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Ricardo Noblat: Bolsonaro e os apagadores de incêndios

Chamem o Mourão!

Repetiu-se ontem o que já se tornou corriqueiro nos últimos dois meses: o presidente Bolsonaro ateia mais um fogo e autoridades do governo e líderes de partidos aliados se apressam imediatamente em tentar apagá-lo. Muitas vezes funciona. Das vezes que não, ficam restos em brasa do estrago provocado. É um perigo.

Em seu primeiro café da manhã no Palácio do Planalto com jornalistas selecionados por ele mesmo, Bolsonaro precipitou-se em identificar vários pontos da proposta de reforma da Previdência que poderiam ser modificados – entre eles, o teto de 62 anos para aposentadoria das mulheres. Admitiu baixá-lo para 60 anos.

Foi um alvoroço dentro da equipe econômica comandada por Paulo “Posto Ipiranga” Guedes, e entre os militares que cercam de perto Bolsonaro. Se logo de saída, sem que tenha começado a negociação com o Congresso para aprovação da reforma, o presidente começa a fazer concessões, como será mais tarde? O que sobrará dela?

O chefe da brigada dos apagadores de incêndio correu a apagar o fogo que ameaçava se alastrar. Acostumado à tarefa, o vice-presidente Hamilton Mourão disse que Bolsonaro foi mal interpretado. E ofereceu a interpretação que julga correta:

– O presidente mostrou que tem coisas que o Congresso poderá negociar ou mudar. Só isso. Não que ele concorde.

O que disse Mourão havia sido antecipado pelo líder do governo na Câmara, major Vitor Hugo (PSL-GO), outro brigadista. Segundo o major, Bolsonaro limitou-se a demonstrar a disposição do governo de negociar” a reforma. Calado estava, e calado permaneceu o ministro de tudo o que tem a ver com a economia, inclusive os penduricalhos.

No mesmo café da manhã com jornalistas, sentindo-se em ambiente seguro e amigável, Bolsonaro afirmou que não descarta a hipótese de conversar com o ditador Nicolás Maduro sobre a crise na Venezuela, assim como o presidente Donald Trump tem conversado com Kim Jong-um, o ditador da Coreia do Norte. É diferente, mas que fazer?

Mourão foi novamente chamado ao palco. Informou que o Brasil não procurou representantes do regime de Maduro para estabelecer qualquer tipo de diálogo com o governo da Venezuela. E que o comentário feito por Bolsonaro decorreu de uma “pergunta hipotética”. O comentário pode ter sido hipotético, a pergunta não foi.

E assim o país viverá os próximos quatro anos – ou exatos três anos, 9 meses e 28 dias. Um governo biruta, que oscila ao sabor dos ventos, sujeito a incidentes de percurso e a intervenções nem sempre felizes de um chefe de família com seus garotos, precisa de bombeiros eficientes e dispostos a socorrê-lo. Ainda bem que eles existem.


Ricardo Noblat: Vexame na fronteira

Segue o baile

Em nota divulgada, ontem, no início da noite, a Presidência da República classificou como “exitosa” a “participação do governo brasileiro” em “reunir e transportar as doações” de alimentos “até o destino de distribuição” aos venezuelanos famintos em luta contra o governo do ditador Nicolás Maduro.

Sem mais detalhes, a nota informa que se inicia “uma segunda fase da operação com os últimos preparativos de logística para a entrega dos produtos que se encontram armazenados na capital do Estado, Boa Vista.” Como comunicado oficial, a nota é primorosa na ocultação dos fatos e na manipulação do que o mundo todo viu.

Pela televisão, viu-se a chegada à fronteira entre os dois países de dois caminhões pequenos com uma fração de duzentas toneladas de alimentos. O pneu de um dos caminhões furou. Uma vez lá, e diante da decisão do governo Maduro de impedir sua entrada no país, os caminhões recuaram para um local seguro.

Foi só isso o que aconteceu e que o governo celebrou como “êxito”. Repórteres de O Estado de S. Paulo, que estavam lá escreveram que os caminhões “ficaram apenas na linha de fronteira: uma rua com uma bandeira do Brasil e outra da Venezuela”. A linha fica a 800 metros das barreiras militares venezuelanas.

O chefe da operação de ajuda, coronel José Jacaúna, queixou-se dos efeitos sobre o território brasileiro do que se passou a pouca distância dele no lado venezuelano: “Recebemos uma chuva de gás lacrimogêneo vindo do território venezuelano e esperamos que isso não fique assim”. E concluiu exaltado:

– Quem vai dizer que foi uma agressão ao País é o presidente (Jair Bolsonaro), nosso comandante. Não reconhecemos o governo Maduro. A diplomacia já disse isso e é quem deve se manifestar.

Não poderia ter havido desfecho mais à altura de episódio tão canhestro. Dele participou também o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que voou à Colômbia só para ser fotografado ao lado do autoproclamado presidente da Venezuela, Juan Guaidó e de um diplomata americano de terceiro escalão.

E assim o governo do capitão fez sua estreia ruidosa no campo das relações internacionais. Desprezou a opinião dos generais que emprega, contrários a que o Brasil se metesse na crise venezuelana e ainda mais a reboque dos Estados Unidos. Desprezou tudo o que nossa diplomacia havia construído até agora.


Ricardo Noblat: Ajuda de mentirinha à Venezuela

Ameaçada a entrega de alimentos

A não ser que mude o que estava planejado até ontem, não passará de mentirinha a ajuda do governo brasileiro aos venezuelanos famintos e vítimas da ditadura instalada naquele país.

Havia 200 toneladas de alimentos a serem despachadas para um lugar na fronteira entre os dois países. E lá, apenas um caminhão para transportá-la.

A decisão do governo brasileiro era de esperar que venezuelanos fossem buscá-la. Se não forem ficará por isso mesmo. O governo de Nicolás Maduro fechou a fronteira do país com o Brasil.

Será difícil que algum caminhão consiga passar de um lado para o outro. De resto, o governo brasileiro não quer se meter numa encrenca que só renderia dividendos políticos ao governo de Donald Trump.

PT de ouvidos moucos

Algemado a Lula em Curitiba
Vez por outra, algum petista de alto coturno cobra do partido que admita os erros que cometeu, liberte-se de sua dependência doentia e infantil de Lula, e que se reinvente.

Foi o que fez ontem, por exemplo, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o governador do Ceará, Camilo Santana (PT), reeleito no ano passado com quase 80% dos votos.

“Lula sofre uma grande injustiça, deu uma grande contribuição ao país, mas precisam vir novas pessoas, novos quadros”, defendeu Santana, aliado também de Ciro Gomes (PDT-CE).

A corrente majoritária dentro do PT não quer mudanças, a não ser cosméticas. Lula já indicou que se depender dele, a deputada Gleisy Hoffman continuará no comando do partido. É de sua confiança.

Mesmo líderes do PT favoráveis a um passo à frente do partido temem que ele se fragmente durante esse processo. A aparente unidade só se mantém por causa da força de Lula.

Dará em nada a sugestão de Santana. O PT jaz algemado ao seu mentor em um cárcere de Curitiba. Faz o papel de uma pálida e triste figura. Apostará no fracasso do governo Bolsonaro. E é só.


Ricardo Noblat: Oferta ainda de pé

Prêmio de consolação

O fato de Gustavo Bebianno ter dito de público que recusou o convite do capitão para ser diretor da usina de Itaipu ou embaixador do Brasil em Roma inviabilizou de fato a reabertura das negociações para que ele venha a ocupar um dos dois cargos.

Mas um terceiro lhe foi oferecido, e sobre esse Bebianno nada disse: o de embaixador do Brasil em Lisboa. É um posto de muito prestígio. A sede da embaixada, à estrada das Laranjeiras 144, no bairro de Sete Rios, é magnífica e bem localizada.

Por ali já passaram diplomatas de alto nível, mas também políticos de renome que desfrutaram um doce exílio. O ex-presidente Itamar Franco foi um deles. De resto, não seria nenhuma complicação tirar de lá o atual embaixador Luiz Alberto Figueiredo Machado.

Experiente e respeitado no Itamaraty e fora dele, Figueiredo Machado já serviu em Santiago, Washington e Ottawa. Foi ministro das Relações Exteriores do primeiro governo de Dilma Rousseff. Bolsonaro quer em Lisboa um embaixador para chamar de seu.

A bola está no pé de Bebianno. Antes de chutá-la, é bom saber o que o vereador Carlos Bolsonaro pensa a respeito.

Bolsonaro e Bebianno, já, já de boa!

Nada como um dia após o outro
A terceira-feira, 19 de fevereiro, foi um dia para ser esquecido pelo presidente Jair Bolsonaro. A VEJA publicou as mensagens de áudio trocadas por ele com Gustavo Bebianno, a quem Bolsonaro chamara de mentiroso. Bebianno disse que perdera o cargo de ministro porque o vereador Carlos Bolsonaro o perseguia.

A Câmara dos Deputados rejeitou o decreto do governo que desfigurava a Lei da Transparência. Foi a primeira derrota do governo ali. A Justiça condenou Bolsonaro por ofensa à deputada Maria do Rosário (PT-RS), e absolveu o ex-deputado Jean Wylys (PSOL-RJ) da acusação de ofensa a Bolsonaro. Que sufoco!

O dia seguinte será lembrado por Bolsonaro para sempre. Ele foi ao Congresso entregar a proposta de reforma da Previdência. Falou ao país por meio de uma cadeia de rádio e de televisão. E recebeu a notícia de que em breve ele e Bebianno poderão estar numa boa. Que alívio! E sem ele que precisasse meter a mão no bolso.

Duas coisas preocupavam o presidente. Bebianno foi seu advogado em várias causas na Justiça. E se ele decidisse cobrar o que Bolsonaro lhe devia? Bastaria cobrar um preço justo para que Bolsonaro fosse obrigado a vender parte do seu patrimônio à falta de dinheiro vivo. Mas tinha coisa pior a preocupar Bolsonaro.

Saíra uma nota no jornal Folha de S. Paulo dando conta da disposição de Bebianno para reunir documentos e escrever um livro sobre sua vida ao lado de Bolsonaro durante pouco mais de um ano. E se Bebianno contasse coisas que pudessem comprometer a boa reputação de Bolsonaro junto aos seus devotos?

Antes do cair da noite sobre Brasília, o sol piscou para Bolsonaro. Ele soube que procurado a seu pedido por Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil da presidência da República, Bebianno, generosamente, garantira que nada cobrará pelos serviços prestados como advogado. Quanto ao livro, disse que jamais pensara em escrevê-lo.

A radiante quarta-feira, 20 de fevereiro, poderá ter sido o dia que marcou o recomeço do governo do capitão. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos.


Ricardo Noblat: Motivos ocultos

Exército e governo, tudo a ver

Quando se quer demitir alguém, qualquer fato ou coleção de fatos serve. E se os fatos em estado puro não prestam, é sempre possível distorcê-los ao gosto do dono da caneta.

Foi o que fez “o nosso presidente”, como o chama seu porta-voz, o general Rego Barros. Ou o “capitão”, como insiste em chamá-lo o demitido ministro Gustavo Bebianno.

A verdadeira, ou as verdadeiras razões do presidente Jair Bolsonaro para despachar aquele que foi seu faz tudo desde o início da campanha do ano passado, essas permanecem ocultas.

É claro que Bebianno não foi demitido porque iria receber no Palácio do Planalto um diretor da Rede Globo, por mais que Bolsonaro a trate como inimiga do seu governo.

Nem porque teria vazado para o site Antagonista o que já fora publicado pelo jornal Folha de S. Paulo. Muito menos porque viajaria à Amazônia na companhia de mais dois ministros.

Para quem, como diz Bolsonaro, nada tem a ver com o escândalo das falsas candidaturas do PSL, a menção que ele faz ao episódio pode ser uma pista razoável da causa de saída de Bebianno.

Melhor dizendo: de uma das causas, mas não a determinante. Carlos envenenou o pai com a suspeita de que Bebianno vazara informações sobre as ligações da família com milicianos no Rio.

Envenenara-o também com a suspeita de que Bebianno queria derrubar Flávio com os rolos de Queiroz para pôr no lugar o seu suplente, o empresário Paulo Marinho, amigo do ex-ministro.

Doses tão reforçadas de veneno injetadas num cérebro tão pouco privilegiado como o do capitão produziram lá o seu efeito, admita-se. Mas ainda parece faltarem mais coisas.

Quem ganhou com a deposição de Bebianno – fora Carlos, o paranoico, o protetor número um do pai ao invés de limitar-se a ser o protegido número um por ele?

Com certeza, a ala militar do governo ganhou. Sim, ela mesma, que nos últimos dias pareceu ter ficado ao lado de Bebianno com receio de que a saída precoce dele desgastasse o governo.

A demissão de Bebianno reforçou a turma da caserna com a ascensão de mais um general de pijama ao posto de ministro. Agora são 8 os ministros que um dia vestiram farda.

Nunca antes na história do país tantos militares ocuparam funções antes destinadas a civis. Nos três últimos governos militares do ciclo de 64 foram apenas sete ministros.

Está tudo muito bom, está tudo muito bem para os que sonhavam com o retorno ao poder desta vez por meio do voto, mas o futuro a Deus pertence. E se ele não for róseo para o governo…

Se não for será um desastre para as Forças Armadas, principalmente para o Exército, que ajudaram um ex-capitão sem brilho a se eleger e, em seguida, a governar.

Não dá para separar mais o Exército do governo como disse desejar o general Vilas Bôas que o comandou até há pouco. Villas Bôas, hoje, serve no Palácio do Planalto e obedece ao capitão.

A jogada dos generais foi arriscada. A imagem do Exército está indissoluvelmente atada à do governo Bolsonaro. Para o bem ou para o mal. Tomara que seja para o bem.

Brasil acima de tudo. O Deus de cada um acima de todos.


Ricardo Noblat: Humilhação com humilhação se paga

O troco de Bebianno

Fala-se muito, e com, razão, da humilhação imposta pelo presidente Jair Bolsonaro, com a cumplicidade do seu filho Carlos, ao ex-ministro Gustavo Bebianno, da Secretaria-Geral da presidência da República, antes seu motorista, advogado e coordenador de campanha.

Bebianno ficou cinco dias insepulto entre o momento em que foi chamado de mentiroso pelo pai e o filho, e o momento em que o porta-voz de Bolsonaro, à falta do que realmente portar, anunciou sua demissão. O motivo? Ora, questão de foro íntimo do “nosso presidente”.

Mandam os fatos que se diga, porém, que a humilhação foi recíproca. Nem todo esse tempo transcorreu unicamente devido ao desejo perverso do capitão de ver Bebianno se decompondo. O ex-ministro fez Bolsonaro suar de raiva.

Uma vez que Bebianno recusou-se a pedir demissão como desejava Bolsonaro, e disse não ao convite para ser diretor de Itaipu ou embaixador do Brasil em Roma, começou a procura para uma saída menos desonrosa para ele. E aí foi Bebianno que estava no controle.

Exigiu que Bolsonaro gravasse um vídeo pedindo desculpas. E fez inúmeros reparos ao texto a ser lido pelo presidente. O texto final só ficou pronto depois de muitas idas e vindas, intermediadas pelo ministro Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil.

Por último, Bolsonaro fez uma molecagem com seu ministro: prometeu que postaria o vídeo em sua página no Twitter, mas faltou com a palavra. Mandou que vazassem o vídeo para a imprensa. Missão dada, missão cumprida. Foi ela que o divulgou.

Nas redes sociais, ouviu-se o brado dos devotos exultantes: O capitão é fogo! Bolsonaro espera que Bebianno não cometa a molecagem de falar como havia insinuado.

A milícia ganhou mais uma

Onde Bebianno foi se meter...

A demissão relâmpago de um ministro com direito a gabinete no Palácio do Planalto e assento nas reuniões diárias do presidente da República foi creditada a uma decisão de foro íntimo de quem pode mais.

Ou seja: o presidente não reconhece o direito dos seus governados de saber os motivos que o levaram a chamar de mentiroso um dos seus principais ministros, demitindo-o cinco dias depois.

Uma questão de Estado foi reduzida a uma questão de foro íntimo – do presidente que preferiu não dar explicações, e do ex-ministro que prometeu falar grosso, mas que acabou mudo.

Que o presidente não se queixe, pois, de informações de boas fontes que tentam iluminar uma crise política que ainda não tem data para acabar e que poderá comprometer o destino do seu governo.

Bolsonaro e sua prole há muito desconfiavam da lealdade de Gustavo Bebianno. A ele atribuíam vazamentos sobre as ligações da família com grupos de milicianos no Rio de Janeiro.

A luz vermelha do clã acendeu quando Bebianno, no último dia 6, reuniu-se no Rio com o diretor interino do Hospital Federal de Bonsucesso, Paulo Roberto Cotrim de Souza.

Cotrim de Souza ouviu de Bebianno:

– Eu gostaria de dizer ao senhor que há duas formas de fazer as coisas: uma pelo amor e uma pela dor. A nossa campanha, do presidente eleito, teve facada, sangue, suor e lágrimas. Nós não vamos nos intimidar com ameaças veladas.

Uma equipe do governo federal havia antes visitado o hospital e fora ameaçada de morte. Ao blog da jornalista Andrea Sadi, da GloboNews, Bebianno diria depois que há não só suspeitas “como fortes indícios” de envolvimento da direção do hospital com milícias.

Milícia é um assunto delicado para a família Bolsonaro. Policiais e ex-policiais que fizeram ou que fazem parte de milícias sempre deram cobertura às atividades políticas dos Bolsonaros e receberam em troca homenagens, condecorações e sabe-se lá mais o quê.

Foi Bolsonaro, o pai, por exemplo, quem empregou Queiroz e parte da família dele no gabinete do seu filho Flávio, na época deputado estadual. Por sua vez, Queiroz empregou ali parentes de um ex-chefe de polícia, por ora foragido, acusado de mais de 100 assassinatos.

Quando se soube que parte dos salários pagos a assessores de Flávio foi parar na conta de Queiroz, e que por sua vez um cheque de Queiroz foi parar na conta da mulher de Bolsonaro, onde Queiroz se escondeu? Bingo! Em área sob o controle de milícias.

De sorte que Bebianno, o responsável pela indicação do empresário Paulo Marinho para suplente de Flávio que se elegera senador, meteu-se, querendo ou não, em terreno pantanoso, do qual é muito difícil escapar com vida.

Conservou a vida. Perdeu o emprego. O sistema é foda, parceiro.


Ricardo Noblat: Aumentem a crise, senhores!

Suicídio à vista

Ele sabe muito. E se contar um terço do que insinuou nas últimas 48 horas que possa contar, de fato o advogado Gustavo Bebianno, a essa altura possivelmente já demitido do cargo de ministro da Secretaria-Geral da presidência da República, causará severo estrago à imagem do presidente Jair Bolsonaro e do seu governo mal iniciado.

Mas nada capaz de antecipar o seu desfecho, e nem mesmo de comprometer o seu êxito no longo prazo. O que de fato poderá contribuir para o fim precoce da Era Bolsonaro é a ideia de jerico em exame pelo capitão e seus aguerridos garotos de largarem o PSL e irem se abrigar em outro partido de aluguel, a UDN.

A União Democrática Nacional (UDN) foi um partido fundado em abril de 1945 para fazer oposição às políticas e à figura de Getúlio Vargas. Era de orientação conservadora. Adotou como lema uma frase apócrifa de Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos Estados Unidos: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”.

O golpe militar de 1964 extinguiu todos os partidos – inclusive a UDN que o apoiou. Mas há uma UDN fake em formação, com CNPJ e pedido de registro no Tribunal Superior Eleitoral. Ela já tem diretórios em nove Estados e espera obter seu registro definitivo em breve. É um dos 75 partidos em fase de criação.

Um dos seus principais dirigentes é o advogado Marco Vicenzo, que lidera o Movimento Direita Unida. Vicenzo mudou-se de Vitória para Brasília e está à caça de parlamentares dispostos a trocar de partido. A lei permite que um parlamentar eleito por um partido possa se transferir para outro – desde que seja uma legenda nova.

Para quem, como Bolsonaro, que não confere a mínima importância a partidos, e que já foi filiado a sete deles (PDC, PPR, PPB, PTB, PFL, PP e PSC) em 30 anos de vida pública, sair do PSL onde está e aderir à UDN fake seria tão simples como mudar de sapato – isso quando não se exibe de sandálias para fotos oficiais no Alvorada.

É aí que o bicho pode pegar. Quem está no PSL se elegeu pegando carona na boleia de Bolsonaro e com a promessa de apoiá-lo sem condições. Natural que essa gente se sinta abandonada. A relação de confiança entre o líder e os liderados será rompida. A maioria talvez não o acompanhe e se sinta liberada para votar como quiser.

E o dia seguinte? E como ficará a reforma da Previdência, a joia da coroa que Bolsonaro por enquanto lustra para apresentá-la ao Congresso? Ali, na Câmara dos Deputados, ele precisará de três quintos de um total de 513 votos para aprovar a reforma e tudo mais que implique em mudança na Constituição.

Confiança é a base dos compromissos na política. A demissão de Bebianno era a prova que faltava para demonstrar que Bolsonaro só tem compromisso com seus garotos. No passado, ele foi capaz de eleger e reeleger vereadora no Rio sua primeira mulher. Para depois lançar Carlos como candidato só para derrotar a própria mãe.

Que ele experimente fugir do PSL para fazer de conta que nada teve a ver com os rolos do partido! Aí a crise não terá mais fim.


Ricardo Noblat: Bye, bye, Bebianno

A crise fica

Se Gustavo Bebianno ficasse no governo seria porque Jair Bolsonaro teria se demitido de suas funções. Onde já se viu um presidente da República chamar de mentiroso um dos seus ministros e depois deixar tudo por isso mesmo, inclusive o ministro?

E Bebbiano não é qualquer ministro. É o secretário-geral da presidência da República. Tem gabinete no Palácio do Planalto, a poucos metros de distância do gabinete de Bolsonaro, e assento garantido nas reuniões diárias do presidente.

Como é possível que Bebianno, por mentiroso, não sirva para permanecer ministro, mas sirva para ser diretor de uma empresa estatal? Pois esse foi o prêmio de consolação que lhe foi oferecido. Se tiver juízo, Bebianno voltará ao escritório de advocacia onde trabalhava no Rio.

É fato que o governo está prestes a despachar para o Congresso a proposta da reforma da Previdência. E que o mercado e seus satélites, inclusive grande parte dos políticos, estão dispostos a tolerar todas as suas fraquezas desde que se consiga aprovar a reforma.

Mas não dá para seguir fingindo que tudo vai bem, que tudo parece normal, quando bem não vai, e de normal há quase nada ou muito pouco. Certa balbúrdia é compreensível em todo início de governo. Leva algum tempo para que se comece a conhecer e a dominar a máquina.

A balbúrdia seria maior no caso de um governo cuja maioria dos seus titulares nunca passou pela administração pública. São pessoas inexperientes, a começar do presidente. Não foram selecionadas levando-se em conta um projeto de governo porque faltava um.

Bolsonaro se surpreendeu ao pressentir que poderia se eleger. Seu plano era ser candidato para ajudar os filhos a se reelegerem. Depois, outra vez casado com uma mulher jovem, e pai de uma menina, iria desfrutar a vida com a gorda aposentadoria de quem fora deputado por 28 anos.

Aí veio a facada de Juiz de Fora. O louco do Adélio Bispo, que se sentia perseguido pela Maçonaria, quis matar Bolsonaro e acabou por empurrá-lo para o alto das pesquisas de intenção de voto. A vida tem desses imprevistos, e Bolsonaro soube dar a volta por cima.

Decorridos 47 dias desde a posse, seu governo mal está montado. Há vagas à beça a serem preenchidas, e falta quase tudo. Falta coordenação e também comando. De sobra, só amadorismo e desencontros. O principal responsável por isso é o presidente.

Uma vez, na segunda metade dos anos 80, o então senador Fernando Henrique Cardoso disse a propósito do presidente José Sarney que estava no exterior: “A crise viajou”. Sarney nunca o perdoou por essa e outras mais. De Bolsonaro, por ora, pode-se dizer que ele é a crise onde estiver.


Ricardo Noblat: Bispo dá chega pra lá no general

Sarna para se coçar

Dois passos à frente e eventualmente um atrás, ensinou Máo Tsé-Tung, histórico líder comunista da China que hoje ainda se diz comunista, embora que disso só preserve o governo totalitário.

O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional da presidência da República, de comunista não tem nada, muito pelo contrário, mas com Mao aprendeu alguma coisa.

Deu dois passos à frente ao admitir ao jornal O Estado de S. Paulo que o “clero progressista” da Igreja Católica era uma ameaça ao governo que tudo faria para barrar suas ações na Amazônia.

Deu um passo atrás ao negar, ontem, que o governo monitore padres, bispos e até cardeais convocados pelo Papa Francisco para debater em Roma os problemas daquela região.

“Ninguém está espionando a Igreja”, afirmou o general. Mas voltou a repetir: “Quem cuida da Amazônia brasileira é o Brasil, não tem que ter palpite de ONG estrangeira, de chefe de Estado estrangeiro”.

O recuo nada sutil do general tem a ver com o suave, mas certeiro chega pra lá que levou do secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Leonardo Steiner.

“É um evento, uma celebração da Igreja para a Igreja”, disse o bispo sobre o Sínodo da Amazônia, marcado para outubro próximo. Noutras palavras: o governo não deve se meter com isso.

O medo de Heleno, que reflete o medo dos seus ex-colegas de farda e do presidente Jair Bolsonaro, é que o sínodo acabe servindo de palco para críticas às ideias pouco ou nada ambientais do governo.

A tese do general de que a Amazônia é “um problema interno” do Brasil não resiste a um supro. A pressão para que a Igreja suavize sua retórica em defesa do meio ambiente não dará em nada.

São tantos os desafios que o governo Bolsonaro tem pela frente que não deveria querer arranjar mais um.

Mourão, o bombeiro

O colaborador desprezado
Os admiradores recentes do general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, o vem como o contraponto do presidente Jair Bolsonaro, sempre disposto a corrigi-lo ou a antagonizá-lo.

Os devotos de Bolsonaro, e gente do tipo os filhos dele e o que se diz filósofo Olavo de Carvalho, enxergam Mourão como uma grave ameaça à República da Nova Política. Um conspirador nato.

Há outra maneira de ver Mourão: uma vez despido da farda de general de quatro estrelas quando foi para a reserva, à falta de outra, ele vestiu a de bombeiro, sempre disponível para apagar incêndios.

Se visto assim, Mourão tem feito mais bem do que mal a Bolsonaro, ao seu governo e à tropa improvisada de última hora que ascendeu ao poder na ausência de coisa melhor.

Mourão ajuda mais o capitão do que atrapalha. E não é retribuído. Bolsonaro pouco o consulta. Os dois mal se falam. E os garotos do capitão não lhe dão sossego.
Ontem, Mourão sacou do seu extintor de incêndios – desta vez para salvar o ministro do Meio Ambiente de grossa e merecida pancadaria por ter atacado o ex-seringueiro Chico Mendes. Disse:

– O Chico Mendes faz parte da defesa do Brasil na defesa do meio ambiente. É história. Assim como outros vultos passaram por nossa história.

Fosse menos presa dos garotos, e menos inseguro do que verdadeiramente parece, Bolsonaro poderia ter em Mourão um parceiro não só confiável, mas útil para a condução do governo.


Ricardo Noblat: A falta que fará Boechat

Jornalismo honesto e contundente
O jornalismo contundente, capaz de expor os fatos com rigor e transparência, e de refletir sobre eles sem ódio e sem medo, é invenção antiga, mas que não data necessariamente do seu começo.

Aqui, digamos, é algo recente, do final dos anos 50 do século passado para cá. Antes disso, o jornalismo era antes de tudo partidário, tomava partido de grupos e lhes prestava fiel vassalagem.

Entre o golpe militar de 64, e o momento quatro anos depois em que a ditadura tirou a máscara, houve ensaios isolados, pontuais, do jornalismo que Ricardo Boechat fez tão bem até ontem.

Com uma grande diferença: esse tipo de jornalismo só tinha lugar no papel, em jornais e pequenas revistas. Creio que não exagero se disser que foi Boechat que deu voz e imagem ao jornalismo crítico.

No rádio e na televisão, foi ele que rompeu os limites do jornalismo bem comportado que até há pouco ainda tentava se apresentar como equidistante e imparcial como se isso fosse possível.

Uma coisa são os fatos, que devem ser expostos como se passaram, dando-se espaço aos seus protagonistas para que ofereçam suas versões por mais contraditórias que elas sejam.

Outra bem diferente é a interpretação, a análise que se faz dos fatos. A interpretação decorre de um ponto de vista do seu autor a propósito dos fatos levados ao exame do distinto público.

Aí não há como ser imparcial, uma quimera tão cultivada em nosso meio e fora dele, e tão distante da realidade. Cobre-se do jornalista, isto sim, que seja honesto ao ir além da simples oferta de fatos.

Boechat foi um jornalista honesto. Era capaz de chafurdar na lama, rolar pelas sarjetas e desfilar pelos salões mais nobres à cata de notícias – de preferência em primeira mão.

Mas ao servi-las, não se negava a dizer o que pensava a seu respeito. Mais no rádio do que na televisão, mas também nessa, com frequência ia adiante, permitindo que sua indignação explodisse.

Como não se indignar diante do muito que testemunhamos ou ficamos sabendo? Balela essa história que só nos cabe dar notícias! Balela, não, um truque velho usado para nos tornar complacentes.

Bóris Casoy chocou os jornalistas de terno e gravata quando começou a usar a expressão “vergonha” para sublinhar o seu espanto diante de certos fatos. Foi um pioneiro.

Boechat elevou o jornalismo contundente à sua máxima potência. Jamais lhe faltou coragem para tal. Sua recompensa foi a adesão de milhões de pessoas que o viam e o escutavam diariamente.

Partiu logo quando o jornalismo brasileiro mais precisava de sua ousadia e do seu talento. Fica o seu exemplo.

Sobre o jornalismo

Para que serve
A democracia depende de cidadãos bem informados. O jornalismo depende da confiança pública.

Antes de ser um negócio, o jornalismo deve ser visto como um serviço público.

O jornalismo existe para servir ao conjunto de valores mais ou menos consensuais que regem o aperfeiçoamento da sociedade. Valores como a liberdade, a igualdade social e o respeito aos direitos fundamentais do ser humano.

Mais do que informações e conhecimentos, o jornalismo deve transmitir entendimento. Porque é do entendimento que deriva o poder. E em uma democracia, o poder é dos cidadãos.

O dever número um dos jornalistas é com a verdade – mesmo que a verdade não seja algo claramente identificável, como de fato não é. Mas haverá que se persegui-la mesmo assim.

O dever número dois dos jornalistas é com o jornalismo independente. Porque se independente não for, para nada servirá.

O dever número três é com os cidadãos. Não se deve jamais ter vergonha de tomar partido deles.

O quarto dever dos jornalistas é com sua própria consciência.


Ricardo Noblat: O risco de um Estado repressor

Sinais de que a democracia pode ser minada

O esforço bem intencionado de muitos em tentar normalizar o presidente Jair Bolsonaro e seu governo de extrema direita sofreu um duro golpe com a revelação de que a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), sob o controle do general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, está de olho nas atividades do que chama de clero de esquerda da Igreja Católica.

E não só a ABIN, com escritórios em Manaus, Belém, Marabá e Boa Vista, já acionados. Relatórios a respeito também foram produzidos pelo Comando Militar da Amazônia, com sede em Manaus, e o Comando Militar do Norte, sediado em Belém. Trata-se, pois, de uma operação abrangente de inteligência que permite ao governo monitorar os passos de autoridades religiosas e de ONGs.

Em outubro próximo, sob a presidência do Papa Francisco, cerca de 250 bispos do Brasil, Peru, Venezuela e de outros países do continente se reunirão em Roma para discutir os principais problemas da Amazônia e dos povos que a habitam. O governo acha que isso representará encrenca certa para sua imagem lá fora e para a política ambiental que defende.

Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, no entendimento de generais que cercam Bolsonaro, a Igreja Católica por aqui sempre foi “um braço do PT” e, agora, com a derrota eleitoral colhida pelo partido no ano passado, ela imagina assumir de vez a liderança da oposição ao governo. O encontro em Roma é visto pelo general Heleno como uma clara “interferência em assunto interno do Brasil”.

O Ministério das Relações Exteriores pressionará o governo italiano para que interfira junto ao Papa em favor dos interesses do governo brasileiro. A embaixada do Brasil no Vaticano foi avisada de que deverá fazer o mesmo. Planeja-se a realização em Roma de um simpósio para divulgar as ideias ambientais de Bolsonaro na mesma data da reunião dos bispos com o Papa Francisco.

Onde no mundo das redes sociais, da economia globalizada, pode-se ainda falar em “assunto interno” ou exclusivo de um país? Nos Estados Unidos de Donald Trump, sob a suspeita de ter sido eleito com a colaboração do governo russo? Na Venezuela do ditador Nicolás Maduro, ameaçado de ser deposto por um movimento também apoiado pelo governo de Bolsonaro?

O mais ridículo da ofensiva contra a Igreja é que os generais de Bolsonaro parecem nada ter aprendido com seus colegas da ditadura de 64 que perseguiram o que chamavam de “ala progressista” do clero e se deram mal. A expressão “ala progressista”, tão comum naquela época, por sinal foi ressuscitada pelo general Heleno. Ele parece ignorar que a Igreja Católica mudou desde então.

João Paulo II, o terceiro Papa mais longevo da história da Igreja, aproveitou seu reinado de quase 26 anos e meio para liquidar com a “ala progressista” em toda parte onde ela existia. Seu sucessor, Bento XVI, foi um implacável adversário da Teologia da Libertação que tantas dores de cabeça deu a governos conservadores ou simplesmente de direita mundo a fora.

Se comparado com seus antecessores, o Papa Francisco estaria à esquerda deles no enfrentamento dos problemas sociais e de outros temas contemporâneos como a globalização, por exemplo, e a questão ambiental. O governo Bolsonaro conceber que Francisco será sensível aos seus apelos e pressões é não conhecê-lo nem um pouco. É também dar-se uma importância que não tem.

É no laboratório do general Heleno que estão sendo manipuladas as primeiras e mais escandalosas restrições ao pleno Estado de Direito. Envolver comandos militares na espionagem à Igreja e a movimentos sociais a ela ligados pode ser a mais explosiva, mas a única não é. Foi do laboratório de Heleno que saiu o Decreto 9.690 que desfigurou a Lei da Transparência.

Há poucos dias, Heleno disse que mandou investigar como vazou para a imprensa a minuta do projeto de reforma da Previdência. Com isso o que ele quer não é necessariamente descobrir o responsável pelo vazamento, mas sim intimidar funcionários que possam colaborar com os jornalistas para tornar públicas informações que o governo prefere manter escondidas.

Tudo que atente contra a liberdade e os direitos dos cidadãos serve para minar a democracia. Bolsonaro e seus devotos, fardados ou não, sempre foram partidários de um Estado autoritário. Uma vez no poder, convenhamos, estão sendo apenas coerentes com o que pensam e pregaram durante a campanha. De estelionato eleitoral, não serão jamais acusados.

À queima roupa (3)

Curto e seco
+ Com vocês, a Nova Política: 1. Governo espiona a Igreja Católica com a ajuda do Exército; 2. PSL, o partido do presidente, desviou dinheiro público por meio de laranjas; 3. Ministério Público espera há meses que filho do presidente vá depor sobre rolos; (Acabou o espaço)

+ O que o ministro Gilmar Mendes acha de uma agência de inteligência que investiga padres, bispos e cardeais? Seria algo, por exemplo, parecido com a Gestapo da época do nazismo?

+ Não sei onde está escrito que ministro do Supremo Tribunal Federal pode virar consultor do governo para projetos a serem submetidos ao Congresso. Mas de uns tempos para cá eles podem tudo, desde que não sejam investigados.

+ Quando estourou o caso do mensalão do PT em 2005, teve ministro do Supremo que procurou líderes de partidos para que desistissem da ideia de derrubar Lula. Mais recentemente, um ministro foi grampeado em conversa com senador que pedia sua ajuda. O sistema é foda, parceiro.

+ Roga-se a quem saiba informar onde podem ser encontrados os 8 funcionários do gabinete de Flávio Bolsonaro que depositaram parte dos seus salários na conta de Queiroz. Eles desapareceram de suas casas e empregos. Familiares e amigos se recusam a informar onde eles se esconderam.

+ “Quem foram os responsáveis por determinar que o Adélio praticasse aquele crime em Juiz de Fora?” – pergunta com razão o presidente Jair Bolsonaro em sua página no Twitter. Quem sabe não foram os mesmos que mandaram matar Marielle Franco? Por que ele não manda investigar os dois casos com o mesmo rigor?

+ Pelo visto, 2018, como 1968, é também no Brasil um ano que não terminou por aqui.


Ricardo Noblat: O silêncio vergonhoso dos culpados

Esperanças destruídas

Digamos que um pico de energia, na noite do temporal que afogou parte do Rio na semana passada, provocou o incêndio que torrou vivos os 10 garotos alojados nos contêineres do Campo de Treinamento do Flamengo. E daí? O clube seria menos culpado pelo que aconteceu?

Quantos picos de energia foram registrados naquela noite? Em que pontos da cidade? Quantas vezes os bombeiros foram acionados para apagar incêndios? Há dispositivos que impeçam a passagem de fogo de um aparelho de ar condicionado para outros? Havia algum no Campo de Treinamento do Flamengo?

Na ausência dos pais, o Flamengo era o responsável pela integridade daqueles garotos. Dava-lhes de comer. Dava-lhes abrigo. Zelava por sua higiene. Afinal, a quem por contrato eles serviriam no futuro caso fossem escolhidos para isso? Quem mais lucraria com o eventual sucesso deles?

O Flamengo não pediu autorização para instalar contêineres no Centro de Treinamento do clube. Quer dizer: descumpriu a legislação ao instalar os contêineres no Ninho do Urubu sem a prévia autorização legal. Oficialmente, aquele local não existia. Era uma área destinada a estacionamento.

O Centro de Treinamento foi fechado pela prefeitura em outubro de 2017. Fechado deveria estar, pois. O Flamengo ignorou a ordem e reabriu-o. Não satisfeito de desrespeitar ordem de autoridade pública, construiu um alojamento para os garotos sem nunca ter pedido licença para sua instalação.

“Isso não tem nada a ver com o acidente”, desculpou-se Reinaldo Belotti, o CEO do Flamengo, em pronunciamento que fez ontem sob a condição de não responder a perguntas de repórteres. “Temos providências a tomar para que o Centro de Treinamento seja legalizado. Estamos trabalhando para isso”.

Belotti pode dizer o que quiser, como qualquer outro dirigente do clube. Mas o alojamento carecia das mínimas condições de segurança para prevenir um evento como o que ocorreu. Só havia uma porta de saída, exígua. Extintores de fogo? Só do lado de fora. Se isso não configura negligência, o que negligência é?

De um total de 31 multas aplicadas pela prefeitura ao Flamengo desde outubro de 2017 por ele manter em funcionamento o que fora lacrado, o clube pagou 10 e deixou de pagar 21. Ao pagar algumas sem contestar foi porque reconheceu que seu Centro de Treinamento estava fora da lei. Simples assim.

Segundo a Lei 9.615, chamada de Lei Pelé, cabe à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) certificar clubes formadores de atletas. Ao certificar o Flamengo, ela garantiu o funcionamento do seu Centro de Treinamento, embora ele fosse ilegal, e embora o próprio Centro tivesse sido interditado.

Ao jornal Folha de S. Paulo, a CBF confirmou o certificado, mas disse que a fiscalização do local cabia à Federação de Futebol do Estado do Rio, não a ela. A Lei Pelé diz que a fiscalização é responsabilidade da “entidade nacional”. Ou seja: da CBF. A Federação informa que nada tem a ver com isso.

A Lei Pelé determina que clube formador de atletas está obrigado a manter alojamentos e instalações desportivas adequados, sobretudo em matéria de alimentação, higiene, salubridade e segurança. Como demonstrado, segurança contra incêndio não havia no alojamento clandestino dos garotos.

Certamente nenhum diretor do Flamengo irá para a cadeia porque o clube falhou em garantir a vida de quem estava aos seus cuidados. Mas não basta que o clube indenize as famílias dos incinerados, a única esperança que elas tinham de sair da pobreza. Terá de bater no peito e reconhecer sua máxima culpa.

Um crime não é menos crime porque se insiste em chamá-lo de acidente. Crime é crime, ponto. E o Ninho do Urubu foi cenário de um.