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Vera Magalhães: Com morte não se lacra

Bolsonaro recua após óbito por coronavírus e reação das instituições

Domingo, 13h. Um sorridente Jair Bolsonaro, trajando camisa polo da Confederação Brasileira de Futebol, desce a rampa do Palácio do Planalto, geralmente destinada a solenidades, para cumprimentar mais de 200 pessoas, posar para selfies ao lado de cartazes pregando o fechamento do Congresso e com palavrões e subir de volta aos urros de “AI-5, AI-5”.

Naquela ocasião, o Brasil já iniciara uma quarentena ainda meio desajeitada, mas engajada nas orientações do Ministério da Saúde para tentar achatar a curva de propagação do novo coronavírus no Brasil. Bolsonaro, por sua vez, tinha um segundo teste de Covid-19 pendente, e deveria estar em isolamento.

Terça-feira, 18h. Um Bolsonaro bem menos acelerado, com cara assustada e acuada, para na grade do Palácio da Alvorada para uma conversa com a imprensa. Não xinga ninguém. Não diz que a pandemia de coronavírus é histeria – nem sua variante “histerismo” – ou fantasia. Não ofende Rodrigo Maia nem Davi Alcolumbre. Pelo contrário: os convida para uma reunião, juntamente com outros representantes de Poderes.

O que mudou nas 50 e poucas horas entre os dois atos? Pelo menos duas pessoas morreram pelo novo coronavírus, as primeiras vítimas brasileiras de uma pandemia que já vitimou mais de 7.000 pessoas pelo mundo. E as instituições traçaram uma risca no chão diante dos arreganhos autoritários do presidente da República.

Não se sabe se por motor próprio ou se instado pelos militares, mas Bolsonaro saiu do looping em que estava desde o início do ano e fez um leve recuo. Pode não durar e ele pode entrar em autocombustão, como já ocorreu em outras vezes e é de sua natureza.

A diferença, dramática para ele, é que desta vez houve perda importante do pouco de massa crítica que ainda restava no bolsonarismo, que se comporta cada vez mais como uma seita golpista. Janaina Paschoal, deputada mais votada da História do País, uma das autoras do pedido de impeachment de Dilma Rousseff, que recusou a vaga de vice na chapa de Bolsonaro, fez um discurso contundente dizendo que ele deveria deixar o cargo por colocar a saúde pública em risco.

O governador Ronaldo Caiado (DEM), de Goiás, um dos poucos a dar a cara a tapa e defender o governo federal, foi às ruas escorraçar manifestantes em Goiânia, com um duro discurso no qual disse que antes de governador é médico. O contraste com a fanfarronice presidencial foi cristalino até para os fanáticos das redes sociais, e em linguagem testosterônica, que eles conseguem entender.

A erosão do apoio a Bolsonaro, que vinha num crescente em razão da cobiça do Legislativo sobre o Orçamento, foi detectada pela medição de redes sociais do Planalto – o único indicador com o qual o presidente da República parece se importar de fato. E a palavra impeachment deixou de ser proibida e passou a frequentar o discurso de parlamentares, analistas políticos e juristas. Bolsonaro ajuda: vai deixando digitais de crimes de responsabilidade ainda mais evidentes que os perdigotos que lança em tempos de recomendação de distanciamento social.

É claro que iniciar uma batalha pelo impeachment em meio a uma pandemia é uma irresponsabilidade. Não serei eu a defender este caminho, nem existe propensão real do Congresso a avançar por aí. Mas, ao excluírem o presidente da República da mesa de discussão de saídas para a pandemia, os demais líderes do País mandaram um recado a ele: se quisermos, podemos isolá-lo.

Bolsonaro entendeu. A cara de pânico com que anunciou a reunião horas depois de dizer, infantilmente, que faria uma festinha de aniversário deixou claro que, até para alguém com uma noção tão rudimentar do próprio papel no momento mais dramático da História do País neste século, o medo é um sábio conselheiro.


Vera Magalhães: Nós que lutemos!

Brasil enfrenta pandemia e crise econômica sem liderança segura

O Brasil viveu na semana passada o ensaio geral do que deve ser um período de restrições da vida diária das pessoas, crise econômica com extensão imprevisível e possibilidade de colapso do sistema de saúde. À frente desse quadro, um governo que tem um Ministério da Saúde tentando organizar uma resposta técnica à pandemia do novo coronavírus, mas um presidente que ainda demonstra incapacidade de liderar.

A fase aguda da epidemia no Brasil foi precedida de um desarranjo geral promovido por exclusiva obra e graça de Jair Bolsonaro e seu entorno mais amalucado.

O presidente, só nos menos de três meses deste ano, comprou briga com Sérgio Moro e com o Congresso, promoveu mexidas aleatórias no Ministério, enquanto mantinha ministros ineptos ou acusados de corrupção ou ambos, segurou as reformas estruturais, convocou e depois desmobilizou a contragosto manifestações de viés golpista, desdenhou dos riscos do coronavírus, entregou seu posto a um humorista e disse que a eleição que venceu foi fraudada.

Esqueci algum fato? Com certeza, já que não é possível dar conta do arsenal diário de crises bizarras provocadas por Bolsonaro contra seu próprio governo.

Despiciendo, neste momento, especular por que ele faz o que faz. Cortina de fumaça para desviar a atenção de outros assuntos? Preparação de algum plano de supressão da democracia tendo cavaleiros templários como exército, mais à frente? O fato é que esse surto de bobagens tirou a concentração do Brasil do que deveria ter sido feito desde que a China parou: nos preparar para os desafios econômicos, de saúde e sociais que certamente viriam.

O Congresso, alvejado por Bolsonaro e mais preocupado em assegurar seu quinhão do Orçamento, ajudou com sua cota de irresponsabilidade ao, já depois do derretimento dos mercados e do alarme de que o coronavírus viria para valer, aprovar uma sangria de R$ 20 bilhões nas contas públicas para se vingar do presidente.

E é com esse pessoal que o País vai ter de se virar diante da esperada escalada rápida da pandemia por aqui. Um senador que esteve na comitiva presidencial se gaba de ter encontrado meia República, abraçado e beijado todo mundo. O filho do presidente, que já chegou a ser cotado para embaixador em Washington, protagoniza uma comédia pastelão com a Fox News ao desinformar sobre a saúde do próprio pai e levar temor aos Estados Unidos quanto à de Donald Trump.

O ministro da Educação, o inacreditável Abraham Weintraub, chegou a celebrar nas redes sociais a possibilidade de uma educadora crítica a sua gestão ter contraído a doença. Isso dias antes de integrantes do próprio governo terem sido atingidos, uma vez que, por óbvio, pandemia não conhece ideologia.

Mesmo com um contrariado Bolsonaro tendo pedido que as manifestações ficassem para depois, ainda hoje há fanáticos irresponsáveis instando as pessoas a irem às ruas defender reformas que o governo não enviou ao Congresso. E contaminar os próprios apoiadores!

Com esses despreparados no controle, nós que lutemos!

Não é de se estranhar que comece a faltar mantimentos, álcool em gel seja vendido a peso de ouro e as fake news sejam propagadas em velocidade maior que o vírus: as pessoas se sentem entregues à própria sorte, a despeito dos esforços louváveis do Ministério da Saúde.

O presidente falou que tudo era fantasia da mídia, poucos dias antes de ter de passar por (dois? três? quantos? Não se sabe, pois não há informação oficial confiável) testes para detectar se foi infectado.

Momentos dramáticos como esse só mostram a importância da ciência e do jornalismo sério, dois pilares da democracia que têm sido vilipendiados no Brasil e no mundo. Que a crise tenha ao menos o efeito de despertar as pessoas para isso.


Vera Magalhães: Distopia bananeira

O que Bolsonaro quer ao afirmar que eleição foi fraudada? Inviabilizar a próxima?

O Brasil e o mundo já viveram crises combinadas antes, de diferentes naturezas e gravidades. Em 2008, a crise dos subprime nos Estados Unidos engolfou as economias de vários países ao redor do globo. No Brasil, a Lava Jato e a reeleição de Dilma Rousseff provocaram um vórtex de recessão econômica, corrupção sistêmica e inviabilidade política de um governo, levando ao impeachment.

Mas o que está em curso em 2020, aliás, desde o advento Jair Bolsonaro, tem características inéditas e com pitadas de surrealismo.

Não serei a primeira a comparar o atual governo do Brasil a um regime digno das distopias literárias e cinematográficas mais conhecidas, mas, agora, é como se os roteiristas tivessem resolvido forçar a mão para além da verossimilhança.

Ao mesmo tempo há pitadas de filme-catástrofe, com uma epidemia, a do novo coronavírus, que se espalha pelo planeta sem que se saiba ao certo sua gravidade e duração, e uma crise econômica também global, associada ao surto. Para fechar o clichê distópico, o Brasil tem no comando (sic) dessa situação caótica um presidente disposto a avançar dia a dia no propósito de implodir as instituições. Não há Posto Ipiranga que dê jeito numa pane dessas proporções.

Bolsonaro, apenas nesta Quaresma, mandou vídeos convocando para os atos a favor de seu governo, mentiu em rede nacional ao negar tê-los enviado, colocou um humorista no carro oficial para distribuir bananas a jornalistas e se esquivar de responder sobre o PIB insuficiente de 2019, fez discurso num púlpito para convocar para o ato que negara estar inflando, mandou três projetos de lei do Congresso (PLNs) para o Legislativo como parte de um acordo para ter seu veto mantido, depois exortou o Congresso a rejeitar os mesmos PLNs que mandou, excluiu um jornal de uma cobertura e, como se já não fosse demais, disse que a eleição vencida por ele há menos de dois anos foi fraudada.

Não há como examinar tal portfólio e não enxergar que ele está testando a aceitação de parte da população que lhe dá suporte a um arreganho golpista. E a resiliência ou o temor dos demais Poderes e das outras instituições a essa ameaça.

É por isso que são francamente insuficientes e acovardadas as reações dos comandantes dessas instituições a tamanha ousadia autoritária.

Não adianta Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre ou Dias Toffoli argumentarem que cabem a eles ter frieza, pregar o diálogo e não agravar ainda mais a situação.

Tal receita faz sentido num ambiente de normalidade civil, mas não em um em que o presidente, em pessoa ou por meio de ministros de Estado, familiares, parlamentares e milicianos digitais, está emparedando a democracia um pouco a cada dia.

Estrangular a imprensa, militarizar a política ao mesmo tempo em que politiza os meios militares, ignorar os riscos de uma epidemia mundial em nome de guerra política e colocar em xeque a lisura do próprio sistema eleitoral não são brincadeirinhas de um presidente humorista, mas, sim, golpes desferidos sistematicamente em pilares do estado democrático de direito.

Se as lideranças nacionais que têm a responsabilidade de frear os ímpetos imperiais de Bolsonaro não cumprirem seu papel, ele logrará êxito em seus intentos. Os atos do dia 15 colocarão mais lenha na fogueira em que arde a credibilidade do Legislativo e do Judiciário. Podem, de quebra, impulsionar um surto até aqui razoavelmente bem contido do novo coronavírus.

E a narrativa mentirosa da fraude eleitoral, se não for desmontada com vigor até aqui não visto em notas protocolares, pode ameaçar a realização dos próximos pleitos. E aí os cruzados bolsonaristas terão derrubado os portões da cidadela e chegado ao castelo a partir do qual pretendem tomar a democracia de assalto.


Vera Magalhães: Mulheres

Ser jornalista mulher nos dias de hoje traz desafios e mudou minha relação com a data

Sou daquelas que nunca deram bola para o Dia Internacional da Mulher. Cheguei a soar grosseira ao vivo no rádio com o querido Joseval Peixoto, quando ele me parabenizou pela data e eu disse que ela não significava muito para mim.

Mas minha relação com o feminismo vem mudando ao longo dos anos. Que bom que podemos nos atualizar, rever conceitos e convicções arraigadas ao longo do tempo. Ou então envelhecer seria apenas perder colágeno e massa muscular, ver os cabelos embranquecerem e as rugas aparecerem, e não seria nem um pouco justo ou divertido.

Não sou nem serei nunca uma militante feminista. Não é da minha natureza militar por esta ou aquela causa, nem me encaixar em coletivos ou agremiações. Mas hoje eu compreendo muito melhor que há alguns anos os estigmas, os riscos e as dificuldades que ainda hoje, em pleno século 21, recaem sobre as mulheres pelo simples fato de sermos quem somos, do gênero feminino. E isso não é algo a respeito do que quem tem uma posição pública pode calar.

Tempos anormais têm o efeito de nos tirar da nossa zona de conforto. E se isso traz grandes perturbações e muitos dilemas, também leva a descobertas reconfortantes. Ser uma jornalista cobrindo o governo de um presidente que afronta diariamente a imprensa e, especificamente, as mulheres, ofendendo, difundindo fake news, tentando intimidar repórteres ou silenciar perguntas é um desses desafios.

Passei esta semana repensando minha relação com a efeméride, seu significado. Na última quarta-feira fui convidada pela atriz Regina Duarte para sua posse na Secretaria de Cultura. Viajei a Brasília para isso e, quando disse a amigos e colegas que iria ao Palácio do Planalto, as reações se assemelharam às que eu esperaria ouvir se anunciasse que estava indo me internar num hospital de Wuhan para cobrir sem máscara o surto do novo coronavírus. “Mas você vai ao PALÁCIO? Sozinha?”

Cubro política há 27 anos. Desde 2000 frequento o Palácio do Planalto, durante dez anos em bases diárias, depois eventualmente. Não é razoável que a ida de uma jornalista de política à sede do governo do País cause inquietação. Fui, sozinha, e virei alvo de alguns olhares engraçados, mas, como é o normal, nada de errado ocorreu. Mas, ao fim da cerimônia, encontrei os colegas que voltavam da portaria do Alvorada e tinham acabado de ser submetidos ao escárnio presidencial, com o patético show de Bolsonaro e seu cosplay Carioca a bordo do carro oficial. E isso é, sim, anormal numa democracia.

Jornalistas mulheres que cobrem o dia a dia da residência oficial da Presidência sofrem agressões diárias e estão sendo poupadas pelas chefias da cobertura, pois são hostilizadas por uma claque feérica que se sente autorizada pelo comportamento do mandatário. E isso não é, de forma alguma, menor ou aceitável.

Jornalistas são retratadas como prostitutas em vídeos, memes e na voz do presidente, em pessoa. Isso só ocorre pela sua condição feminina, e o método não é replicado com nossos colegas homens, por mais incômodas que sejam as reportagens que produzam. Isso não é tolerável.

Então, neste Dia Internacional da Mulher, esta coluna é para conversar com o leitor e dizer que, se ele minimiza esses ataques, ele relativiza o próprio valor da democracia e da igualdade de gêneros, tão duramente conquistadas.

Essa dose cavalar e oficial de misoginia, machismo e sexismo não vai calar a voz de milhares de jornalistas mulheres que escolheram a profissão sabendo que iriam amassar barro, quebrar pedra, cobrir guerras e eventualmente se ver diante de situações de risco institucional. É para isso que estamos aqui, hoje e todos os dias. Parabéns a todas as mulheres. Vamos juntas!


Vera Magalhães: Rua total flex

O episódio do acordo depois desfeito e refeito em torno das emendas deveria ensinar o governo que ele precisa acertar sua negociação política, que ainda não disse a que veio

Afinal, para que são as manifestações convocadas para o dia 15? Elas começaram a ser gestadas como resposta ao chamamento do general Augusto Heleno, que chamou os congressistas de “chantagistas” por terem se assenhorado da destinação de cerca de R$ 30 bilhões do Orçamento.

Nunca um número de veto presidencial ficou tão famoso. Pessoas que nunca leram um projeto de lei passaram a fazer tuítes pela manutenção do veto 52.

Agora: se o governo tinha a força da rua e do argumento, por que negociou o envio de um Projeto de Lei (PL) do Congresso Nacional renegociando a divisão de parte dos R$ 30 bilhões com o mesmo Legislativo que antes era chantagista?

Jair Bolsonaro, com seu desapego aos fatos, foi logo para o Twitter posar de vencedor e durão. “Não houve qualquer negociação em cima dos 30 bilhões. A proposta orçamentária original do governo foi 100% mantida.” Como ele explica o PLN então?

Agora que o acordo foi feito, setores do governo tentam manter as ruas mobilizadas. Depois de o próprio presidente mandar por WhatsApp vídeos convocando para os atos, foi a vez do ministro Paulo Guedes (Economia) usar encontro com movimentos como Nas Ruas e Vem pra Rua para pedir que as manifestações se transformem em atos pró-reformas.

Ele mostrou aos organizadores dos atos um cronograma de reformas e disse que tem só 15 semanas para “mudar o Brasil”, numa referência ao semestre legislativo que se encerra em julho.

Acontece que o cronograma é irrealista – algumas reformas que constam ali, como a administrativa, nem foram mandadas para o Congresso ainda.

Numa só semana de julho o ministro estima votar a PEC 188 (do pacto federativo) em segundo turno no plenário da Câmara, a reforma tributária em segundo turno no plenário do Senado, a reforma administrativa no plenário do Senado e o projeto de lei 6407 (que muda o marco para o gás natural) no plenário do Senado. Não vai rolar.

Guedes chegou a se emocionar ao relatar dificuldades para os integrantes dos movimentos. A eles, a estimativa de “15 semanas” soou como um ultimato. Aliados do ministro garantem que não há prazo para que a agenda da Economia seja implementada, e que o “posto Ipiranga” continua plenamente abastecido.

Diante de uma ferida ainda não cicatrizada entre governo e Congresso, e com a evidência de que Bolsonaro cantou de galo para seu público, mas fechou um acordo com os políticos que chama de “velhos”, será um risco convocar as ruas, mesmo que com pauta “a favor”.

Isso porque o chamado sempre será entendido como licença para malhar o pixuleco do Rodrigo Maia (DEM-RJ), e não para pedir em uma só voz por reformas que ninguém sabe do que tratam ou que o governo nem conseguiu endereçar ainda.

O episódio todo do acordo depois desfeito e refeito em torno das emendas deveria ensinar o governo que ele precisa acertar sua negociação política, que ainda não disse a que veio. Não será possível apagar incêndios um atrás do outro, e o passivo acumulado em episódios como esses é absolutamente desnecessário.

Mais: apelo a instrumentos permanentes de democracia direta num governo que é usina de crises e com a economia se recuperando devagar pode ser um tiro no pé. Afinal, até ontem os mesmos generais que hoje conclamam as pessoas a saírem de casa viam o risco de golpe caso elas ousassem ocupar as praças para contestar o governo, como ocorria no Chile. O que poderia ensejar até medidas de exceção como um novo AI-5.

É preciso deixar de lado as convocações e governar. Se a agenda são as reformas, que Guedes cobre o presidente que envie a administrativa e que diga qual tributária vai defender. As ruas não só não têm nada com isso como só vão atrapalhar o necessário entendimento.


Vera Magalhães: Qual é a sua laia?

Debate democrático saudável pressupõe que as pessoas saiam dos seus guetos

"Vera Magalhães, eu não sou da sua laia." Esta foi, provavelmente, a única verdade proferida pelo presidente Jair Bolsonaro em sua última live, na quinta-feira, em que dedicou longos minutos a me atacar pessoalmente e a mentir de forma nonsense a respeito da informação que divulguei dois dias antes de que ele compartilhou dois vídeos, durante o carnaval, convocando para as manifestações do dia 15 de março a favor de seu governo e contra o Congresso.

A refutação passo a passo do besteirol de Bolsonaro a respeito dos vídeos eu já fiz no BR Político, neste jornal e nas redes sociais, e outros veículos jornalísticos a divulgaram com destaque, o que mostra a força da imprensa diante das tentativas de enfraquecê-la. Então, esta coluna não é sobre isso.

Mas a palavra “laia”, proferida com o costumeiro ódio pelo capitão, ressoa na minha cabeça desde então. Pela definição do dicionário, laia significa “categoria de seres ou coisas agrupados segundo determinada característica; classe, espécie, gênero, tipo”.

A conotação que Bolsonaro quis dar ao dirigi-la a mim foi pejorativa. Mas ela me atingiu nos brios, me remeteu a origem, a princípios.

Afinal, qual é a minha laia? A minha é a laia dos jornalistas, a que pertenço há 27 anos e contando. É uma laia que apanha de todo lado, mas não verga. É uma laia que busca, sim, o furo, já que a notícia e a informação são a fonte que vai adubar o solo da história e fornecer a matéria-prima para que a sociedade mude, evolua.

E você, leitor, qual a sua laia? Nesses dias de debate ainda mais acalorado que me vi impelida a travar na ágora moderna das redes sociais, houve muita solidariedade e empatia, mas também veio à tona, como um refluxo, a crítica segundo a qual eu, outros jornalistas e a imprensa seríamos “culpados” por termos “normalizado” Bolsonaro e feito “falso paralelismo” entre ele e o PT, e, por isso, “mereceríamos” os ataques que sofremos.

O papel da imprensa é expor os fatos a respeito de qualquer governo, de qualquer partido. Os arroubos autoritários de Bolsonaro nunca foram ignorados nem “normalizados” (urge achar palavra melhor) pela imprensa. Não houve paralelismo entre esse e os demais inúmeros problemas de Bolsonaro e os reais e diversos problemas do PT.

Os vícios do PT no poder foram dilapidar a economia, pilhar os cofres públicos, aparelhar todos os espaços com amigos, traçar um projeto de poder e colocar em ação uma máquina para perpetuar esse projeto por meio da corrupção.

Os desvarios de Bolsonaro não apagam nada disso. E lembrar esses fatos não é passar pano ou fazer falso paralelismo, mas entender parte do fenômeno histórico que nos trouxe até aqui.

A imprensa teve erros? Teve, sempre tem. Ter subestimado a força de Bolsonaro, não ter percebido que ele estava inserido no movimento global de fortalecimento da far-right reacionária e falsamente conservadora e não ter mapeado suas conexões no empresariado, no meio evangélico e no submundo das redes sociais, vitais para sua consolidação.

Mas não houve “normalização”. Isso é viagem de ácido de uma esquerda que está presa num discurso antigo. O lado “anormal” de Bolsonaro foi justamente o mais destacado em debates, entrevistas e perfis, e as pessoas votaram nele POR ISSO, e não APESAR DISSO.

“Ah, então por que vocês se espantam com os absurdos de agora, se era uma escolha muito difícil?”, manda o arrogante ironicão no Twitter. Não é espanto: é cobrar de quem ocupa a Presidência que se institucionalize, sob pena de ser enquadrado pelo sistema de freios e contrapesos da Constituição.

É preciso que este seja o foco do debate público, sob pena de que ele fique, de fato, preso à armadilha em que os guetos querem confiná-lo.


Vera Magalhães: Golden shower, ano 2

Bolsonaro troca vídeo impróprio por outro em que conclama a população contra o Congresso

Pensei que a coluna mais grave que escreveria para jogar água no chope do carnaval do leitor seria a do último domingo, quando apontei as muitas semelhanças entre os últimos passos do bolsonarismo e o chavismo venezuelano.

A militarização do Palácio do Planalto e o incentivo declarado do presidente Jair Bolsonaro e de sua família a levantes inconstitucionais, com características de motim, das polícias militares eram as evidências mais recentes.

Mas o presidente da República resolveu fornecer mais lenha para a fogueira em que ele e seu governo queimam a institucionalidade um pouco a cada dia.

Usando o WhatsApp de seu celular pessoal, com o brasão da República como avatar, o presidente aproveitou a folga carnavalesca deste ano não para compartilhar vídeo de golden shower, mas para algo mais grave: compartilhar um vídeo em que é apresentado como candidato a mártir, que teria arriscado a vida e quase morrido para salvar o povo, e ao qual o mesmo povo deveria uma recompensa: ir às ruas no próximo dia 15 de março se manifestar contra o Congresso.
Obtive a postagem presidencial e publiquei o print e a íntegra do vídeo de inspiração golpista, que usa o Hino Nacional como trilha sonora, no BR Político nesta terça-feira.

No texto que envia juntamente com o vídeo, o presidente escreve:

“- 15 de março.
Gen Heleno/Cap Bolsonaro.
O Brasil é nosso,
Não dos políticos de sempre.”

Nas legendas intercaladas a imagens entre vitimizadoras e triunfalistas de Bolsonaro, aparecem frases como “Ele foi chamado a lutar por nós. Ele comprou a briga por nós. Ele desafiou os poderosos por nós. Ele quase morreu por nós. Ele está enfrentando a esquerda corrupta e sanguinária por nós”.

Bolsonaro seria a “única esperança” de dias melhores e, por isso, as pessoas precisariam ir às ruas mostrar que o apoiam e rejeitam os “inimigos” do Brasil.

O ato do dia 15 foi convocado imediatamente após o vazamento, no sistema de som do próprio Planalto, de uma conversa em que o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, chama os congressistas de “chantagistas”, manda um palavrão e sugere que as pessoas deveriam ir às ruas se manifestar contra o Congresso.

Nas convocações que circulam pelas redes sociais, Heleno, o vice-presidente Hamilton Mourão e outros generais aparecem fardados e textos dizem que eles aguardam “ordens do povo”. E exortam: “Fora Maia e Alcolumbre”.

Responsável pela área de inteligência do governo, é no mínimo irônico que Heleno tenha se “descuidado” sabendo que o evento do qual participava estava sendo transmitido ao vivo.

A rapidez e coordenação da convocação para o ato, bem como a produção bastante cuidadosa do vídeo, mostram uma correia de transmissão que chega ao presidente da República.

Ele faz a convocação em seu nome e de Heleno, mas faz questão de usar suas patentes militares, e não seus cargos civis. O presidente da República se apresenta como “capitão” e estende o convite ao seu ministro mais próximo, chamado de “general”.

É de uma gravidade inaudita até para os padrões bolsolavistas o que aconteceu nesse carnaval. Trata-se de o presidente, sem intermediários das milícias virtuais a soldo, conclamando as pessoas a participarem de um ato contra o Congresso Nacional.

Bolsonaro instiga a rua contra os demais Poderes, algo inadmissível numa democracia e em plena vigência da Constituição.

Não é a primeira vez que escrevo isso, mas insisto: já passou da hora de as instituições colocarem freios não só na língua e no zap do presidente, mas em suas ações. Sob pena de que, quando decidirem fazê-lo, tenham perdido essas condições legais e políticas.


Vera Magalhães: Bolsochavismo

Motim de policiais com apoio do presidente pode ser embrião para milícia paraestatal

A semana pré-Carnaval foi marcada pelo violento motim da Polícia Militar do Ceará, que ameaça se espalhar por outros Estados, desafia a autoridade dos governadores, conta com a simpatia e o incentivo declarados do presidente Jair Bolsonaro e de seus filhos e asseclas nas redes sociais e pode ser, caso se alastre, o embrião da criação de uma milícia paraestatal bolsonarista inspirada na criada por Hugo Chávez e inchada por Nicolás Maduro na Venezuela.

Não é de hoje que o bolsolavismo bebe na fonte da criação bolivariana, replicando seus métodos de organização e lhes dando uma roupagem ideológica de extrema direita.

A proliferação de escolas cívico-militares, impostas a partir de Brasília aos Estados, a militarização total do Palácio do Planalto, a convocação, feita por um desses militares do gabinete, o general Augusto Heleno, de manifestações de rua em apoio ao presidente e para emparedar o Congresso são todos movimentos combinados que têm clara inspiração na escalada chavista a partir de 2005.

O movimento dos policiais militares é o mais ousado e controverso desses movimentos, porque inclui o incentivo, que era tácito e vai se tornando cada vez mais implícito, a motins já classificados como inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e cuja ilegalidade foi reiterada pela Justiça, no caso do Ceará.

Bolsonaro e os filhos oscilam entre a brincadeira simpática e o apoio escancarado ao movimento dos amotinados cearenses, que perpetraram na última quarta-feira a tentativa de homicídio do senador Cid Gomes – que, em outro ato tresloucado muito representativo dessa polarização patológica da política brasileira, havia investido com uma retroescavadeira contra um grupo que tomava um batalhão da PM em Sobral.

Não se ouviu do presidente da República, do ministro da Justiça, Sérgio Moro, e de nenhum dos militares do governo, que deveriam ser os primeiros a serem intransigentes na defesa da hierarquia e da disciplina militares, nenhum pio condenando o movimento ilegal dos PMs cearenses, cobrando o imediato desligamento dos amotinados nem a investigação e prisão dos autores dos disparos que alvejaram um senador da República.

No lugar disso, Bolsonaro estendeu sua fanfarronice, demonstrada dias antes na piada sexual de botequim com uma repórter, ao brincar que Cid Gomes não tinha habilitação para dirigir retroescavadeira, na sua última live. Flávio Bolsonaro foi mais explícito, ao chamar os amotinados que fazem uma greve ilegal de pessoas em busca de “melhores salários”, mais parecendo um sindicalista petista.

O movimento dos PMs não começou agora. Teve uma primeira onda em 2017, quando o levante violento no Espírito Santo teve incentivo explícito do então deputado Bolsonaro. Agora, os líderes da greve ilegal no Ceará são todos políticos com patentes militares – outra onda que veio na esteira do bolsonarismo em 2018.

A Milícia Nacional Bolivariana da Venezuela foi criada por Hugo Chávez em 2007, e hoje conta com mais de 1 milhão de cadastrados. Maduro quer chegar a 2 milhões. Seus homens e mulheres armados recebem salários de fome e uniformes cáqui para defender o governo, encher comícios, espionar a oposição e evitar a deposição do ditador.

Insuflar em policiais militares um sentimento de louvor político, passando por cima dos governadores e usando pressão salarial como combustível coloca o Brasil no caminho da criação de uma milícia paraestatal. Cabe ao Congresso, ao STF e aos governos estaduais cortar o mal pela raiz, punindo e reprimindo os movimentos dos PMs, sem ceder a chantagens por reajustes nem negociar anistias a criminosos.


Vera Magalhães: Quebra de decoro

Ataque de Bolsonaro a jornalista degrada Presidência e revela busca por cortina de fumaça

Diz o artigo 9.º da Lei 1.079/50, que embasou o impeachment de Fernando Collor de Mello e de Dilma Rousseff, que são crimes de responsabilidade contra a probidade na administração várias condutas, entre as quais “proceder contra a dignidade, a honra e o decoro do cargo”.

Senadores, deputados, advogados, ministros do Supremo Tribunal Federal, cientistas políticos, jornalistas e cidadãos em geral discutiram nesta terça-feira, 18, pela primeira vez de forma aberta, com enquadramento legal, se Jair Bolsonaro incorreu em crime de responsabilidade no ataque frontal, vil, pusilânime e abjeto que desferiu contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo, em coletiva improvisada na frente do Palácio da Alvorada, ao repetir insinuações de cunho misógino, sexista e já desmentidas por documentos.

Pela primeira vez em um ano e dois meses de governo, a palavra impeachment começou a ser proferida ao lado do sobrenome Bolsonaro em alto e bom som, e não pela oposição petista, mas por vários partidos e setores da sociedade.

E, de novo, foi um ato deliberado do presidente que gerou uma crise que macula ainda mais sua já dilapidada imagem e degrada e rebaixa a instituição da Presidência da República.

Bolsonaro parece buscar uma cortina de fumaça para o tema que virou obsessão sua e de sua família: o assassinato do capitão Adriano da Nóbrega, ex-policial militar do Rio de Janeiro, que era procurado por ser um dos acusados de participar da morte da vereadora Marielle Franco e apontado como um dos chefes da milícia mais perigosa do Rio, o Escritório do Crime, no último dia 9.

O presidente e o filho Flávio, que empregou familiares do miliciano e cujo gabinete usou suas contas bancárias como intermediárias de inexplicadas transações financeiras entre assessores, demonstram excessivo nervosismo com o desenrolar das investigações a respeito do assassinato e do que a perícia nos vários telefones celulares de Adriano pode revelar.

Já denunciaram de antemão a possível fraude em perícias. Eles, que sempre defenderam que “bandido bom é bandido morto”, demonstram súbita preocupação com direitos humanos e eventuais abusos da polícia ao denunciar tortura a que Adriano teria sido submetido.

Tudo isso por quê? O que pode aparecer daqui para a frente para que Bolsonaro e os seus precisem fazer uma vacina, um hedge, ou obter um habeas corpus preventivo?

No vale-tudo para desviar o foco do caso rumoroso, vale assacar contra a honra de uma jornalista séria, que já forneceu ao público, à CPMI das Fake News e ao Ministério Público cópias de conversas escritas e áudios trocados com uma fonte, o ex-funcionário de uma empresa de disparos em massa de WhatsApp, que mentiu em depoimento no qual jurou dizer a verdade.

Mas a falta de tato é tamanha que, na tentativa de criar uma cortina de fumaça, o presidente quebra o decoro e fornece munição para que se comece a montar um pedido de impeachment, que pode avançar caso ele insista em continuar violentando a democracia, a liberdade de imprensa e as instituições.

O Parlamento e o jornalismo já deixaram claro que lutarão para que Bolsonaro respeite os limites do mandato que lhe foi dado não por unção divina ou por designação de generais, mas pelo voto popular. E que é regido por leis, entre as quais a Constituição e a do impeachment, que já foi usada para conter abusos de outra natureza, de corrupção a pedaladas fiscais.

Bolsonaro precisa ser informado de que não tem licença para tudo no estado democrático de direito. Os que calarem a cada vez que ele empurrar os limites com a barriga podem se ver mais adiante manietados em suas prerrogativas de reagir. Enquanto pensam se é cedo para defender a democracia, pode ser tarde demais.


Vera Magalhães: Tristeza não tem fim

Euforia da virada do ano com a economia esmorece antes da Quarta-Feira de Cinzas

“A felicidade do pobre parece/ A grande ilusão do carnaval/ A gente trabalha o ano inteiro/ Por um momento de sonho/ Pra fazer a fantasia/ De rei ou de pirata ou jardineira/ E tudo se acabar na Quarta-Feira.”

Os versos acima são da pungente A Felicidade, de Tom Jobim, e me voltaram à mente de forma recorrente nesta semana depois da fala de Paulo Guedes a respeito dos malefícios do real sobrevalorizado.

O ministro da Economia atravessou o samba e acabou por contribuir com uma fantasia candidata a hit do carnaval de 2020: além de reis, piratas e jardineiras, vem aí uma legião de empregadas com malas etiquetadas para a Disney.

Porque a tal “festa” das domésticas no exterior só é imaginável em blocos e carros alegóricos, uma vez que, ainda que o real estivesse na base do “um para um” com o dólar, não sobra dinheiro para a grande maioria dos empregados domésticos viajar.

Então, por que raios o homem mais importante do governo, aquele em quem o “deus mercado” aposta todas as fichas, a ponto de tapar o nariz para os despautérios do presidente e a incompetência gerencial em quase todas as outras áreas, se põe a fazer perorações sem nexo dia sim, outro também?

Talvez Guedes esteja percebendo que a pauta que idealizou para 2020 vai deslizando como a felicidade do pobre, e que a euforia com o “boom” da economia brasileira neste ano 2 da gestão Bolsonaro já passou antes mesmo da Quarta-Feira de Cinzas que anuncia a tristeza sem fim da música de Jobim.

Diante das dificuldades, o ministro viaja na maionese ao tentar fazer o jogo do contente da Pollyana. Sim, existem várias razões de teoria econômica para defender o dólar apreciado sobre o real. E nenhuma delas passa nem perto da fictícia festa das domésticas na Disney. Guedes sabe disso, percebeu por onde estava indo quando já era tarde demais e, em vez de encerrar a fala ali, se pôs a tentar emendá-la.

Não pode ser atribuída só à falta de tato retórico a reiteração de declarações atravessadas do ministro: ele está claramente pressionado e desgostoso com o ritmo dos seus projetos, e não pode culpar quem deveria.

Guedes imaginou que a tal linha de produção de reformas estaria mais azeitada neste ano. Depois de segurar a reforma administrativa, Bolsonaro começou 2020 enaltecendo sua urgência. Para, logo em seguida, engavetá-la de novo. E que aqui ninguém tente culpar sua fala comparando servidores a “parasitas”, outro meme instantâneo pela referência ao grande ganhador do Oscar deste ano. A má vontade com a reforma já havia sido replantada na cabeça do inseguro presidente pelos seus assessores palacianos, com os quais o titular da Economia vem se estranhando não é de hoje.

Sem poder mandar ao Congresso a reforma tributária que gostaria, com a administrativa engavetada, tendo de apagar incêndio de Bolsonaro com os governadores depois do ridículo “desafio” de zerar o ICMS dos combustíveis, tendo sido bucha de canhão em Davos para ouvir as críticas que deveriam ser destinadas ao colega do Meio Ambiente, Ricardo Salles, há de se convir que o Posto Ipiranga está numa fase “tristeza não tem fim”.

O duro é que a conjuntura internacional, com um surto do novo coronavírus cujos alcance e duração não são possíveis de estimar, e o calendário local, com eleições logo ali, não prenunciam que as coisas vão melhorar depois da Quarta-Feira. Dependerá da articulação política, que, por ser naturalmente desconjuntada, precisa da atuação direta de Guedes. Se ele não sair dessa maré braba, e rápido, a euforia da virada de ano terá sido como a felicidade do pobre. Ou das domésticas, que não conseguem viajar nem para Cachoeiro do Itapemirim, quem dirá para a Disney.


Vera Magalhães: O clima pesou

Enchentes são outra mostra de que emergência climática não é para ‘daqui a 500 anos

Quem esteve no Fórum Econômico Mundial, em Davos, em janeiro, sentiu que, no intervalo de apenas um ano, a preocupação com a emergência climática e as formas de retardá-la deixaram de ser uma pauta lateral para se tornar uma das prioridades de países e investidores.

No mesmo intervalo de tempo, o governo Jair Bolsonaro deixou de ser uma incógnita em relação à qual havia grande desconfiança, graças às demonstrações de desapreço pela questão ambiental, para se tornar uma certeza de ameaça aos esforços globais para mitigar os efeitos do aquecimento.

Não foi por acaso que até Bolsonaro sentiu que o clima já tinha esquentado e designou uma comissão, liderada pelo vice Hamilton Mourão, para intervir na gestão ambiental da Amazônia.

Se faltavam evidências, ainda assim, de quão atrasados estamos em entender o que a ciência já demonstrou a respeito das consequências da emergência climática, as chuvas violentas que castigaram grandes capitais do Sudeste neste verão vieram completar o álbum.

Ricardo Salles – ainda hoje ministro do Meio Ambiente, embora manietado pela intervenção em sua pasta –, chegou a dizer, quando ainda ostentava o discurso negacionista que agora tenta mitigar, que a preocupação com o clima era algo para “daqui a 500 anos”. Algumas declarações se tornam históricas pela sua clarividência. Outras viram memes pelo seu histrionismo. Esta certamente não se enquadra no primeiro grupo.

Enquanto carros boiavam nas principais avenidas de São Paulo e paulistanos iam trabalhar de bote inflável ou trator, as autoridades municipais se reuniam numa espécie de missa macabra na Prefeitura, convocada às pressas pelo prefeito Bruno Covas, para, visivelmente atônitas, dizer que choveu demais e tudo poderia ser pior se não fosse o bom trabalho da gestão municipal.

Repetiu a linha de argumentação, com uma arrogância e agressividade totalmente fora do tom para alguém que deveria pedir desculpas à população por um dia de caos e barbárie, no dia seguinte em entrevistas ao rádio e à TV.

É evidente que sucessivas gestões, e não apenas a Doria-Covas, falharam em planejar obras para escoar as chuvas, subestimaram o efeito das mudanças no clima e abusaram do direito de encher a cidade de concreto, tornando-a impermeável. Foram, além de tudo, omissas quanto ao adensamento de encostas e áreas de manancial, que ficam mais vulneráveis em ocasiões em que de fato o índice pluviométrico sobe – e ele vem subindo nos últimos anos, e continuará a subir, ninguém pode alegar que os cientistas têm ficado roucos de tanto alardear isso, sendo chamados de histéricos por políticos preguiçosos, presunçosos ou ambos.

Bolsonaro foi eleito e governa com base num discurso que trata ciência como inimiga e promove crendices, interesses de aliados, fake news e ideologia barata a políticas de Estado. No reino de Salles, essa fórmula levou ao desmonte de todo o arcabouço de fiscalização de abusos e crimes ambientais.

Para completar o desastre, Estados e municípios, com governos das mais diferentes vertentes políticas, repetem o descaso com meio ambiente e clima que destrói biomas como a Amazônia também nos grandes centros urbanos.

A preservação ambiental e os esforços para retardar o aquecimento não são coisa de “comunista” ou de “pirralhas”. Trata-se da grande preocupação global hoje. Aquilo que, no fim do dia, será um dos principais fatores para definir se um país será digno de integrar fóruns e organismos multilaterais e receber investimentos ou se será considerado um pária aos olhos do resto do mundo e merecedor de retaliações e boicotes para negócios e acordos. Por enquanto estamos avançando em desabalada carreira para ficar no segundo bloco.


Vera Magalhães: Os sucessores

Trocas em postos-chave da República serão cruciais para traçar rota de 2022

Ainda faltam três anos para a eleição presidencial, mas a troca de titulares em alguns postos-chave da República neste ano e no início do próximo será crucial para definir o cenário em que se dará a disputa pela sucessão de Jair Bolsonaro.

O mais estratégico desses cargos é a presidência da Câmara. Bolsonaro e seu entorno já perceberam que Rodrigo Maia fez dela um bunker para frear os projetos prioritários do presidente, aqueles que ele prometeu na campanha e que pretende apresentar como realizações.

Mas Maia não pode mais se reeleger, e não está claro quem será o seu escolhido para manter a coalizão de partidos que conseguiu reunir em torno de si para frear na largada a pretensão de Bolsonaro de governar sem maioria no Legislativo, apenas impondo sua agenda de fora (a partir das redes sociais) para dentro.

Bolsonaro sabe que se deve a essa estratégia brilhante de Maia – elevar a importância do Parlamento justamente quando o presidente planejava escanteá-lo – a maior parte de seus fracassos. E por isso vai se empenhar para ter alguém seu no comando da Câmara.

O Planalto não considera a troca no Senado tão vital porque Davi Alcolumbre é considerado mais disposto ao diálogo e já ajudou o governo.

Atravessando a Praça dos Três Poderes, já estão a pleno vapor dois movimentos, aí, sim, cruciais, para o futuro de Bolsonaro e a eleição de 2022: a troca de Dias Toffoli por Luiz Fux no comando do Supremo Tribunal Federal, que ocorre em setembro, e a campanha aberta pela cadeira do decano Celso de Mello, em novembro.

Toffoli e Fux já encenaram a sucessão à luz do dia. Ao cassar uma liminar concedida pelo atual presidente no recesso, o vice e futuro ocupante do cargo quis, propositalmente, sinalizar que vem aí uma mudança de paradigma.

Em seus dois anos no comando do STF, Toffoli fortaleceu a ala “garantista” da Corte, agiu para conter o poder da Lava Jato e, no plano pessoal, trabalhou para se livrar da imagem de petista, aproximando-se de Bolsonaro com tamanha eficiência que, hoje, é um dos poucos nomes da República que o presidente consulta para questões jurídicas e institucionais envolvendo limites entre os três Poderes.

Sem o “parça” Toffoli e com o lavajatista Fux no comando, Bolsonaro se apavora com o que pode acontecer com casos como o do seu filho Flávio.

A nomeação do sucessor de Celso de Mello também ocupa Bolsonaro, que já não esconde a disputa declarada entre três de seus auxiliares pela vaga. Se o presidente quiser facilitar a rota que o leva a 2022, designará Sérgio Moro para a vaga: limpa, assim, a barra com o público lavajatista, que anda ressabiado com sua dubiedade no combate à corrupção, e tira o mais forte oponente do seu cangote. Mas não é esse seu desejo precípuo: preferiria indicar o “terrivelmente evangélico” AGU André Mendonça ou o absolutamente fiel Jorge Oliveira, o secretário-geral da Presidência recém-formado em Direito e com nenhuma biografia no meio jurídico.

Os bolsonaristas que desconfiam de Moro argumentam que ele poderia ir na segunda vaga, ainda no primeiro mandato de Bolsonaro, mas os moristas alertam: o ministro já foi mordido pela mosca azul da política e, a cada vez que se expõe, tem mais evidências da própria força junto ao eleitorado de Bolsonaro.

A campanha de 2022 já corre a todo vapor, não na desnorteada esquerda do esvaziado Lula ou no pulverizado centro, mas no quintal de Bolsonaro. E a ocupação dos espaços nos postos de mando institucional é a chave que, além do sucesso da economia, definirá se o “capitão” terá travessia mais tranquila ou mais pedregosa para tentar mais quatro anos no poder.