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Ricardo Noblat: Pouco ou nada separa o MDB dos demais partidos do Centrão
As diferenças estão no passado
Por que ao falar do Centrão e nomearem-se os partidos que o integram costuma-se deixa de fora o MDB? Talvez em respeito ao seu passado de lutas contra a ditadura militar de 64.
Tempos arriscados aqueles quando uma palavra fora de lugar, uma imagem mais forte ou uma proposta infantil bastava para cassar o mandato do seu autor, condená-lo à prisão ou forçá-lo ao exílio.
Há menos de um mês, morreu o advogado e ex-deputado federal José Alencar Furtado. Em 1977, líder do MDB na Câmara, ele foi cassado por ter dito num programa de televisão:
“O MDB defende a inviolabilidade dos direitos da pessoa humana para que não haja lares em prantos. Filhos órfãos de pais vivos – quem sabe – mortos, talvez. Órfãos do talvez ou do quem sabe. Para que não haja esposas que enviúvem com maridos vivos, talvez, ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe e do talvez”.
O ato de cassação foi assinado pelo então presidente da República, o general Ernesto Geisel, que dizia conduzir o país na direção de uma abertura política lenta, gradual e segura.
O deputado Márcio Moreira Alves (MDB-RJ) acabou cassado por ter feito um discurso em setembro de 1968 que não chamou a atenção de ninguém nem mereceu uma linha nos jornais.
Propôs um “boicote” ao desfile de 7 de setembro e recomendou às moças que não dançassem com oficiais naquele dia. Foi o pretexto que a ditadura usou para tirar a máscara e se assumir como tal.
Por pouco, em 1975, Geisel não cassou o mandato do deputado Ulysses Guimarães (SP), presidente nacional do MDB, que o comparou a Idi Amin Dada, à época ditador de Uganda.
Do seu passado, o MDB, hoje, só guarda lembranças para desenterrá-las às vésperas de eleições e sepultá-las no dia a dia da desfaçatez e do fisiologismo compartilhado com o Centrão.
O presidente Fernando Henrique Cardoso aliou-se ao PFL, hoje DEM, para governar. Os presidentes Lula e Dilma aliaram-se ao PMDB, hoje MDB, com o mesmo propósito.
DEM, MDB e companhia ilimitada governaram quando Michel Temer, depois de muito conspirar, sucedeu a Dilma. Bolsonaro tem ministros do DEM e espera, em breve, ter também do MDB.
Se por ora ainda não dispõe de ministérios, o MDB desfruta de centenas de cargos nos terceiros e demais escalões do governo. Diz-se independente, como o DEM diz que é. Os dois mentem.
Contagem regressiva para o Dia D e a Hora H de Rodrigo Maia
Fica ou sai do DEM?
Convites não lhe faltam. O PSDB do governador João Doria (SP), o MDB de Michel Temer e Baleia Rossi (SP), o PSL de Luciano Bivar (PE), ex-aliado do presidente Jair Bolsonaro, e o CIDADANIA de Roberto Freire, possível abrigo de Luciano Huck caso ele seja candidato no ano que vem, abriram-lhe as portas.
Na semana passada, antes de ser derrotado por Artur Lira (PP-AL) que se elegeu presidente da Câmara, o deputado Rodrigo Maia ameaçou deixar o DEM acusando ACM Neto, o poderoso chefe do partido, de traição. Consumada a derrota, Maia repetiu a ameaça dizendo que com ele levaria para onde fosse um monte de gente.
Eduardo Paes (DEM), prefeito do Rio, confirmou que o acompanhará junto com seu grupo. Deputados do DEM, sob a garantia de não terem seus nomes revelados, disseram que irão com Maia. Ao ex-presidente da Câmara, ACM Neto prometeu passe livre para sair desde já sem risco de perder o mandato.
No último fim de semana, Maia reafirmou que está com um pé fora do DEM e que não passará desta semana. Estava furioso com ACM Neto. Aberta, portanto, a contagem regressiva para que se saiba afinal se a palavra dada por Maia será cumprida, adiada ou simplesmente esquecida.
Cristovam Buarque: Desorientação dos terracubistas
Os partidos progressistas não sabem para onde ir
Em recente entrevista, o ex-presidente Fernando Henrique disse temer que o PSDB esteja em decadência. Na verdade, seu partido está desorientado, tanto quanto os demais partidos democratas progressistas, de centro ou de esquerda. Eles não entendem, ou não aceitam, que suas ideias e propostas perderam prazo de validade diante das mudanças que ocorrem na história; ou tentam se adaptar de maneira incompleta.
Percebem que o Estado tem limitações de recursos, mas não sabem como atender às necessidades sociais sem gastar além dos limites responsáveis. Não sabem como colocar a solidariedade necessária dentro da aritmética possível.
Descobriram os limites ecológicos ao crescimento, mas não conseguem oferecer um tipo de bem-estar que substitua a ânsia pelo consumo. Não conseguem colocar o PIB dentro da ecologia.
Entendem que uma das causas de nosso atraso está no desprezo à educação de base com qualidade para todos. Mas não assumem que a educação de qualidade para todos é mais do que o direito de cada pessoa, é o vetor do progresso econômico e da justiça social. Não acreditam, nem sabem como fazer para que o Brasil tenha uma educação tão boa quanto às melhores do mundo e que o filho do mais pobre estude em escola com a qualidade do filho do mais rico.
Perceberam que os partidos já não existem e as siglas pouco significam, mas não sabem que tipo de organização colocar no lugar. Nem como fazer política nos tempos das comunicações de massa.
Se surpreendem que perdemos velocidade no ritmo de crescimento, mas não entendem ainda, ou se assustam, com a ideia de que o problema não é a velocidade do progresso, é do caminho escolhido para ele. O problema não está na saída da Ford, mas na opção pela indústria automobilística como carro chefe da economia.
Continuam nacionalistas em um tempo de globalismo, mas não sabem como tirar proveito da globalização e evitar os problemas do livre comércio sem cair no protecionismo.
Os partidos progressistas estão desorientados do ponto de vista filosófico e em consequência decadentes do ponto de vista político e eleitoral, seu progressismo tem a cara, a cor e o cheiro do passado. Não veem a realidade em toda sua complexidade esférica, global e dinâmica. São partidos terracubistas. Os conservadores levam vantagem, porque o passado e o reacionarismo é a “praia” deles. A nostalgia é uma qualidade no discurso da direita, que defende “grande outra vez”; mas a nostalgia é um pecado entre os progressistas, que deveriam propor “melhor em frente”. Os conservadores não se desorientam porque desejam ficar parados; os progressistas se desorientam porque desejam avançar, mas olhando para trás, sem bússola, sem estradas e no meio do terremoto civilizatório.
Os progressistas não aceitam a Terra Plana, mas ainda não têm propostas pela a Terra Global no tempo da crise ecológica, da robótica e do esgotamento do Estado. Felizmente, a percepção de que a decadência é uma desorientação, possibilita o surgimento de mapas para futuros progressistas.
*Cristovam Buarque foi ministro, senador e governador
Ricardo Noblat: ACM Neto acerta o tiro que deu no próprio pé
DNA fala mais alto
Bem-sucedido prefeito de Salvador por oito anos e forte candidato a governador da Bahia em 2022, ACM Neto haverá de recordar para sempre o tiro que deu no próprio pé ao deixar suas impressões digitais na disputa entre Baleia Rossi (MDB-SP) e Arthur Lira (PP-AL) pelo comando da Câmara dos Deputados.
Na condição de presidente nacional do DEM, sob forte pressão de deputados divididos entre Rossi e Lira, ele concordou em deixá-los à vontade para que votassem como quisessem, embora o partido fizesse parte do bloco de apoio a Rossi montado por Rodrigo Maia (DEM-RJ). Em cima da hora, tirou o partido do bloco.
Sua decisão beneficiou Lira, candidato do Centrão e de Bolsonaro, e selou a derrota de Rossi e de Maia. Desde então, diante do anúncio feito por Maia de que abandonará o DEM e que levará com ele para outro partido um numeroso grupo de aliados, ACM Neto tenta reparar o estrago que produziu. Não será fácil.
No primeiro momento, ainda chegou a admitir que daria passe livre para a saída de Maia do DEM antes da abertura, no próximo ano, da janela partidária – um período às vésperas de eleições em que parlamentares podem trocar de partido sem risco de perder o mandato. Recuou, depois, com medo de uma fuga em massa.
Para completar sua infelicidade, em entrevistas que concedeu esta semana, embora tenha insistido em dizer que o DEM é um partido independente, antecipou que na eleição presidencial do ano que vem não descarta a hipótese de apoiar a reeleição de Bolsonaro. Foi uma afirmação desastrosa a essa altura do jogo.
O DEM nasceu de uma costela da ARENA, partido que apoiou a ditadura militar de 64. Com a redemocratização do país, passou a se chamar PFL (Partido da Frente Liberal) e fez parte dos governos José Sarney, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. Como estava se desmilinguindo, foi rebatizado de DEM.
Muito devido à atuação de Maia e de outros poucos nomes, o DEM parecia descolar-se da direita extrema para uma posição futura de centro-direita. A essa altura, graças a ACM Neto, tudo indica que o futuro pode ter sido abortado. Com genética não se brinca.
Lula nada aprendeu de novo e nada esqueceu
Cheiro no ar de 2018
Saibam desde já os interessados em buscar entendimento com o PT sobre a eleição presidencial do ano que vem que o partido terá candidato próprio no primeiro turno. E que só em caso de derrota, uma vez aceitas suas condições, apoiará o nome que no segundo turno enfrente Jair Bolsonaro. Estamos conversados.
Foi assim que soou, aqui fora, a decisão de Lula de reunir-se no último sábado com o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, e de orientá-lo a pôr na rua o “bloco” de sua candidatura. Uma vez autorizado pelo xamã do PT, ao qual todos do partido reverenciam, é o que fará Haddad em breve. Missão dada, missão cumprida.
Certamente pesou na decisão de Lula, que não consultou as instâncias do partido para tomá-la, informações dos seus advogados sobre a tendência do Supremo Tribunal Federal de anular sua condenação no processo do triplex do Guarujá, mas ignorar por ora sua condenação no processo do sítio de Atibaia.
O alvo do Supremo é o ex-juiz Sérgio Moro, que usou o triplex para condenar Lula, retirando-o da disputa pela presidência da República em 2018 e impulsionando a eleição de Bolsonaro. Há farto material que fortalece a convicção dos ministros de que Moro foi parcial. Mas da segunda condenação, Moro pouco participou.
Os demais partidos de esquerda e da centro-esquerda imaginaram que Lula teria aprendido alguma coisa com o fato de o PT ter concorrido praticamente sozinho na eleição vencida por Bolsonaro. O partido só admitia aliança no primeiro turno em torno de Haddad, que mal teve tempo para fazer campanha.
Preso em Curitiba, Lula acreditou até a última hora que o candidato poderia ser ele, e que se fosse, como apontavam todas as pesquisas de intenção de voto, a vitória seria certa. Desde então nada parece ter aprendido com o que aconteceu, e nada esqueceu do tempo em que dava as cartas e acumulava fichas.
Vozes lúcidas da oposição defendem que a escolha de um nome capaz de derrotar Bolsonaro fique para depois. Para depois que todos com igual propósito discutam um projeto de novo país a ser oferecido aos eleitores e tentem aparar suas diferenças. Quando nada, isso facilitaria a união no segundo turno.
Pelo jeito, não será assim. Ou no que depender do PT e do xamã que se recusa a sair de cena, não será.
Ricardo Noblat: Vidas importam pouco para o governo de Jair Bolsonaro
Mais armas, menos radares, remédios que não curam
Há mais mortes em países onde armas de fogo estão ao alcance da maioria dos cidadãos. Pois o presidente Jair Bolsonaro quer facilitar ainda mais o acesso dos brasileiros a armas. Por aqui, cerca de um milhão de pessoas dispõem de armas legalizadas.
Não há comprovação científica de que a cloroquina e outras drogas curem as vítimas do coronavírus. Pois Bolsonaro insiste em defender “o tratamento precoce” que em nenhuma parte do mundo foi adotado por ser claramente ineficaz.
Só vacinas funcionam contra o vírus. Mas em sua live semanal no Facebook, Bolsonaro voltou a duvidar da eficiência delas, riu quando o diretor-geral da Agência Nacional de Vigilância Sanitária disse que se vacinará, e negou que fará o mesmo.
Por temer que os vídeos onde ele recomenda o uso da cloroquina sejam apagados, e outras provas destruídas, o Ministério Público Federal providenciou o download deles. Bolsonaro e o ministro Eduardo Pazuello, da Saúde, estão sendo investigados por isso.
Levantamento feito em 2019 pelo jornal Folha de S. Paulo mostrou que a média de mortes nas estradas brasileiras caiu aproximadamente 22% nos trechos em que há radares de velocidade após a instalação dos equipamentos.
Naquele ano, o primeiro de Bolsonaro na presidência da República, ele tentou acabar com os radares, mas esbarrou na Justiça. Ontem, prometeu:
“Era uma festa no Brasil. Tínhamos mais de 8 mil pontos [de radares], conseguimos passar para 2 mil. Eu quero zerar isso daí, porque não deu certo”.
É ou não é o governo da morte?
Ricardo Noblat: A lista do faz de conta que o governo quer aprovar
Nenhuma menção a programas sociais
Era previsível. Um governo que se instalou sem dispor de um projeto para o país e que assim continua dois anos depois, não tem prioridades, e, por isso, nada pode propor ao Congresso que surpreenda. Foi o que mais uma vez ficou demonstrado.
Jair Bolsonaro entregou aos novos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados o que espera deles, eleitos com seu aval – uma lista com 35 medidas a serem votadas em breve ou quando der. São medidas demais para o conturbado tempo que lhe resta.
2020 foi o ano da pandemia, onde o vírus atrapalhou o funcionamento normal do Congresso. 2021 será o ano da vacinação que, na melhor das hipóteses, entrará pelo próximo ano. 2020 é o ano que não acabou, e 2021 o que acabou cancelado.
Os políticos já estão em 2022 quando terão de renovar seus mandatos ou disputar outros. Nada farão que possa lhes custar votos. Reforma tributária? É complicado demais. Administrativa? Bolsonaro não parece disposto a cortar privilégios.
Privatização de empresas estatais? A Eletrobras poderá ir à leilão como falsa prova de que esse é um governo liberal. Mas não se conte nessa área com um processo robusto de vendas de empresas. Bolsonaro compartilha o nacionalismo equivocado dos militares.
O que de fato interessa a ele é que o Congresso chancele o que mantenha coesa sua base tradicional de sustentação. Assim – quem sabe? – ela engula sem reclamar tanto sua aliança recente com o Centrão, algo que ele disse que jamais faria.
Em um país com cerca de 1 milhão de cidadãos armados, Bolsonaro quer mais facilidades para armar o maior número possível. Milícias e organizações criminosas agradecem. Quer o endurecimento de penas para crimes considerados hediondos.
Quer também o ensino em casa para crianças e adolescentes, longe da influência de professores esquerdistas e sob a desculpa de que só os pais sabem o que deve ser ensinado aos seus filhos. E quer ainda que a mineração em terras indígenas seja liberada.
Ficou de fora do pacote de medidas qualquer menção ao restabelecimento do auxílio emergencial pago aos brasileiros mais pobres atingidos pela pandemia, e o eventual reforço do programa Bolsa Família que, se depender de Bolsonaro, mudará de nome.
Nada causou espanto na cena montada para que Bolsonaro prestigiasse a reabertura dos trabalhos do Congresso – nem as vaias, nem os gritos de “mito”, nem as imprecações de “fascista” e “genocida”. Sequer mais uma mentira pregada por ele.
Bolsonaro disse que concedeu até aqui mais títulos de terra do que os distribuídos nos últimos 14 anos. Foi para fustigar o PT que governou o país por quase 13 anos. Em 2019, ele concedeu apenas seis títulos. A média anterior foi de três mil títulos por ano.
Ricardo Noblat: Se gritar pegar Centrão, não fica um meu irmão!
Aliança para sempre enquanto dure
Jair Bolsonaro já pagou parte da dívida que tinha com o Centrão ao liberar mais de 3 bilhões de reais para obras em Estados e municípios indicados por deputados e senadores que elegeram Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para presidir a Câmara e o Senado pelos próximos dois anos.
Se depender de auxiliares de Bolsonaro, porém, a outra parte da dívida – a da entrega de ministérios e outros cargos importantes da administração pública – será resgatada em suaves prestações. É para poder avaliar melhor o quanto o Centrão de fato lhe será fiel. Portanto, nada de reforma ministerial ampla.
O recomendável é que ela aconteça a conta gotas, na medida em que o governo consiga aprovar no Congresso projetos do seu interesse. Eles são muitos, e esse é um dos problemas que Bolsonaro enfrenta porque ele nunca sabe quais deveriam ser prioritários, e emperra na hora de bancá-los e de ir à luta.
Todo cuidado com o Centrão, pois, é pouco. Para o Centrão, a recíproca também é verdadeira: todo cuidado com Bolsonaro é pouco. Um não confia no outro e tem motivos de sobra para não confiar. Como candidato, Bolsonaro desancou o Centrão e disse que jamais governaria na base do toma-lá-dá-cá.
Quando começou a dar foi disfarçadamente para não chocar nem ser malhado por seus seguidores que haviam acreditado em sua palavra. E, queixa-se o Centrão, embora ultimamente tenha sido mais generoso na distribuição de cargos, posições e dinheiro, ele ainda está muito longe de entregar tudo que já foi empenhado.
Quem aderiu a quem – o Centrão a Bolsonaro ou o contrário? A discussão não faz sentido. O Centrão está onde sempre esteve – na antessala de qualquer governo que careça de sua prestimosa ajuda. Tem sido assim desde que ele nasceu durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1988. E assim será para todo o sempre.
Bolsonaro é filhote do Centrão. Enquanto deputado federal, passou por sete partidos do Centrão e aprendeu com eles o que pôde. Ficou sem partido quando abandonou o PSL pelo qual se elegeu – queria controlá-lo junto com os seus filhos e acabou perdendo a parada. Quis criar um novo partido para chamar de seu – perdeu.
Uma vez que perdeu a parada de intimidar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal para tocar o país como um governante autoritário, restou-lhe dar meia volta e pedir socorro ao Centrão. Socorro para salvá-lo de um pedido de impeachment, salvar os filhos enrascados com a Justiça e salvar o sonho da reeleição.
Não foram Lira e Pacheco que pegaram carona com Bolsonaro para se eleger. Foi Bolsonaro que pegou carona com eles para sobreviver. Bolsonaro elogiou Baleia Rossi (MDB-SP), adversário de Lira, que sempre votou alinhado com o governo, mas afirmou que não o apoiaria porque ele era apoiado pela esquerda.
Ora, ora, ora… A esquerda apoiou Pacheco para presidente do Senado e Bolsonaro não deu um pio. Lira apoiou Lula, apoiou Dilma, apoiou Temer e agora diz que apoiará Bolsonaro. Amor que será eterno enquanto dure e for conveniente.
A Câmara faz por merecer Arthur Lira e Bia Kicis
Uma coisa puxa a outra
Alto lá! Por que a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) não pode presidir a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara? Só por que ela é bolsonarista de raiz?
Só por que ela é investigada pelo Supremo Tribunal Federal no inquérito que apura a distribuição de fake news e o financiamento de movimentos hostis à democracia?
Só por que ela já postou vídeos nas redes sociais ensinando a não usar máscaras contra a Covid-19? Só por que em dezembro último ela incitou os amazonenses a romperem o isolamento social?
A Comissão é a mais importante da Câmara. Cabe a ela analisar a legalidade e a constitucionalidade de todos os projetos que ali chegarem – entre eles, pedidos de impeachment.
É verdade que a presidência da Comissão sempre foi reservada para políticos de renome, de passado ilibado e com grande conhecimento jurídico. Ou então para ex-presidentes da Câmara.
Kicis não atende a tais pré-requisitos. Mas, e daí? A Câmara também não é mais o que foi até o final dos anos 90. Há seis anos, seu presidente, Eduardo Cunha (MDB-RJ), foi cassado e preso.
De resto, se o deputado Arthur Lira (PP-AL) pode presidir a Câmara, por que Kicis não pode presidir a Comissão? O passado de Lira depõe mais contra ele do que o de Kicis contra ela.
Só no Supremo Tribunal Federal, Lira responde a cinco inquéritos. Três sobre a eventual prática de corrupção ativa e passiva – incluindo aquele onde se tornou réu.
O quarto inquérito investiga crime de formação de quadrilha. No quinto, ele foi denunciado por crime de lavagem de dinheiro.
Há ainda uma investigação no Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5). A acusação, neste caso, é de crime contra a administração pública.
Lira é investigado no Tribunal de Justiça de Alagoas por crimes contra a honra. E tem contra si, ainda, uma acusação de agressão contra sua ex-mulher.
Presidente da Câmara é o segundo na linha de sucessão do presidente da República. Na ausência de Bolsonaro e do vice-presidente Hamilton Mourão, Lira os substituiria.
Deverá ser impedido de fazê-lo porque é réu em ação penal no Supremo. Quem substituirá Bolsonaro e Mourão é o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).
Se a Câmara entende que está em boas mãos com Lira, por que não estará também com Kicis na presidência da Comissão? Os dois se merecem – e a Câmara merece os dois.
Ricardo Noblat: Congresso escolhe caminhar em direção oposta a do país
Bolsonaro ganhou – e o Centrão mais do que ele
Jair Bolsonaro pagou uma fortuna ao Centrão para derrotar o que lhe pareceu ser o germe de uma aliança de parte da esquerda e da direita para minar suas chances de se reeleger em 2022.
A partir de agora, pagará outra para que o Centrão apoie no Senado e na Câmara dos Deputados os projetos do seu governo que não conseguiram avançar quase nada por culpa dele mesmo.
Uma vez de novo candidato a presidente, pagará uma terceira fortuna no mercado futuro para evitar que o Centrão se bandeie para o lado de seus possíveis adversários.
Deu Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para presidente do Senado, como previsto. Deu Arthur Lira (PP-AL) para presidente da Câmara depois que o DEM largou de mão Baleia Rossi (MDB-SP).
Foi o enterro da Nova Política prometida por Bolsonaro há dois anos, e a ressurreição com todo o seu esplendor da Velha onde, por sinal, Bolsonaro se criou durante quase 30 anos.
Eleito, Pacheco falou em Senado independente, em auxílio emergencial para os brasileiros mais pobres atingidos pela pandemia, mas não só, e em reformas na economia.
Lira falou em Câmara “independente, mas harmônica”. Quer dizer: uma Câmara que, de preferência, aprove todas as pautas de interesse de Bolsonaro e que evite contrariá-lo.
Lira e o Centrão não podem garantir que será assim. Primeiro porque não detém votos suficientes para fazer todas as vontades de Bolsonaro. Segundo porque o Centrão não é uma coisa só.
Pesou na eleição de Lira o dinheiro gasto pelo governo na compra de votos, mas pesou também a diferença dos perfis de Lira e de Rossi, e o modo como Rodrigo Maia (DEM-RJ) escolheu Rossi.
Lira é um rato de plenário. Rato no sentido de que vive ali circulando por toda parte, participando de todas as rodas de conversa, cumprimentando todo mundo. É muito habilidoso.
Nunca distinguiu entre colegas notáveis e colegas do baixo clero. Rossi, como líder do MDB, fazia o oposto. Vivia no seu gabinete. Aparecia nas reuniões de líderes. Nunca foi popular.
O patrocinador de Lira foi Bolsonaro, que quando quer ser simpático no trato com ex-colegas, sabe ser. O patrocinador de Rossi foi Maia, um centralizador sisudo e às vezes de maus bofes.
A pretensão de Bolsonaro é fazer do Congresso um anexo do Palácio do Planalto, onde ele despacha no terceiro andar. Não é certo que consiga mesmo que continue pagando caro por isso.
Senadores e deputados só pensam na reeleição ou na eleição para outros cargos. O mais bobo deles conserta relógio suíço usando luvas de boxe, como disse um dia o deputado Ulysses Guimarães.
Presidente da República pode pedir a um parlamentar o que quiser, só não pode pedir ou esperar que ele politicamente se suicide. Não haverá um único capaz de atendê-lo.
Com Pacheco e Lira, o Congresso escolheu caminhar na direção oposta à que o país dá sinais de que caminha ao distanciar-se de Bolsonaro. Mais adiante os dois poderão se reencontrar – ou não.
Para onde irá Rodrigo Maia? E o DEM de ACM Neto?
Na direção dos ventos
Nada de convidar para a mesma mesa, pelo menos nem tão cedo, o deputado Rodrigo Maia (RJ), que ontem se despediu com lágrimas da presidência da Câmara, e ACM Neto, ex-prefeito de Salvador e presidente nacional do DEM, o partido de Maia.
Os dois pareciam se entender apesar das diferenças de estilo – Maia estourado e centralizador, ACM Neto calmo e disposto a fazer a vontade da maioria do seu partido. O rompimento se deu quando Maia escolheu Baleia Rossi (MDB-SP) para sucedê-lo.
Candidato ao governo da Bahia em 2022, ACM deu ouvidos aos deputados baianos que preferiam apoiar Arthur Lira (PP-AL), candidato de Bolsonaro, deixando Maia pendurado no pincel. Maia anunciou que sairá do DEM, para onde ainda não sabe.
O destino de Maia só importa a ele e aos seus eleitores. O do DEM importa aos demais partidos que esperavam contar com a companhia dele para a formação de uma frente capaz de impedir a eventual reeleição do presidente Jair Bolsonaro.
O DEM com Rodrigo negociava com o CIDADANIA e outras legendas o possível apoio à candidatura do apresentador de televisão Luciano Huck. Mas não descartava apoiar a candidatura do governador de São Paulo, João Doria (PSDB).
Sem Rodrigo, ou com um Rodrigo murcho, o DEM poderá tomar outro rumo. O partido tem dois ministérios no governo Bolsonaro – o da Agricultura e o da Cidadania. Tinha três quando o médico Luiz Henrique Mandetta era ministro da Saúde.
Poderá abiscoitar o Ministério da Educação ou outro qualquer, desde que queira aproximar-se ainda mais de Bolsonaro. O avô de ACM Neto apoiou todos os governos da ditadura militar de 64, e quando viu que ela estava no fim, aderiu à oposição.
Neto aprendeu com ele a se antecipar à mudança de direção dos ventos. Seus próximos passos poderão indicar para que lado eles irão soprar.
Ricardo Noblat: Bolsonaro e o escafandrista do Leblon
A normalização que acolhe e a que implica em graves riscos
Conta a lenda que um escafandrista, nos anos 70, vestido com seu pesado equipamento de mergulho, entrou no Antonio’s, bar mítico do Leblon, na esquina das ruas Bartolomeu Mitre e Ataulfo de Paiva, sentou a uma mesa, tirou o capacete e pediu uma cerveja.
Depois de certo tempo, irritado com a indiferença dos frequentadores do lugar, o jornalista João Saldanha subiu numa cadeira, bateu palmas para chamar atenção e disse em voz alta para ser escutado por todo mundo:
– Pessoal, tem um homem aqui, um escafandrista, com capacete e tudo, tomando cerveja, e isso não é normal, não pode ser normal.
Ninguém deu bola para a fala irritada de Saldanha. Nem mesmo o pacato escafandrista que, depois de tomar três cervejas e servir-se de poucas iguarias, pediu a conta, pagou, repôs o capacete de metal que escondia todo o seu rosto e foi embora se arrastando.
Ah, os cariocas e seu ar blasé! Em janeiro de 1964, o Rio foi sacudido com a notícia de que Brigitte Bardot, uma das atrizes mais famosas do cinema, chegara sem aviso à cidade. Depois do assédio inicial, ela refugiou-se em Búzios com o namorado.
Ficou por lá sem ser incomodada durante quase um ano. Vez por outra surgia o boato: Brigitte voltou ao Rio. Os mais cariocas entre os cariocas já não se abalavam. Alguns se limitavam a comentar com desdém: “Quem, aquela chata? De novo?”
Ninguém parece mais estranhar quando o presidente Jair Bolsonaro diz palavrões em público. Nem mesmo quando os palavrões são usados como ariete para atingir a honra de pessoas ou de um conjunto delas. A ele tudo é permitido.
Os presidentes Lula e Dilma diziam palavrões, mas jamais em público. O país ficou chocado com a quantidade de palavrões que Bolsonaro disparou em abril último durante reunião ministerial que provocou a saída do governo do ex-juiz Sérgio Moro.
Depois disso, não mais. Assim, ele sentiu-se autorizado para na semana passada, em reação ao noticiário sobre gastos do governo com leite condensado, mandar os jornalistas “à puta que os pariu”. Na quarta-feira, numa churrascaria de Brasília, ele esbravejou:
“Vai para puta que o pariu. Imprensa de merda essa daí. É para enfiar no rabo de vocês aí, vocês não, vocês da imprensa essa lata de leite condensado”.
No dia seguinte, em Propriá, cidade na divisa de Sergipe com Alagoas, Bolsonaro voltou ao tema, sendo apenas mais sucinto:
“É para enfiar no rabo de jornalista”.
Por pudor, por estar acostumada a ser agredida ou sabe-se lá por que, de uma maneira geral a imprensa preferiu não dar destaque a mais um despautério do presidente da República. Praticamente ignorou-o. As redes sociais se encarregaram da tarefa.
Nem o ex-presidente Donald Trump, o precursor universal dos ataques desmedidos à imprensa, ousou valer-se de linguagem tão agressiva e desrespeitosa com profissionais que eram obrigados a cobrir suas atividades como chefe de Estado.
Só quem ganha com a normalização do comportamento estúpido de Bolsonaro é ele. A malta que o tem como ídolo, também ganha e faz questão de imitá-lo. Cresce no país o número de casos de jornalistas hostilizados no desempenho de suas funções.
Atenção, Justiça! O que falta para que se dê um basta definitivo a isso? Que um jornalista seja morto?
Cristovam Buarque: Unidade e Transição
Para eleger um presidente que nos conduza ao futuro é preciso primeiro impedir um presidente que só vê o passado
Na véspera de iniciar nosso terceiro centenário, precisamos mais que nunca de um presidente capaz de inspirar coesão no presente e rumo para o futuro. Estamos divididos em grupos que não se reconhecem como partes de um mesmo povo, seja pela desigualdade na renda ou pelo sectarismo nas ideias. Estamos ficando para trás na história, sem sintonia com o mundo, por falta de base científica e tecnológica, de capacidade de produzir e poupar, falta de infraestrutura econômica, de solidariedade social e nacional, sobretudo de educação de qualidade para todos. Mas, apesar destes desafios para o terceiro milênio, nossa tarefa imediata é impedir a continuação do atual quadro de divisão sectária, negação da realidade, incompetência gerencial e falta de visão de futuro.
Em 1985, consciente da responsabilidade de impedir a continuação do regime militar, os democratas se uniram, desde os mais progressistas aos mais conservadores, com exceção do PT, que preferiu não votar em Tancredo Neves. A união permitiu cinco anos de democracia, com sucessivas eleições para escolher rumos conforme a proposta de cada candidato. Por nossos erros, nossas divisões, por prioridades e comportamentos equivocados, deixamos que forças autoritárias e retrógradas voltassem ao poder com o voto dos eleitores. Corremos o risco desta interrupção de nossa marcha ao futuro continuar, reeleita pelo eleitor.
Para eleger um presidente que nos conduza ao futuro é preciso primeiro impedir um presidente que só vê o passado e destrói o presente construído nos últimos 35 anos de democracia. Nossa tarefa imediata é impedir a continuação do retrocesso. Elegermos um presidente que permita retomar o debate democrático com bom senso, respeito à verdade e ao contraditório, e então ganharmos impulso para os anos adiante.
Entre 1985 e 1919 fomos capazes de construir uma democracia sob Constituição duradoura; estamos no mais longo período de estabilidade monetária, com uma única moeda; implantamos programas de solidariedade com transferência de renda para os pobres; colocamos quase todas nossas crianças em escolas; mais que dobramos o número de estudantes universitários; conseguimos presença internacional respeitada; demos substanciais avanços nos direitos humanos; mas estamos ameaçados de perder tudo isto.
Temos a obrigação de voltarmos a nos unir em 2022, para elegermos um presidente comprometido em recuperar as conquistas dos últimos 35 anos. Para enfrentar o presidente atual, precisamos apresentar um candidato único, desde o primeiro turno, com baixa rejeição entre os eleitores. Os atuais candidatos precisam deixar seus projetos, metas e interesses nacionais e pessoais para a eleição seguinte; se unirem agora em torno àquele que assuma o compromisso de manter os acertos da democracia e que tenha as melhores condições para atrair os eleitores, graças à menor rejeição ao seu nome, e assuma o compromisso de apenas um mandato. Os demais candidatos adiam suas disputas para 2026 ou assumem o risco de verem 2022 repetir 2018. Os candidatos naturais em 1985, grandes líderes, entenderam o que a história precisava e adiaram suas candidaturas para 1989, dentro do marco democrático. Fizeram unidade e garantiram transição.
*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador
Alon Feuerwerker: Teste de resiliência
Adversários vão trabalhar com afinco o desgaste de Bolsonaro
Este ano de 2021 vai merecer um rótulo já bem usado: “decisivo”. Atravessar politicamente vivo é condição sine qua non para Jair Bolsonaro chegar a 2022 competitivo. E vai ser um ano daqueles. Mesmo que a vacinação se prove um sucesso, seus efeitos macro só devem ser sentidos em (muitos) meses. Um período suficientemente longo para os adversários trabalharem com afinco o desgaste presidencial.
Três ameaças rondam o Palácio do Planalto. Um agravamento da Covid-19, um repique da recessão e uma instabilidade institucional — essa última podendo vir do Legislativo ou do Judiciário. Para atravessar o ano, o presidente e seu governo precisarão mostrar capacidade operacional e política num cenário de turbulências, em que deixar o avião no piloto automático não será opção.
Sobre o agravamento dos índices da pandemia aqui no Brasil, mesmo países com vacinações muito mais agressivas enfrentam pioras de curto prazo nos índices da Covid-19. E há as novas variações do Sars-CoV-2. E junto vem a dúvida sobre se as vacinas produzidas a partir do vírus “velho” servem para combater os novos. Ou quanto tempo levará para adaptar os imunizantes, se isso for necessário para que sejam eficazes contra as novas variantes.
A segunda onda da Covid-19 terá necessariamente impacto na economia. Pois a reação natural das autoridades locais vai ser apertar o torniquete do isolamento e do distanciamento sociais. Haverá reação popular, então se pode prever movimentos de sístole e diástole, por um período em que a única certeza será a incerteza sobre que medida governadores e prefeitos vão tomar no dia seguinte ao anúncio de novos números.
E tem o fim do auxílio emergencial e demais medidas protetoras da economia popular na pandemia. Aqui, é previsível o Congresso Nacional recriar algo parecido. Mas os parlamentares tentarão impedir que Jair Bolsonaro, ao contrário da vez anterior, fature politicamente sozinho as benesses para o povão. A dúvida? Qual será a reação do mercado financeiro a um eventual furo no teto de gastos?
E a chacoalhada institucional? Ela estará contratada se os candidatos apoiados pelo presidente não vencerem as disputas pelo comando das duas Casas do Congresso Nacional. Principalmente a da Câmara dos Deputados. Saberemos em dias o que vai acontecer. Mesmo vitórias oficialistas não devem impedir que a oposição, agora anabolizada pela aliança entre a esquerda e a direita não bolsonarista de olho em 2022, coloque minas prontas a explodir no campo presidencial.
Se Jair Bolsonaro sair vitorioso das votações do dia 1º de fevereiro, poderá contar com a pressão do empresariado para o Legislativo voltar a dar foco à agenda liberal, em vez de paralisar-se numa guerra política sem solução de curto prazo. Já os políticos, mais ainda os que disputam com o presidente o apoio do establishment, têm planos próprios e não vão dar trégua.
Também por saberem que Bolsonaro mostrou em ocasiões anteriores possuir resiliência, ou seja, a capacidade de voltar à forma e ao tamanho originais depois de uma crise.
E talvez ele nunca tenha precisado tanto disso quanto vai precisar agora.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723
Murillo de Aragão: O jogo do impeachment
Tema renasce em razão dos pedidos contra Bolsonaro
Desde 1992, como analista político, convivo com a questão do impeachment. Naquele ano, quando Fernando Collor entrou na mira do Congresso, nosso call foi o de que o impeachment seria inevitável. No caso do mensalão, escândalo envolvendo a compra de apoio no Congresso pelo governo que veio a público em 2005, tivemos uma abordagem mais cautelosa. O impeachment de Lula, então presidente da República, não era óbvio, apesar da gravidade das acusações.
No final do primeiro mandato do governo Dilma Rousseff, por causa da Operação Lava-Jato e da mastodôntica incompetência política da presidente, o impeachment reapareceu como possível no radar político. Deu no que deu. Já no governo de Michel Temer, quando ocorreu o episódio JJ (Joesley Batista e Rodrigo Janot), muitos apostaram que o impeachment seria aprovado. Nosso call foi o de que isso não aconteceria. E não aconteceu.
Para avaliar a questão, devemos examinar três aspectos críticos: a popularidade do presidente, sua base política e o motivo do pedido. Obviamente, um presidente popular é menos vulnerável ao impeachment, independentemente da gravidade do motivo. Temer, porém, embora não fosse popular, sobreviveu aos pedidos de abertura do processo contra ele por causa de um aspecto fundamental: ele tinha uma base política no Congresso.
O terceiro elemento da equação é o motivo. Por incrível que pareça, esse é o menos importante. Salvo um motivo extravagante e inquestionável, um presidente da República não sofre impeachment apenas por ter cometido uma falta ou um crime. Em se tratando de julgamento político — e não jurídico —, a conjuntura e as circunstâncias, assim como o seu apoio político, são o que mais pesam no início e ao longo da tramitação.
Nos casos de Collor e Dilma, houve uma conjunção de fatores determinantes: baixa popularidade; fragilidade política no Legislativo; e existência de motivo. Collor e Dilma eram impopulares nas ruas, na imprensa e no Parlamento. Já Lula era popular nas ruas e entre deputados e senadores. Temer era impopular na imprensa e na opinião pública, mas forte o suficiente no Congresso para impedir o avanço do processo.
No alvorecer de 2021, o tema volta ao debate pela existência de dezenas de pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro no Congresso. No entanto, a questão não é simples. Muitos desses pedidos visam apenas ao desgaste político pensando no futuro. Outros são feitos na base do “vai que cola”.
A possibilidade de impeachment de Jair Bolsonaro, no momento, não parece viável, já que o apoio político a ele e a sua popularidade lhe servem de proteção. As circunstâncias teriam de piorar muito para que tanto a sua base política quanto a sua popularidade se tornassem tóxicas à sua permanência no Palácio do Planalto.
Deixando a fria análise de lado, acredito que, para o país, mais um processo de impeachment seria extremamente desgastante. Por outro lado, as crises políticas devem ser resolvidas. E de preferência com negociação, entendimento e sempre dentro das regras constitucionais.
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723
Ricardo Noblat: Os fatos teimam em contrariar as falas do presidente
Diário do dia de ontem
O dia em que o presidente Jair Bolsonaro disse que “está fazendo a coisa certa e que não é fácil fazer a coisa certa “foi também o dia em que ele, em live no Facebook, reforçou o desejo de que as torcidas voltem a frequentar os estádios. Em suas palavras:
Temos que voltar a viver, pessoal. Sorrir, fazer piada, brincar. Voltar (o público) nos estádios de futebol o mais cedo possível, que seja com uma quantidade menor, 20%, 30% da capacidade do estádio.
Foi também o dia em que Bolsonaro aconselhou a um grupo de devotos admitido nos jardins do Palácio da Alvorada:
Se eu fosse um dos muitos de vocês, obrigados a ficar em casa, ver a esposa com três, quatro filhos, e eu não ter, como chefe do lar, como levar comida para a casa, eu me envergonharia. Sempre disse que a economia anda de mãos dadas com a vida.
E foi também o dia que em visita a Propriá, na divisa entre Sergipe e Alagoas, ele discursou para uma pequena multidão:
A Europa e alguns países aqui da América do Sul não têm vacina. Sabemos que a procura é grande. Nós assinamos convênios, fizemos contratos desde setembro do ano passado com vários laboratórios. As vacinas começaram a chegar. E vão chegar, para vacinar toda a população em um curto espaço de tempo.
Nesse dia, o Brasil registrou o terceiro maior número de novas mortes por covid-19 em um intervalo de 24 horas. Foram 1.439 óbitos e 60.301 novos casos da doença. No total são 221.676 óbitos até agora e 9.060.786 pessoas contaminadas.
E o Instituto Butantã revelou que tem 54 milhões da vacina Coronavac em estoque, mas que o governo federal não quer dizer se irá comprá-las ou não. Há Estados e países interessados em comprar, mas o silêncio do Ministério da Saúde é um empecilho.
E o Lowy Institute, centro de estudos baseado em Sydney, na Austrália, apontou em relatório que o Brasil foi o país que teve a pior gestão pública durante a pandemia. Ficou na última posição entre 98 governos avaliados.
Ainda nesse dia, recém-nomeado assessor especial do Ministério da Saúde, o general Ridauto Fernandes afirmou que Manaus tem quase 600 pacientes de Covid-19 na fila de atendimento e que, caso evoluam para quadros graves, “vão morrer na rua”.
Em reunião da comissão externa do coronavírus na Câmara dos Deputados, Fernandes enfatizou que o gargalo está na falta de oxigênio. “Abre o leito, bota o paciente e ele vai morrer asfixiado no leito. E aí, vai adiantar abrir o leito?”.
O alerta do general foi ampliado por Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, em entrevista à TV Cultura. Ao comentar a disseminação da nova variante do coronavírus detectada em Manaus, Mandetta previu:
Provavelmente, a gente vai plantar essa cepa em todos os territórios da federação e daqui a 60 dias a gente pode ter uma mega epidemia.
Pergunta que não cala: a quem os militares devem obediência?
Pandemia é uma guerra
O presidente da República manda a imprensa enfiar latas de leite condensado (você sabe onde) e desce ao nível mais baixo da cadeia alimentar dos seres vivos. Para manter o mesmo diapasão: alguém aqui imaginou ver general e coronéis interventores do Ministério da Saúde fazendo c* doce para comprar mais vacinas do Butantan?
Logo as únicas que o país produz até agora no decorrer de uma pandemia que não para de piorar. Não passa pelo terreno baldio que eles carregam em cima do pescoço que, se demorar a comprar, a China e a Sinovac não terão mais insumos para fornecer este ano? E que a produção é limitada e todo o mundo corre atrás?
Existe corte marcial no Brasil, como em todos os países do mundo que têm forças armadas, para julgar crimes de guerra e contra a humanidade? Combater a pandemia é um tipo de guerra. Angela Merkel, chanceler da Alemanha, disse que a pandemia é o pior evento enfrentado pela humanidade desde a Segunda Guerra.
O povo brasileiro ainda faz parte da humanidade? Os generais e coronéis do Ministério da Saúde não enfrentarão nenhum julgamento? Ou vamos, de novo, anistiar geral e criar outra Comissão Nacional da Verdade para expor seus crimes daqui a cinquenta anos em cima de uma montanha de cadáveres?
O pretexto da luta contra o comunismo absolveu no passado torturas e mortes. E agora? Alegar “obediência devida” a um superior hierárquico no limite da insanidade absolverá outra vez? O Exército acredita mesmo que está desvinculado do ministério militarizado da Saúde e comandado por um general da ativa?
Se o Brasil estivesse em um conflito bélico, e as vidas dos soldados corressem grave risco, os generais refugariam mais munição e armamento? Pediriam quatro meses para pensar a respeito? Os soldados ainda teriam uma vantagem sobre nós: poderiam desertar e sumir no mundo. Nós não temos para onde fugir.
As Forças Armadas brasileiras juram obediência à Constituição e lealdade ao povo ou a um indivíduo que, por palavras, exemplos e ações induz à morte os que o elegeram e também os que votaram contra ele?