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Vera Magalhães: ‘Não consigo respirar’
Protestos agregam convulsão social a uma crise sem paralelo
A reação ao assassinato, pela polícia de Minneapolis, do ex-segurança George Floyd, em 25 de maio, foi o estopim para a eclosão de manifestações que se espalharam primeiro pelos Estados Unidos, mas que começam a ganhar o mundo, contra o racismo e o fascismo.
Não é a primeira vez que o mundo assiste a movimentos de rua combinados, que vão ganhando corpo e agregando insatisfações sociais e políticas antes latentes. Aconteceu em 1968. Mais recentemente, ocorreu em 2013, no Brasil e também em diversos países. No ano passado, protestos varreram diversos países da América Latina.
E agora? O que o movimento racial dos Estados Unidos e os ainda localizados, mas inquietantes, confrontos no Brasil entre bolsonaristas e oposicionistas têm de inédito? O óbvio: são movimentos que, para além do chavão “começaram pacíficos, mas descambaram para a violência”, ocorrem em meio à maior pandemia em mais de um século. E isso não é um detalhe desprezível.
No momento em que a França, por exemplo, começa a ensaiar uma reabertura para o turismo e outras atividades econômicas, Paris se viu com as ruas apinhadas de pessoas protestando também contra a violência policial contra negros.
Os Estados Unidos e o Brasil nem chegaram ainda a sair da quarentena, que tanto lá quanto cá se dá de forma irregular, desordenada e tumultuada por presidentes ciclotímicos e desinteressados no combate efetivo ao coronavírus.
Não são os únicos traços em comum das novas jornadas de junho, cuja dimensão ainda somos incapazes de prever. Se em 2013 os motivos iniciais podiam parecer frívolos, agora já se parte de questões que, para dar significado universal à frase repetida por Floyd para o policial branco que o asfixiou, impedem a sociedade de respirar.
Racismo, surgimento de um neofascismo que incorpora elementos de supremacia racial e autoritarismo político, tudo turbinado pelas redes sociais, um mundo assolado por mortes e devastação econômica e um futuro que ninguém ousa desenhar são componentes capazes de fazer a revolta social escalar a níveis nem ensaiados há sete anos, ou mais recentemente.
A Terra está em transe. Governantes desprovidos de empatia social e compreensão de seu dever, como Jair Bolsonaro e Donald Trump, encaram momentos cruciais como esses da história da humanidade como oportunidades vulgares para fotos, seja desengonçado em cima de um cavalo, como o nosso, ou portando uma Bíblia com a qual não tem nenhuma intimidade, como no do “amigo” artificialmente tingido.
O de cá copia o de lá, a ponto de receber de bom grado, com reverência tacanha, carregamentos rejeitados de cloroquina do primo ab(e)astado que se cansou antes de insistir num tratamento ineficaz.
A força das imagens de pessoas indo às ruas contrariando o necessário distanciamento social mostra o quanto governos são estéreis para conduzir nações nessa crise inédita. É uma pandemia, como já houve outras até mais letais, mas ela chega num mundo hiperpovoado, marcado por diferenças sociais, econômicas e culturais brutais e incapaz de uma governança solidária, algo que garantiu o caminho em outros momentos-chave da História, como os pós-guerras mundiais.
A Terra pode ser uma visão emocionante quando observada, em toda a sua circunferência, pelas lentes de um foguete que busca o infinito, como nós, quarentenados de todo o mundo, vimos no último fim de semana no lançamento do Falcon 9.
Mas, assolada pela peste, pela iniquidade e pela mediocridade de alguns dos seus principais líderes, é um planeta inóspito para os humanos de 2020, que não hesitam em encarar até o vírus e o risco de morte para ir às ruas e poder gritar: “Não consigo respirar”.
Vera Magalhães: O que falta é coragem
Safra de líderes políticos tíbios e pautados pelas redes sociais agrava nosso pesadelo
Da internet vieste, à internet voltarás. Esse parece ser o pesadelo que assola os atuais líderes políticos brasileiros, de todos os partidos, em todas as instâncias. Aqueles que os eleitores colocaram em postos de comando sem saber que dali a poucos anos seríamos assolados por uma pandemia.
Do presidente ao vereador, os incumbidos de tomar decisões que definirão se sairemos antes ou depois desse pesadelo, com mais ou menos mortes e no fundo ou a meio caminho dele no poço econômico, todos pautam suas ações pela repercussão nas redes sociais, por um cálculo mesquinho de perdas e ganhos políticos e por pouca ou nenhuma ciência, o que explica que estejamos no pior dos mundos sob todos os ângulos.
A covardia é um dos atributos que mais contribuem para a maneira tresloucada com que Jair Bolsonaro investe contra as instituições, o bom senso e a saúde pública. Trata-se de um Forrest Gump, aquele personagem que chegou lá por acaso. Estava passando no momento exato da História em que a corrupção desbragada cometida pelo lulopetismo levou uma parcela da sociedade a um surto de eleger qualquer coisa menos um petista.
Bolsonaro sabe que se não fossem o petrolão, as redes sociais e a facada que levou em 6 de setembro de 2018 jamais chegaria à Presidência da República com seu clã da rachadinha, seus amigos milicianos, seu passado desairoso no Exército e na Câmara, sua absoluta falta de ideias sobre qualquer coisa, seu time de ressentidos vingativos e seu saco de gato ideológico que junta tudo de mais atrasado que existe em termos de teorias da conspiração disponíveis no mundo.
Por isso vê inimigos em toda parte e, quando colocado diante de um desafio concreto que o obriga a governar, não tem a menor ideia de o que fazer. Aí faz o que sabe: cria encrenca, cria fantasias – que podem ser nióbio, pílula do câncer, mamadeira de piroca ou cloroquina, ao sabor do momento – e sai atrapalhando qualquer esforço de conduzir o navio para longe do iceberg.
Deputados, senadores, governadores e prefeitos, eleitos na mesma onda de pane coletiva da razão, olham para um presidente desgovernado e agem entre a omissão e uma crítica medrosa.
Pior: muitos deles acabam cedendo aos mesmos critérios anticientíficos e irrazoáveis para lidar com a pandemia. Não há outra explicação a não ser capitulação à pressão do próprio Bolsonaro, de empresários e de prefeitos para o governador de São Paulo, João Doria, que vinha adotando um discurso de que pautaria suas ações pela ciência e por dados, ter tomado uma medida tão desastrosa quanto anunciar a abertura da economia a partir desta semana, inclusive na capital, quando está morrendo mais gente do que nunca e os hospitais vão colapsar. Faltou coragem de persistir na linha que ele mesmo traçou, e o desvio de rota pode custar muito mais caro.
E os presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre? São espectadores robustos de um espetáculo diário de diminuição do tamanho do Parlamento, enquanto se limitam a notas de repúdio descoladas da gravidade do momento.
Se os eleitos estão atados à própria covardia, resta o Judiciário, que tem agido. Como o rol dos pusilânimes inclui também o procurador-geral da República, Augusto Aras, que dorme e acorda sonhando com uma vaga no Supremo, cabe à corte tentar impor freios à barbárie e ao contrassenso. O problema é que há meios legítimos e outros questionáveis para que o tribunal exerça esse seu papel de freios e contrapesos.
Diante dessa balbúrdia institucional, o melhor para o brasileiro é continuar em casa o quanto puder, porque se depender de seus homens públicos não há segurança para sair na rua sem saber se vamos ser assolados pelo vírus ou por um golpe de Estado. Ou por ambos.
Vera Magalhães: Tudo dominado
Após reunião, Bolsonaro interferiu na PF e ‘escancarou' política armamentista
Não se pode dizer que Jair Bolsonaro não logrou êxito na pauta que levou à dantesca reunião ministerial de 22 de abril. A partir dali ele de fato:
- interveio na Polícia Federal;
- “escancarou” a política armamentista de seu governo em várias medidas;
- está sendo informado, e informando seus aliados, sobre passos de investigações;
- degolou o ministro da Justiça, como ameaçou fazer,
- E fez os ministros se exporem, e muito.
Agora só falta “prender" governadores e prefeitos, como pregou a diligente Damares Alves, mas não parece estar distante o dia em que ele tentará essa jogada.
De todas as agendas que explicitou no encontro, a das armas acima de tudo é uma das mais avançadas.
O presidente revogou, e anunciou no Twitter, portarias editadas pelo Exército que previam a marcação e o rastreamento de armas e munições.
Mais: o general Eugenio Pacelli, que havia assinado as portarias estabelecendo a necessidade de rastrear armas e munições, depois revogadas, foi exonerado da função e saiu dizendo que houve pressão por parte da indústria armamentista.
Em seguida, Bolsonaro editou, com a assinatura de Sergio Moro, a portaria da qual falava na fatídica reunião, aumentando o número de munições que podem ser compradas por civis e militares.
Por que a sanha armamentista? O próprio presidente desenhou: armada, a população poderá resistir a ordens consideradas abusivas de governadores e prefeitos. Para isso, deu como exemplo as regras de distanciamento social ditadas pela necessidade de combater a pandemia do novo coronavírus.
Ao investir claramente para criar grupos armados e dispostos a defender o governo a qualquer preço, como fica patente nos posts nas redes sociais e no incentivo a atos semanais de conformação golpista em Brasília, o presidente dá a senha para a criação de milícias paramilitares no Brasil, nos moldes da Milícia Nacional Bolivariana da Venezuela, criada por Hugo Chávez em 2007, e que hoje conta com mais de 1 milhão de cadastrados. Nicolás Maduro, o ditador que sucedeu Chávez, quer chegar a 2 milhões de homens armados, que, juntamente com o Exército amplamente inflado pelo chavismo são as duas forças que mantêm o regime de pé.
Escrevi a esse respeito na coluna intitulada “Bolsochavismo”, ainda em fevereiro, quando o apoio dos bolsonaristas ao criminoso motim de policiais militares em vários Estados já era o ovo da serpente do que se quer criar.
Não é coincidência o fato de pulularem nas redes sociais vídeos de policiais militares de todo o País se colocando à “disposição" para defender Bolsonaro do STF, do Congresso e de governadores (aos quais as PMs estão subordinadas).
Aliada à investida sem disfarces sobre a Polícia Federal e seu uso como polícia política, inclusive perseguindo adversários políticos do presidente, a urdidura de milícias fortemente armadas e dispostas e matar e morrer por Bolsonaro é a gestação de um projeto autocrático de poder que, se não for parado agora pelos demais Poderes, aos quais a Constituição delegou a tarefa de exercerem o controle sobre os arreganhos do Executivo, será difícil de deter no pós-pandemia.
Não é à toa o uso do verbo “aproveitar" a covid-19 para “passar a boiada”, feito por Ricardo Salles na reunião dos círculos do Inferno. Não é só no Meio Ambiente que o presidente aproveita a confusão que ele mesmo cria diariamente no combate à peste para avançar com o arbítrio.
Isso está sendo feito sobre a liberdade de imprensa, sobre os direitos fundamentais e trabalhistas e também no sentido de um Estado policial e paramilitar que garanta a Bolsonaro não ser admoestado. E talvez nem fosse precisar, dada a tibieza da resposta das instituições.
Vera Magalhães: O Inferno de Dante
Reunião ministerial é a representação da obra do poeta nos tempos de pós-verdade
“Deixai toda a esperança, vós que entrais!” A inscrição aparece quando o poeta italiano Dante Alighieri cruza o Portal do Inferno em sua epopeia A Divina Comédia. Vale para quem se arrisca a assistir à representação da obra nos tempos de pandemia e pós-verdade. Sim, estou falando da reunião ministerial do governo Jair Bolsonaro de 22 de abril, para a qual o único adjetivo possível é dantesca.
O fato de que alguns críticos anestesiados por tanto horror produzido por este governo tenham conseguido minimizar o que se passou ali nos leva de novo à obra do poeta italiano: são pessoas que estão ali no Vestíbulo, pouco antes do Primeiro Círculo do Inferno.
É o lugar dos covardes, fracos e indecisos, no qual se encontram hoje um bom número de homens públicos, alguns pretensos formadores de opinião e uma parcela letárgica da sociedade.
Mas há os que já desceram a alguns dos Nove Círculos do Inferno percorridos por Dante em sua viagem. Nos seis primeiros estão os que cometem pecados involuntários, nos quais há culpa, mas não dolo.
A coisa começa a ficar mais grave quando se passa aos três últimos círculos, com seus vales, fossas e esferas. É nesses lugares sombrios que estão os participantes da reunião macabra capitaneada por Bolsonaro, o capitão da versão pandêmica do inferno dantesco.
O Sétimo Círculo é o lugar dos violentos. Bolsonaro prega abertamente a criação de uma milícia paramilitar armada até os dentes para resistir a governadores, prefeitos e ordens judiciais. É a defesa da criação de um Estado paralelo, diante de ministros absolutamente silentes.
Os dez fossos do penúltimo círculo do inferno são a morada dos sedutores, aduladores, simoníacos (traficantes de coisas divinas), adivinhos, corruptos, hipócritas, ladrões, maus conselheiros, semeadores de discórdia e falsificadores.
Todas essas figuras aparecem na reunião, sem filtro. Ricardo Salles fala em aproveitar a “tranquilidade” da pandemia para barbarizar na desregulamentação de áreas como meio ambiente e agricultura. Chega a quase salivar de excitação, aos olhos de um incrédulo e novato Nelson Teich, que conseguiu ficar no vestíbulo do inferno bolsonariano, antes de se afogar em seus rios de cloroquina.
Damares Alves está lá, nos fossos do Oitavo Círculo, se esmerando para mostrar serviço ao chefe e falando em usar sua pasta para prender (!) prefeitos e governadores. É estarrecedora a distorção de realidade que ela demonstra, num semitranse, ao elencar notícias falsas para justificar que iria “pegar pesado” dali por diante. Bolsonaro adorou.
Abraham Weintraub, então, pode fazer um rodízio entre os fossos, pois preenche todos os requisitos para chafurdar naquele inferno pelo resto dos seus dias. Para júbilo de um Bolsonaro que exige de seus ministros a capitulação absoluta aos pecados logo na abertura da comédia dantesca, fala em prender “vagabundos”, entre os quais os ministros do STF.
O Nono Círculo do Inferno é o dos traidores. É o lugar de Bolsonaro, e será também o dos que insistirem em seguir com ele diante da evidência de crimes (interferir na Polícia Federal para proteger familiares de investigações, como fica comprovado pelo vídeo e pelas declarações e ações posteriores do presidente), autoritarismo e absoluta falta de humanidade, empatia e preocupação com uma pandemia que ceifa vidas de brasileiros aos milhares enquanto o presidente da República e seus asseclas atentam contra o bom senso, a saúde pública, a ética e a Constituição à luz do dia e em horário de expediente. O Inferno descrito por Dante talvez não contenha círculos suficientes para descrever o que se passou em Brasília em 22 de abril.
Vera Magalhães: Rebuliço!
O 'garoto' Felipe Neto, assim estigmatizado por analistas de todos os lados, deu um banho de humildade e maturidade em políticos e analistas no 'Roda Viva'
Confesso que me causou espanto o nó que o convite a um influenciador digital com milhões de seguidores, Felipe Neto, para uma entrevista, provocou na cabeça de pessoas de várias faixas etárias e de diferentes cortes ideológicos. A reação, um verdadeiro rebuliço, para usar uma palavra que o próprio Felipe transformou em bordão nos seus vídeos, é sintomática do grau de infantilismo do debate político brasileiro.
O “garoto” Felipe, assim estigmatizado por analistas de todos os lados, deu um banho de humildade e maturidade em políticos, analistas políticos, cientistas sociais e outros que torceram o nariz para sua presença no centro do Roda Vida.
Dizendo de cara que não era especialista e que seu “lugar de fala” era o de um empresário, especialista em comunicação e cidadão interessado em política, falou com propriedade sobre autoritarismo, negacionismo científico, estratégias de comunicação via redes sociais e necessidade de união de esforços para preservar a democracia.
Admitiu erros do passado, propôs caminhos de convergência com a propriedade de quem sabe que influencia um imenso público jovem e se dispôs a ouvir.
A reação do bolsonarismo foi a de tentar desqualificá-lo pela idade e pelo fato de ser um youtuber. A de parte da esquerda, sobretudo do petismo, foi bater bumbo em cima de uma frase que ele falou de passagem em uma resposta, a de que hoje acredita que o impeachment de Dilma Rousseff teria sido um “golpe”. Pronto! Veio uma espécie de catarse retroativa nas redes sociais, e passou batido o que ele disse sobre a oposição estar totalmente vendida no debate público (como ficou comprovado, aliás).
A resistência de formadores de opinião e políticos a encarar que a forma como se faz comunicação mudou e que uma nova gama de influenciadores tem de ser trazida para o debate público mostra por que não será simples deixar um momento de interdição de ideias e do campo democrático do qual o bolsonarismo se alimenta.
Enquanto o presidente usa a rampa do Planalto como playground de golpistas à luz do dia de um domingo, os que o rechaçam se horrorizam com o fato de que um youtuber pode atingir mais pessoas para mostrar por que esse comportamento é inadmissível que muito político barbado e ultrapassado. O tempo passou na janela, e só Carolina não viu.
Covid-19: Prefeitura de SP insiste em medidas improvisadas para achatar curva
A Prefeitura de São Paulo resolveu tentar achatar a curva da covid-19 na base da tentativa e erro. Medidas arbitrárias, aleatórias e sem amparo em dados técnicos são anunciadas pelo prefeito Bruno Covas e em seguida revogadas, sem resultado algum para conter o aumento da transmissão do novo coronavírus. Do ponto de vista político, o improviso joga contra o discurso de Covas e do governador João Doria, ambos do PSDB, de tentar se contrapor às ações do governo federal com o argumento de que em São Paulo as decisões são tomadas com base na ciência e nos dados.
Depois de anunciar e voltar atrás no fechamento de grandes vias da cidade e na ampliação do rodízio de carros (que aumentou, como era óbvio, a aglomeração no transporte público), Covas decidiu fazer um feriadão prolongado de hoje até a próxima segunda-feira. As escolas municipais mal acabaram de conseguir iniciar uma mal ajambrada substituição para as aulas, depois de um mês de férias no início da pandemia. Grande parte dos alunos não conseguiu ainda acessar o aplicativo para acompanhar as aulas, pois não dispõe de recursos digitais. Nas escolas privadas, que também se adaptam, ainda que com muito menos dificuldade, ao ensino a distância, o feriado vai deixar famílias cinco dias com crianças em casa sem fazer nada enquanto os pais tentam trabalhar. Qual o convite? Para que as pessoas deixem a cidade para passar o feriado rumo ao interior e ao litoral, levando o vírus para passear.
A educação já sofrerá um imenso baque com a interrupção das aulas presenciais. O feriadão prolongado só vai desestimular alunos e professores. Além disso, regiões como a Baixada Santista estão próximas do colapso pela covid-19. Estimular a ida de famílias entediadas para essas cidades só vai agravar o problema. O custo de medidas improvisadas na base do “a gente vê, e se não der certo volta atrás” é o mesmo das declarações irresponsáveis de Bolsonaro: aumento da proliferação do novo coronavírus. Se São Paulo quer mesmo dizer que se guia pela ciência, é bom prefeito e governador coordenarem suas ações.
Vera Magalhães: Piada no exterior
Bolsonaro, isolamento meia boca e falta de dados tornam País pária mundial
Terceiro mundo, se for
Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Renato Russo escreveu os versos de Que País é Esse? em 1987. De lá para cá, voltamos a eleger presidentes, dois dos cinco eleitos sofreram impeachment, ainda integramos o que se chamava de Terceiro Mundo na época dele, e agora se diz eufemisticamente país em desenvolvimento, e vivemos a primeira pandemia de um século que o líder do Legião Urbana não chegou a conhecer ainda na condição de piada no exterior.
O desgoverno Jair Bolsonaro, como o Estado consagrou em sua capa neste sábado, nos faz enfrentar o novo coronavírus de forma destrambelhada. Irresponsabilidade, omissão, sarcasmo, falta de empatia, autoritarismo, fanatismo, desapreço pela ciência e desprezo pela vida compõem o arsenal que o presidente da República lança, como perdigotos tóxicos, sobre uma Nação estupefata todos os dias.
Jogamos fora a vantagem temporal que tínhamos em relação à Ásia, à Europa e aos Estados Unidos no enfrentamento da covid-19 descartando as experiências exitosas que essas regiões tiveram e piorando as desastradas, algo que choca a imprensa internacional, a comunidade médica e científica global e os investidores já assustados com uma recessão planetária sem precedentes. É perceptível em textos de publicações científicas internacionais, em comentários em telejornais de outros países e em análises que agências de risco ou papers acadêmicos a dificuldade até de explicar certas atitudes e declarações de Bolsonaro, dado seu descolamento de qualquer traço de realidade.
A demissão do segundo ministro da Saúde em 29 dias no pico da pandemia foi a cereja desse bolo de vergonha mundial que somos obrigados a passar, como se já não fossem tantos os desafios perturbadores impostos pelo desgoverno e pela pandemia em si.
Paulo Guedes pode se esgoelar para falar que fez tudo certo, Tereza Cristina merece elogios por tentar limpar nossa barra com parceiros comerciais ofendidos grosseiramente por seu chefe e seus pares, mas não nos enganemos: dada nossa incapacidade de formular qualquer plano racional para saída programada de um isolamento sabotado desde o dia 1 pelo presidente, pegaremos a cauda do cometa da recuperação econômica global. Essa retomada não será nada simples, nem linear. Os países reemergem de suas quarentenas atingidos de forma diferente e mais fechados.
Quem vai querer investir num país em que o presidente assina uma MP eximindo servidores de responsabilidade por atos tomados durante a pandemia ao mesmo tempo em que tenta forçar um ministro (qualquer um) a assinar decreto tornando protocolo de tratamento um remédio cuja eficácia já foi questionada por estudos no mundo todo? Que está prestes a ser mostrado em áudio e vídeo em todo seu esplendor apoplético e autoritário dizendo que vai intervir na Polícia Federal para proteger sua família e “ponto final”?
Que já demitiu 11 ministros em 500 dias e ameaça, estufando o peito de orgulho, fazer (mais) um pronunciamento em rádio e TV vociferando contra o necessário e até aqui insuficiente isolamento social? Vamos ficar ilhados no Brasil, com dificuldade para obter vistos para viagens de turismo ou negócios, talvez sem sermos convidados até para campeonatos de futebol pelos vizinhos mais pobres, mas mais bem sucedidos no combate ao vírus.
A música da epígrafe tem ainda os versos “ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da Nação”. Só que enquanto Bolsonaro vilipendia a primeira sob silêncio conivente de seus ministros e dos demais Poderes, esse futuro se torna mais distante. Não sabemos qual será o mundo pós-covid-19. Mas podemos cravar que o Brasil estará no fim da fila para ingressar nele.
Vera Magalhães: Luz do sol
Só transparência total vai resolver impasse duplo que inquieta o País
Não é só a vitamina D, tão necessária nesses tempos em que vivemos confinados, que precisa da luz do sol para ser ativada. Só a claridade vai tirar o Brasil do impasse cada vez mais grave em que Jair Bolsonaro joga o País.
O agente capaz de escancarar as janelas e cortinas e iluminar dois cômodos que o presidente gostaria de manter nas trevas é o mesmo: o Supremo Tribunal Federal.
O presidente da Corte, José Antonio Dias Toffoli, bem que demonstrou, em sua densa, porém cautelosa, entrevista ao Roda Viva, minimizar os riscos para a democracia que Bolsonaro representa com seus atos e palavras. Apostou em diálogo e união de todos os Poderes para enfrentar a crise.
Menos de 24 horas depois, a sessão de cinema determinada pelo decano Celso de Mello parece ter entornado a pipoca da concertação nacional: segundo relatos em off de alguns dos espectadores, a reunião ministerial de 22 de abril se assemelhou mais a um filme de gângsteres.
Dada a gravidade dos spoilers de quem viu o filme, Celso de Mello precisa torná-lo público. Se há exortações à prisão de membros da mais alta Corte da Justiça e de governadores por parte de ministros e a explicitação verbal pelo próprio chefe de governo de que quer proteção da Polícia Federal para familiares e aliados, além da admissão de que a revelação de seu exame para covid-19 poderia alimentar um impeachment, as razões de segurança nacional obrigam à publicidade total da reunião, e não à manutenção de seu sigilo, como insiste o Executivo.
A outra persiana de informação pública que precisa ser erguida é justamente a do exame, ou dos exames, de Bolsonaro para o novo coronavírus. Quando o surto ainda não começara no Brasil, o presidente foi com uma grande comitiva à Flórida para confraternizar com Donald Trump. Boa parte da trupe testou positivo para covid-19. Outros que tiveram contato com os descuidados viajantes foram acometidos depois.
Bolsonaro disse ter testado negativo, mas tripudiou: mesmo que pegasse, para ele seria só uma “gripezinha” ou “resfriadinho”, dado seu “histórico de atleta”.
Uma coisa é dizer que foi acometido pelo vírus e ficou assintomático, algo comum. Outra completamente diferente, e de extrema gravidade em se tratando de um chefe de Estado em meio a uma crise de calamidade pública decretada a seu próprio pedido, é mentir sobre o resultado de um teste enquanto fura a necessária quarentena e prega contra as medidas de isolamento social recomendadas pelas autoridades de saúde.
Não se sabe se Bolsonaro fez isso. Mas a insistência em esconder resultados de um simples exame (negativo!) por parte de alguém que, há alguns anos, exibia orgulhoso uma bolsa de colostomia, aliada à frase dita por ele na reunião ministerial, segundo os relatos, deveria fazer o STF obrigar a Presidência a divulgar o resultado dos testes, sem essa história de nome falso ou de sigilo.
Na mesma linha da mentira de Estado, Bolsonaro se jacta de ter entregado a fita da reunião, sendo que poderia tê-la “destruído”, se quisesse. Balela! A partir do momento em que um depoente em um inquérito afirma, após jurar dizer a verdade, que um documento oficial existe e pode provar infrações, sua destruição é crime.
Episódios anteriores como o áudio de Joesley Batista com Michel Temer mostram a importância de se ver e ouvir esse tipo de documento antes de cravar conclusões. Naquela ocasião, fui dos que acharam que a fala de Temer não permitia chancelar a conclusão de que ele avalizou o suborno a Eduardo Cunha.
Agora, só a luz do sol sem filtro permitirá que se saiba se o que ocorreu em 22 de abril foi uma reunião de trabalho de um governo democraticamente eleito ou uma conspiração contra os preceitos do estado democrático.
Vera Magalhães: Babás fardadas
Militares no governo apequenam papel que vinham tendo desde redemocratização
Era sabido que o ingresso dos militares no governo Jair Bolsonaro, com papel político central e presença em praticamente todas as áreas da administração, seria um marco histórico, para o bem ou para o mal. A narrativa de que os papéis da instituição e de seus integrantes (da ativa ou da reserva) não se confundem já era falsa em tempos de normalidade democrática e sem uma emergência de saúde pública e econômica instalada.
Na atual conjuntura, em que o presidente afronta o bom senso, as regras sanitárias, as decisões judiciais, os Poderes e a própria Constituição dia sim, outro também, sem descansar nem nos fins de semana, a presença dos generais em postos de comando apequena o papel que as Forças Armadas, disciplinadamente, vinham cumprindo desde a redemocratização: o de zelar pela ordem constitucional.
Esses generais se sentiram afrontados por terem sido arrolados como testemunhas num inquérito que investiga se Bolsonaro cometeu graves violações a essa mesma Constituição ao exigir de Sergio Moro controle da Polícia Federal com fins inconfessáveis.
Mas não demonstraram a mesma indignação com esses e outros atos do presidente que, se esperava, iriam aconselhar e guiar, mas que, hoje se vê, apenas adulam, como avôs amorosos que agem com condescendência diante das diabruras de netos levados.
Em plena crise, o Palácio do Planalto se transformou em creche presidencial. A AGU passou a semana dedicada a tirar da cartola toda sorte de recursos para:
1) impedir que Bolsonaro tenha de mostrar à nação seus exames para covid-19, como decidiu a Justiça;
2) impedir que o vídeo de uma reunião do presidente da República e do vice com todos os ministros em meio a uma emergência nacional fosse entregue ao Supremo, e 3) insistir com o STF pela inexplicável (pela ótica republicana) obsessão presidencial em colocar Alexandre Ramagem à frente da Polícia Federal, mesmo depois de já ter nomeado seu preposto para o cargo.
É papel subalterno, que não condiz com uma estrutura de Estado. O advogado-geral deveria ter a independência de dizer ao presidente que certas batalhas são inócuas do ponto de vista jurídico e tóxicas do político. Mas não: Bolsonaro troca as peças de modo a que os novos ocupantes de cargos entendam que ou atendem seus desejos ou estão fora.
O que nos devolve ao triste papel dos generais. Diante das decisões tomadas, eles se verão nos próximos dias em duas circunstâncias constrangedoras, que em nada condizem com os princípios rígidos da hierarquia militar, pautada pela disciplina e pela seriedade.
Além de terem de depor num inquérito e defender Bolsonaro, podem ser expostos aos olhos do País participando de uma reunião ministerial que, segundo relatos dos presentes, mais se assemelhou a um show de horrores, com o presidente vociferando seus caprichos e instando auxiliares e cometerem infrações e ministros batendo boca entre si, xingando integrantes do STF ou afrontando a China.
E o que esses supostos conselheiros fizeram diante dessa cena dantesca, ou quando seu tutelado anunciou que faria churrasco para 30 pessoas quando 10 mil já morreram numa pandemia? Baixam a cabeça, batem continência, juram lealdade a um governo que já se mostrou incapaz de conduzir o País em meio à maior crise da Humanidade em 100 anos.
Não é bonito o retrato histórico dos homens de farda que resultará da associação voluntária com um capitão reformado que, antes de ser escolhido como solução para vencer o PT, era ridicularizado nas mesmas Forças Armadas. Que os senhores generais percebam, antes tarde do que nunca, que não se espera deles que sejam babás. Mas que honrem as medalhas que ostentam no peito.
Vera Magalhães: Xadrez com um pombo
Moro dá depoimento cirúrgico e calculado, enquanto Bolsonaro vocifera contra si
A internet, com todas as suas contribuições às ciências humanas, também produziu, vejam só, uma teoria “psicológica”. Trata-se do complexo do pombo enxadrista, um fenômeno que tem tudo a ver com o espírito do tempo bolsonarista.
Diz esse conceito, comumente empregado para descrever a inutilidade do debate científico com os negacionismos de todas as espécies, que argumentar com certas pessoas é o mesmo que jogar xadrez com um pombo: ele vai defecar no tabuleiro, sair voando e derrubando todas as peças e ainda alardear que venceu a partida.
A dinâmica entre Sérgio Moro e Jair Bolsonaro desde o pedido de demissão do ex-ministro até o ato da última terça-feira, 5, com a divulgação da íntegra do depoimento de Moro à Polícia Federal, é em tudo idêntica a uma partida de xadrez entre um humano e um pombo.
De forma sucinta e extremamente calculada, Moro tratou de: 1) entregar provas, evidências, testemunhas e caminhos de investigação para todas as suas declarações do dia 24 de abril e 2) evitar dizer que Bolsonaro cometeu algum crime.
Essas duas primeiras estratégias visam evitar que o ex-juiz e ex-ministro: 1) seja acusado de ter praticado denunciação caluniosa e 2) seja acusado de ter prevaricado diante do que sabia serem pedidos ilícitos do então chefe.
Tomado esse cuidado, Moro passou a executar seu outro grande objetivo com o depoimento: enredar o presidente e desenhar para a PF e o Ministério Público Federal o caminho das pedras e do xeque-mate no pombo.
Frisou, inclusive numerando (talvez tenha grifado com caneta marca-texto ao final e marcado com post-its, daí a demora do depoimento de oito horas), os elementos de prova e o caminho para buscar novas:
1) o próprio depoimento;
2) mensagem de WhatsApp de Bolsonaro a ele em 23 de abril dizendo que o inquérito do STF sobre fake news era um motivo para trocar o diretor-geral da Polícia Federal;
3) o histórico de pressões passadas e recentes para a troca de Maurício Valeixo e o superintendente da PF no Rio, inclusive dizendo que Bolsonaro mentiu publicamente sobre as razões para a troca no Rio (e apontando dados públicos que desmentem o presidente);
4) declarações de Bolsonaro se autoincriminando em pronunciamento após sua demissão;
5) a reunião de ministros gravada em que Bolsonaro fez pressão pública pela troca na PF;
6) relatórios da Abin mostrando que já havia relatórios de inteligência da PF para a Presidência e que, portanto, a justificativa de Bolsonaro não para em pé;
7) que os relatórios podem ser pedidos à PF se a Abin não fornecer;
8) mais mensagens de WhatsApp de seu celular.
Mais: Moro evoca o testemunho de vários ministros, com destaque proposital aos militares. Mexe com o senso de disciplina e senso de dever das Forças Armadas e aposta que os generais não vão mentir para proteger o presidente.
O golpe fatal: Moro deixa claro que a verdadeira preocupação de Bolsonaro era com o inquérito do STF, tanto que dá a cereja do bolo do depoimento, quando diz que tem outra mensagem do presidente para si sobre esse assunto (ainda inédita).
Na sua vez de mover as peças, o que fez Bolsonaro? Como um pombo, estufou o peito, abriu as asas e desandou a falar no cercadinho em frente do Alvorada. “Produziu mais elementos para se autoincriminar”, comentou um frio observador da partida.
Além de ter um pombo como adversário, Moro tem outro trunfo: à frente do inquérito está Celso de Mello, que decidiu que a partida será transmitida ao vivo, sem cortes nem jogadas sigilosas. Isso inclui depoimentos dos senhores generais e o aguardado áudio da reunião ministerial – que, aliás, o presidente tinha ameaçado divulgar, antes de ser dissuadido pelos pacientes pajens de farda.
Vera Magalhães: O ‘e daí’ como política
Ao agir como inimputável sem sê-lo, Bolsonaro banaliza as instituições e a vida
A Constituição diz que todos são iguais perante a lei e, assim, devem responder por seus atos, com exceção dos inimputáveis, que ela mesma trata de apontar. Os inimputáveis são considerados assim porque, no momento em que cometem alguma infração, são incapazes de discernir a gravidade de seus atos.
Jair Bolsonaro, desde o início de 2020, age como alguém que pretende alcançar a inimputabilidade. Alheio à forma como coloca em risco a saúde pública, num momento, e afronta as instituições democráticas, no seguinte, apela a uma narrativa em que se esquiva de responsabilidade pelos seus atos, aponta inimigos imaginários a justificar as próprias arbitrariedades e pede ao povo, o mesmo que coloca em risco, uma blindagem para as contenções de suas atitudes previstas na Constituição, e exercidas pelos demais Poderes, pela imprensa, pelo Ministério Público e pela sociedade civil organizada.
É o “e daí”, não por acaso uma das expressões mais repetidas pelo capitão, elevado à condição de política de Estado. Resta saber se esses mesmos agentes sobre os quais recai a missão de conter o presidente vão dar de ombros à pergunta cínica ou vão responder a Bolsonaro que “e daí o senhor não pode agir como está agindo”.
Neste sábado, pela enésima vez desde o início da pandemia do novo coronavírus e depois de o Brasil cruzar a marca de 6.000 mortos pela covid-19, o presidente da República que se quer inimputável promoveu aglomeração de pobres e idosos num entorno desfavorecido de Brasília. Demonstra num só ato sua absoluta ausência de empatia com os mais vulneráveis, sua completa incapacidade para gerir o País numa emergência de saúde e sua covardia política, pois só foi dar o novo rolê da morte porque queria chamar a atenção da imprensa e dos poucos fanáticos que continuam a apoiá-lo e desviá-la do temível depoimento que Sérgio Moro daria em seguida no inquérito que investiga se o presidente tentou aparelhar politicamente a Polícia Federal para blindar apoiadores e filhos.
Ao agir como um inimputável sem sê-lo, o presidente dá uma banana para as instituições e para seus governados. Dobra a aposta na crença de que ninguém fará nada contra ele e mostra que, para ele, a vida é algo banal, que pode ser mercadejada na bacia das almas da tentativa de salvação política.
Afinal, se mais pessoas morrerem, não se poderá jogar “no seu colo” a responsabilidade, pois, afinal, o STF deu aos governadores prerrogativa de determinar as regras de distanciamento social. Ignora – e acredita que a opinião pública fará o mesmo, pois a subestima, medindo-a pela régua da própria mediocridade – que é justamente o boicote que promove diuturnamente ao necessário isolamento que o torna poroso, insuficiente, e agrava o quadro de saúde Brasil afora.
Não adianta arrotar orgulhosamente a própria inimputabilidade, presidente. O Supremo, a imprensa, o Congresso e a sociedade existem e vão cobrar do senhor, que foi eleito democraticamente, embora escarneça até da própria vitória, colocando-a irresponsavelmente e sem provas em dúvida, para governar o Brasil segundo os preceitos constitucionais.
Não adiantará tentar redefinir o princípio da impessoalidade, dizendo que amigo não está enquadrado nele, como fez em mais um pronunciamento sem pé nem cabeça.
Os mortos que se somam em progressão geométrica são a demonstração corpórea, inescapável, de que o “e daí” elevado à condição de política de Estado é, sim, razão para que o presidente seja confrontado com os limites institucionais. Que o Supremo se mantenha firme no caminho – que tem demonstrado que está consciente de ser o seu dever – de mostrar ao pretenso inimputável que ele não o é.
Vera Magalhães: Sem saída imediata
Curva de casos mostra que não será simples reativar a economia
É muito mais deletério do que conseguimos mostrar em texto de análise política o efeito que pregações irresponsáveis como as do presidente Jair Bolsonaro contra as estratégias de distanciamento social provocam no efetivo combate à pandemia do novo coronavírus.
Essa influência perniciosa não só atiça a natural e justificável ansiedade das pessoas por retomar suas vidas “normais”, como se fosse possível prever qual será o novo normal a partir de agora. Ela também, é possível perceber agora, acabou por criar nos governadores e prefeitos, mesmo naqueles conscientes dos riscos reais da pandemia, uma pressão para dizerem quando e de que forma reabririam comércio, escolas e outros estabelecimentos, o que se deu, desde a semana passada, de forma claramente irrefletida, precipitada e inócua.
Os casos de contaminação e as mortes continuam em ritmo acelerado, sem que nenhuma das condições necessárias para que se comece a falar em saída das quarentenas esteja dada.
Não começamos a testar de forma mais sistemática e massiva, para ter números mais fiéis a refletir em que momento da epidemia estamos, a ocupação dos leitos de hospitais e de UTIs não está em curva decrescente na maior parte do País, os casos (mesmo esses que conseguimos confirmar, uma fração ínfima do total) não estão estabilizados e, mais assustador de tudo, mesmo os países que fizeram tudo certo e começaram a abrir estão experimentando más notícias.
É ilusório imaginar que em São Paulo, que na terça-feira, 28, conheceu um novo e sinistro recorde de casos e de mortes, 224 em 24 horas, perfazendo mais de 2 mil óbitos em pouco mais de um mês, vai voltar a funcionar, ainda que parcialmente, a partir de 10 de maio.
Se a ocupação dos leitos e a progressão do contágio continuarem no ritmo dessas duas semanas, ao contrário, é muito provável que o governador João Doria Jr. e o prefeito da capital, Bruno Covas, tenham de anunciar restrições ainda mais severas, e não relaxamento do distanciamento social. Foi assim em Milão, Nova York e outras cidades com as características de São Paulo.
Mesmo lugares de populações e circulação mais restritas e controláveis, como Brasília, talvez tenham relaxado as regras cedo demais. Afinal, basta que a capital do País volte a receber fluxos de viajantes, a começar dos políticos, de outros Estados para que uma nova onda de contaminação seja não apenas possível, como provável.
Basta ver que países que chegaram a ser citados como exemplos de combate à covid, como Cingapura (que testou massivamente) e Alemanha (que tinha proporção confortável de leitos de UTI por milhões de habitantes e fez um isolamento social rigoroso), tiveram ou terão de anunciar a volta de medidas restritivas porque os casos voltaram a subir.
Diante de um quadro tão grave e imprevisível, é ainda mais bizarro que o presidente do Brasil esteja dedicado única e exclusivamente a aparelhar ministérios e cargos públicos, demitir ou desautorizar os poucos ministros que passariam num psicotécnico e em confronto aberto com as instituições.
Desde que trocou Luiz Mandetta pelo desarvorado e desanimado Nelson Teich, Bolsonaro parece ter esquecido que há um vírus matando seus governados aos milhares. Não fala mais sobre coronavírus (o que pode até ser bom, dado o nível de patacoada que ele costuma dizer a respeito) nem cobra ações efetivas para achatar uma curva que ameaça colapsar o País tanto no plano médico-sanitário quanto no tão temido aspecto econômico.
Não vai dar para reabrir o Brasil na marra, como a essa altura até Teich já deve ter conseguido se dar conta. Que os governadores parem de ficar com medo do bafo quente das ruas e ajam com responsabilidade. De irresponsável já basta um.
Vera Magalhães: Mudança de planos na Justiça mostra temor ao STF
Jair Bolsonaro decidiu recuar de duas apostas que pretendia fazer, de uma só vez, no truco às instituições, nomeando de uma só tacada dois “brothers” dos filhos para funções-chave na área de Justiça e segurança pública no momento em que o Supremo Tribunal Federal fecha o cerco sobre ele. Seria ousadia demais até para um presidente que se quer anti-establishment.
Decidiu deixar onde está Jorge Oliveira, o “Jorginho”, filho de um amigo da vida toda, ex-assessor dos gabinetes de dois dos Bolsonaros, Jair e Eduardo, ex-major da Polícia Militar que resolveu fazer Direito quando era assessor parlamentar, cursou uma faculdade particular de Brasília sem nenhuma reputação e se formou há um par de anos.
Em vez de Jorginho, quem vai para o lugar de Sérgio Moro é o advogado-geral da União, André Mendonça, que já tem interlocução mais avançada com ministros do STF, por ser um funcionário de carreira da própria AGU e por fazer a defesa da União junto à corte. É considerado pelos ministros mais preparado do ponto de vista jurídico, e menos carimbado como alguém da cozinha do bolsonarismo.
Aliviando a aura familiar da nomeação na Justiça, Bolsonaro parece raciocinar que ganha o “direito” de colocar Alexandre Ramagem na Polícia Federal, como pretendia. O ex-chefe de sua segurança durante a campanha, amigão de Carlos Bolsonaro e inexperiente em cargos de chefia na hierarquia da PF vai assumir já tendo a pecha de alguém que chega para aliviar a barra para o clã Bolsonaro e o gabinete do ódio no inquérito das fake news, tentar reabrir a investigação da facada contra Bolsonaro em 2018 e designar superintendentes afáveis ao gosto do presidente.
Afinal, foi esse o roteiro traçado pelo próprio Bolsonaro, em pronunciamento ao lado de todos os ministros, na última sexta-feira, do que considera suas prerrogativas junto ao chefe da PF.
Alexandre Ramagem é nomeado diretor-geral da PF
A mesma edição do Diário Oficial da União que traz a nomeação de André Mendonça ao Ministério da Justiça e Segurança Pública também traz a nomeação do delegado Alexandre Ramagem, que era chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal. Ele assume na vaga deixada na última sexta por Maurício Valeixo.
A indicação de Ramagem já vinha recebendo várias críticas de diversos setores da sociedade pela proximidade do delegado com a família Bolsonaro. Ele é amigo pessoal do vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro.