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Vera Magalhães: Pastiche de direita

Bolsonarismo imita alt right americana com dinheiro público e métodos do PT

A foto de Eduardo Bolsonaro abraçado a um mastro com a Bandeira do Brasil, copiando até o semblante “enternecido” de Donald Trump na mesma pose com a bandeira dos Estados Unidos, é o resumo do que é a direita bolsonarista hoje: um pastiche cafona da alt-right norte-americana, sem consistência filosófica e ideológica nenhuma, que se utiliza de dinheiro público do Fundo Partidário e dos métodos do PT para se financiar e se comunicar e envolta em brigas intestinas justamente pela falta de coesão política.

A semana foi tomada por uma crise provocada pelo presidente da República, que decidiu atirar contra seu partido, o PSL, ao tirar uma selfie com um admirador. A partir daí, ameaçou deixar a legenda, os parlamentares que o seguem ficaram que nem barata tonta sem saber para onde iam, mas, por enquanto, fica todo mundo onde está. E por quê?

Porque o PSL enriqueceu na esteira da febre bolsonarista. É ele, por meio da Fundação Índigo, que financia eventos como a versão brazuca da CPAC, feita sob medida para o filho do presidente e candidato a embaixador posar de especialista em relações internacionais e a plateia saudar Trump a plenos pulmões.

Portanto, a “nova direita” brasileira faz o que a velha política sempre fez: se financia com dinheiro público injetado em partidos sem nenhuma identidade programática, por pura conveniência. Também na semana que passou veio à tona em mais detalhes, por meio de reportagem da revista Crusoé, a conexão entre o comando bolsonarista e uma rede de blogueiros, youtubers, sites de propaganda e milicianos digitais, alguns com polpudos salários em cargos públicos e gabinetes, para fritar ministros, tutelar o presidente, assassinar reputações e plantar fake news.

Também nisso a direita bolsonarista bebe dos métodos da alt-right representada por Steve Bannon, que, a despeito de ter sido afastado pelo papai Trump pelo seu potencial tóxico, é idolatrado pela família e pelos assessores do presidente do Brasil.

Mas Bannon não é a única fonte de inspiração: afinal, foi o odiado PT que inaugurou a engenharia de financiar blogs e sites “alternativos” contra o “PIG”, então chamado por Lula e asseclas de Partido da Imprensa Golpista. Os extremos sempre se encontram num ponto: a demonização da imprensa como forma de banir o contraditório e tentar espalhar seu populismo, seja de direita ou de esquerda.

E o que o Brasil colhe em termos de política externa com sua casta dirigente fazendo cosplay do trumpismo para ficar bem na fita com os Estados Unidos? Na semana que passou o saldo foi um mico monumental. A expectativa de que tanta adulação fosse valer um fast track para a entrada brasileira na OCDE, o clube dos países ricos, sucumbiu diante da realidade pragmática: os Estados Unidos continuarão usando a retórica da boa vizinhança com o Brasil, mas na hora do “vamos ver” vão cuidar dos próprios interesses, sobretudo na pauta econômica e comercial.

Bolsonaro e os filhos vivem a ilusão de que sua chegada ao poder representa uma transformação súbita do Brasil – um País desigual social, econômica, cultural e regionalmente – numa pátria de direitistas empunhando a Bíblia e lendo Olavo de Carvalho.


Vera Magalhães: Jair e os partidos

Propensão do bolsonarismo ao confronto já leva o presidente a cogitar fazer as malas

Não pode surpreender ninguém o fato de Jair Bolsonaro aproveitar uma de suas aparições para selfies em frente ao Alvorada para pedir que o apoiador “esqueça” o PSL, e aproveite para dar uma espinafrada em Luciano Bivar, o presidente da sigla. Bolsonaro nunca deu a mínima para partidos. Menos ainda para aliados. Seu partido é sua família.

O embarque do bolsonarismo no PSL foi um negócio conveniente para ambas as partes. Bivar desocupou a casa para que Bolsonaro se instalasse com os seus e colocasse o até então aliado Gustavo Bebianno no comando. A legenda tinha, então, R$ 1,2 milhão de Fundo Partidário em conta. Agora, com a eleição de 52 deputados na esteira do presidente, Bivar pegou o partido de volta com um Fundo Partidário de R$ 110 milhões neste ano. Não se tem conhecimento de aplicação tão rentável.

Bivar esperava que o negócio bom para ambas as partes continuasse no governo. O presidente e os filhos controlariam as seções do partido em São Paulo e no Rio, as duas principais; e ele seguiria tocando a lojinha, entre uma denúncia de laranjal aqui, outra ali.

Mas a propensão do bolsonarismo ao confronto transformou a sigla num balaio de gatos e já leva o presidente a cogitar fazer as malas de novo. Resta saber: para onde? As demais legendas nanicas com propensão a serem alugadas já têm seus donatários estabelecidos. E abrir mão de um partido sentado em tantos recursos não é uma decisão simples, nem com todo o voluntarismo belicista do presidente e de seu clã.

Tributária encrua e perde lugar para reforma administrativa
A tal “linha de montagem” de reformas e projetos para destravar a economia prometida por Paulo Guedes parece ter sofrido uma mudança de escala: sai a reforma tributária, encruada pela falta do que colocar no lugar da finada Contribuição sobre Pagamentos, e entra a administrativa, igualmente importante e espinhosa, cujos pontos foram antecipados por José Fucs no Estado. Caso o governo inverta mesmo as prioridades, terá de contar com a boa vontade da Câmara e do Senado, que já deram a partida na discussão das suas próprias propostas de mudança tributária.

STF concentra definições no fim da ‘temporada 2019’
Tal como uma série de TV, o Supremo Tribunal Federal decidiu concentrar as emoções todas no final da temporada de 2019. Gilmar Mendes confirmou, no Roda Viva desta semana, que o plenário deve analisar no dia 23 duas decisões que são cruciais para o futuro do processo penal brasileiro: a das prisões após condenação em segunda instância e a tese para a aplicação do entendimento, firmado na semana passada, de que réus delatados têm direito a manifestação final depois dos delatores.

Não que haja consenso sobre essas questões. Mas os ministros reconhecem que não dá para virar o ano com tamanho grau de indefinição. No caso da prisão em segundo grau, voltaram a circular tentativas de se firmar uma tese intermediária, que permita a execução da pena em certos casos, mas não a torne uma regra. Assim como a saída tentada por Dias Toffoli em 2018 de aguardar manifestação do STJ, uma espécie de terceiro grau, também essa parece eivada de improvisação.


Vera Magalhães: Reforma administrativa entra na fila

Governo começa a discutir revisão da estabilidade e critérios para demissões no setor público, mas tema é complexo

Hercúlea. Eis que o Ministério da Economia parece efetivamente disposto a colocar a reforma administrativa na fila das prioridades para depois da aprovação da reforma da Previdência. Caso leve adiante a disposição, será uma briga diretamente proporcional à importância da empreitada. Reportagem especial do Estadão nesta segunda-feira esmiuçou o que devem ser as linhas centrais da proposta.

Em boa hora. A discussão sobre a necessidade de rever a estabilidade de servidores e fixar critérios para promoções, reajustes e demissões no setor público já é consenso entre economistas que olham para a necessidade de promover um ajuste profundo no gasto público.

Três frentes. A discussão sobre a reforma do chamado "RH" do Estado, ou seja, do funcionalismo, deve ser tratada em paralelo com uma proposta de emenda à Constituição para desvincular receitas orçamentárias (que está sendo construída em parceria com o Congresso) e com as tratativas já em andamento do pacto federativo.

Onde pega. Além da profunda resistência que a discussão da estabilidade do funcionalismo deverá enfrentar por parte das corporações, esse tema costuma ser tabu no Judiciário: toda vez que são confrontados com a necessidade de arbitrar tentativas de governos de adiar reajustes ou cortar privilégios, os tribunais superiores têm decidido a favor dos chamados direitos adquiridos e da preservação do regime jurídico único, estabelecido pela Constituição de 1988 e que assegura a estabilidade no serviço público.

Mais senões. A disposição de enviar em "uma ou duas semanas" a reforma ao Congresso também esbarra numa falta de credibilidade do governo nessa seara: até hoje não se conhece a proposta da equipe de Guedes à reforma tributária, que vai, aos poucos, voltando para o fim da fila da tal "linha de montagem" de projetos que o ministro anunciara. Da mesma maneira, o anúncio de que as privatizações da Eletrobrás e dos Correios seriam enviadas ao parlamento até aqui não se efetivou.


Vera Magalhães: Deixaram desandar

Pouco caso da área política do governo faz reforma da Previdência empacar na reta final

O projeto mais importante para a recuperação da economia do País corre o risco de desandar na reta final de sua tensa, delicada, mas em grande medida bem-sucedida tramitação graças ao pouco caso com a necessária articulação política que o governo Jair Bolsonaro faz questão de exibir com certo orgulho inexplicável desde o seu início.

A reforma da Previdência passou pela sua etapa mais pesada e difícil, a da Câmara, com algum vagar, uma boa dose de vaivém, mas, surpreendentemente, sem grandes protestos por parte da sociedade como um todo.

Excetuando-se a atuação dos lobbies de servidores e de algumas categorias mais organizadas, aconteceu o que nunca se poderia imaginar nas vezes em que outros governos mexeram, de forma menos profunda, nas aposentadorias e pensões: a maioria da população entendeu que era inevitável fazer a reforma.

Graças a isso, à completa falta de articulação da oposição e à colaboração que se criou entre o presidente da Casa, Rodrigo Maia, e a equipe econômica, com Paulo Guedes e Rogério Marinho, a reforma cumpriu sua etapa na Câmara com o Palácio do Planalto ausente das negociações e só entrando de vez em quando para atrapalhar, como Bolsonaro fez na reta final ao tentar arrancar alguns bilhões para favorecer policiais.

Em vez de aproveitar esse embalo que o projeto ganhou na Câmara e aprová-lo rapidamente no Senado, o governo caiu numa armadilha tão logo a proposta atravessou do Salão Verde para o Azul: endossou a ideia de Davi Alcolumbre e outros senadores de condicionar sua aprovação a um tal pacto federativo para salvar Estados da bancarrota, em que entraram projetos que iam da divisão de recursos dos leilões de petróleo ao adiamento da obrigação de se quitar precatórios vencidos.

O que foi festejado como uma maneira republicana de refazer as relações federativas virou, na hora do vamos ver, uma faca no pescoço do governo, tendo a reforma como refém. Numa ação típica de sequestradores que negociam com a família da vítima, os senadores até aprovaram a proposta em primeiro turno, dando uma “prova de vida”, mas com menos R$ 74,6 bilhões, como aquele tufo de cabelo enviado para que os negociadores saibam que não se está de brincadeira e que cumpram o que prometeram ou a coisa pode piorar.

De novo, a articulação política do governo é inexistente. O general Luiz Eduardo Ramos, brincam senadores e deputados, “não é do ramo”, e quem está à frente da conversa, de novo, são Guedes e companhia. A conversa virou uma cacofonia de alianças difíceis de mapear. Superficialmente, pode-se dizer que senadores defendem os interesses dos Estados na partilha de recursos do petróleo, e a Câmara, os dos municípios, mas não é só isso.

Estados produtores e não-produtores travam outra disputa particular, e governadores do Sudeste, Sul e Centro-Oeste comandam uma rebelião pelo fato de os vizinhos do Norte e Nordeste estarem sendo contemplados pelo pacto, sendo que os senadores desses Estados não cumpriram com a sua parte de votar a favor da Previdência. Guedes tenta selar um acordo tendo Maia e Alcolumbre como fiadores, para se contrapor às tentativas de sangrar ainda mais o Tesouro com benesses.

E onde está Bolsonaro enquanto o projeto mais importante dos seus quatro anos de mandato padece em cativeiro? Tirando selfies com turistas se lamentando da necessidade de realizar a reforma, acredite quem quiser. Diz o ditado que muito ajuda quem não atrapalha. Quando ele se aplica ao presidente da República e ao entorno do palácio, é mais fácil entender como se deixou que a reforma essencial caísse nessa cilada armada pela velha política. É porque a nova é uma piada de salão.


Vera Magalhães: Um Direito só para Lula

Depois de um ano da campanha pela soltura do ex-presidente, petistas agora fazem romaria contra a progressão de regime

Quando se avolumaram os inquéritos e depois as denúncias contra o ex-presidente Lula no âmbito da Lava Jato e de outras operações, em 2016, o PT lançou uma campanha de mobilização e vaquinha cujo título era um bom prenúncio do que viria a ser a defesa do petista nos anos seguintes: “Por um Brasil Justo para Todos e para Lula”. A Justiça deveria ser uma para todos, e outra para Lula.

Depois de mais de um ano de incessante campanha #LulaLivre, que condicionou a estratégia do PT para a sucessão presidencial e segue atrelando o partido ao destino judicial de seu principal líder, eis que, agora, ele estufa o peito para dizer que não aceitará a progressão de regime para o semiaberto, pois não estaria disposto a trocar sua dignidade pela liberdade.

Trata-se de algo bonito para exibir em slogans e documentários engajados e, talvez, ainda angariar apoios dos convertidos, mas é inócuo do ponto de vista jurídico, uma vez que não cabe ao réu aceitar ou não a progressão de regime do cumprimento de sua pena. Além disso, nada impede que Lula passe à prisão domiciliar, provável forma de cumprimento do regime semiaberto, e ainda assim siga questionando a sentença por corrupção no caso do triplex, por meio dos recursos que já interpôs, como o habeas corpus em que argui a suspeição de Sérgio Moro.

A defesa de Lula sempre colocou a política à frente da técnica. Muitos advogados que tiveram vitórias robustas na Lava Jato reputam a essa opção boa parte dos reveses colhidos por ele nos tribunais até aqui.

Lula preso? Petistas agora fazem romaria contra progressão de regime.

STF
Decisões contrariam nova regra do foro
Pela segunda vez em poucos meses, Flávio Bolsonaro bate à porta do Supremo e obtém decisões a seu favor, sustando as investigações do caso Fabrício Queiroz. A acolhida dos recursos contraria a decisão do STF sobre a abrangência do foro especial, pois o caso diz respeito ao mandato de Flávio na Assembleia do Rio – como, aliás, decidiu Marco Aurélio Mello na primeira vez em que o hoje senador reclamou à Corte.

Da mesma maneira, Rodrigo Janot, alvo de recente busca e apreensão e de outras medidas no bojo do superinquérito do STF, também não tem foro na Corte.

CONTRA-ATAQUE
Lava Jato tenta sair das cordas
Os procuradores da Lava Jato resolveram sair das cordas após três meses atordoados pelas revelações da Vaza Jato e as derrotas que começaram a sofrer no Congresso, com a aprovação de dispositivos como a Lei de Abuso de Autoridade, e, no Supremo, com decisões como a favorável à anulação de sentenças em que delatados não tenham se manifestado depois dos delatores. Eles chegaram à conclusão de que a reação inicial aos vazamentos, em que admitiam que conversas podiam ter acontecido, mas não reconheciam sua autenticidade, levou a que se criasse uma impressão geral de que cometeram ilegalidades em série. Em artigos e entrevistas pretendem reafirmar a legalidade das decisões e reforçar o legado virtuoso da operação. Em outra frente, a ideia é consolidar sua posição junto ao novo PGR, Augusto Aras, com quem devem se reunir em breve para apresentar um levantamento de procedimentos e um ponto a ponto rechaçando as acusações feitas a partir da divulgação das mensagens.


Vera Magalhães: Valentia não assusta

Momento de Trump e Johnson mostra a Bolsonaro diferença entre retórica e realidade

Jair Bolsonaro e Donald Trump até pareciam ter ensaiado os discursos que fizeram na Assembleia-Geral da ONU. A expressão usada por Marina Silva foi precisa ao estabelecer a analogia com a ordem dos pratos em um banquete global: o presidente brasileiro foi o couvert arrematado depois por uma refeição pesada do ídolo norte-americano.

Bem fará Bolsonaro se, além de emular a retórica tão histriônica quanto vazia de Trump ao bradar contra o fantasma do socialismo e contra o tal globalismo, observar que nem tudo são flores na relação do presidente dos Estados Unidos com as instituições. O que mostra que, numa democracia, não adianta impostar a voz e falar grosso, porque o sistema de freios e contrapesos trata de equalizar as falas e as ações quando elas se desviam – ou mesmo dão indícios de que podem ter se desviado – dos preceitos legais e constitucionais.

Em plena campanha à reeleição, Trump se vê às voltas com os primeiros passos para a abertura de um processo de impeachment contra si. Sim, o processo foi iniciado pela democrata Nancy Pelosi, adversária de Trump. Sim, existe a possibilidade de que o processo não progrida. E também é verdade que existe um eleitorado fiel ao republicano e indiferente a essas vicissitudes.

Mas a reação da Câmara dos Representantes mostra o vigor da democracia dos Estados Unidos mesmo em tempos de radicalização política, em que o presidente se move no tabuleiro internacional com a sutileza de um elefante numa loja de cristais, declarando guerra comercial à China e estabelecendo relações suspeitas com a Rússia e a Ucrânia, para ficar apenas em alguns exemplos.

Ao dobrar a aposta no tom de confronto em sua fala na ONU, Bolsonaro se mira em Trump e demonstra ter a ilusão de que está em condições de cantar de galo perante o mundo. Montado numa economia pujante, ancorado numa situação de pleno emprego e sendo a maior potência política e militar do mundo, Trump pode até fazer isso, e ainda assim enfrentando reações como a que agora assistimos. O “bom homem” que insiste em bajulá-lo, não.

Bolsonaro fala em “democracia ocidental” e enxerga apenas os Estados Unidos, se esquecendo de que a Europa é um parceiro importante do Brasil, com o qual o Mercosul acaba de selar um acordo que ainda precisa de chancela do parlamento europeu e dos Congressos dos países sul-americanos.

A ironia e a forma desrespeitosa com que tratou parceiros europeus podem cobrar um preço do Brasil nos próximos passos dessas tratativas multilaterais e também levar fundos europeus e compradores das commodities brasileiras a reavaliarem investimentos e negócios com o País. Era esse tipo de temor que demonstravam gestores de fundos, analistas de bancos e gestores de empresas brasileiros ontem depois da ressaca da fala passadista de Bolsonaro na ONU.

Não é só Trump que deve servir de exemplo a Bolsonaro de que nem só de retórica inflamada e cabelos desalinhados prospera um político da direita populista. Boris Johnson mal foi alçado a primeiro-ministro da Inglaterra e achou que podia fechar o Parlamento e fazer o Brexit na marra. A Suprema Corte britânica tratou de lhe mostrar, por unanimidade de seus 12 integrantes, que não é assim que a banda toca.

Em sua fala, Bolsonaro deixa subjacente uma crença que o acompanha desde que venceu a eleição: a de que o Brasil subitamente virou um País evangélico, conservador ao extremo, de direita e disposto a tudo contra o espantalho do comunismo. Isso é uma fantasia que já soa cafona para os convertidos das redes sociais.

Dito em voz alta perante o mundo, e tendo como contraponto a realidade enfrentada por outros experts em narrativas rocambolescas, esse blablablá soa ainda mais ridículo.


Vera Magalhães: Bolsonaro nu e cru?

Presidente parece achar que pode prescindir de Guedes e Moro. Será?

Já não é de hoje que Sérgio Moro está submetido à salga na cozinha bolsonarista. Lento, gradual, sistemático, o processo vai transformado o ministro, antes um peixe vistoso no oceano, numa manta esbranquiçada e ressequida no balcão.

A novidade é que Paulo Guedes parece estar sendo levado para o mesmo engenho. A imprescindível coluna da minha colega Adriana Fernandes mostra com dados como, aos poucos, a ala mais ideológica do governo, com assento no Palácio do Planalto, vai inoculando no presidente a perigosa conversa de que Guedes demora a “entregar" a recuperação da economia, como o teto de gastos poderia ser substituído por um teto solar e que, talvez, o posto Ipiranga não seja assim a solução para todos os males.

A narrativa de que Moro e Guedes eram o perfume capaz de tornar Bolsonaro suportável aos olfatos sensíveis do mercado e da classe média endinheirada e chocada com o PT foi vendida pelo próprio entorno do presidente na campanha e na transição.

A cada absurdo proferido ou cometido pelo presidente, por seus filhos, seus assessores olavistas e os ministros puxa-saco da ala terraplanista, aqueles que compraram esse bacalhau salgado repetem como um mantra, para não se sentir mal: “Mas tem o Guedes, ele vai nos salvar. E temos o Moro, ele vai limpar o País”.

O problema é que o poder costuma levar a distorções de percepção da realidade, e o poder exercido como na corte bolsonarista, em que o poderoso só ouve os acólitos que lhe dizem “amém, Mito” tende a exacerbar essas ilusões.

Estamos no momento em que, acreditando ser um ungido por Deus, escolhido para o milagre da ressurreição após um atentado, eleito para livrar o Brasil do comunismo, Bolsonaro parece crer piamente que não precisa de Guedes e Moro para isso nem para chegar a 2022.

E este pode ser um caminho para a sua perdição. Sem o photoshop da ortodoxia econômica e fiscal e do moralismo lavajatista, Bolsonaro é o que sempre foi: um parlamentar do baixo clero que dedicou a carreira a causas corporativas e a enfiar a família na política, alheio ao combate à corrupção e praticante da petecagem miúda, nacionalista-estatizante e nem aí para a responsabilidade fiscal.

Sua chance maior de reeleição em 2022 é um cenário em que a economia se recupere de forma sustentável, que o fiscal esteja sob controle e o País crescendo algo como 2,5% a 3% no último ano.

Quem achou que a economia se recuperaria com um estalo comprou (ou vendeu) terreno na Lua. Nisso Guedes tem, sim, grande responsabilidade, por declarações como a de que seria possível zerar o déficit no primeiro ano, ainda na campanha, ou pelo método, já no ministério, de lançar projetos não concluídos como balões de ensaio para ver se param no ar. O que se espera dele e da competente equipe que montou é a linha de produção de propostas que prometeu, estruturadas e negociadas de forma eficaz com o Congresso.

Ainda assim: Guedes estar no governo até a descida da rampa pode não ser condição sine qua non para seu sucesso, mas achar que substituir o posto Ipiranga por Weintraubs tocadores de gaita e autores de piada do tio do pavê no Twitter é viver perigosamente.

O projeto reeleitoral também depende de o presidente reencarnar o santo guerreiro contra o dragão da maldade do lulopetismo. Para isso, ele não pode ter candidatos ao centro competitivos. Sobretudo não pode ter Moro como adversário, e sabe disso.

Nove meses é tempo suficiente para uma gestação, mas muito pouco para Bolsonaro achar que é autossuficiente e pode se apresentar na versão nua e crua para a sociedade, sem seus dois ministros-photoshop. Que ele compre essa cantilena dos puxa-sacos é mais uma mostra do extremo despreparo que tem para a função que ocupa.


Vera Magalhães: Salário mínimo, custo máximo

Tem todo o jeitão de balão de ensaio que será esvaziado em breve a ideia de congelar o salário

Tem todo o jeitão de balão de ensaio que será esvaziado por Jair Bolsonaro em breve a ideia de congelar o salário mínimo. Este tem sido um método recorrente do ministro da Economia, Paulo Guedes, e de sua equipe: jogar a proposta no ar para ver se cola.

Do ponto de vista do impacto fiscal, o mínimo não tem nada de diminuto. Cada R$ 1 de aumento equivale a R$ 300 milhões no Orçamento. A indexação de benefícios como aposentadoria e Benefício de Prestação Continuada (BPC) ao mínimo explica a relação explosiva e por que a equipe econômica olha para essa rubrica com vontade de mudá-la.

Mas não é simples do ponto de vista político esta equação. A política de valorização real do mínimo, impulsionada a partir de 2007 com a regra, que vigorou até este ano, de reajustes anuais pela inflação mais a variação do PIB dos dois anos anteriores, ajudou na redução da desigualdade social naquela década. Mais: foi um combustível eleitoral poderoso para o PT, considerado mais relevante para a reeleição de Lula e as duas eleições de Dilma Rousseff que o Bolsa Família.

É fato que o efeito social do mínimo se perdeu após a recessão prolongada. Ainda assim, mexer nisso significa enfrentar um tabu, sobretudo na região Nordeste, em razão das aposentadorias e do BPC. O ganho de R$ 35 bilhões anuais estimado não parece compensar o risco de impopularidade galopante junto aos mais pobres – eleitorado no qual o presidente Jair Bolsonaro já patinou em 2018, e para o qual ainda não disse a que veio.

Maia oscila entre reformista e comandante do baixo clero
A exposição à luz do sol do indefensável projeto de lei, aprovado na surdina pela Câmara, que liberava geral o uso de recursos do Fundo Partidário, tirava controles da prestação de contas de seu uso e abria brechas para a impunidade a infrações eleitorais expôs a resiliência de uma faceta de Rodrigo Maia que ele vinha tentando mudar: a de comandante do baixo clero, com os líderes do Centrão a seu lado. A forma como o projeto pulou todas as etapas nas comissões para ser aprovado a toque de caixa no plenário deixa turva a imagem de reformista econômico e moderador dos arroubos autoritários de Bolsonaro que Maia vinha querendo passar para a sociedade.

Alta de preços de combustíveis reacende debate sobre tabela de frete
A alta dos preços internacionais do barril de petróleo após o ataque a instalações na Arábia Saudita já gera receio por parte de setores como o agronegócio em razão da possibilidade de levar a um reajuste na tabela de frete de cargas. Desde julho, a nova tabela elaborada pela Esalq a partir de consultas a vários setores foi suspensa pelo governo e a antiga, fixada logo após a greve dos caminhoneiros de 2018, voltou a vigorar.

A tabela não agrada aos contratantes de fretes, que aguardam decisão do STF em ações de inconstitucionalidade cujo relator é o ministro Luiz Fux, mas que foram retiradas da pauta. A tabela tem gatilho de reajuste automático caso o diesel suba 10%. Resta saber se Bolsonaro permitirá o repasse da alta dos preços para as bombas. “Já é hora de fazer com que a tabela da Esalq volte a vigorar”, cobra André Nassar, presidente da Associação Brasileira de Óleos Vegetais (Abiove), uma das entidades que se opõem ao uso da tabela antiga.


Vera Magalhães: Piada no exterior

Vexames internacionais recomendam atenção ao discurso de Bolsonaro na ONU

Jair Bolsonaro diz que irá a Nova York para fazer o discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU nem que seja de maca ou de cadeira de rodas. Mais do que encarar o compromisso como um desafio físico, algo já delicado diante de sua recuperação de mais uma cirurgia na região do abdome, o presidente deveria ter em mente a importância simbólica da ocasião, e se preparar tecnicamente para ela, caso resolva mesmo ir a qualquer custo.

Bolsonaro chegará à ONU com os olhos do mundo voltados para o Brasil. E as razões para isso são, principalmente, decisões, ações, falas e comportamentos do presidente brasileiro e de expoentes de seu governo. O centro da geleia geral externa produzida pelo bolsonarismo nos últimos meses é a questão ambiental.

Foram as reações dele e de seus ministros ao aumento do desmatamento e das queimadas que chamaram a atenção de chefes de Estado, organismos internacionais e da sociedade global para a mistura tóxica de retórica ideológica nonsense, desprezo a dados e à ciência e a contraposição entre preservação ambiental e defesa de um desenvolvimento econômico extrativista da sua gestão.

Diante da fumaça composta de desaforos infantis e misóginos de Bolsonaro a outros governantes e da ausência de dados que desmintam o descontrole no aumento do desmate, a posição dos países desenvolvidos hoje em relação ao Brasil oscila entre o ceticismo, a ironia e o deboche puro e simples.

Foi emblemática a participação do chanceler Ernesto Araújo, um dos expoentes mais destacados da ala ideológica do governo, em evento na semana passada na Heritage Foundation, um centro de estudos conservador localizado em Washington. A mistura de negacionismo climático, crítica ao marxismo, críticas randômicas a pensadores de vertentes e épocas distintas e vitimismo de quem deveria governar deixou estupefatos representantes da direita norte-americana, a qual a prima brasileira tenta mimetizar, mas da qual só consegue ser uma versão-paródia.

Araújo disse que a esquerda usou a defesa da justiça social para legitimar ditaduras ao redor do mundo, e, num salto extraordinário, afirmou que se caminha para fazer o mesmo com a questão climática.

No Twitter, o analista de política externa do The Washington Post Ishaan Tharoor expôs sem misericórdia o ridículo da situação. “Este é um fascinante discurso ideológico de um ministro das Relações Exteriores no exterior (e um tanto incoerente). Nossa civilização está perdendo seus símbolos, diz ele”, narrou o jornalista norte-americano, parecendo se divertir com o exotismo do palestrante.

Ele ainda anotou, com razão, que esse arremedo de doutrina nada tem a ver com o conservadorismo norte-americano, ou com o que a direita dos Estados Unidos promove como política de Estado. Ou seja: ao beber em fontes como Olavo de Carvalho e Steve Bannon – dupla com a qual Araújo se encontrou na mesma viagem –, a política externa de Bolsonaro se afasta da doutrina, da tradição e do acúmulo pragmático da diplomacia brasileira, para erigir em seu lugar um edifício que não para em pé nem aos olhos de seu parceiro preferencial.

Se for esta a base para o discurso de Bolsonaro na ONU é desnecessário dizer que o resultado será um vexame internacional sem precedentes – e olha que Dilma Rousseff já discursou neste mesmo fórum. É urgente que entrem em cena os técnicos do Itamaraty e dos Ministérios da Economia e da Agricultura para produzir uma peça que, sem delírios grandiosos e ideologia rastaquera, tente desfazer a impressão de que o Brasil trata com descaso a questão ambiental e promove retrocessos na nossa exitosa transformação do agronegócio num exemplo de eficiência.


Vera Magalhães: Dois cavalos de pau

Ataque à democracia é cortina de fumaça para traição de discurso eleitoral

Ao tuitar que a via democrática não permite as “transformações” do País na velocidade que “nós desejamos”, o vereador Carlos, filho de Jair Bolsonaro, fez a manifestação mais explícita até aqui de alguém do entorno do presidente de flerte com a supressão das instituições e da democracia.

Não é de hoje que o filho 02 e outros próceres do governo, como o assessor especial Filipe G. Martins e o guru Olavo de Carvalho, investem contra as instituições e o centro democrático, como se fossem inimigos dessas transformações – quaisquer que sejam elas –, do presidente e do “povo” – traduzido pelo genérico “nós” do tuíte.

Já ocuparam o papel de vilão, alternada ou concomitantemente, a imprensa, o STF, o Congresso, os adversários políticos e até ex-colaboradores que ousaram divergir das decisões de governo.

Ao transferir para os adversários e para as instituições a fatura da insatisfação da sociedade com frustrações diversas – que vão da demora na recuperação econômica à justa indignação com a corrupção e os privilégios –, o grupo que se autodesigna como ala “antiestablishment” do governo ao mesmo tempo faz uma cortina de fumaça para decisões impopulares do presidente e fomenta um ambiente em que teses golpistas vicejam.

Não são poucos os exemplos no mundo de democracias que foram corroídas por dentro a partir do enfraquecimento paulatino, mas com método, das instituições que integram o sistema de freios e contrapesos e dos órgãos de controle.

A despeito do discurso do filho – que sempre conta com uma certa condescendência por ser meio “fora da casinha”, mas escreve da cabeceira do pai –, são decisões do presidente que atrasam, atualmente, uma das “transformações” prometidas na campanha, a do combate à corrupção.

Mesmo não tendo em sua trajetória de deputado sindicalista, corporativista, pró-estatais e infiel a partidos nenhuma obra dedicada ao combate sistemático a privilégios, corrupção estrutural e desmandos de políticos, Bolsonaro conseguiu fazer prosperar na campanha o discurso de que era o mais indicado para empunhar essa bandeira. Como se apenas o contraponto ao PT lhe desse essas credenciais.

Não dava. O histórico político dos gabinetes da família Bolsonaro é o das mais velhas práticas da política: empregar cabos eleitorais, alguns deles fantasmas, muitos deles com ligações perigosas com milícias e outros grupos, com indícios fortes de prática de rachadinha de salários. Jair nunca atuou em nenhuma das grandes CPIs ou no Conselho de Ética da Câmara. Quem caiu na balela o fez porque quis.

Uma vez empossado, Bolsonaro se pôs paulatina, mas sistematicamente, a minar Sérgio Moro, a quem designou como superministro, mas cuja reputação se esforça para desgastar dia a dia com ações, enquanto posa graciosamente para fotos a seu lado. Foi o que fez com o Coaf e com a Polícia Federal.

Além disso, salta aos olhos a aliança antes improvável com o presidente do STF, Dias Toffoli, antes tratado por Bolsonaro como um petista sem credenciais para ocupar o Supremo. Desde a decisão que livrou a barra do filho Flávio, Toffoli caiu nas graças do bolsonarismo, com direito à atuação do senador para melar a CPI da Lava Toga.

Portanto, se de um lado testa a tese de um fast-track na democracia para animar sua tropa, que estava dispersa e desconfiada, de outro o bolsonarismo age dia a dia no sentido oposto ao que levou boa parte do eleitorado a optar por ele. Dois cavalos de pau simultâneos.

Aqueles que passam pano dizendo que ao menos a orientação econômica do governo vai no rumo certo ignoram, talvez deliberadamente, que não há confiança possível num país que flerta com teses autoritárias, quando não abertamente golpistas.


Vera Magalhães: Bolsonaro atira no centro

Para repetir polarização nos extremos com o PT, presidente fustiga Doria e Huck

O sonho de consumo não escondido por Jair Bolsonaro e seu QG é uma reeleição em 2022 nos mesmos moldes da de 2018, anabolizada, se tudo correr bem, por uma economia crescendo num ritmo entre 2,5% a 3% nos dois últimos anos de governo.

E o que significa repetir o roteiro do ano passado? Manter a militância engajada nas redes sociais, avançar com as pautas caras ao bolsonarismo e, melhor dos mundos, disputar de novo contra o PT.

Há algumas incertezas quanto à possibilidade de se cumprir o script. A performance da economia é a maior delas: não são poucos os economistas que avaliam que, mesmo com o correto receituário de reformas, desestatização e desburocratização sendo colocado em prática, pode faltar tempo para que a economia (e, principalmente, o emprego) volte a girar num ritmo capaz de dar à população a sensação de que a vida melhorou significativamente sob Bolsonaro – condição importante para que haja a disposição de eleger um presidente.

Outra dificuldade para que o plano corra conforme o desenhado é que a polarização nos extremos canse a maioria do eleitorado e ele busque uma opção no centro – compreendido como o espectro que vai da centro-direita à centro-esquerda.

Isso claramente incomoda o bolsonarismo, que tem dedicado as últimas semanas a fustigar eventuais opositores nesse campo. Luciano Huck e João Doria Jr.apareceram na lista dos compradores de jatinhos subsidiados por um programa do BNDES na era petista. A ideia parece ser matar adversários no nascedouro, sem sutileza nem intenção de disfarçar os propósitos.

Doria desponta aí como a vítima mais óbvia: governador do maior Estado do País, é quem detém maior estrutura partidária, um espaço de atuação que permite comparação com a de Bolsonaro e aval de setores do empresariado.

Ciente de que é alvo, o governador tem evitado bater boca com o presidente, que usou até uma das recentes lives nas suas redes sociais para atacá-lo, mas escorrega em algumas cascas de banana que Bolsonaro joga no seu caminho, ao tentar associá-lo a pautas da esquerda.

Ao responder sobre o jatinho, em vez de responder que não cometeu nenhuma ilegalidade e usou uma linha de crédito existente, tratou de dizer que quer “distância” do PT, de Lula e de Dilma. Vestiu a carapuça.

Ontem, mandou suspender um material de ciências que falava sobre questões como sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual para alunos do 8.º ano da rede pública (13-14 anos), dizendo que seu governo não admite “apologia” à “ideologia de gênero”, expressão esta sim eivada de ideologia, usada pela direita sem amparo científico.

Reencarna nesses momentos o Bolsodoria, personagem que inventou no segundo turno de 2018, quando passou apuros para vencer Márcio França. Uma vez eleito, no entanto, vinha batendo na tecla de que é de centro, não de centro-direita. Se insistir em replicar o léxico e as pautas da direita quando provocado por Bolsonaro, corre o risco de o eleitorado dizer que, entre o original e o genérico, fica com o primeiro.

Ainda mais se o centro repetir o erro de se dividir em várias candidaturas. Huck, que fugiu da raia em 2018, parece mais empenhado agora. Se cercou de nomes como o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga e o ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung e parece mais focado que Doria em lançar já de saída uma pauta social robusta, capaz de falar aos corações do eleitorado do Nordeste e de mais baixa renda, e de defesa da ciência, da cultura e da educação, para resgatar certa classe média “iluminista” chocada com a truculência bolsonarista nessas áreas.

Resta saber se tem couro grosso o bastante para o chumbo grosso que vai começar a levar, desde já.


Vera Magalhães: O tamanho do veto

Lei de Abuso de Autoridade expõe Bolsonaro a dilema que ele entende, daí o nervoso

E aí, veta ou não veta? As areias da ampulheta começam a cair mais depressa, e dia 5 deste mês se encerra o prazo para que Jair Bolsonaro sancione, vete ou sancione com vetos a famosa Lei de Abuso de Autoridade, que poucos leram, mas todos odeiam.

Talvez não todos, mas principalmente os bolsonaristas. Esses odeiam com força. A ponto de não entender exatamente as nuances do momento atual, em que seu Mito se vê entre a cruz e a caldeirinha, ou seja: entre o apelo da sua tropa pelo veto integral e as circunstâncias novas da política que o levariam a desejar ser bem mais parcimonioso na tinta da caneta, seja ela Bic, Compactor ou de que marca for.

A incompreensão dessa mudança do vento levou a turma do verde e amarelo às ruas no domingo passado. Em número bem menor que em outras oportunidades e ainda não cientes da divisão paulatina entre bolsonarismo e lavajatismo, os manifestantes exalavam uma confiança completa no #VetaTudoBolsonaro.

Mesmo parlamentares do PSL estavam lá engrossando o coro, como o senador Major Olimpio e a deputada Carla Zambelli.

Do outro lado da rua, os defensores da lei, em grande parte deputados e senadores investigados na Lava Jato e em operações afins, bem como ministros do STF, nunca foram tão vocais em defender abertamente a manutenção da lei, admitindo quando muito um veto cosmético aqui, outro ali.

O relator Ricardo Barros (PP-PR) fala claramente na existência de um acordo pelo qual Bolsonaro só vai vetar a proibição do uso de algemas. Mais que isso seria encarado no Congresso como descumprimento da palavra, passível de retaliação.

E é aí que reside o dilema presidencial – e a irritação demonstrada por ele diante das pressões, no desabafo que fez na live semanal em suas redes sociais ao dizer que quem quiser que vote na esquerda, e que não aceitará ameaças.

E o Congresso tem bala para retaliar o presidente? Tem, e já demonstrou. Na semana passada mesmo, houve um “esquenta” bem significativo para o embate da Lei de Abuso de Autoridade: com votos de 323 deputados e 48 senadores, foi derrubado um veto de Bolsonaro a um dispositivo da lei que atualiza o Código Eleitoral e pune denunciação caluniosa com objetivo eleitoral.

Mais: comprar briga com o Congresso agora pode atrapalhar a tramitação da indicação do filho 03 do presidente à embaixada do Brasil em Washington. Os senadores já não se sentem confortáveis com a nomeação, tanto que ela nem formalizada foi ainda. O road show do deputado por Washington antes mesmo de ter seu nome submetido à Casa já agravou este mal-estar.

Um confronto direto ao vetar uma lei que nasceu no Senado não é algo que vá ajudar. E Bolsonaro sabe, porque dar o filé aos filhos é algo de que ele também entende bem.

Por fim, não escapa ao escrutínio de ninguém que queira ver, e não passar pano, o fato de que o filho 01, Flávio, é senador e não assinou o manifesto da bancada pelo veto total à lei. Por que será?

O grande diferencial deste caso e de dilemas anteriores enfrentados por Bolsonaro – entre personalismo e republicanismo, governar para os seus ou para todos, ter sua pauta implementada por decreto ou submetê-la ao escrutínio do Congresso – é que este ele compreende bem. Trata-se de uma escolha simples para seu léxico político bem limitado: agradar à sua massa ou começar a perder apoio junto a ela justamente quando ele já se reduz drasticamente no resto da sociedade, como mostram as pesquisas. Daí o nervoso.

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Há exatos três anos estreei esta coluna no Estado, no dia seguinte à confirmação, pelo Senado, do impeachment de Dilma Rousseff. É uma honra renovada a cada quarta-feira e domingo ter este encontro com você neste espaço. Vamos juntos.