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Vera Magalhães: 'Povo na rua não substitui articulação política'
Deputados e senadores não vão se intimidar diante de uma falsa narrativa que tenta imputar ao Congresso, por exemplo, o atraso na reforma da Previdência
Pela segunda vez em pouco mais de um mês apoiadores do governo Jair Bolsonaro foram às ruas em sua defesa. Se no dia 26 de maio houve ruído quanto à pauta – inicialmente de confronto com Legislativo e Judiciário, para depois passar por um “retrofit” e tirar seu caráter autoritário –, desta vez desde sempre se fixaram duas linhas-mestras: apoio à Lava Jato e a Sérgio Moro e à reforma da Previdência. Mas qual o efeito concreto que esse apelo recorrente ao povo na rua pode ter?
É claro que congressistas e mesmo ministros do STF não são impermeáveis à pressão popular. Muito provavelmente o apoio a Moro e à Lava Jato contou de alguma forma para que a Segunda Turma do Supremo não soltasse Lula com base em uma liminar sem analisar o mérito do habeas corpus de sua defesa, o que jogaria querosene no paiol da manifestação deste domingo.
Mas é pouco provável que palavras de ordem sejam definidoras quando os ministros forem analisar a suspeição de Moro. A Segunda Turma vai esperar a fotografia concreta dos vazamentos do The Intercept Brasil e, então, decidir se alguns atos da Lava Jato devem ser revistos.
Da mesma maneira, o apelo à voz rouca da rua não exime o governo de fazer a articulação política em que vem fracassando há seis meses. Deputados e senadores não vão se intimidar diante de uma falsa narrativa que tenta imputar ao Congresso, por exemplo, o atraso na reforma da Previdência.
Há uma tentativa de submeter os demais Poderes mantendo as ruas aquecidas. Mas o apoio a Bolsonaro, por mais que seja ruidoso, não é majoritário na sociedade, e as instituições são ciosas de suas prerrogativas.
Vera Magalhães: STF dribla o puxadinho
Mandar Lula para São Bernardo e sair de férias seria uma suma irresponsabilidade da Segunda Turma, que colocaria o País diante de um risco de conturbação social e política
Celso de Mello é garantista e tem dito a interlocutores estar muito agastado com a revelação da proximidade entre o ex-juiz Sérgio Moro e os procuradores da Lava Jato. Mas proferiu um voto corretamente cauteloso ao recusar a solução proposta por Gilmar Mendes na sessão desta terça-feira, 25, da Segunda Turma do Supremo, de conceder uma liminar para soltar Lula sem que os ministros se detivessem sobre o mérito da alegada suspeição de Moro.
Esse puxadinho seria mais um casuísmo jurídico, impossível de explicar a uma sociedade já perplexa com a volatilidade das decisões judiciais e com a fulanização exacerbada das decisões da principal Corte do País, que há mais de um ano dribla as questões de fundo e fica presa ao caso de Lula, como se fosse o único em curso.
Como explicar a necessidade de uma liminar dada em um HC impetrado em novembro, com vistas pedidas pelo próprio Gilmar Mendes em dezembro, na véspera do recesso do Judiciário, e sem que a Corte se detivesse sobre a questão de fundo: afinal, os diálogos de Moro com os procuradores caracterizam suspeição?
É justificável à luz do Direito a urgência do caso. Afinal, há um réu preso, e os fatos novos suscitam dúvida razoável entre juízes e juristas quanto à isenção do juiz que o condenou. Então, que os supremos ministros adiassem o recesso, convocassem sessões extraordinárias e exaurissem o mérito.
Seria, inclusive, uma bem-vinda luz da Corte para uma sociedade perplexa com as revelações, graves, e que espera às cegas e dividida em torcidas organizadas a divulgação e que atende a critérios pouco claros do ponto de vista político e jornalístico de novas revelações da chamada Vaza Jato.
Mandar Lula para São Bernardo e sair de férias seria uma suma irresponsabilidade da Segunda Turma, que colocaria o País diante de um risco de conturbação social e política, daria mais pano para manga da polarização imbecilizante do debate e colocaria, aí sim, em xeque a continuidade da Lava Jato.
É preciso serenidade dos agentes institucionais diante de um caso que não é unidimensional e no qual não podem ser escolhidos vilões, mocinhos, mártires e salvadores da Pátria.
Cabe ao Supremo sanear eventuais ilegalidades que tenham sido cometidas e analisar de uma vez por toda as questões-guia como prisão após condenação em segunda instância, limites das delações e das prisões preventivas etc. E, no caso específico de Lula, analisar o mérito do HC o quanto antes.
MEDINDO FORÇAS: Senado vê inconstitucionalidade em novos decretos de armas
Às vésperas da votação da reforma da Previdência, o projeto que será sua primeira vitória maiúscula no Congresso e que tem o potencial de catalisar boas notícias numa economia encarquilhada, Jair Bolsonaro segue brincando de polícia e ladrão com o Congresso na secundária questão do porte de armas. Secundária porque atende a uma agenda histórica do presidente, de seu clã e de parte de seu eleitorado, mas é controversa na sociedade.
Ao revogar o já derrotado decreto que ampliou o porte de armas, Bolsonaro quis evitar que a Câmara e o Supremo Tribunal Federal confirmassem sua derrota. Mas, para não dar o braço a torcer de vez (afinal, ele acha que querem transformá-lo em rainha da Inglaterra), editou outros decretos para regular algumas questões, em vez de fazer tudo por projeto de lei. Vai gerar nova queda de braço, pois senadores apontam que a inconstitucionalidade se mantém. Se é essa sua nova articulação política, ela é a cara da antiga.
Vera Magalhães: Caos na cozinha
Bagunça apontada no Planalto desde a largada segue com mudanças sem sentido
No dia 6 de janeiro, ao término, portanto, da primeira semana de Jair Bolsonaro, observei que o governo estava naquele momento de desencaixotar as caixas e cada um começar a tomar pé de seus postos, mas apontei que a “cozinha” do governo, o Palácio do Planalto, era a área em que parecia “reinar a bagunça maior na mudança da ‘família’ Bolsonaro”. “O arranjo montado para o Planalto parece meio esquisitão, disfuncional”, escrevi, neste mesmo espaço.
Este não é um governo afeito a receber críticas. Coloca todas elas no escaninho da “torcida contra”, mantra, aliás como outros, herdado do petismo empedernido. Então isso passou por má vontade, quando era, digo sem muito orgulho, experiência (idade avançando, vamos ser claros).
Eis que, ao completar um semestre para lá de tumultuado, Bolsonaro praticamente virou a cozinha do avesso. Demitiu chef, subchef, cozinheiros e ajudantes, alterou o cardápio. Melhorou? Nada indica que sim.
Depois de passar meses demonizando a prática da articulação política, tendo sido responsável por inocular em seus seguidores de estimação das redes sociais o ridículo “mas, afinal, o que é articulação política?”, o presidente reconhece que fracassou justamente nesse aspecto. Quem era acusado de torcer contra pode dizer que avisou?
O que eu disse naquela coluna de janeiro? “Onyx Lorenzoni, primeiro ministro anunciado pelo ‘capitão’, como insiste em chamar o presidente até hoje, chegou com um voluntarismo diretamente proporcional à própria inexperiência”. Pois é. Onyx acaba de ser escanteado da articulação política.
Seu canto do cisne foi um depoimento à CCJ da Câmara em que defendeu em tom truculento um decreto de armas que ele mesmo sabia ser inconstitucional (como dissera em entrevistas), no mesmo dia em que até as emas do Alvorada sabiam que o texto cairia no Senado. Respondendo à pergunta retórica de Bolsonaro: articulação política não é isso.
A Secretaria-Geral da Presidência virou uma porta giratória de ministros. Gustavo Bebianno deu lugar a Floriano Peixoto, e agora tem-se a exótica substituição de um general por um major da PM do DF, Jorge Antonio de Oliveira Francisco, cuja passagem pela Subchefia de Assuntos Jurídicos se deveu não a nenhuma credencial técnica, mas à amizade com os filhos de Bolsonaro e de seu pai com o próprio presidente, de quem foi chefe de gabinete.
Isso vai melhorar a cozinha do governo? Provavelmente, não. Aliás, ganha um doce quem souber dizer o que faz a Secretaria-Geral nessa cozinha que lembra em tudo aquela em que o ainda presidente eleito apareceu comendo um pão com leite condensado sobre a toalha.
E a troca de generais, Santos Cruz por Luiz Eduardo Ramos? Bolsonaro dará ao novo ocupante da Secretaria de Governo a missão da articulação política. Diz que está retomando o arranjo do governo Temer, mas qual pode ser a semelhança de conhecimento do Congresso (e mesmo de práticas, nesse caso em defesa do general) entre Ramos e Carlos Marun, que era o titular da vaga antes? Zero. A explicação não tem sentido, nem a troca.
O problema é que Bolsonaro age como a Rainha de Copas, cortando cabeças segundo sua indisposição com os auxiliares, sem ter uma viva alma que ouse contrariá-lo. E é nessa função que aquele que seria o conselheiro do presidente, responsável por coordenar a cozinha, vem se mostrando falho. O general Augusto Heleno tem sido, publicamente, alguém que concorda enfaticamente, a ponto de dar socos na mesa do café, com tudo que Bolsonaro diz e faz.
Cercado de acólitos, o presidente vai continuar escalando gente errada para a função errada. E quem aponta o óbvio vai continuar sendo acusado de torcer contra. Ainda bem que existe a internet para indexar os textos.
Vera Magalhães: E se fosse o juiz do Flávio?
Gravidade da relação entre juiz e procuradores no caso Moro extrapola os personagens
A irracional fulanização de todos os assuntos nacionais turva a capacidade de análise de amplos setores da sociedade e coloca questões complexas e com graves consequências para a vida institucional do País sujeita à falsa dicotomia do bem contra o mal. O fenômeno é amplo, vem se agravando desde 2013, e se repete no caso, que completa uma semana hoje, do vazamento de conversas entre o ex-juiz Sérgio Moro e procuradores da Lava Jato.
Para se analisar corretamente a gravidade do que está em curso e como os apoios de hoje são gelatinosos e podem mudar amanhã, proponho um exercício de abstração. Suponhamos que em vez de Moro e Deltan Dallagnol, os diálogos divulgados pelo The Intercept Brasil se dessem entre o juiz e o procurador do caso Fabrício Queiroz-Flávio Bolsonaro, que completa seis meses ainda envolto numa névoa de explicações mal dadas e de iniciativas tíbias por parte do sempre combativo Ministério Público.
Qual seria a reação do presidente Jair Bolsonaro neste caso? Como reagiria ao ler/ouvir os procuradores do caso do “garoto” confabulando com o juiz que, cedo ou tarde, teria de julgá-lo? Daria o mesmo apoio que deu ao seu ministro da Justiça, sem saber ainda a totalidade dos diálogos que estão em poder do site que os vem ministrando a conta-gotas?
Evidentemente, a resposta é não. E ela pode ser extrapolada de Bolsonaro para a claque inflamada que vem defendendo Moro nas redes sociais. Vale o exercício, da mesma maneira, para o caso de amanhã ou depois o tal site divulgar uma conversa de Rogério Favreto, que mandou soltar Lula num domingo, com os advogados do petista, por hipótese.
Desfulanizar é essencial para todos os que querem fazer uma análise honesta intelectualmente deste que é o caso mais complexo jurídica, ética e politicamente posto diante do Brasil desde que a Lava Jato surgiu como uma operação policial e rapidamente foi elevada a categoria política, sendo fundamental inclusive para levar ao cenário que resultou na eleição do próprio Bolsonaro.
Não é aceitável, sob pena de se condescender com a quebra dos pilares que garantem a existência do Estado Democrático de Direito, que todos finjam que não viram que evidentemente Moro, Dallagnol e demais procuradores exorbitaram os limites – constitucionais, éticos, funcionais – que deveriam nortear suas atuações. E os fizeram cientes dos riscos, uma vez que outras operações anteriores foram anuladas justamente por vícios formais.
Portanto, seria bom que eles, bom estrategistas que são, entendessem que dificilmente vai colar o mantra “não há nada de ilegal ali” que entoam, com diferentes ênfases, desde domingo. Algum tipo de capitulação e pedido de desculpas terão de fazer, uma tentativa de separar o joio das maquinações do trigo das importantes revelações, provas, condenações e ressarcimento de valores que, graças ao seu trabalho inovador e corajoso, a Lava Jato legou ao País. Não como heróis a serem defendidos a qualquer preço e com base na negativa dos fatos, mas como homens públicos cientes de suas próprias falhas, porém reafirmando a lisura do produto de seu trabalho.
E que Moro, ainda tateando no ecossistema da política, entenda que a cada movimento seu no tabuleiro de xadrez virá um outro do adversário, pois ele não é mais o juiz onipotente, e sim um agente num ambiente em que se chocam múltiplos interesses, intercambiáveis, difíceis de mapear e que podem mudar ao sabor de uma revelação a mais – inclusive o apoio do chefe-pai Bolsonaro. É cedo demais para traçar prognósticos definitivos nesse caso em que conteúdo e forma das revelações ainda não estão esclarecidos. Mais cedo ainda para se tomar lados.
Vera Magalhães: Moro sem capa
Ministro sangrou pela primeira vez de forma consistente depois de quatro anos praticamente sem contestações
Juízes usam capa em tribunais de júri e cortes superiores. Heróis usam capa nos quadrinhos. Sérgio Moro não é mais juiz, ainda não chegou ao Supremo Tribunal Federal, seu sonho declarado, e perdeu nos últimos dias, ao menos por ora, a capa de herói com que foi retratado em atos no dia 26. Moro está momentaneamente sem capa, pela primeira vez desde que se notabilizou pela Lava Jato.
Isso significa que o ministro da Justiça perdeu o respaldo das ruas e das redes? Não. Os atos em apoio ao governo foram mais um aval à agenda de Moro que à de Jair Bolsonaro. Mas as hashtags de apoio ao ex-juiz depois da revelação de trechos de conversas obtidas de forma, ao que tudo indica, ilegal e divulgadas pelo site The Intercept Brasil rivalizaram com as de críticas à Lava Jato, e medições feitas nas interações no Twitter mostram o campo de centro dividido entre o apoio à operação e a decepção com a revelação de interações não institucionais entre acusação e juiz.
Em política, o ambiente em que Moro escolheu transitar quando deixou a magistratura, os agentes costumam sentir cheiro de sangue na água. E o ex-todo-poderoso sangrou pela primeira vez de forma consistente depois de quatro anos praticamente sem contestações. Deputados, senadores, ministros do Supremo, derrotados nas últimas eleições, advogados. A fila dos que veem no episódio a chance de ir à forra contra Moro e os procuradores é imensa. E leva a consequências imediatas.
O projeto anticrime, que estava em banho-maria, subiu no telhado. A indicação ao STF, antes dada como certa pelo próprio presidente, hoje é vista com ceticismo entre colegas de ministério e integrantes da Corte. O acordo para que o ministro deponha diante do Senado atende em parte a essa sede de sangue indisfarçada.
“Ao mal tudo se permite; da virtude tudo se exige”, lamentou para mim um ministro de Bolsonaro, solidário ao colega. Pode parecer injusto, mas o juiz Moro vestiu como uma capa de herói esse figurino da virtude intransigente. Justamente por isso, e por ter visto de perto casos como Banestado e Castelo de Areia, sabia melhor que ninguém que vícios de forma podem, sim, macular uma virtuosa operação de combate à corrupção – cujo acervo de provas de escândalos revelados, diga-se, segue intacto.
CASO LULA:
Combinação de ‘truque’ para testemunha é ponto delicado
Um dos pontos mais delicados para o ex-juiz federal Sérgio Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol dos trechos de conversas entre eles que vazaram até aqui é, no entender de advogados e ministros do Supremo Tribunal Federal, um de 7 de dezembro de 2015 em que Moro indica uma testemunha que estaria disposta a falar sobre a transferência de imóveis para os filhos do ex-presidente Lula, dezenas deles. Diante de uma resposta de Deltan Dallagnol de que a testemunha não estaria disposta a depor, e da ideia do colaborador de que poderia fazer uma intimação baseada em denúncia apócrifa – que não houve, já que a “dica” veio do próprio juiz –, Sérgio Moro avaliza o truque. “Melhor formalizar, então.” Esta é a única situação em que fica evidente, no material até aqui conhecido, um conluio para tentar produzir um testemunho no caso que levou à condenação do petista, e, por isso, deve ser fulcral na discussão do pedido de suspeição do juiz, que a Segunda Turma do Supremo apreciará no próximo dia 25.
MINISTÉRIO PÚBLICO:
Caso envolvendo procuradores fortalece recondução de Dodge
A divulgação de conversas de procuradores da Lava Jato, a denúncia contra eles no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e a expectativa de que o conteúdo a ser ainda divulgado pelo site The Intercept Brasil pode atingir também o grupo do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot ajudaram a fortalecer no círculo próximo a Bolsonaro a defesa da recondução de Raquel Dodge ao comando do Ministério Público. Se ela já contava com a simpatia de ministros do STF, como Dias Toffoli e Gilmar Mendes, e dos presidentes da Câmara e do Senado, agora se beneficia da percepção de que a ideia de promover alguém de um escalão inferior da carreira, com viés político ou ideológico ou muito identificado com a Lava Jato significaria expor a instituição ao risco de desgaste iminente. Mesmo entre os procuradores a resistência a Raquel Dodge, que é alta, arrefeceu um pouco diante da crise aberta com as mensagens.
Vera Magalhães: A Reforma da Natureza
Em projetos e declarações, Bolsonaro troca dados por achismos e revoga bom senso
Em A Reforma da Natureza, um dos livros da saga do Sítio do Pica-Pau Amarelo, Monteiro Lobato descreve como Emília, a partir de uma fábula contada por Dona Benta, se dispõe a mudar aquilo que ela julga estar errado na conformação da natureza. Tal como Américo Pisca-Pisca, o personagem da fábula, a boneca imagina alterar frutas, animais e tudo o mais e, na base da retórica inflamada e do voluntarismo, põe seu plano em marcha.
Pois Jair Bolsonaro parece ter se inspirado no método emiliano para decidir declarações e projetos de governo. Contra a tal “indústria da multa”? Aumentem-se os pontos para que se perca a carteira de motorista com 40, quiçá 60. Só faltou dizer que, liberados para correr, motoristas serão mais multados, e a tal arrecadação com multas pode subir.
O amigo Maurício Macri passa apuros na eleição argentina? Que tal dar uma forcinha reformando não a natureza, mas a moeda dos dois países? Mais! De todo o Mercosul. Assim como Emília rebatizou os bichos conforme sua conveniência, Bolsonaro também deu nome à sua moeda sonhada: peso real (que imediatamente virou surreal, porque os memes não perdoam).
Como se dará a sonhada integração monetária? Ele não sabe. Afinal, nosso reformador da natureza não entende de economia, como não se cansa de dizer. Mas acha, sabe-se lá baseado em que, que o peso real pode ser uma couraça para evitar a volta da esquerda aos países que o adotarem. Quase um amuleto.
O mais engraçado dos surtos de reformismo da natureza de Bolsonaro é que sempre há os acólitos desesperados para lhes conferir algum sentido. Então, no projeto da mudança nas regras de trânsito, os criativos passadores de pano viram um moderno liberalismo presidencial. Afinal (tentem acompanhar o raciocínio), não é função do Estado multar quem não colocar crianças em cadeirinhas, e deve ser interesse dos pais zelar pela segurança dos filhos.
Como se o trânsito fosse uma pista de autorama em que se controlam todas as variáveis e funcionasse no âmbito doméstico, em que as relações privadas – de fato – não carecem de regulação do Estado.
E para explicar para os liberais da brigada do Twitter – que diante de menções a John Locke ou Adam Smith perguntariam de que temporada de Game of Thrones eles eram – que os países com as economias de fato liberais do mundo têm leis de trânsito duríssimas simplesmente porque uma coisa não tem nada a ver com a outra?
Com a revogação do bom senso, lei número um da reforma da natureza bolsonarista, o óbvio deixa de ser assim tão óbvio. Como o fidalgo Visconde de Sabugosa, que tentava conferir alguma lógica às diatribes da Emília e tirá-la de enrascadas, ficam os providos de lógica no entorno presidencial tentando evitar o constrangimento de desmenti-lo ou minimizar o estrago de suas declarações. Nessa função se revezam os militares e os ministros que não duvidam que a Terra seja redonda, como Sérgio Moro, Paulo Guedes e Tarcísio Gomes de Freitas.
Já os entusiastas da reforma da natureza, que no reino bolsonarista às vezes ganha ares de cruzada pelos rabanetes ou qualquer outra bobajada ideológica, se sentem livres para voar diante dos inputs do chefe. O problema é que os arroubos desses reformadores não colocam abóboras no lugar de jabuticabas, como no sonho do Américo Pisca-Pisca da historinha da Dona Benta, mas religião, ideologia binária, vontade familiar e preconceito no lugar de dados, evidências, políticas públicas e pesquisas científicas.
É preciso que alguém convença o presidente que suas palavras e atos têm consequências. E que não se governa um País na base do achismo sem base concreta nenhuma.
Vera Magalhães: Reforma na faca
A começar da primeira-dama, cada um quer tirar um pedaço da proposta
Quando foi questionado pelo apresentador Danilo Gentili a respeito da viabilidade da economia pretendida por Paulo Guedes com a reforma da Previdência, de R$ 1 trilhão em dez anos, Jair Bolsonaro respondeu antes com uma pausa, acompanhada de uma risada irônica. O que quer que dissesse depois, estava dada a resposta.
A proposta de emenda da reforma entrou na reta final de tramitação na comissão especial da Câmara que analisa seu mérito. Depois de virar tema de última hora da manifestação pró-governo do último domingo, a ideia é que seja acelerada para chegar ao plenário ainda neste semestre.
A hora, portanto, é de todo mundo querer arrancar um pedaço do texto, de modo a aliviar o sacrifício para esta ou aquela parcela da população.
A começar pela família presidencial. Com orgulho incontido, Bolsonaro disse nesta sexta-feira que a primeira-dama, Michelle, pediu, e ele levou adiante, que os deficientes leves e moderados sejam tirados da nova regra de pensão por morte, mais restritiva, proposta na reforma.
O impacto fiscal da retirada não é relevante. Mas é simbólico que o presidente dê aval, antes de qualquer avaliação técnica, a um pedido doméstico e o enderece diretamente ao Ministério da Economia, quando a reforma já está nas mãos do Parlamento para ser emendada.
Foram apresentadas mais de 270 emendas ao texto original do governo, aquele cujo impacto foi previsto inicialmente em R$ 1 trilhão, e depois revisto para R$ 1,2 trilhão.
Não se sabe quantas e quais dessas alterações serão incorporadas pelo relator, Samuel Moreira (PSDB-SP), mas já é possível antecipar que itens como o Benefício de Prestação Continuada e a aposentadoria rural devem ser retirados da proposta, com impacto aí, sim, bastante expressivo sobre o cômputo geral do impacto da reforma.
Outro dilema, de ordem mais política que imediatamente fiscal, se coloca diante do relator: o de retirar ou não o artigo que estende automaticamente a Estados e municípios as novas regras para os regimes próprios de Previdência. Embora seja a solução que mais bem equaciona o rombo fiscal dos entes federativos, a ideia é rechaçada por deputados e senadores, que não querem ficar com o desgaste de aprovar medida impopular para os servidores de suas bases eleitorais, poupando governadores, prefeitos, deputados estaduais e vereadores de sua própria cota de sacrifício.
Por fim, há o PL, expoente-raiz do auto-dissolvido Centrão, que apresentou proposta alternativa lipoaspirando pela metade a reforma e também sua economia, para algo como R$ 600 bilhões. É o projeto daqueles que cultivam em privado o postulado tornado público por Paulinho da Força: aprovar uma reforma que não seja robusta o suficiente para garantir a reeleição de Bolsonaro.
Assim, entre pedidos domésticos e cálculos eleitorais, a reforma entra em sua fase decisiva. O secretário especial da Previdência, Rogério Marinho, mantém o discurso otimista. “A maioria da Casa introjetou a necessidade da reforma e de que ela tenha um impacto fiscal relevante. Claro que haverá uma adaptação, até porque este é o papel do Parlamento, mas eventuais concessões serão compensadas de outra forma”, disse ele à coluna.
Se no começo do ano a reforma era vista como o elixir para todos os males do País, a estagnação mostrada pelos números mais recentes da economia mostram que, mesmo com ela, a recuperação não será tão rápida nem tão simples.
Quanto mais ela for desidratada, no entanto, mais esse nó vai se tornando difícil de desatar. Seria bom que, do presidente aos deputados, todos se conscientizassem de que o momento não permite risos irônicos nem cálculos cínicos de resultado eleitoral e se empenhassem em aprovar uma reforma robusta e coerente.
Vera Magalhães: Disfarçado, viés autoritário esteve subjacente aos atos
Em cima dos caminhões de som não se ouviram palavras de ordem pelo fechamento do Congresso ou do Supremo
O cavalo de pau dos últimos dias nas pautas autoritárias e belicistas das manifestações deste domingo surtiu efeito de saneamento básico: em cima dos caminhões de som e por parte dos coordenadores (quando era possível identificá-los) não se ouviram palavras de ordem pelo fechamento do Congresso Nacional ou do Supremo Tribunal Federal.
Mas o germe havia sido plantado, e a intenção inicial de apresentar os demais Poderes como inimigos do governo Jair Bolsonaro esteve presente em faixas, pixulecos como o do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), cartazes e gritos de guerra no asfalto de Norte a Sul.
Na Paulista, epicentro desse e dos últimos grandes atos, havia muito menos gente que nas jornadas de 2013 e nas de 2015 e 2016, pelo impeachment de Dilma Rousseff. O número de pessoas foi próximo ao do ato do dia 15, contra os cortes na Educação (e, assim, antigoverno).
Mas o cálculo de participantes e a comparação com o dia 15 importam menos que o efeito das manifestações na relação entre governo e Congresso.
Os militantes foram levados a acreditar que sua presença nas ruas acuará o Centrão, em particular, e o Congresso, em geral, e os convencerá na marra a votar a reforma da Previdência, o pacote anticrime do ministro Sérgio Moro e o que mais vier do Palácio do Planalto a toque de caixa.
Não é bem assim. Embora seja verdade que, nos últimos anos, o escrutínio das ruas e das redes sociais tenha adquirido mais peso para os parlamentares, o Legislativo continua cioso de suas prerrogativas e não vai abrir mão delas em favor de um plebiscito permanente.
Se Bolsonaro achar que porque as pessoas foram às ruas ele poderá governar à revelia do Congresso, cometerá (mais) um erro crasso. É preciso que haja assessores que lhe digam que quem foi à rua é um contingente menor que o de seus próprios eleitores. Em número e em representatividade (basta ver as defecções na centro-direita).
O melhor, na verdade o único, caminho para a aprovação das iniciativas do governo continua sendo a democracia representativa. A conferir o estrago que a confrontação de ontem pode causar.
Vera Magalhães: Recall diário
Redes sociais e polarização criam clima de escrutínio permanente sobre governo
Jair Bolsonaro vive um clima de recall diário desde que assumiu a Presidência. O escrutínio permanente, longe de ser uma articulação perversa de forças ocultas, é reflexo da própria maneira de governar do presidente, da atuação de seu núcleo mais próximo e da forma como ele se relaciona com a sociedade, a imprensa e o Congresso.
As manifestações do dia 15, contra os cortes na Educação, foram um produto desse clima de enquete constante quanto às realizações ou os fracassos de um governo que ainda não completou um semestre. Os atos marcados para hoje têm a mesma natureza, e passaram a ser organizados como uma tentativa de dar uma resposta aos anteriores, como se o governo necessitasse prematuramente buscar uma legitimidade que acabou de lhe ser dada pelas urnas.
É o segundo presidente a entrar num ciclo de contestação e reafirmação de mandato em tempo real.
Dilma Rousseff enfrentou o primeiro de uma série de panelaços em 22 de fevereiro de 2015. A partir dali, foram atos de rua cada vez mais volumosos, à medida que as revelações da Lava Jato e a incapacidade de compor politicamente e conduzir a economia para fora do poço a que ela a levou ditaram o caminho para sua queda, em abril de 2016. As pedaladas fiscais, que ocorreram, foram só a justificativa jurídica para um alinhamento de astros que incluiu povo, economia e política.
Bolsonaro foi eleito como produto desse caldo de crises que se iniciou em 2013 e fermentou até 2018. Vitorioso graças ao desgaste incontestável do revezamento entre PT e PSDB como forças hegemônicas, prometeu levar a cabo uma agenda liberal, mas, desde que assumiu, seu governo é um embate permanente entre essa pauta e um chorume revanchista e ideológico que divide alas da própria administração, trava a relação com o Congresso e anima as arquibancadas pró e contra com muito falatório e pouco debate.
É nesse ambiente que os apoiadores do governo estão sendo chamados a ir às ruas hoje. Devem estar confusos. Primeiro, foram instados a protestar contra os arbítrios do Supremo Tribunal Federal. Sim, porque o dia 26 foi marcado na folhinha antes de tudo como uma data para protestar contra o famoso inquérito vale-tudo do STF, que censurou veículos de imprensa e conduziu coercitivamente pessoas a depor pelo fato de terem postado meia dúzia de impropérios contra os ministros nas redes.
Depois, o ato foi avançando contra o Centrão, transformado por Bolsonaro e seus aduladores num bicho-papão que estaria disposto a impedir o “mito” de governar. Dali passou rapidamente a flertar com a ideia de fechamento do Congresso. Diante do evidente embuste narrativo e da escalada autoritária, os organizadores (quem são? quem fala oficialmente por eles? não se sabe) dos protestos fizeram um retrofit na sua fachada para vendê-los como uma jornada das pessoas de bem em favor das reformas.
A guinada é tão óbvia que não seduziu nem setores conservadores que inicialmente apoiaram Bolsonaro e, agora, temem ser engolfados caso ele derive para essa sanha populista de conclamar o povo contra as instituições.
São os acólitos de Bolsonaro que o levam a esse clima em que recall, parlamentarismo branco, impeachment e outras palavras que remetem a solavancos institucionais foram trazidos de volta à ordem do dia.
Qualquer que seja o volume e o saldo dos atos de hoje, não há como um governo que precisa aprovar reformas que exigem quórum constitucional, fazer uma economia estagnada voltar a crescer e pacificar uma sociedade cindida achar que pode viver na base do escrutínio diário. Instigar isso e apostar no clima de conflagração não é uma estratégia inteligente com menos de seis meses de governo.
Vera Magalhães: Guedes e o risco do ‘olha o lobo’
Paulo Guedes ameaçou deixar o governo caso a reforma da Previdência vire uma “reforminha”. Fixou até um piso: economia de R$ 800 bilhões em dez anos. Quais os riscos da ameaça do titular da Economia?
É lobo mesmo? Não é a primeira vez que o ministro mais importante do governo Jair Bolsonaro ameaça pedir o boné caso as coisas não saiam como planejou. Ao usar essa retórica reiteradamente, Guedes vai minando, aos poucos, seu próprio papel de âncora da estabilidade de um governo altamente instável.
Os riscos. Na entrevista à Veja em que afirma que sairá caso haja uma “reforminha”, o ministro: 1) passa o tom de que está pressionando um Congresso já pressionado; 2) deixa Jair Bolsonaro vulnerável num momento em que enfrenta crise de popularidade e as primeiras manifestações de rua, e 3) fixa um novo “piso” para a Previdência, algo temerário no atual momento.
Bolsonaro não gostou. Guedes age como trader, mostrando que pode “rever a posição” caso o cenário não se configure como ele imaginou. Compreensível a reação de Bolsonaro, ao dizer que ninguém é obrigado a ser seu ministro –seria isso ou ficar refém eternamente de ameaças reiteradas. O principal e um dos mais preparados ministros do governo age um pouco como o Pedro da fábula, que, de tanto gritar “olha o lobo”, pode não ser ouvido quando o lobo de fato vier.
O contexto. O aviso de Guedes chega num momento especialmente delicado para o governo. Pesquisa da XP Investimentos mostra que pela primeira vez a aprovação a Bolsonaro é menor numericamente que a rejeição. 36% dos entrevistados avaliaram o governo como ruim e péssimo ante 34% que disseram que é ótimo ou bom. As relações com o Congresso estão em ponto alto de tensão, e os protestos marcados para domingo se apresentam como um risco múltiplo para o presidente.
Equações perigosas. Trata-se de aposta bastante inusitada conclamar a população para as ruas no momento em que a população começa a responsabilizar o atual governo pela situação da economia. O resultado dos atos pode conter várias armadilhas: se forem grandes, darão ao governo a falsa ilusão de que representam o conjunto da sociedade, e, portanto, vale a pena insistir na forma atual de governar e se relacionar com os demais Poderes. Se forem modestos, vão evidenciar o desgaste do governo em sua fase inicial. Nas duas hipóteses, e se as pautas forem majoritariamente de achincalhe dos políticos, podem aumentar a hostilidade do Congresso em relação ao Executivo.
Vera Magalhães: Doria contra ‘acirramento’
O governador de São Paulo, João Doria Jr., considera “inoportunos” os atos previstos para este domingo em todo o País. Ele falou à Coluna sobre o assunto que opôs, mais uma vez, os apoiadores do governo ao Congresso e dividiu o próprio campo conservador.
Para o tucano, não é hora de “acirrar” os ânimos e “desviar o foco da pauta econômica”, duas consequências que ele enxerga como possíveis a depender da pauta que for levada às ruas no domingo.
Em vários temas, Doria tem feito um contraponto a Bolsonaro. Ao se manifestar contra os protestos, o governador demonstra preocupação com a persistência da crise econômica – que tem derrubado a arrecadação do Estado, inclusive. Coloca-se, assim, ao lado de outros aliados do presidente que criticaram o apoio aos atos, como a deputada estadual Janaina Paschoal e o presidente do PSL, Luciano Bivar.
Leia a entrevista de Doria à Coluna:
O que o senhor acha dos atos marcados para este domingo?
Minha posição é contrária à realização dessas manifestações. Respeito quem for aos atos, sobretudo se forem pacíficos, porque se trata de um direito de todos. Mas, como governador de São Paulo, entendo que não é hora de propor o acirramento dos ânimos e, sim, de pregar a responsabilidade com o País e a união de esforços para que possamos superar a grave crise econômica do Brasil.
Na sua opinião, está claro se é um ato em favor do governo ou contra a classe política e o Congresso?
Esta é mais uma razão pela qual esse ato é inoportuno. A dualidade da pauta já deveria servir para desaconselhar o apoio a essa manifestação. A hora é de paz, de entendimento nacional. As autoridades deveriam fazer um esforço nesse sentido.
A seu ver, o Congresso boicota a agenda do governo Bolsonaro?
Não vejo no âmbito do Congresso nem entre os partidos do chamado Centrão essa intenção, deliberada ou velada, de boicotar o governo. Pelo contrário: vejo uma disposição de votar as reformas. É importante que não se perca o foco. E o foco neste momento de todos deve ser a pauta econômica. E dentro dela você tem, nesse primeiro momento, a preponderância da reforma da Previdência. Depois, a reforma tributária e, no ano que vem, quem sabe, a reforma política – que é mais difícil que as outras.
TENSÃO
‘Recuo’ do Centrão mostra quebra de confiança
O aparente recuo do Centrão no acordo para recriar os ministérios das Cidades e da Integração Nacional pode até animar os que conclamam as manifestações de domingo, lhes dar a impressão de que o Congresso sentiu a “pressão” e desistiu de “chantagear” o governo. Mas a desistência de algo que era fruto de acordo com o próprio Palácio do Planalto, que costurou a volta das duas pastas como forma de assegurar a aprovação da Medida Provisória 870, vai cobrar um preço mais à frente. Em primeiro lugar, porque o caminho que se estava pavimentando não era só para a MP, mas para a formação da base de votação da reforma da Previdência.
O acordo também era considerado importante na afirmação de Onyx Lorenzoni, que o avalizou, como articulador político do governo. O fato de a própria base aliada ter insuflado as ruas contra uma tratativa da qual o Executivo fez parte minou a mínima confiança que começava a se estabelecer na relação entre os dois Poderes.
Vera Magalhães: Tudo ou nada já?
Medir forças com a oposição nas ruas com cinco meses de governo é aposta arriscada
O governo tem menos de cinco meses, mas os lances da semana que passou, a pior para Jair Bolsonaro desde a posse, mostram que flerta perigosamente com o tudo ou nada, ao estressar as relações institucionais ao mesmo tempo em que tenta medir forças com a oposição nas ruas.
Num intervalo de sete dias, o presidente: 1) disse que fez um acordo com Sérgio Moropara nomeá-lo para o STF, para em seguida recuar; 2) previu um tsumani; 3) viu as investigações sobre o filho Flávio avançarem substancialmente e atingirem o resto do clã político, e reagiu a isso na base da valentia de pai; 4) minimizou os protestos contra a Educação e xingou seus participantes; 5) se enfiou numa viagem caricata a uma cidade desimportante para uma agenda irrelevante para a qual não havia sido convidado; e 6) terminou a semana compartilhando corrente pelo WhatsApp com um texto que diz que sua própria pauta fracassou e que o País é ingovernável. É preciso um talento muito específico para gastar tanta energia assim em um conjunto tão desastroso de ações.
Enquanto Bolsonaro estava em Dallas dando alguns dos tropeços listados acima, seus líderes no Congresso batiam cabeça e complicavam a já delicada situação do governo no Parlamento. Alguns deles decidiram que iam manter o Coaf nas mãos de Moro na marra, no gogó nas redes sociais. O resultado foi que o Centrão sentou em cima das medidas provisórias que estão prestes a caducar, entre elas a que reestrutura o governo nos moldes desejados por Bolsonaro.
O presidente, seus aliados mais ideológicos, os seguidores fanatizados das redes e mesmo alguns ministros bem intencionados, mas não versados nas nuances da política, acusam a imprensa de cobrar duramente o governo e não denunciar o que seria a chantagem do Parlamento.
Aliados de Bolsonaro convocam, com o beneplácito da primeira-família e de assessores cruzados com assento no Planalto, o “homem comum” para ir às ruas se insurgir contra o Legislativo, o Supremo ou quem mais ousar se interpor no caminho das pretensões de Bolsonaro – como se o simples fato de ele ter vencido as eleições lhe outorgasse carta branca para agir à revelia dos demais Poderes e sobrepujando uma parcela significativa da sociedade que não concorda com essa pauta.
Acontece que medir forças nas ruas tendo como currículo de cinco meses de governo investidas sistemáticas contra educação, cultura, diversidade social, meio ambiente e direitos humanos, baseado na crença de que o Brasil se transformou subitamente num País de extrema-direita e que todos esses assuntos são de interesse apenas da esquerda, é uma prova a mais de completa desconexão com a realidade, e pode fazer com que o desgaste do governo escale alguns degraus rapidamente.
Quando aponta que a superação da grave crise do País depende de equilíbrio institucional, da aprovação das reformas estruturantes, da abertura econômica e da segurança jurídica, a imprensa não está apostando na manutenção do establishment corrupto e investindo contra os homens de bem, como devaneiam os neocruzados de Twitter.
Está apenas constatando o óbvio: presidentes que, por teimosia e péssimo assessoramento, optaram por esticar a corda com as instituições e governar no grito se deram mal. Uns tentaram insuflar o “povo" a ir às ruas em sua defesa (Collor, 1992), Outros denunciaram forças ocultas que conspiravam contra o bem (Jânio, 1961). Houve ainda quem quisesse duelar com o Parlamento suprimindo a matemática elementar (Dilma, 2016).
É muito cedo para Bolsonaro enveredar pelo tudo ou nada. A insistência nesse caminho pode ter o efeito de evidenciar um desgaste que cresce a cada dia – é sempre bom repetir – por iniciativa exclusiva do próprio governo.