trabalho de convencimento político, pois deputados e senadores se sentiriam mais confortáveis para explicar ao eleitor o apoio ao projeto.


Vera Magalhães: Desembargador demole decisão de Bretas

O desembargador Antonio Ivan Athié levou quatro dias desde a prisão do ex-presidente Michel Temer e de outras nove pessoas na Operação Descontaminação para ler as 384 páginas do requerimento do Ministério Público, as 46 da decisão do juiz Marcelo Bretas, outras tantas dos habeas corpus impetrados pela defesa dos presos e os documentos juntados.

Quando finalmente o fez, no recesso do lar, tratou de perceber que não havia sequer uma justificativa amparada pelo Código de Processo Penal a norteá-las, como diz, cheio de “vênia”, na sua própria decisão, e tratou de demolir a peça do juiz, a nova “estrela” da Lava Jato na ausência de Sérgio Moro.

É um escândalo que um desembargador de segunda instância alegue falta de tempo de ler o processo para marcar para uma quarta-feira da semana seguinte a análise de habeas corpus de pessoas presas preventiva e temporariamente.

Graças à falta de tempo do integrante do TRF-2, as pessoas passaram quatro dias presas. Não houve nenhuma circunstância posterior às dadas na quinta-feira para que Athié antecipasse sua decisão, dispensando a decisão colegiada que convocara para amanhã.

Assim, se com argumentos ele mostra que era no mínimo frágil – para não dizer “exagerada” na narrativa ou baseada em “confusão ou “deturpação deliberada”, como ele mesmo aventa – a decisão de Bretas, com a demora em revogá-la investe também ele, juiz de segundo grau, contra as garantias e os direitos individuais que a Justiça deveria preservar.

E presta um descabido tributo à Lava Jato, que soa como uma tentativa de se blindar preventivamente das críticas por soltar Temer e contrariar a opinião pública.


Vera Magalhães: Bolsonaro quer reforma?

Amadorismo na política e corporativismo militar são riscos à aprovação da proposta

Poucos presidentes na história recente do Brasil tiveram a oportunidade de, com uma única ação, definir o sucesso de seu governo e ter quatro anos de relativa tranquilidade econômica e política. Mas Jair Bolsonaro não enxerga a reforma da Previdência como prioridade. E aí reside um risco enorme não só à aprovação da medida, mas ao êxito de seu quadriênio presidencial.

Na transmissão ao vivo que fez do Chile na última quinta-feira, Bolsonaro explicitou exatamente o que pensa do assunto: por ele, não gostaria de fazer reforma nenhuma. Mais: o presidente da República voltou a agir como um sindicalista, se referindo aos militares como “nós” e defendendo a forma excepcionalíssima com que as Forças Armadas foram tratadas na discussão da reforma.

A má vontade com que encaminha o projeto se traduz no desastre da articulação política. Nem o PSL, a colcha de retalhos em forma de partido à qual hoje o presidente é filiado, tem manifestado apoio firme à reforma.

Insistindo no discurso vazio de que não cederá à velha política para negociar, Bolsonaro corre o risco de perder o principal interlocutor pró-reforma hoje, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Ainda que tenha procurado reduzir o tom nas últimas entrevistas, o presidente da Câmara deixou claro o que pensa do governo: um deserto de ideias mais preocupado com o Twitter que em resolver os problemas do País, como desemprego e pobreza. E ele está correto no diagnóstico.

Isso fica evidente quando um dos assessores diretos do presidente, Filipe Martins, faz no mesmo Twitter uma série de posts com pretensão de alta filosofia política em que identifica uma suposta ala “anti-establishment” no governo, que seria a chave para, com base em mecanismos próprios de democracia direta, promover uma mobilização popular permanente via redes sociais capaz de pressionar o Congresso a aprovar as agendas do governo, entre elas a reforma.

Trata-se de um diagnóstico absolutamente descolado da realidade, típico de alguém que nunca acompanhou os meandros do Legislativo e ignora as diferentes realidades sociais de um país complexo como o Brasil, no qual a militância virtual é uma ínfima e irrelevante fração.

Mas Bolsonaro está preso a essa quimera. Três meses depois de empossado segue acreditando que o discurso ideológico de Foro de São Paulo para cá, ideologia de gênero para lá será capaz de lhe garantir governança. A ponto de chegar ao ridículo, sem ter ninguém que o alerte para tal, de repetir essas platitudes em plena Casa Branca. E desdenha dos índices que mostram rápido derretimento de sua popularidade no mundo real, aquele em que as pessoas precisam de emprego e a economia continua travada.

Além de viver a ilusão de que é possível governar a partir das redes sociais, o presidente dá corda ao corporativismo militar. Por mais que as Forças Armadas estejam com suas carreiras e seus soldos defasados, fazer essa reestruturação concomitantemente com a inclusão dos militares na reforma foi um tiro no pé.

Como defender um discurso de que a reforma foca em privilégios se o ganho com o aperto no Benefício de Prestação Continuada, que atinge os mais pobres, responderá por uma fatia bem maior do sacrifício que exigido dos poderosos militares? Não há como, e isso ficou patente no semblante derrotado dos outrora confiantes técnicos do Ministério da Economia, que viram o esforço de narrativa virtuosa da reforma ir por terra.

Com o amadorismo na política e o corporativismo renitente de Bolsonaro, a reforma corre risco. Mas não parece haver humildade nem sabedoria da cúpula do governo, com exceção da “ilha” Paulo Guedes, para mudar o rumo e salvar o único projeto capaz de definir o sucesso da administração.


Vera Magalhães: Prisões coincidem com revés da Lava Jato e disputa intensa entre instituições

Juiz Marcelo Bretas testa os limites e a extensão de decisão do Supremo Tribunal Federal, de que crimes relacionados a outros eleitorais devem ser julgados pela Justiça Eleitoral

A prisão de Michel Temer, dois de seus ex-ministros e o amigo João Batista Lima Filho, o notório Coronel Lima, ocorre num dos momentos mais críticos para a Operação Lava Jato em seus cinco anos de existência. À parte a consistência ou não das revelações do dono da Engevix, José Antunes Sobrinho, o fato é que elas são conhecidas pelo menos desde outubro do ano passado, quando sua delação premiada foi homologada.

Já estava no horizonte da política e dos meios judiciais que Temer poderia ser preso. O próprio emedebista tinha essa preocupação no radar: despachava diariamente com assessores e advogados no escritório que mantém há muitos anos no Itaim, em São Paulo. Evitava entrevistas, dedicava horas a esmiuçar os vários inquéritos e a tentar rebatê-los juridicamente. Mas o caso Engevix não estava entre suas principais preocupações. Antes dele figuravam o chamado inquérito dos portos, a delação dos executivos da J&F – que ensejou a primeira denúncia contra ele, ainda em 2017 – e a acusação de recebimento de recursos da Odebrecht, negociados em jantar no Palácio do Jaburu em 2014.

A prisão preventiva coincide com um momento de intensa disputa de poder entre várias instituições e entre agentes públicos e políticos. Estão no tabuleiro as iniciativas do Supremo Tribunal Federal para ao mesmo tempo conter o “lavajatismo” e reagir a críticas, ataques e investigações contra a corte e seus integrantes; a necessidade de a própria Lava Jato reagir a sucessivos reveses que atingem a força-tarefa; as agruras do ex-juiz e ex-símbolo da Lava Jato Sérgio Moro se adaptar à sua nova condição de ministro e, portanto, ator da política; a dificuldade do governo de articular uma base de apoio no Congresso e votar a reforma da Previdência, e a maneira como o Congresso e, por conseguinte, a classe política tentam se recuperar do processo no qual foram dizimados pela Lava Jato e perderam força de negociação com o governo.

Todos esses episódios, de forma combinada ou específica, contribuem ou sofrem as consequências da escalada quase diária dessa disputa institucional por poder e prerrogativas, da qual a prisão do segundo ex-presidente em um ano é um dos capítulos mais dramáticos.

Ao ordenar as prisões, o juiz Marcelo Bretas, que tem sido muito vocal nas manifestações políticas nas redes sociais e se notabilizou graças à Lava Jato e na esteira da popularidade alcançada por Moro, testa a extensão de decisão do STF da semana passada, de que crimes relacionados a outros eleitorais devem ser julgados pela Justiça Eleitoral. Na delação, o dono da Engevix diz ter repassado R$ 1 milhão para a empresa do coronel Lima como fachada para esconder uma contribuição ao PMDB – que reverteria em benefícios em contratos já existentes para Angra 3 e concessões aeroportuárias.

Se fosse levada ao pé da letra, a ponto de representar o “fim da Lava Jato”, como preconizaram procuradores que atuam na operação, a delação e as investigações dela decorrentes poderiam ir para a Justiça Eleitoral. Bretas decidiu ignorando essa interpretação. A defesa dos presos já se movimenta para contestar as prisões tendo a decisão do STF como parâmetro. E caberá à corte, mais uma vez, dirimir a controvérsia.

Uma análise imediata das prisões de Temer permitiria tirar a conclusão de que elas são uma boa notícia para Bolsonaro, por atingirem um grupo político que foi apeado do poder com sua eleição e por vir num momento em que sua popularidade cai. Será? O tumulto político atingindo o sogro do presidente da Câmara – Moreira Franco, preso nesta quinta, é casado com a sogra de Rodrigo Maia – e um partido que detém 30 votos coloca em xeque a já conturbada negociação da reforma da Previdência. Mais: se já era latente o conflito entre os políticos e Moro antes dessa nova investida da Lava Jato, agora as condições para que o ministro da Justiça tenha êxito em sua negociação para a aprovação do pacote anticrime se deterioram ainda mais.

A prisão de Temer e dos demais aliados deve acentuar um movimento que já vinha ocorrendo: uma união tácita entre STF e Congresso para tentar conter o que ministros chamam de “perenização” da Lava Jato. É entendimento comum a políticos e ministros da corte que a Lava Jato deixou de ser uma operação – algo circunscrito a um objeto definido – e uma força-tarefa (por definição algo provisório) há muito tempo. Em cinco anos, a Lava Jato foi de uma ação contra doleiros de Brasília ao petrolão e, de lá, ao infinito e além. A ponto de hoje ter tentáculos em setores como elétrico e de transportes (em vários modais), atingir múltiplos partidos e se espraiar para governos dos Estados.

O discurso de que deve haver um fim da Lava Jato, cinco anos depois, já não é apenas entoado nos bastidores: ele começa a ser expressado publicamente. Resta saber nessa equação como vai se portar Bolsonaro, eleito em parte como consequência da “lavajatização” da política e tendo em seu ministério o símbolo máximo da operação, mas ao mesmo tempo premido pela necessidade de destravar a economia, tarefa para a qual precisa contar com o Congresso.


Vera Magalhães: A todo custo, não!

Agentes públicos esticam a corda de sua atuação, num vale-tudo institucional

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, vê em curso uma marcha para assassinar reputações e enfraquecer as instituições, tendo as redes sociais como veículo e fruto de uma orquestração que acredita ter bases inclusive internacionais. Propõe um pacto entre Poderes para se contrapor a isso e diz que combaterá essa rede a qualquer preço. O diagnóstico do fenômeno, salvo um evidente exagero, pode estar correto. O problema começa quando se analisa até onde ele e outros estão dispostos a esticar a corda para fazer prevalecer seus interesses e suas opiniões “a qualquer custo” no Brasil, neste momento. O custo, no caso, muitas vezes são a lei e as próprias instituições.

Vejamos o caso do próprio STF. Para se contrapor a uma campanha contra a Corte, Toffoli lançou mão de um instrumento mais do que controverso. Anunciou a abertura de um inquérito criminal, sem provocação nem objeto definido, para, de forma genérica e perigosamente abrangente, investigar ameaças, calúnias, difamações e sabe-se lá mais o que contra ministros e familiares.

Trata-se de um balaio no qual cabem desde os ataques virtuais até procuradores da República que tecem críticas aos ministros e auditores da Receita Federal. Senadores que propõem a CPI da Lava Toga estarão enquadrados? Jornalistas que criticarem ministros entrarão no rol dos investigados? Quem xingar ministro no avião entra na roda? Não se sabe. Justamente porque, sob o manto do sigilo, não se tem acesso ao escopo do tal inquérito.

Trata-se de uma arma desigual nas mãos de pessoas especialíssimas, que passam a ter a prerrogativa – única no País, da qual não podem se valer nem presidentes da República, vide os inquéritos que Michel Temer enfrentou no exercício da Presidência – de frear qualquer um que ouse questioná-las. Não há amparo constitucional para isso.

Os procuradores protestam, mas também estão no time dos que tentam dar aquela esticadinha nas suas prerrogativas, no vale-tudo institucional tão em voga. A história da super fundação urdida pela força-tarefa de Curitiba para administrar os R$ 2,5 bilhões fruto de um acordo com a Justiça americana, para que parte da multa devida pela Petrobrás fique no Brasil, é um claro exemplo de que o sucesso da Lava Jato envolveu os seus protagonistas numa aura mística de invencibilidade que os faz se sentirem acima da lei e até dos Poderes. Exorbita aqui, vira algo de arbítrio ali.

Quem perde, na ida e na volta, é a sociedade, refém de uma disputa por poder que inclui lances grotescos como o ataque apoplético proferido pelo ministro Gilmar Mendes aos procuradores do plenário do Supremo, sem ser admoestado pelo presidente da Corte, tão cioso das instituições quando é para blindar o tribunal, mas pouco vocal para segurar os arreganhos autoritários de seus pares.

E qual a saída? Para o Legislativo, parece ser uma CPI para chantagear os juízes e ministros do STF. Sendo que boa parte dos investigados e processados nas várias instâncias judiciais estão justamente no Parlamento. Mais uma vez o sentido da proposta nada tem a ver com preocupação de modulação entre os Poderes e contenção de cada um aos preceitos que a Constituição estabelece para sua atuação. Trata-se de vingança e revanchismo dos mais baratos, combinados com uma vontade insana de aparecer.

Pobre País, que assiste atônito a ataques diários às instituições, que começam num presidente que usa o Twitter para propagar fake news e atacar a imprensa e terminam nesse show de horrores pelo resto da Praça dos Três Poderes. A ideia de resolver as coisas “a todo custo”, como bravateou Toffoli, nada tem a ver com pacto pelo País. Trata-se, isso sim, de um investimento no caos.


Vera Magalhães: Primeiros passos

Começou a desanuviar o ambiente para o governo no Congresso. Nada que assegure, por ora, a maioria necessária para votar a reforma da Previdência – nem próximo disso, na verdade. Mas começa a ser debelado o franco mal-estar que havia, e que se traduzia na armação de arapucas para derrotar o Executivo em votações. Aconteceu no decreto do sigilo dos documentos, e outra mina terrestre foi armada nas emendas à medida provisória que reestruturou os ministérios. “Se votar hoje, o governo, como foi concebido por Bolsonaro, desmorona”, resumiu um veterano de Congresso.

Não será votada tão cedo, mas a MP, com todas as armadilhas, está lá, com prazo contando, como um lembrete. E o recado é que deputados e senadores querem saber do governo se ele os vê como aliados ou inimigos a serem exterminados. Não se trata da emenda “x” ou do cargo “y”, mas do princípio.

O que Rodrigo Maia levou a Bolsonaro na conversa que tiveram no fim de semana foi que os deputados temem que aprovem os projetos do governo num dia e, no seguinte, sejam “asfixiados” em suas bases, sem ter que prefeitos sejam atendidos pelos ministros, recursos sejam liberados, enfim, que tenham ferramentas para exercer os mandatos.

Bolsonaro demonstra começar a entender a necessidade de fazer política, mas ainda se mostra muito apreensivo com a quebra de discurso junto ao seu eleitorado mais radical. De certa forma, ainda é refém do discurso de campanha – que incorre diariamente no erro de reafirmar nas redes sociais.

CASO MARIELLE
Separação de investigação em fases mostra olho no calendário

A falta de respostas quanto aos mandantes e as motivações do assassinato de Marielle Franco por parte da polícia e do Ministério Público do Rio de Janeiro evidenciou certa pressa em efetivar a prisão preventiva dos acusados da morte da vereadora e do motorista Anderson Gomes antes da efeméride de um ano da execução.

NOS EUA
Ex-presidenciáveis debatem 3 meses de governo Bolsonaro

Um dos painéis da Brazil Conference at Harvard & MIT, em Boston (EUA), reunirá pela primeira vez desde as eleições três ex-presidenciáveis para discutir o governo de Jair Bolsonaro. Fernando Haddad (PT), Ciro Gomes (PDT) e Henrique Meirelles (MDB) estarão juntos no debate Visões do Brasil Pós-Eleições, no dia 7 de abril.

TUDO PARADO
Paralisia ideológica do MEC ameaça avaliações

Técnicos do Ministério da Educação estão de cabelo em pé diante do risco de que a paralisia administrativa da pasta, provocada pela guerrilha ideológica que esvaziou o ministro Vélez Rodríguez e mostrou uma completa balcanização na divisão de cargos, ameace a série histórica de avaliações importantes. Em outubro ocorre a aplicação do Saeb Alfabetização, para alunos do 2.º ano do Ensino Fundamental, e do Saeb para 5.º e 9.º anos do Fundamental e 3.º ano do Ensino Médio. No caso do 2.º ano, será a primeira prova para avaliar o cumprimento da meta de alfabetizar as crianças nesta idade. É a primeira já de acordo com a Base Nacional Comum Curricular. O processo de elaboração dessas provas, pelo Inep, é longo e o governo anterior definiu que a prova será complexa, com questões de múltipla escolha e abertas, para avaliar Língua Portuguesa e Matemática. Isso está parado. Na prova do 9.º ano, será a primeira vez que haverá avaliação em Ciências.


Vera Magalhães: Enredo surrealista

Golden shower e guerra entre olavistas e militares animam o Carnaval de Bolsonaro

Eu tinha reunido temas e entabulado conversas com fontes para duas colunas “frias” no período do Carnaval, já que, normalmente, o noticiário político dá aquela acalmada nesta época. Mas nada mais será como antes no reino de Bolsonaro, deveríamos ter aprendido desde 2018.

Começou com o “Golden Shower Gate”, como bem batizou Mariliz Pereira Jorge, mas a curta semana de confusões autoimpostas, algo que já se tornou uma marca de gestão, termina com uma inusitada guerra entre discípulos do polemista Olavo de Carvalho e a ala militar do governo.

Há tempos o guru do bolsonarismo vem voltando seus rifles lá da Virgínia para a cabeça do vice-presidente, Hamilton Mourão. Mourão tem demonstrado savoir faire ao dedicar a Olavo as respostas debochadas que suas imposturas merecem – e que o deixam ainda mais enfurecido.

Mas a coisa ganhou outra proporção na sexta-feira, quando discípulos do curso de correspondência virtual do ex-astrólogo começaram a ser deslocados de cargos estratégicos para outros decorativos no Ministério da Educação.

Olavo, claro, estrilou. Exortou os “olavetes” – maneira pela qual, sem modéstia nem respeito, chama os próprios alunos – a deixarem todos os cargos (algumas dezenas, diz ele!) no governo Bolsonaro e se recolherem à sua rotina de estudos (que inclui, certamente, mais algumas rodadas de boletos do tal COF).

E fez mais: atribuiu, numa série de posts, a perseguição a seus aprendizes de filósofos a uma joint venture entre os militares e o empresário Stavros Xanthopoylos, que tem em comum com seu detrator o fato de militar no ramo da educação à distância – e de ter feito a cabeça dos Bolsonaro ao longo dos últimos anos.

Xanthopoylos foi cotado para assumir o Ministério da Educação nas bolsas de apostas logo após a vitória do capitão, mas foi preterido por Ricardo Vélez Rodrigues, amigo, admirador e protegido de Olavo – que rapidamente aceitou a “paternidade” pela nomeação, para demonstrar sua influência sobre o novo regime.

Essa mixórdia que opõe bastiões importantes da ascensão de Bolsonaro – militares, olavistas e os empresários entusiasmados com a possibilidade de derrotar o PT– é um fio desencapado que deveria preocupar os estrategistas mais próximos ao presidente, se esses não fossem, na sua maioria, militantes de redes sociais.

Em pouco mais de dois meses, já começaram a ruir algumas vigas mestras da narrativa de sucesso de Bolsonaro: 1) Os “postos Ipiranga” que dão alguma credibilidade ao governo, Sérgio Moro e Paulo Guedes, foram algumas vezes desautorizados; 2) A “nova política” de combate à corrupção e rigor com o dinheiro público sucumbiu ao laranjal de Fabrício Queiroz e das candidaturas femininas do PSL, e 3) a festejada comunicação direta com o povo resultou na fritura em dendê de um ministro e sua demissão, e, depois, despejou golden shower sobre a família brasileira.

Tudo isso causa fissuras cada vez mais aparentes no monólito de apoio de Bolsonaro à direita. O arranca-rabo público do até então guru com os militares, estes sim um dos pilares mais sólidos e orgânicos que o presidente ouve e respeita, tem o poder de agravá-las e de levar a rupturas em áreas sensíveis da administração, como o já citado Ministério da Educação e o Itamaraty, ambos comandados por “olavetes” e focos de irritação dos pragmáticos militares.

Por fim, é importante lembrar que todos esses episódios do Carnaval para lá de animado do reino Bolsonaro não foram provocados pela esquerda, que só consegue ofertar o espetáculo ridículo da tal presidência paralela do ex-Nilo do lixão, Zé de Abreu. É tudo obra e graça do próprio presidente e de seu núcleo mais próximo. Joãosinho Trinta não seria capaz de conceber enredo tão rocambolesco.


Vera Magalhães: Bolsonaro e os pobres

A parcela da esquerda que não está presa à armadilha autoimposta de passar os dias bradando “Lula Livre” nas redes sociais e defendendo a ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela vai, aos poucos, detectando um flanco para enfrentar o governo de Jair Bolsonaro: a falta de projetos voltados aos mais pobres. O caminho, diga-se, foi mostrado pelo próprio presidente e seu entorno.

O discurso altamente ideologizado de Bolsonaro tem feito com que categorias como professores, ambientalistas, sindicalistas, ativistas de organizações não governamentais e artistas sejam automaticamente associados ao PT e estigmatizados – quando não xingados de larápios de dinheiro público, canalhas e outros adjetivos – por aliados do presidente, ministros e quando não pelo próprio. O exemplo mais recente foi o entrevero entre Bolsonaro e artistas no carnaval. Na visita de Juan Guaidó a Brasília, Bolsonaro brincou que a esquerda gosta tanto de pobres que acaba por “multiplicá-los”. Mas o que o governo propõe para reduzir a pobreza?

Por ora não se sabe. A agenda liberal do governo tem levado a mudanças como as referentes ao Benefício de Prestação Continuada e à aposentadoria rural na reforma da Previdência, à redução de repasses para as faixas mais populares do Minha Casa Minha Vida e à suspensão da reforma agrária.

Já há setores do governo preocupados com essa balança social desequilibrada. O próprio presidente deu mostras de que pode não bancar a proposta de “focalização” do BPC defendida pela equipe econômica, justamente pelo peso do programa junto aos mais pobres, principalmente nos Estados do Nordeste.

Na campanha eleitoral, Bolsonaro tinha feito uma inflexão em seu discurso histórico contra o Bolsa Família (sempre associado por ele à compra de votos pelo PT) ao dizer que iria manter e ampliar o programa, instituindo inclusive um 13.º para os beneficiários. Parecia entender que, para ampliar sua base social, precisaria falar aos mais necessitados da pirâmide social. Os primeiros meses não trouxeram um conjunto de iniciativas voltadas a esse público, e a oposição, que mostrou na eleição que não tem um projeto que fale ao conjunto da sociedade, percebe a lacuna e começa a se reorganizar para atuar nela.

CINZAS
Articulação da reforma em marcha lenta pós-carnaval

A equipe da Secretaria Especial da Previdência só retoma na quinta-feira a mobilização em prol da reforma. Deputados só retornam em massa a Brasília a partir da semana que vem, e os dias pós-folia serão usados para coordenar o discurso. A pausa carnavalesca foi comemorada por articuladores do governo, que avaliam que será benéfica para mitigar o efeito das declarações de Bolsonaro na semana passada, quando admitiu graciosamente negociar aspectos do texto. “Vamos voltar com a defesa do texto que foi enviado”, me disse ontem um dos negociadores da reforma. As atenções estarão voltadas para a composição da Comissão de Constituição e Justiça e da Comissão Especial que analisará o mérito da proposta. O nome do jovem Fernando Franceschini (PSL-PR) para presidir a CCJ foi recebido com ceticismo na área técnica do governo, que prefere a deputada Bia Kicis (PSL-DF), considerada mais firme e mais madura para uma comandar a principal comissão da Câmara.

FOLIA 1
Ecos do carnaval deveriam ser alerta para o Planalto

Quando começaram os primeiros panelaços contra Dilma Rousseff, em 2015, a primeira reação do PT foi ironizar os “ricos” que usavam suas Le Creuset nas varandas gourmet das grandes cidades para fustigar a presidente. Como se viu, foi um tremendo erro de avaliação minimizar a insatisfação. Os gritos contra o presidente deveriam servir de alerta ao Planalto para o pulso das ruas, que bate em compasso diferente daquele ambiente controlado e artificial das redes sociais a favor.

FOLIA 2
Doria defende para Witzel privatização de sambódromos

João Doria aproveitou a visita ao Carnaval do Rio para articular com o colega Wilson Witzel o apoio dos dois Estados à reforma da Previdência. De brinde, o governador paulista teceu loas diante do colega fluminense ao projeto de privatização do sambódromo paulista, o que levou Witzel a dizer que a concessão da Sapucaí à iniciativa privada pode também ser um bom caminho para o endividado governo do Rio.


Vera Magalhães: Fim da lua de mel

Na falta de um alerta, Jair Bolsonaro recebeu dois nesta terça-feira de que a lua de mel pós-eleitoral chegou ao fim e a hora é, como venho dizendo aqui, de arregaçar as mangas e cuidar da política se quiser avançar com a pauta de seu governo – reforma da Previdência à frente.

O primeiro recado foi a pesquisa CNT/MDA, que mostrou que é de apenas 39% o contingente dos brasileiros que avaliam seu governo como ótimo ou bom. Bem abaixo dos índices de largada dos primeiros mandatos dos presidentes que o antecederam, inclusive Dilma Rousseff, que tinha a aprovação de 49,1% na mesma pesquisa em fevereiro de 2011.

O segundo sacolejo veio da lúcida fala do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), na conferência do BTG Pactual. Ele, um insuspeito defensor da reforma da Previdência, disse sem meias palavras que Bolsonaro é “refém do discurso da campanha”. Que prometeu que o País mudaria rapidamente, e as coisas não se dão desta maneira na democracia. E que “não dá para continuar nessa discussão do que é nova e velha política”. “Existe A POLÍTICA”, ensinou. As maiúsculas são minhas, mas a ênfase foi dele.

Há elementos à mesa de Bolsonaro para que ele dê um freio de arrumação em seu governo antes dos 100 dias: se dedicar mais à política e menos à propaganda ideológica passadista como a que fez ontem, ao louvar ditadores, eleger a reforma como pauta a ser defendida por todos os ministros e entender que comunicação de um presidente da República, para atingir efetivamente o conjunto da sociedade (e não as macacas de auditório das redes sociais), tem de ser institucionalizada.

PREVIDÊNCIA
Governo vai correr com projeto dos militares

A advertência de Rodrigo Maia parece ter surtido efeito e o governo deve correr com o projeto que vai regulamentar as regras de aposentadoria e pensões dos militares e incluí-los na nova Previdência. O presidente da Câmara se comprometeu com o governo a só colocar o projeto dos militares para votação em plenário depois da aprovação da proposta de emenda constitucional que fixa as novas regras para servidores civis e a iniciativa privada. Mas convenceu o núcleo político do governo (a equipe econômica já estava nessa página) de que não seria possível convencer deputados a se desgastarem votando a reforma e deixar o pessoal de farda para sabe-se lá quando.

EDUCAÇÃO
Enquanto Vélez investe em propaganda, MEC está parado

O ministro Ricardo Vélez Rodríguez passou três horas na Comissão de Educação do Senado no dia seguinte à divulgação de sua peça de propaganda política do governo que deveria ser lida nas escolas para gerar vídeos que seriam usados como peça de propaganda. Falou em volta do ensino de educação moral e cívica (rebatizada de educação para a cidadania), chamou ensino médio de segundo grau e demonstrou que olha a Educação pelo prisma da ideologia e da nostalgia. Enquanto isso, o MEC está parado. Em sua curta passagem pela pasta no governo Temer, Mendonça Filho promoveu avanços significativos. Foram aprovadas a reforma do ensino médio e a Base Comum Curricular, para ficar em duas medidas que representaram uma guinada não apenas retórica na política petista. Mas há metas a serem perseguidas: a formulação de currículos a partir da Base Comum, a expansão da rede de ensino médio em tempo integral e a expansão da rede de educação infantil.


Vera Magalhães: Exorcismo político

Bolsonaro terá de fazer outro ‘mea-culpa’: o de que a política não é coisa do diabo

Mais que o gesto de ir pessoalmente à Câmara para levar a reforma da Previdência ou o pronunciamento que fez em rede de rádio e TV para defender a proposta, Jair Bolsonaro acertou ao admitir, sem meias-palavras, que errou quando votou contra a reforma da Previdência no passado.

A frase tem o mesmo peso e sentido parecido a uma declaração de Lula, coincidentemente também depois de dois meses de mandato, em 2003, quando disse que “quando a gente é de oposição, pode fazer bravata porque não vai ter de executar nada mesmo; agora, quando você é governo, tem de fazer, tem que ser responsável, e aí não cabe a bravata”.

É disso que se trata. Vale para a responsabilidade fiscal e para a política, o próximo assunto a que Bolsonaro terá de se dedicar para ter sucesso na reforma, e no qual também não escapará, cedo ou tarde, da necessidade de dar um cavalo de pau no que vendeu publicamente.

Casos como o laranjal do PSL, o gabinete-rachadinha de Flávio Bolsonaro, a interferência da família no mandato e a demissão escandalosa de um ministro palaciano com 50 dias de governo já trataram de tisnar aquela aura de “diferentões” da política com que Bolsonaro e companhia venceram as eleições. Nada mais velha política do que esse coquetel servido graciosamente pelo entorno do presidente, sem que a oposição tivesse movido um dedo mindinho sequer.

Ainda assim, a narrativa oficial insiste na lenga-lenga de que o toma lá, dá cá acabou, partidos perderam espaço e nomeações e emendas não serão mais usadas como combustível para votações no Legislativo. O erro desse discurso é condenar essas práticas à vala comum da fisiologia e da corrupção, como se, feitas com transparência e racionalidade, não fossem legítimas.

O Orçamento é o instrumento pelo qual as políticas públicas são executadas. As emendas servem para que deputados e senadores alterem prioridades dentro de suas atribuições constitucionais. Estabelecer um sistema de liberação dessas emendas que permita que os parlamentares prestem contas às suas bases – desde que isso não seja usado como forma de chantagem – é do jogo político e não deveria ser, de cara, condenado. Sob pena de gerar escândalo dos eleitores quando enfim tiver de ser feito. Como terá.

É obtuso insistir no blá-blá-blá do purismo político quando se olha para a planilha de votos da base governista e se vê apenas um papel em branco. Partidos do Centrão já começam a apontar defeitos na reforma enviada à Câmara – uma peça coerente, ambiciosa e que ataca privilégios, de fato – não porque estejam de fato preocupados, mas porque querem ser chamados a conversar.

Bolsonaro tem como usar o capital político de início de mandato para entabular uma conversa com esses partidos em termos novos, mas sem estigmatizá-los de saída, o que só fará com que criem mais dificuldades.

Precisará, para isso, de um time de articulação com mais jogo de cintura. O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, que tem a chave do cofre das emendas, terá de entender que a política não é algo tão vil quanto ele faz parecer nas declarações e na cara sisuda que intimida deputados e senadores. O mais natural é que seja do titular da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, a missão de negociar com o Congresso, que conhece bem. Para isso, terá de ganhar alguma autonomia em relação a Bolsonaro e se afinar com o correligionário Rodrigo Maia (DEM-RJ), até aqui o mais consciente entre os atores da reforma das dificuldades imensas que haverá pela frente. E da necessidade de exorcizar a política, tão demonizada desde que a Lava Jato foi alçada à categoria política e Bolsonaro, à condição de mito.

Que o presidente tenha começado a pedir desculpas é um bom caminho para iniciar o ritual.


Vera Magalhães: Reforma em campo minado

As sucessivas e acachapantes derrotas do governo ontem foram um recado claro: Jair Bolsonaro não sabe o que o espera se insistir em lidar com o Congresso de forma desorganizada ou, pior, impositiva. Na mesma tacada, ficou claro que 1) deputados e senadores não vão deixar virar moda a história de se governar por decretos, 2) ainda não existe articulação política que se possa chamar desse nome e 3) as brigas na base isolam o PSL, que não tem coesão interna nem influência sobre os demais partidos.

A data para que a derrota fosse carimbada na testa do governo não poderia ser mais eloquente. No mesmo dia, Sérgio Moro e Paulo Guedes, as duas principais estrelas do governo, acompanhados de outros ministros, fizeram questão de levar em mãos o pacote anticrime do titular da Justiça. A ideia era, como sempre, baseada na imagem: mostrar coesão de um governo que, na verdade, hoje é um queijo suíço.

E hoje, dia seguinte da comprovação de que a Câmara é atualmente um campo minado para o governo, será a vez de Bolsonaro enviar (levar pessoalmente, dizem alguns) a reforma da Previdência, pedra de toque de seu governo, à mesma Casa.

A crise da demissão de Gustavo Bebianno e as derrotas impingidas ao governo mostram que, ao contrário do senso comum do otimismo inicial, a reforma da Previdência não é um dado da realidade. Precisará ser construída com política, o artigo em falta na gestão Bolsonaro. Não basta ao presidente colocar o projeto debaixo do braço e posar para fotos. Terá de arregaçar as mangas e negociar a aprovação da medida.

PACOTE ANTICRIME
Caixa 2 vira bode na sala de projeto de Sérgio Moro

O desmembramento da criminalização do caixa 2 do restante das medidas do pacote anticrime de Sérgio Moro mostra que a proposta, antes menina dos olhos do ministro da Justiça e Segurança Pública e tema constante de entrevistas e palestras dele quando era juiz federal, virou um bode na sala do projeto: pode ser sacrificado em prol da aprovação do restante. Deputados e integrantes do governo admitem que a aprovação é quase impossível, mas que o importante era “salvar” as outras medidas.

HOMEM-BOMBA
Bebianno fica no presente e poupa, por ora, passado

Gustavo Bebianno é, por ora, um homem-bomba de explosão controlada. Na entrevista que deu à Jovem Pan, fez elogios a Bolsonaro, a quem chamou o tempo todo de “meu presidente” e “capitão”, concentrou a borduna em Carlos Bolsonaro e se ateve a fatos ligados à sua exoneração. Nada falou sobre o período de 2 anos em que foi próximo ao clã e cuidou de assuntos como advogado, coordenador de campanha e presidente do PSL.

CONTENÇÃO
Generais blindam Planalto contra a volta de Carlos

Diante de uma crise que completa uma semana hoje, os generais estão concentrados em assegurar que o afastamento do filho mais explosivo de Bolsonaro das questões de governo não seja apenas momentâneo, até a poeira assentar. A escolha do general Floriano Peixoto para a Secretaria-Geral foi condição deles para que o vereador não aproveitasse a derrubada de Bebianno para colocar alguém sob sua influência no cargo.