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Vera Magalhães: Bola com o Supremo
Como no mensalão, Judiciário assume o protagonismo da crise política
Sairá do Supremo Tribunal Federal o caminho para que Jair Bolsonaro enfrente o terceiro processo de impeachment de um presidente eleito em 28 anos. A bola, mais do que nunca nos últimos anos, está com os 11 ministros da principal corte do País. E olha que desde o mensalão o protagonismo do STF tem sido grande. Mas a conjuntura leva a que, desta vez, algumas coisas sejam diferentes.
O primeiro componente inédito é a vigência, há um ano, de um inquérito sigiloso, sem prazo e com abrangência grande e escopo para investigar fake news contra ministros do próprio tribunal. É ele, como escrevi na quarta-feira, que dará o fio da meada para que se trace uma cadeia de comando na rede de destruição de reputações que grassa nas mídias sociais e alimenta o bolsonarismo.
Graças a ele Bolsonaro perdeu as estribeiras em plena crise do novo coronavírus e decidiu demitir o diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, assumindo inclusive o risco de perder Sérgio Moro e ganhar seu mais competitivo rival em 2022. O desespero com o inquérito foi maior que o medo de perder Moro.
Pouco ou nada vai adiantar Bolsonaro ter alguém “seu” no comando da PF para tentar esvaziar o inquérito-bomba: as provas coletadas até aqui estão em poder do ministro Alexandre de Moraes, seu relator, e ele também já se precaveu e também assegurou que os policiais e delegados designados para comandar a investigação não sejam trocados.
O segundo ineditismo do papel do Supremo nessa crise é que são muitas, e de diferentes magistrados, as decisões que tolheram os arreganhos autoritários de Bolsonaro nos últimos meses. O presidente viu caírem desde as tentativas de ditar a estratégia de combate à pandemia do novo coronavírus até as investidas para reduzir acesso da sociedade a informações públicas.
Não é obra do acaso. Que integrantes de blocos até ontem conflitantes dentro do STF passem a atuar de forma coesa na contenção do presidente é um divisor de águas político e pode ser determinante para que as investigações em curso – duas delas com Alexandre de Moraes e uma com Celso de Mello – deem ao Congresso, ali do outro lado da Praça dos Três Poderes, o caminho jurídico do impeachment.
E aqui entra o terceiro fator inédito, a saideira do decano. Celso de Mello deixa o Supremo em novembro, depois de 31 anos. Dono de posições que foram paradigmáticas para a Corte em julgamentos como o do mensalão, desde o ano passado ele tem pontuado com ênfase os riscos à democracia representados por ações e palavras de Bolsonaro.
É dele a relatoria de um mandado de segurança questionando a demora da Câmara em analisar pedidos de impeachment e, desde sexta-feira, também está com ele o novo inquérito para apurar as denúncias de Sérgio Moro.
Candidato à sua cadeira em novembro, o procurador-geral da República, Augusto Aras, tentou dar uma no cravo e outra na ferradura ao colocar Moro na situação de co-investigado. Acabará por fazer do ex-ministro e ex-juiz da Lava Jato, ao lado do decano, peça fundamental de abrir a picada para o embasamento jurídico do processo de impeachment.
Não é por acaso o silêncio de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre. Os dois sabem que o enredo, agora, se desenrola no Judiciário. É de lá que sairá o roteiro para que a Câmara, e depois o Senado ajam. Até lá, há fatores políticos a alinhar. O principal é a definição de se o Centrão vai embarcar no governo ou fazer o que fez no impeachment de Dilma: leiloar seu preço com os dois lados até a undécima hora.
Os prazos são exíguos: Mello pendura a toga em novembro, e Maia deixa a cadeira em fevereiro do ano que vem. Por isso, e porque há um vírus a combater e uma economia em frangalhos para tentar recuperar, o ritmo será intenso.
Vera Magalhães: Com exoneração de Valeixo, Moro deve mesmo sair
Com a exoneração, pelo Diário Oficial da União, do diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, deve se concretizar a saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça e Segurança Pública, disseram ao BRPolítico nesta manhã pessoas próximas às negociações entre o ex-juiz e o presidente.
Ele marcou um pronunciamento às 11h desta sexta-feira, informou a assessoria de imprensa do ministério. Nessa fala, deve concretizar seu pedido de demissão, segundo a expectativa.
Depois de tentativas, vindas principalmente da parte dos generais que integram o ministério, de contemporizar a situação e evitar a saída de Moro, cessaram as conversas, ainda na noite de quinta-feira.
Diferentemente do que consta do DOU, a exoneração de Valeixo não foi assinada pelo ministro, como informou a Folha, e fontes confirmaram ao BRP. Outra informação falsa da exoneração é que a saída de Valeixo se deu “a pedido”.
O método da demissão, na marra e falseando informações, deve ser a cereja do bolo para a decisão de Moro de deixar o governo. Além da intervenção de Bolsonaro na PF, pesam para isso a aproximação do presidente com o Centrão, inclusive com pessoas condenadas e que foram presas, como Roberto Jefferson e Valdemar da Costa Neto (esse por sentença do próprio Moro na Lava Jato) e a conduta de Bolsonaro durante a pandemia do novo coronavírus.
Pessoas que acompanham desde quarta-feira a crescente indisposição entre Bolsonaro e Moro dizem que nem o ministro entende a forma como Bolsonaro agiu no caso de Valeixo. A razão seria a contrariedade com o inquérito, presidido pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que apura uma rede de fake news para destruir reputações de inimigos do bolsonarismo.
Conforme noticiei na minha coluna no Estadão na quarta-feira, ele está avançado em identificar empresários que financiam essa rede, e deve servir de base para a nova investigação a respeito da ida de Bolsonaro a atos golpistas no último domingo. Informações de outros veículos dão conta de que ele está a um passo de comprovar a participação de Carlos Bolsonaro no comando do esquema.
“Acho que não tem mais jeito”, me disse nesta manhã uma pessoa que acompanha a crescente crise entre Moro e Bolsonaro. Segundo pessoas próximas ao ministro, sua demissão deve se concretizar ainda nesta sexta.
Vera Magalhães: Fio da meada
O inquérito aberto no ano passado, para apurar inicialmente fake news e ameaças a ministros do STF, pode levar a que o novo já comece adiantado
Quis o destino da distribuição do Supremo Tribunal Federal que o ministro Alexandre de Moraes ficasse incumbido de relatar o inquérito aberto nesta terça-feira para apurar se foram cometidos crimes nos atos em prol de intervenção militar e fechamento do Congresso realizados no último domingo.
O Ministério Público Federal pediu para que seja apurada a responsabilidade pela convocação dos atos, que tiveram vários pontos em comum: convocação por meio de grupos de WhatsApp e redes sociais, faixas e cartazes com confecção padronizada e dizeres coincidentes, e, em todos, os mesmos alvos, notadamente o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, com quem Bolsonaro trocara farpas dois dias antes.
E por que o destino? Porque é Moraes o relator de várias ações recentes questionando aspectos institucionalmente relevantes, antes e durante a pandemia do novo coronavírus.
A começar do inquérito aberto no ano passado, a pedido do presidente da Corte, José Antonio Dias Toffoli, para apurar inicialmente fake news e ameaças a ministros do STF, mas cujo estofo foi sendo expandido e a validade é indefinida.
É nesse inquérito que está o fio da meada que pode levar a que o novo já comece adiantado. Procuradores e ministros têm informações de que empresários que financiaram os ataques de 2019 às instituições também estão à frente das manifestações realizadas domingo e incentivadas por Bolsonaro.
Ninguém arrisca dizer se o presidente será levado ao epicentro da investigação, mas deputados de sua base deixaram digitais nas convocações dos protestos, e, pelo fato de a investigação ser conduzida pelo STF, podem, sim, ser indiciados.
Eles vão tentar evocar, é claro, a imunidade parlamentar que lhes resguarda o direito a opinião, mas juristas lembram que atentar contra a democracia e a independência dos Poderes, resguardada pela Constituição, é crime tipificado e não conduta coberta pela imunidade.
É por saber que existem conexões claras que aliados de Bolsonaro estão agitados querendo encerrar a CPMI das Fake News. E não gostaram nada de ver Gilmar Mendes sorteado para relatar a ação do filho 03, Eduardo, com esse fim.
Gilmar deverá assegurar o seguimento da CPMI, e ela e os inquéritos do Supremo funcionarão como advertências bem concretas a Bolsonaro para que não ouse fazer mais nenhum arreganho autoritário como o de domingo, pois as instituições estão alertas e têm instrumentos já acionados para detê-lo.
Vera Magalhães: Paranoia de Estado
Instrumentos públicos não podem ficar à mercê de delírios do governante
Derrubado Luiz Mandetta, o inimigo interno que Jair Bolsonaro resolveu combater em meio à maior emergência de saúde do planeta, os esforços do presidente da República se voltam agora para uma tríade de adversários: Rodrigo Maia, João Doria e o STF, com menor intensidade (até porque, desde que assumiu, ele mostra certo temor de atacar o Judiciário com a sem-cerimônia com que atinge outros Poderes e instituições).
A razão é a velha paranoia presidencial. Acossado por fantasmas persecutórios desde muito antes de ser presidente, Bolsonaro vê um complô para derrubá-lo. O foco do momento é o presidente da Câmara, até pela importância do cargo para um eventual processo de impeachment.
Para atiçar ainda mais o medo do capitão, a sexta-feira foi o aniversário de quatro anos da queda de Dilma Rousseff. À parte pedaladas e economia em frangalhos, a condição definitiva para o impeachment avançar foi a decisão de Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, de levá-lo a cabo depois de a presidente o desafiar.
Bolsonaro estava lá. Ele sabe que, quando a Câmara vira, o presidente está em apuros. Um fato foi fator decisivo para o presidente pirar. A Câmara deu 30 dias para que ele apresente seu resultado do teste para covid-19. Desde que voltou dos Estados Unidos, após o Carnaval, o presidente se esquiva dessa exigência básica de transparência. Já alegou que fez teste com nome falso e que os exames são sigilosos por questão de Estado. A Câmara resolveu pagar para ver.
Ter mentido numa questão tão séria quanto a própria saúde em meio a uma pandemia, ainda mais quando apregoa por aí que se trata de uma “gripezinha”, que as pessoas devem “enfrentar o vírus” e sai pela rua cumprimentando pessoas após assoar o nariz seria, sim, crime de responsabilidade.
O Legislativo de 2020 está a léguas de distância do de 2016 quanto à disposição para um impeachment. Embora tenha grande ascendência sobre várias bancadas, Maia não é Cunha em termos de métodos de persuasão. Além disso, deputados e senadores avaliam que o momento de crise sanitária, humanitária, social, econômica e política agudas não combina com um processo de impeachment.
Mas Bolsonaro segue atormentado por seus fantasmas. Isso não seria um problema sério se os meios para demonstrar sua paranoia fossem os de sempre: guerrilha nas redes sociais e entrevistas descompensadas. Porém, há indícios de que aparelhos de Estado estão sendo usados para alimentar a paranoia, o que aumenta em muito a gravidade da situação. Há indícios de que a Abin, a agência de inteligência do governo, está sendo usada para espionar Maia, Doria e sabe-se lá mais quem.
Diante da reação até tímida do Congresso, pela gravidade da acusação, o Planalto desmentiu a informação, mas a total falta de transparência com que este governo trata a coisa pública não permite acreditar na negativa. É preciso cobrar e investigar o uso do Estado para saciar a fome de teorias da conspiração do capitão.
A Hungria é um caso a ter na mira. Lá, Viktor Orbán, um dos ídolos da família Bolsonaro, aproveitou a pandemia para dar um golpe de Estado.
Nesta semana, em meio a uma fala sem pé nem cabeça quando consumava sua birrenta troca de ministro da Saúde, Bolsonaro lembrou que é sua prerrogativa decretar estado de sítio. Não é a primeira vez que essa expressão aparece, meio “sem querer”, desde que a crise começou.
É preciso que as instituições reforcem a vigilância, porque chefe de Estado paranoico e autoritário, um risco de “golpe” inventado e sustentado nas redes sociais, Estado à mercê da paranoia e sociedade amedrontada formam um combo bastante propício a tentativas de virada de mesa.
Vera Magalhães: Os líderes estão nus
Pandemia do coronavírus expõe de forma inédita políticos e gestores públicos
Um dos (poucos) efeitos saneadores dessa crise sem precedentes nem horizonte para terminar desencadeada pela pandemia do novo coronavírus foi desnudar políticos de sua capa de narrativa e bobajol ideológico e expô-los nus diante do mundo com sua incompetência, sua falta de empatia e de liderança inata e a incapacidade de lidar com dados, ciência, diálogo com os divergentes e fenômenos que desafiam as expectativas e ameaçam o futuro.
No outro lado do espectro, ela também tratou de reafirmar lideranças que podiam carecer de certo elã midiático ou parecer gastas pelo tempo de exercício do poder, mas que na hora do vamos ver mostraram que experiência e seriedade fazem a diferença e se destacaram. Também revelou jovens lideranças até então desconhecidas, que voavam abaixo do radar da polarização política estridente porque governavam nações menores, mas agora florescem oferecendo a seus povos o arroz com feijão do bom senso.
No primeiro grupo se destacam os bons companheiros Donald & Jair. Trump começou a lidar com a crise com o histrionismo e a fanfarronice que caracterizam sua presidência e, graças a uma era de bonança econômica, não pareciam ser para os americanos razões para não reelegê-lo, até os Estados Unidos pararem assolados pelo vírus.
Acontece que a falta de seriedade do presidente no início da escalada da pandemia em solo norte-americano hoje é aceita até por assessores seus como determinante para que a situação tenha fugido de controle.
“Se tivéssemos iniciado antes (o isolamento), poderíamos ter salvado mais vidas”, disse em entrevista à CNN Anthony Fauci, o chefe do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas dos Estados Unidos.
Como auxiliares técnicos que falam verdades baseadas em evidências costumam ser como pedras nos sapatos de governantes acostumados a lacrar nas redes sociais, desancar a imprensa, viver de fake news e bravatear com o poder de sua caneta, Fauci passou a ser alvo de hashtags pedindo-lhe a cabeça, incentivadas pelo próprio presidente.
Alguém já viu a franquia B desse filme a que os EUA assistem agora? Pois é, como toda produção com orçamento reduzido e atores de menos talento, a versão brasuca do presidente que dá de ombros para a pandemia tem como cenário cidades-satélites miseráveis de Brasília, como trama a apologia a remédios sem eficácia comprovada e como bravata uma ajuda aos mais pobres que nunca chega, num sinal inequívoco de que a preocupação em salvar empregos é apenas uma desculpa da boca para fora.
Aqui como lá, o líder que não lidera tem entre os vários inimigos o responsável pela Saúde. Mas Bolsonaro tem mais capacidade para demiti-lo, se quiser de fato. Não o faz porque lhe falta a coragem para assumir a fatura que lhe será cobrada se tudo descarrilar. Vai, então, de forma infantil minando o poder do auxiliar, que resolve mostrar que sabe brincar do jogo de quem pisca sem mexer a pestana.
Megalomaníaco em sua impotência, Trump resolveu, depois de semanas em que parecia conformado, ameaçar a Organização Mundial da Saúde, com base em teorias da conspiração que são populares por aqui também, nas hostes dos baba-ovos do presidente. Ao fazê-lo, ameaça agravar a situação global do combate à pandemia. Deve achar que, como em tempos em que presidentes dos EUA arrumavam guerras externas para recuperar popularidade, esgrimir com a OMS vai lhe trazer de volta a popularidade perdida.
Assim como seu primo pobre de terra brasilis, talvez Trump perceba tarde demais que uma pandemia, com a crueza com que ceifa vidas, confina pessoas e aniquila sonhos, também desnuda fraudes erigidas com base em ideologia barata e narrativa de Twitter. Convém a quem tem caneta parar de brincar enquanto tem gente morrendo.
Vera Magalhães: A revolta da cloroquina
Assim como a reação à vacina em 1904, a apologia a um remédio é irracional e perigosa
Cada epidemia que assola a humanidade tem seus surtos de irracionalidade, ignorância e aproveitamento político associados. Não é diferente com a covid-19, e o fenômeno não é uma exclusividade do Brasil, embora por aqui estejamos nos esforçando para passar à frente no campeonato desses efeitos incidentais.
Em 1904, o Rio de Janeiro viveu a Revolta da Vacina. O presidente Rodrigues Alves nomeou o médico sanitarista Oswaldo Cruz para tentar conter os surtos concomitantes de varíola, febre amarela e peste bubônica, que assolavam uma população crescente que vivia em condições sanitárias precárias. A obrigatoriedade de vacinação para a varíola, aprovada pelo Congresso, foi o estopim para uma revolta popular instrumentalizada por grupos políticos em novembro daquele ano.
Mais de um século depois, diante da pandemia do novo coronavírus, outra reação irracional e perigosa, insuflada por políticos e seus apoiadores, confunde a população e desarticula a estratégia nacional para o combate à propagação do vírus.
Trata-se da pregação do uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da covid-19. Na última semana, o debate, que já era intenso nas hostes bolsonaristas, ganhou emissoras de TV aberta, fez com que o ministro da Saúde, Luiz Mandetta, fosse forçado a se pronunciar e colocou na berlinda até médicos conceituados, instados por comunicadores a dizer se haviam ou não usado os medicamentos em seus próprios tratamentos.
O uso dos dois fármacos no tratamento da covid-19 é controvertido: resultados positivos na evolução de alguns pacientes são relatados pelo mundo, bem como complicações que não só não resultam na propalada cura como pode fazer com que os pacientes evoluam para óbito.
Seu uso mais efetivo, até aqui, foi observado em laboratório, em dosagens e condições que não podem ser replicadas em pacientes. Seu efeito tem sido mais efetivo quando em associação com outras drogas, como antirretrovirais e corticoides. Esse coquetel só pode ser prescrito por médicos, de acordo com o histórico e as condições de cada doente.
Mas não é isso que se vê nas insanas redes sociais e na movimentação deliberada de Jair Bolsonaro. O que se tem é uma propaganda irresponsável dos poderes da cloroquina e da hidroxicloroquina, sem comprovação científica que a ampare. Chegou-se ao ridículo de parlamentares sempre dispostos a pagar mico para bajular Bolsonaro subirem hashtags como #RemediodoBolsonaro e #JairNobeldaPaz.
A “revolta” da cloroquina e da hidroxicloroquina embute riscos graves. O primeiro e mais evidente é contrapor seu efeito “milagroso” à necessidade de isolamento social, como se o uso liberasse as pessoas a relaxarem a quarentena. O efeito da semana da histeria cloroquínica foi justamente esse: em todo o País os índices de isolamento regridem perigosamente.
Sem testes em quantidades mínimas, o incentivo de Bolsonaro para que as pessoas voltem às ruas tem potencial genocida. Seu novo tour por Brasília, um dos lugares do Brasil que primeiro adotaram regras duras de distanciamento social, é um desserviço presidencial à saúde pública. Displicente, limpou o nariz no antebraço antes de dar a mão a simpatizantes, entre os quais idosos. Uma cena capaz de chocar um mundo quarentenado e envergonhar o Brasil.
Caso prospere a narrativa de que basta pressionar médicos para que receitem medicamentos de eficácia ainda não comprovada e todos podem sair por aí livremente, vamos viver uma tragédia. Neste caso, o presidente não será candidato ao Nobel da Paz (risos), mas sim ao título de chefe de Estado que pior lidou com o mais grave problema enfrentado pela humanidade neste século.
Vera Magalhães: A hora da escalada
Semanas de pico da pandemia não permitirão mais os erros cometidos até aqui
Vai começar a subida da montanha, metáfora que vem sendo usada pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para designar a fase, que há muito se sabe que chegaria, de escalada rumo ao pico de contaminação pela covid-19 no Brasil.
Até aqui, alguns fatores ajudaram e outros atrapalharam sobremaneira a preparação do País para essa escalada inexorável, pela qual todas as demais nações do globo passaram ou estão passando.
As nossas vantagens comparativas vêm sobretudo do timing. A contaminação começou na China e se espalhou pela Europa e pelos Estados Unidos antes de chegar aqui de maneira sustentada, o que nos deu tempo para aprender com acertos e erros de outros povos e outros governos.
Foi positivo, por exemplo, para que os governos estaduais e mesmo o governo federal decretassem situações de emergência, calamidade ou quarentena, a depender da designação, e com isso pudessem restringir a atividade econômica e a circulação de pessoas e preparar a retaguarda do sistema de saúde, que já está sendo pressionado e deve enfrentar uma situação próxima ao colapso, quando não de colapso efetivo, nos próximos dias.
Mas não soubemos aproveitar plenamente o que os especialistas chamam de “vantagem temporal” que o vírus nos deu. E isso graças a imperdoáveis erros e omissões políticos, que podem cobrar um preço enorme em termos de vidas perdidas e situação social e econômica agravada.
Nenhum desses erros tem a ver com a decisão de distanciamento social, como quer fazer crer a narrativa bolsonarista que campeia irresponsavelmente em gabinetes de Brasília e nas redes sociais, atormentando uma sociedade já assustada e que precisa de diretrizes inequívocas das autoridades para se guiar numa tempestade inédita.
Eles decorreram justamente do oposto: o boicote inexplicável do presidente da República e de seu entorno a tudo que envolve o protocolo de combate à pandemia, do distanciamento em si à liderança do ministro da Saúde. Birra.
Enquanto desautorizava Mandetta, divulgava medicamento e fazia traquinagem furando o distanciamento, Bolsonaro deixou de tomar providências urgentes e relevantes que ajudariam a preparar as mochilas de escalada dos brasileiros.
A começar pelas providências da área econômica. Essas, sim, deveriam ter sido alvo da obstinação teimosa do presidente. Por que não exigiu e cobrou a execução de um cronograma enxuto para o pagamento da ajuda emergencial de R$ 600 (que pode chegar a R$ 1.200) aos mais vulneráveis, que só começará a ser paga, se tudo der certo, amanhã?
Qual a razão para o presidente não ter impedido que qualquer auxiliar seu, a começar pelo filho e chegando ao ministro da Educação, que nada tem a ver com o peixe, criasse encrenca com a China no momento em que o Brasil vai precisar do país para retomar suas exportações e para importar insumos de emergência para o combate à própria pandemia?
Essas, sim, são tarefas eminentes ao uso da autoridade presidencial, essa que Bolsonaro adora afetar, ameaçando infantilmente usar a caneta para depois recuar, o que acaba apenas por desmoralizá-lo mais perante auxiliares, eleitores e o resto do mundo.
O presidente tirou uma “folga” ontem, depois de pintar o sete na segunda-feira e deixar o País com o fôlego preso diante da possibilidade de demitir o titular da Saúde em plena crise. O recuo não pode ser considerado definitivo, e a trégua de um dia estranhamente tranquilo pode ser aquela calmaria que antecede o caos.
Mas foi um bom teste. Se o presidente mantiver o foco em não atrapalhar a escalada, pode ser que cheguemos ao doloroso cume e comecemos a descer de volta menos machucados que nossos vizinhos desenvolvidos.
Vera Magalhães: O capitão em seu labirinto
Isolado, Bolsonaro parece crer que narrativa pode substituir realidade
A semana que se encerra neste domingo começou com o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, dobrando a aposta no negacionismo e saindo para um rolê pelas cidades-satélites de Brasília. Termina com sua autoridade ainda mais desgastada e sua figura reduzida à do capitão da reserva que sempre foi.
Assim como grande parte dos brasileiros e do resto do mundo, e por mais que esperneie contra ele, Bolsonaro está em isolamento radical. Está confinado num labirinto, cada vez mais solitário e sem contato com a realidade. Que outro chefe de Estado conseguiu a proeza de se indispor, em maior ou menor grau e quase simultaneamente, com o próprio ministro da Saúde, a Organização Mundial da Saúde, os governadores de quase todos os Estados, os presidentes da Câmara e do Senado, a imprensa e o Supremo Tribunal Federal em plena pandemia do novo coronavírus?
Por que a insistência quase obsessiva em trazer para o centro da discussão o fim do distanciamento social, as pesquisas com hidroxicloroquina, jejum e oração quando o foco deveria ser fazer os recursos já aprovados pelo Legislativo chegarem à ponta, aos mais necessitados?
Por que as redes ligadas e guiadas pelos Bolsonaro insistem em conclamar para este domingo manifestações que vão contra um consenso global, de que só o distanciamento social (que por ora no Brasil não é radical, aliás, longe disso) pode nos fazer aproveitar a grande vantagem comparativa que temos em relação ao resto do mundo: o fato de estarmos algumas semanas atrasados na epidemia e podermos aprender com o que tem dado certo e errado nos outros países?
São perguntas sinceras, não retóricas. Porque por mais que converse com políticos, economistas, analistas políticos e auxiliares de Bolsonaro não consigo ver cálculo – ou “método”, para usar a expressão consagrada pelo grande Carlos Andreazza – nas escolhas de um governo cada vez mais abilolado, na aposta de Bolsonaro num caos que já acaba com sua imagem e, no longo prazo, pode aniquilá-lo.
Diferentemente das vezes em que teve êxito em se apresentar como baluarte anticorrupção sem nunca ter dado nenhuma contribuição ao combate à corrupção, ou em furar a fila do antipetismo depois de uma vida dedicada apenas às causas miúdas e corporativas, e em posar de austero enquanto praticava rachadinha, punha os filhos na política e com eles construía um patrimônio invejável, empregava funcionários-fantasmas, usava auxílio-moradia tendo imóvel próprio e condecorava milicianos, no caso de uma pandemia em que pessoas morrem às dezenas dia após dia narrativa não serve para absolutamente nada.
É por isso que por mais que o presidente deambule em ziguezague em seu labirinto, guiado por filhos igualmente desnorteados e assistido por ministros cada vez mais omissos e coniventes, ele não chega à saída. Porque só uma capitulação diante dos fatos e a rendição à racionalidade podem evitar que, mais cedo ou mais tarde, o capitão seja visto por todos, até pelos que ainda hoje insistem em passar pano para seus abusos e suas sandices, como inviável para conduzir o País numa crise absoluta e definidora do futuro de toda a humanidade.
Bolsonaro precisa:
– Fazer com que o Ministério da Economia vença a catatonia de ter visto sua agenda mudar radicalmente e distribua de uma vez a Renda Básica Emergencial;
– Parar de sabotar Luiz Mandetta e deixá-lo comandar a ação integrada com governadores e prefeitos,
– E deixar de falar do que não entende, de isolamento social a medicamentos.
Se conseguir esse programa mínimo, que não requer brilhantismo nem grande coragem de estadista, dará a melhor contribuição de que é capaz para que atravessemos esse pesadelo e saiamos do labirinto em que estamos enfiados com aquele que deveria nos conduzir.
Vera Magalhães: 31 de março/1º de abril
País tem pior dia da pandemia entre apologia ao arbítrio e o império da mentira
Este texto é escrito no aniversário do golpe militar de 1964, e será lido no Dia da Mentira. Essa mudança no calendário ocorre no momento em que vivemos o agravamento da pandemia do novo coronavírus submetidos, de um lado, à apologia do arbítrio e, de outro, ao império da mentira como política de Estado.
Eis por que o País passou o dia prendendo o fôlego já curto, imaginando se o pronunciamento de rádio e TV de Jair Bolsonaro seria para espalhar fake news sobre a pandemia e mandar as pessoas saírem às ruas ou para louvar a ditadura. Ou ambas as coisas.
Mas o que se viu e ouviu foi um presidente assustado recuar de todas as bravatas recentes e fazer apenas menção à ajuda das Forças Armadas no combate à pandemia, sem revisionismo histórico.
Bolsonaro pela primeira vez colocou a defesa da vida à frente da dos empregos. Procurou mostrar empatia sincera enquanto lia um teleprompter com expressão e olhos contraídos.
O suspense que antecedeu o pronunciamento era extensivo a ministros, que não sabiam qual seria o tom da fala. Não por acaso. O presidente começou o aniversário do golpe na toada do confronto e da mentira: reuniu sua claque de blogueiros e youtubers fanáticos para interromper e hostilizar os jornalistas na frente do Palácio da Alvorada. Desta vez, no entanto, a imprensa virou as costas e foi embora. Deixou o presidente nu: solitário e cercado de acólitos, o que tem sido a marca de seu governo em 2020.
A OMS também teve de parar tudo que está fazendo para desmentir a versão, depois remendada por Bolsonaro no pronunciamento, de que tinha reconhecido a necessidade de as pessoas trabalharem para “ganhar o pão”.
O recuo repentino de Bolsonaro mostra que ele está ciente de que vem minguando em todas as pesquisas realizadas, inclusive as medições de sua influência nas redes sociais.
Estudo diário feito pela consultora de imagem Olga Curado com base nas redes mostra que há “dois governos” na percepção da população: um “prudente”, simbolizado pelo ministro Luiz Mandetta (Saúde), e outro visto como “irresponsável" e “autoritário”, representado por Bolsonaro.
A incapacidade de lidar com essa diluição da própria imagem e a tendência a ouvir um grupo liderado pelos filhos para tomar decisões vinham ditando a aposta no confronto. “Não há estratégia. Ele age instintivamente, orientado por pessoas rasas, que pensam em consonância com ele. É tática de orelha de livro”, disse Olga Curado, que assessorou presidentes da República e candidatos à Presidência nos últimos 20 anos, à coluna.
O pronunciamento de ontem foi uma tentativa de inflexão nos vários “dias da mentira” e de se aproximar do governo de Mandetta e Paulo Guedes e se afastar dos conselhos dos três filhos, sobretudo de Carlos, o czar da comunicação, e Eduardo, o tradutor que não sabe inglês e cunhou o apelido definitivo do clã: “Família Buraco”.
Bolsonaro reconheceu que não há remédio de eficácia comprovada contra a covid-19, disse que o vírus é uma “realidade” (e não “gripezinha”) e lamentou a perda de vidas, sem o “paciência, acontece” que despejou em entrevista na última sexta.
O barulho ensurdecedor das panelas nas janelas do Brasil durante a fala, no entanto, mostra que a confiança numa mudança sincera de propósito vai depender de ações nos próximos dias.
A missão do governo é fazer a renda de R$ 600 aos mais necessitados, já aprovada no Congresso, chegar às pessoas, algo para que ainda não há data nem formato. É coordenar esforços com governadores e prefeitos e conduzir o País numa única direção para atravessar uma crise que não é possível determinar que duração terá, mas que não pode ser enfrentada com o autoritarismo dos idos de março nem narrativa de Primeiro de Abril.
Vera Magalhães: O mundo pós-corona
Da economia às relações pessoais, passando pela política, nada será como antes
Se há uma única certeza a respeito de como sairemos dessa pandemia que bagunçou o dia a dia das pessoas, as relações interpessoais, a economia e a geopolítica do planeta é que nada, em nenhum desses territórios, voltará a ser como antes quando (e se) tudo isso passar.
Governantes populares até a virada do ano foram solapados pela crise; outros cuja imagem já parecia desgastada renasceram das cinzas; aqueles com uma reeleição certa no horizonte padecem na incerteza, enquanto os casos escalam em seus países; lideranças jovens aparecem em países não centrais do globo, e chamam a atenção pela forma segura com que conduzem seus governados no combate a um inimigo invisível, mas poderoso.
Na economia, na meca do capitalismo mundial, os Estados Unidos, Donald Trump, depois de flertar em ondas com o negacionismo em relação à pandemia, terminou a semana acionando o Ato de Proteção de Defesa, uma lei da época da Guerra da Coreia, para exigir que empresas como as icônicas montadoras de veículos produzam ventiladores para respiradores pulmonares e os forneçam ao Estado.
O Reino Unido, outro país que tentou ser blasé, deu um cavalo de pau e terminou a semana com restrições severas à circulação e o príncipe Charles e o premiê Boris Johnson “coronados”, símbolo imagético dificilmente superável.
Não será possível retornar - depois que o mundo sair de uma quarentena dura, que separa famílias e obriga as pessoas a redescobrirem desde regras de higiene pessoal até técnicas de trabalho e estudo remotos - ao estado em que estávamos, de um mundo polarizado e radicalizado em certezas tão absolutas quanto estúpidas.
Sim, alguns países fecharam mais suas fronteiras e a ideia de um “vírus chinês” infectando o mundo favorece uma sinofobia que campeia pelas purulentas redes sociais, mas a evidência de que a mesma China que iniciou o contágio tem muito a ensinar ao mundo em termos de contenção e continuará a ser imprescindível na hora de “religar" a economia planetária forçam, por exemplo, a que o mesmo Trump teça loas ao amigo “Xi”.
Não será possível imaginar um futuro pós-pandemia sem que a ciência finalmente, na marra, passe a ser levada em conta em decisões políticas e econômicas. Epidemiologistas, sujeitos antes exóticos que podiam ser bons consultores de filmes-catástrofe, viraram consultores de Estado e estrelas televisivas. E será preciso que sejam ouvidos sobre o timing da retomada da normalidade.
O negacionismo científico, essa chaga do século 21, que levou à eleição de néscios aqui e alhures, está cobrando um preço em forma de vidas humanas bem antes de fritarmos graças ao subestimado aquecimento global. Isso é devastador, e não há dogmas econômicos ou narrativa que sejam capazes de dar conta da resposta necessária.
O que nos traz ao momento atual do Brasil. Jair Bolsonaro parece ter resolvido dobrar todas as apostas mundiais em termos de irresponsabilidade. Pode até levar alguns mínions entediados a tirarem suas SUVs blindadas das garagens para um rolê com cafonas bandeiras do Brasil no capô, mas já está claro que não vai calar as panelas, algumas delas nas mesmas varandas gourmet.
E, o que é mais dramático, pode comprometer seriamente nossa resposta a essa pandemia. O preço será cobrado em cadáveres. Quando a irresponsabilidade de um governante é sentida na pele das pessoas e daqueles a quem elas amam, não há rede de robôs na internet que contenha o estrago.
Já não somos os mesmos que éramos em janeiro. Em São Paulo, Nova York, Milão ou Wuhan. Não seremos os de antes quando um dia sairmos de casa. Ou os governantes percebem que o mundo é outro e que deles se exige lucidez, ou serão varridos do mapa.
Vera Magalhães: Convite ao genocídio
Trump e Bolsonaro flertam com a irresponsabilidade ao, de novo, relativizar pandemia
Quando parecia que os líderes das principais nações do mundo estavam convergindo para compreender a gravidade e o ineditismo da crise decorrente da pandemia de covid-19 e para adotar medidas restritivas à atividade econômica e à circulação de pessoas para tentar conter a velocidade da expansão do contágio, a semana iniciou sob o signo do risco de grave retrocesso.
Nos Estados Unidos, candidato a novo epicentro da pandemia graças à velocidade com que os casos de infecção pelo novo coronavírus crescem, Donald Trump recuou da postura mais comedida que vinha adotando nos últimos dias para dizer que quer o país “reaberto” na Páscoa.
Essa declaração contraria todas as projeções de epidemiologistas, que acreditam que o pico da doença ainda não chegou aos EUA. A volta de Trump ao negacionismo tem uma razão evidente: a aproximação das eleições. Sua candidatura foi atingida em cheio pela constatação, literalmente na pele das pessoas, de que o sistema de saúde americano não é funcional e, num momento de calamidade pública, pune até com a morte aqueles que não têm recursos para bancar exames e internações.
A pandemia colocou em pauta, mais do que antes, as propostas do Partido Democrata para a reforma do sistema.
O problema é que os humores do presidente norte-americano sempre influenciam diretamente os de seu admirador brasileiro. E não demorou.
Jair Bolsonaro, que tinha levado um susto com o combo comitiva majoritariamente enferma, repúdio à sua ida ao Coronapallooza, panelaços em doses diárias, pesquisas mostrando um derretimento de sua popularidade e protagonismo dos governadores no combate ao coronavírus, voltou a zombar do risco em cadeia nacional de rádio e TV.
Não que ele tivesse se convencido da gravidade do que ainda estamos prestes a viver em algum momento: toda sua tentativa de soar colaborativo com governadores ou compassivo soava forçada, do discurso recitado à expressão corporal incomodada.
O “vamos abrir na Páscoa” de Trump foi um convite ao relaxamento de Bolsonaro. Em rede nacional, o presidente foi cínico. Encontrou espaço para invadir o confinamento de milhões de brasileiros aflitos para dizer que seu passado atlético faria com que, mesmo que contraísse covid-19, para ele seria uma “gripezinha” ou “resfriadinho”.
Além de zombaria com milhares de doentes e dezenas de mortos, essa postura é uma tentativa patética de vacina: o Hospital das Forças Armadas se recusa a fornecer os testes de dois integrantes da comitiva bolsonarista aos EUA. Ao mesmo tempo o governo tenta restringir a Lei de Acesso à Informação Pública com um pretexto justamente neste momento. Coincidência?
O presidente encontrou energia para, no momento em que se espera que seja adulto, responsável e lidere o País, brincar com a Rede Globo e ironizar um médico do quilate de Drauzio Varella, que tem uma vida dedicada à saúde pública e aos mais vulneráveis.
Trump não é o único estímulo a que Bolsonaro volte a calçar o Rider da irresponsabilidade. O presidente é suscetível às redes sociais, e ali o que não falta é idiota clamando que existe “histeria” da mídia com uma pandemia cuja letalidade ainda não é conhecida.
Mais: alguns empresários boçais desdenharam da pandemia nos últimos dias ao dizer que um número “x” de mortes não era pior que um número “y” de falências ou empregos perdidos.
Não se pode mercadejar com a vida. Isso é uma verdade absoluta para qualquer país, todas as religiões e indistintas ideologias. É o que nos separa da barbárie. Transigir com mortes em nome de uma incerta retomada econômica é nos privar, além de tudo de que já abrimos mão em nome da solidariedade, daquilo que nos é inalienável e não entra em quarentena nunca: nossa humanidade.
Vera Magalhães: Sociopatia X empatia
Crise do coronavírus separa comportamentos de forma cristalina
O que mais tem-se visto na crise global de proporções devastadoras decorrente da pandemia de coronavírus são demonstrações individuais e coletivas de empatia. Essa capacidade do ser humano de se preocupar com o outro e se sacrificar pela sociedade será um dos poucos legados positivos dessa distopia com a qual todos nós temos aprendido, um dia depois do outro e com muita dor, a conviver.
Mas o comportamento oposto, a sociopatia, também ganha relevo em tempos de exceção. E se torna ainda mais preocupante quando se manifesta, em gestos, palavras e decisões, nos responsáveis por comandar os destinos de grupos. Quais são as características dos sociopatas? Existem algumas que são universais.
Uma delas é a propensão à mentira. A distorção de dados e da realidade para descrever as próprias ações são muletas usadas pelos sociopatas, a forma como eles tentam esconder essa sua condição, mas por meio da qual acabam por ressaltá-la.
Os sociopatas se distinguem pela total falta de vergonha, arrependimento ou culpa. Mesmo quando flagrados fazendo algo condenável ou que tenha sido contraindicado, inventam subterfúgios, justificativas, jogam a responsabilidade para o outro e reafirmam, com arrogância e despreocupação, os próprios gestos.
A terceira característica de um sociopata é a completa falta de empatia. Ele é incapaz de se colocar no lugar do outro, demonstra frieza ou mesmo deboche em relação à dor e aos problemas daqueles com os quais não se identifica ou não tem relação, e coloca os interesses próprios e daqueles que lhe são próximos acima dos demais.
A habilidade de manipular é outra característica que a literatura reconhece nos sociopatas. Esse “dom” decorre justamente da capacidade de mentir e falsear a realidade. Quando pego na mentira, o sociopata se vitimiza e tenta virar o jogo culpando outros ou fingindo arrependimento.
O comportamento explosivo é comum aos sociopatas. Ele decorre justamente da falta de empatia. Quando questionado ou contrariado, o sociopata tende a explodir e agredir o outro, pois não reconhece nenhum propósito que não seja o seu como legítimo. A propensão à violência decorre desse desvio.
No conjunto de fatores observados para identificar e tratar um sociopata o egocentrismo também é listado. O sociopata tende a se achar ungido, especial, único, predestinado, detentor da verdade moral e por vezes divina. Quem sofre do transtorno tende a ignorar críticas e falar só de si mesmo.
Outro traço distintivo dos sociopatas é a falta de vínculos. Embora altamente carismáticos, muitas vezes, não desenvolvem afetividade e descartam pessoas próximas com facilidade quando elas deixam de aceitar suas determinações.
Outra regra é a dificuldade de quem sofre dessa patologia de reconhecer e cumprir limites, regras, leis e convenções sociais quando eles o contrariam.
Sociopatas são conhecidos também pela impulsividade e irresponsabilidade, que os faz colocar a si mesmos e a outras pessoas em risco pela gratificação imediata de suas vontades. Eles podem até ouvir a sensatez por um tempo, mas a inquietação e a impulsividade fazem com que eles revelem sua verdadeira natureza de uma hora para outra. Um sociopata costuma ser ainda mais imprudente quando o que está em jogo é a segurança alheia, e não a própria.
O comportamento de sociopatas, ainda mais quando investidos de poder, é um risco às sociedades em condições normais, mas se torna intolerável em momentos de calamidade pública global, como a atual.
Separar os comportamentos será um dos substratos imediatos e definitivos dessa era de pandemia. Sejamos empáticos e façamos nossa parte para neutralizar os estragos que os sociopatas podem causar.