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Alon Feuerwerker: Não é o que parece

Faça como numa reunião por Zoom: ponha a política no mudo

Apesar de tudo, o universo da política continua achando mais provável Jair Bolsonaro ficar no Planalto pelo menos até 2022. E tem outra. Depois de Luiz Inácio Lula da Silva voltar à elegibilidade, diminuiu naturalmente o número de quem vê o atual presidente na cadeira até 2026. Diminuiu, mas está longe de ter virado fumaça.

O ambiente anda chacoalhado. Esqueça, porém, os discursos: os principais atores só estão de olho mesmo é em 2022. Isso seria apenas o óbvio, não comparecessem dia sim outro também diante do público para dizer que estamos mergulhados numa tragédia (e estamos mesmo) e que isso exige medidas radicais imediatas.

De vez em quando, faça como numa dessas reuniões no Zoom, ou no Teams: ponha a política no mudo. Preste atenção no que os políticos fazem, e não no que dizem. Um exemplo foi o manifesto dos seis pré-presidenciáveis. Na forma, um libelo pela democracia. Na alma, apenas um posicionamento para a eleição. Contra Bolsonaro, Lula e possíveis aliados de cada um dos dois.

Se a prioridade fosse fazer um gesto antibolsonarista, Lula teria sido convidado. Mas suponhamos que as atribulações jurídicas dele constrangeram os autores. Então por que não chamaram o Guilherme Boulos? Ele é pré-candidato. Ou seja, se tirarmos o som, conclui-se que no manifesto a dita fé democrática apenas encobriu mais uma tentativa de alavancagem eleitoral “contra os extremos”.

Teria sido melhor dizer “olha, somos pré-candidatos, mas estamos dispostos a nos juntar em torno de um único nome”. Esta é, aliás, uma vantagem do atual ocupante do Planalto: as falas dele trazem o que pretendem dizer, não encobrem intenções e não exigem do povo grande esforço de interpretação.

“Preste atenção no que fazem, e não no que dizem. Um exemplo foi o manifesto dos seis pré-presidenciáveis”

Querem saber uma razão da estabilidade vivida pelo governo Bolsonaro, mesmo com a tragédia sanitária e suas consequências econômicas? Não há consenso entre os adversários de que qualquer coisa é preferível a ele na Presidência.

E o capitão vai tocando o barco, protegendo e mantendo organizadas suas fileiras, para resistir e preservar uma musculatura político-eleitoral que o coloque pelo menos no segundo turno em 2022.

Não que a vida de Bolsonaro esteja resolvida. Vamos ver o que sai da caixinha de surpresas do Supremo Tribunal Federal no dia 14, mas se Lula continuar candidatável espera-se a intensificação do bombardeio contra Bolsonaro vindo do “centro”, para tentar demoli-lo e oferecer-se ao eleitorado hoje bolsonarista como a única opção contra “a ameaça da volta do PT”.

Sobre isso, espera-se também um esforço monumental do establishment para convergir o “centro” para um único nome.

A política brasileira é cheia de sobressaltos, mas também tediosamente previsível.

Ah, e uma diferença definitiva entre a situação de agora e a das Diretas Já, citada no “manifesto dos seis”. Em 1984/85, os liberais que hoje seriam chamados de centristas aceitaram juntar-se à esquerda. Não consta que alguma vez Ulysses Guimarães, Franco Montoro ou mesmo Tancredo Neves tenham colocado a coisa como uma luta “contra os extremos”.

Era outro tempo. E outro tipo de político.

Publicado em VEJA de 14 de abril de 2021, edição nº 2733


Ricardo Noblat: Jantar de Bolsonaro com empresários foi uma ação entre amigos

O presidente reafirmou o que pensa e acabou ovacionado

Nos oito anos dos governos de Fernando Henrique Cardoso, e nos oito de Lula, não foi preciso selecionar com rigor nomes de empresários dispostos a jantar com eles para driblar o risco de serem fortemente pressionados por isso ou por aquilo. Fernando Henrique estava à vontade no meio deles. Lula, também.

Já foi o caso do presidente Jair Bolsonaro até, pelo menos, metade do ano passado. Desde então deixou de ser, daí os cuidados tomados em ocasiões como essas. Recentemente, centenas de economistas, empresários e banqueiros pesos pesados do PIB assinaram um manifesto fazendo duras cobranças a Bolsonaro.

Não se tem notícia se alguns deles participaram do jantar oferecido a Bolsonaro, ontem, em São Paulo, por Washington Cinel, dono da empresa de segurança Gocil. Mas nomes graúdos compareceram. E os primeiros relatos indicam que Bolsonaro foi muito bem recebido e chegou a ser ovacionado quando discursou.

O que ele disse para merecer aplausos? No dia em que o Brasil ultrapassou a marca de 340 mil mortos pela Covid-19, o presidente fez duras críticas a Estados e prefeituras que defendem restrições mais severas de isolamento social. E defendeu a manutenção de igrejas e templos abertos, segundo o jornal VALOR.

O encontro fora planejado para apresentar um Bolsonaro mais moderado à parte do empresariado paulista. Mas ele foi o de sempre. “Tem de olhar o lado bom do país. Os investidores estão acreditando no Brasil. Basta olhar, hoje, o leilão dos aeroportos. Não existe terra melhor do que essa!”, disse o presidente.

Que em seguida disparou: “Podem me dar porrada à vontade. […] Imagina se o [Fernando] Haddad tivesse ganhado a eleição?”. E ele mesmo respondeu: “O Brasil teria afundado. Se os atuais presidenciáveis tivessem no meu lugar, tinha virado o caos social”. A agressiva retórica entusiasmou os convidados.

Eles se sentiram então mais à vontade para, a salvo dos jornalistas, impedidos de testemunhar a cena, criticarem as medidas mais duras de isolamento do governador João Doria (PSDB). Muitos aproveitaram para falar mal dos governos do PT e disseram ver Lula como seu inimigo número um.

“Estamos com o senhor. O Brasil não volta para ladrão e vagabundo”, gritou um empresário, para quem falta compreensão de certa parcela do público para entender o quanto Bolsonaro é autêntico. Flávio Rocha, um dos apoiadores de Bolsonaro, pediu a aprovação das reformas econômicas ainda este ano, e prometeu:

– Vamos te dar apoio.

Falou-se de vacinação, por suposto, mas nada que pudesse constranger o presidente, outra vez aplaudido ao afirmar que o Brasil é um dos poucos países do mundo que produzem imunizantes. Não disse que sem os insumos fornecidos por outros países, o Brasil seria incapaz de produzir as vacinas que usa.

“Foi uma conversa boa, eu gostei, me deu tranquilidade”, definiu Rubens Menin, controlador de MRV, Banco Inter e da rede de televisão CNN. Questionamentos sobre o viés ideológico de Bolsonaro ficaram de fora da pauta do jantar. “Foi uma conversa de alinhamento, não de confusão”, segundo Menin.


Ricardo Noblat: Brasil pede socorro contra o vírus, a fome e Bolsonaro

Generosidade em fim de linha 

E aí? Engane-se quem acredita que o governo do presidente Jair Bolsonaro mudou de posição quanto ao enfrentamento da pandemia. Só por que Marcelo Queiroga, médico, sucedeu ao desastrado general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde e recomenda que as pessoas usem máscara, lavem as mãos com álcool gel e se mantenham distantes umas das outras?

É o mesmo Queiroga que se recusa a admitir o lockdown porque Bolsonaro é contra. É o mesmo que evita condenar o tratamento precoce que Bolsonaro continua recomendando, um logro que já custou muitas vidas. É o mesmo que prometeu em breve vacinar um milhão de brasileiros por dia, meta distante de ser alcançada porque a demanda é maior do que a oferta.

Mudança de posição só por que o embaixador que sucedeu o inepto Ernesto Araújo no Itamaraty revelou que seus compromissos são com a vacina, a economia e o meio ambiente? Moleza suceder Araújo e parecer sensato. É como substituir Felipão no comando da Seleção Brasileira depois dos 7 x 1. Se ganhar o jogo seguinte com gol de mão será exaltado como herói.

Em um mês, o Brasil dobrou o número de mortes pela Covid em um único dia. No dia 6 de março, 1.840 vidas foram perdidas em 24 horas. Quatro dias depois, 2.000. Após duas semanas, 3.000. Ontem, quase 4.200. O total de mortes até agora é de 337.364. No melhor dos cenários, até julho o Brasil pode atingir meio milhão de óbitos, segundo o neurocientista Miguel Nicolelis.

Enquanto isso, o presidente da República espalha notícias falsas, faz comparações incabíveis e idiotas e destila ódio contra seus críticos. Em frente ao Palácio da Alvorada, em conversa com um grupo de devotos, Bolsonaro comentou: “Tem uma pesquisa aí que diz que quem tem uma vida saudável é oito vezes menos propenso a ter problemas com a Covid”. Que pesquisa? Não disse.

E prosseguiu: “Mas quando você prende o cara em casa, o que ele faz em casa? Duvido que ele não tenha aumentado um pouquinho de peso. Até eu cresci um pouquinho a barriga”. Posou de vítima: “Me chamavam de torturador, racista, homofóbico. Agora é o quê? Aquele que mata muita gente? Genocida! Imagina se o Haddad estivesse no meu lugar?!” Os devotos concordaram.

Bolsonaro afirmou que tem como resolver o problema do vírus em poucos minutos: “É só pagar o que os governos pagavam para Globo, Folha, Estado de S.Paulo. Esse dinheiro não é para imprensa, é para outras coisas”. E repetiu: “Cancelei todas as assinaturas de revistas e jornais. Já entramos no segundo ano sem nada. A gente não pode começar o dia envenenado”.

Metade dos brasileiros começa o dia sem saber se haverá comida suficiente em sua mesa. É a primeira vez que isso acontece desde 2004. São 116,8 milhões de pessoas nessa situação, segundo pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. No ano passado, a pandemia deixou 19 milhões com fome, quase o dobro do que havia em 2018.

Na cidade do Rio, a ONG Ação da Cidadania distribuiu 80 mil cestas básicas por dia em 2020. Este ano, apenas 8 mil. Secaram as fontes de doação de alimentos. Na cidade de São Paulo, a G10 Favelas distribuía 10 mil marmitas por dia. O número caiu para 700. A decantada generosidade dos brasileiros que podem muito com os brasileiros que nada podem era pouca e acabou.

Governante autoritário é tudo igual, só variam suas armas

A primeira vítima é sempre a verdade

Governante autoritário é tudo igual, só variam os métodos de cada um. Josef Stalin, que governou a União Soviética de meados da década de 1920 até sua morte em 1953, não se contentou apenas em promover expurgos políticos no Partido Comunista.

Mandou prender, exilar e fuzilar milhares de seus adversários. E tentou reescrever a história de sua época eliminando pessoas de fotografias, falsificando alterações de imagens e destruindo filmes. Nesse aspecto foi um pioneiro.

Comparadas com as modernas técnicas digitais, as dos anos 30 e 40 do século passado eram primitivas, toscas, deixavam marcas e exigiam muita perícia dos seus executores. Os russos eram bons nisso, e aí se não fossem. Stalin não perdoava.

Até as 16h40m de ontem, e desde pelo menos o meio-dia, esteve disponível no Flickr do Palácio do Planalto uma foto da cerimônia de posse da nova ministra da Secretaria de Governo, a deputada Flávia Arruda (PL-DF). Depois disso, a foto sumiu.

Por quê? Porque nela apareciam, além da ministra, o presidente Jair Bolsonaro, o vice Hamilton Mourão, o presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), o general Luiz Eduardo Tamos, chefe da Casa Civil, e… Valdemar Costa Neto, presidente do PL. E daí?

Daí que Costa Neto, recebido, esta semana, por Bolsonaro em audiência especial, foi condenado e tirou cadeia por envolvimento com o mensalão do PT – o escândalo da compra de votos de deputados para que aprovassem projetos do governo Lula.

Mesmo preso, Costa Neto negociou cargos no governo Dilma. Seu partido faz parte do Centrão que arrombou a porta do governo Bolsonaro e ocupa dezenas de cargos. Bolsonaro virou refém, mas quer esconder a verdade. Stalin foi mais bem sucedido.


Ricardo Noblat: Ciro Gomes passa recibo do seu incômodo com Lula candidato

A democracia só tem a ganhar

No dia em que Lula apareceu numericamente à frente de Jair Bolsonaro na mais recente pesquisa XP/Ipespe, Ciro Gomes (PDT), ex-governador do Ceará, aspirante a candidato a presidente da República pela quarta vez, pediu-lhe a “generosidade” de não disputar as eleições presidenciais do ano que vem. Que tal?

A fazê-lo, Ciro defendeu que Lula se inspirasse no “passo para trás” da ex-presidente da Argentina Cristina Kirchner que concordou em ser vice de Alberto Fernández, ajudando assim a elegê-lo. Segundo Ciro, se Lula for candidato, Bolsonaro se aproveitará do antipetismo para tentar emplacar um segundo mandato.

 “Imagine uma campanha: Bolsonaro, querendo se recuperar da impopularidade, lembrar a esculhambação do Palocci, a esculhambação do José Dirceu, a esculhambação de não sei de quem”, argumentou. “E do outro lado, o cabra dizendo que os filhos do Bolsonaro são ladrões. É isto?” Se o eleitor quiser, será.

Lula não respondeu ao pedido de Ciro. E o que Ciro disse inspirou memes que viralizaram na internet. E se países da América Latina pedissem ao Brasil que não disputasse a fase de classificação para a Copa do Mundo no Catar?  E se no carnaval pós-pandemia as demais escolas pedissem à Mangueira para não desfilar?

A proposta de Ciro trai seu desconforto com a situação criada pelo Supremo Tribunal Federal ao suspender as condenações de Lula nos processos do triplex do Guarujá e do sítio de Atibaia. Com isso, o ex-presidente recuperou os direitos políticos e tornou-se elegível. Ciro contava em enfrentar Fernando Haddad.

Para aumentar as dificuldades de Ciro, Lula tem dito que pretende primeiro reunificar a esquerda até onde for possível, para depois sair à caça do apoio de partidos do centro e até mesmo da direita. Esse seria um espaço que Ciro imaginava ocupar, e ainda imagina. Só que as coisas ficaram piores para ele, mas não só para ele.

Ultimamente, Ciro chegou a falar que Bolsonaro, desgastado pelo péssimo governo que faz, arrisca-se a não disputar o segundo turno da eleição de 2022. É possível, mas não é provável. E que ele, Ciro, então iria para o segundo turno como alternativa a Lula. Nada mais corriqueiro na política do que o autoengano.

O efeito Lula está produzindo uma limpeza no terreno dos que planejavam disputar a sucessão de Bolsonaro. Isso não é necessariamente ruim, muito pelo contrário, se resultar em candidaturas mais densas e representativas das principais correntes de pensamento político do país. A democracia agradece.

 Chapecó, a cidade modelo de Bolsonaro no combate à Covid

UTIs lotadas, a economia bombando

O presidente Jair Bolsonaro aproveitou, ontem, a entrega de casas populares no Distrito Federal para anunciar que desembarca, amanhã, em Chapecó, município de 225 mil habitantes em Santa Catarina, distante 550 quilômetros de Florianópolis.

Motivo da visita: o “trabalho excepcional” feito pela prefeitura de Chapecó no combate à pandemia. Um trabalho, segundo ele, que deu liberdade aos médicos para prescreverem o tratamento precoce da doença. O ministro da Saúde irá com ele.

Chapecó está com 100% das UTIs lotadas. Acumula mais mortes por 100 mil habitantes do que o país e o Estado. Dos 537 mortos pelo vírus, mais de 410 foram registrados somente este ano. Em fevereiro último, o sistema de saúde entrou em colapso.

Apesar disso, o prefeito João Rodrigues (PSD) garante que a doença “está 100% controlada”. O que tem, segundo ele, “são as UTIs lotadas”. Mesmo assim, em Chapecó, cidade onde “a economia bomba”, é  “proibido falar em lockdown”.

Bolsonaro vai sentir-se em casa.


Cristovam Buarque: Olhe a responsabilidade, gente

Sem o PT, pode não chegar ao segundo turno, só o PT, pode não ganhar no segundo

Nesta semana, a reforma ministerial mostrou que Bolsonaro já está trabalhando para o pós-segundo turno, enquanto os líderes e partidos de oposição continuam no pré-primeiro. Com o novo Ministro da Defesa, ele deseja controlar as Forças Armadas; com o novo Ministro da Justiça busca o controle sobre as polícias estaduais; com a liberação da compra e porte de armas, equipa sua milícia paralela. Com Forças Armadas, polícias e milícias, Bolsonaro passa a ter forças armadas nas ruas, para contestar derrota por pequena margem de eleitores, caso não consiga argumento para contestar o resultado na Justiça Eleitoral.

Enquanto isto, as oposições continuam divididas entre os possíveis candidatos que depois disputarão entre eles qual vai ao segundo turno. Estes embates deixam marcas que poderão levar outra vez a abstenções e votos nulos no segundo turno, como aconteceu em 2018. Difícil imaginar os eleitores do PT votando em Ciro ou outro candidato, e eleitores do Ciro e de outros candidatos votando no Lula ou outro do PT, salvo se fosse construída uma aliança ampla de todos desde o primeiro turno.

Felizmente, tudo indica que o exército não está aceitando o papel de milícia do Bolsonaro, e alguns dos candidatos pela oposição assinaram um manifesto conjunto em defesa da democracia. Mas todos que percebem as consequências da reeleição do atual governo sobre o futuro do Brasil, deveriam se encontrar em um debate franco sobre qual deles tem mais chance de vencer a eleição; também quais as qualidades, erros e méritos que se reconhecem; em que princípios estariam unidos no governo seguinte. Esta reunião poderia ter a participação de entidades da sociedade civil, como ocorreu em momentos decisivos da história. Poderia inclusive ser presidida por uma ou mais destas entidades.

Pena que a política é mais dominada pela arrogância do otimismo do que pela consciência dos riscos. Cada candidato já se considera com um pé no segundo turno, e tem confiança que unirá os eleitores dos que ficaram para trás. Imaginaram isto em 2018, mas nem a boa qualidade do candidato do PT foi suficiente para evitar a rejeição que o partido tinha. Pode ser diferente agora, se o candidato for Lula e o PT tiver rejeição menor, sobretudo depois da anulação Lava Jato de Curitiba; ainda mais com o reconhecimento oficial de que houve parcialidade do juiz contra Lula. Mesmo assim, não é claro se ele e o PT teriam menos rejeição. É possível que mesmo sabendo o que Bolsonaro representa, muitos eleitores ficarão em casa, ou viajarão para não votar, ou votarão nulo, induzidos pela ideia divulgada pela própria oposição, de “nem Bolsonaro, nem PT”. Possível também que eleitores do PT façam agora o que foi feito com Haddad em 2018, anulando o voto e se abstendo.

Estes líderes precisam entender que, divididos, dificilmente qualquer deles tomará o lugar do candidato do PT, mas o PT deve entender que, solitário, dificilmente ganhará no segundo turno se não tiver o apoio dos outros candidatos e partidos. Sem o PT, pode não chegar ao segundo turno, só o PT, pode não ganhar no segundo.

Os candidatos e líderes de partidos que se opõem à estratégia da reeleição de Bolsonaro têm diante deles a imensa responsabilidade de não falharem por arrogância, por vaidade, preconceito. Não podem neste momento colocar seus partidos e suas propostas na frente do interesse maior da democracia e do futuro do país. É preciso unidade com um candidato de baixa rejeição que leve a uma vitória expressiva, cale os fanáticos e desarme as milícias, oficiais ou não.

*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro


Ricardo Noblat: Gilmar Mendes faz história e abre passagem a Lula

Aumenta o risco de Bolsonaro morrer na praia em 2022

Data vênia aos demais ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, e por extensão aos demais, Gilmar Mendes fez história ao comandar o pelotão de fuzilamento da reputação do ex-juiz Sergio Moro, considerado suspeito de ter sido parcial nos processos de condenação de Lula pela justiça de Curitiba.

Tiraram Gilmar para dançar e deu nisso. Não foi por falta de aviso. No final de 2018, quando Lula entrou no Supremo com o pedido de habeas-corpus para declarar Moro suspeito, Gilmar propôs levá-lo direto ao exame do plenário do tribunal. Por 4 votos contra o dele, a Segunda Turma achou que caberia a ela julgar o pedido.

Então Gilmar, como presidente da Segunda Turma, propôs a concessão de uma liminar para libertar Lula. Foi derrotado por 3 votos contra dois – o dele e o do ministro Ricardo Lewandowski. Inconformado, pediu vista e o julgamento acabou suspenso. Lula só seria solto em novembro de 2019. Foram 580 dias preso.

Para salvar Moro da suspeição e preservar o que fosse possível da Operação Lava Jato, o ministro Edson Fachin decretou a anulação das condenações de Lula, alegando que o foro de Curitiba não era o mais adequado para julgá-lo. Calculou que a sua inviabilizaria qualquer posterior decisão da Segunda Turma contra Moro.

Deu ruim para ele, Moro, os procuradores da República de Curitiba e quem mais torcia por um desfecho contrário a Lula. Fachin mandou que os processos do triplex do Guarujá e do sítio de Atibaia fossem devolvidos à primeira instância em Brasília, sem anular, porém, as provas que eles continham. Perdeu.

As provas foram anuladas pela Segunda Turma. Os processos terão que recomeçar. Ou serão arquivados. Lula, agora, está duas vezes livre – da cadeia e das condenações que lhe pesavam. Três vezes livre, porque faltará tempo hábil para que possa voltar a ser ficha suja antes das próximas eleições.

Agradeça a Gilmar, em primeiro lugar, a Lewandowski, em segundo, e ao voto de desempate da ministra Cármen Lúcia. Agradeça também a Fachin que lhe abriu as portas da recuperação. E, se quiser, pode tripudiar sobre o ministro Nunes Marques, que deve o emprego ao presidente Jair Bolsonaro, e foi voto vencido.

No Supremo, já se viu muita coisa, até troca de desaforos de ministros aos berros e golpes aplicados abaixo da cintura. Mas nunca se viu um ministro, no caso Gilmar, reduzir a pó o voto do outro, no caso Nunes Marques, que saiu dali humilhado do ponto de vista de conhecimentos jurídicos e com a pecha de covarde.

O governo passou recibo de pronto. Auxiliares do presidente da República confidenciaram que ele não esperava o que aconteceu, e que isso fortalecerá a pretensão de Lula de enfrentá-lo na eleição do ano que vem. A leitura da situação está correta. É a mesma feita por articuladores de uma candidatura de centro.

Cuide-se, Bolsonaro. Aumentou o risco de sua reeleição ir pelo ralo já na disputa do primeiro turno.

Vá para casa, capitão Bolsonaro!

A posse clandestina do ministro da Saúde

Na época da Revolução dos Cravos, Portugal teve um 1º ministro com fama de doidinho da silva – o Almirante Vasco Gonçalves. Um dia, a parede branca que cercava o maior sanatório de Lisboa amanheceu pichada com a frase: “Volte para casa, Almirante”. O Palácio do Planalto carece de paredes externas.

Nem por isso deixa de abrigar a insensatez em alto grau . Nunca antes na história dos governos, pelo menos desde a redemocratização do país, viu-se posse clandestina de ministro de Estado. Ou melhor: não se viu. Aconteceu, ontem, quando o médico Marcelo Queiroga tomou posse como ministro da Saúde.

O distinto público não foi avisado com antecedência. A nomeação de Queiroga sequer havia sido publicada no Diário Oficial. Na agenda do presidente Jair Bolsonaro, distribuída todas as manhãs, não constava o ato de posse. Até o início da madrugada de hoje não foi divulgada nenhuma fotografia da solenidade excepcional.

O que deu no presidente? Foi grande o desgaste que ele sofreu por ter mantido o país sem ministro da Saúde por 8 dias em meio à pandemia. Há 8 dias, demitiu o general Eduardo Pazuello da boca para fora, uma vez que ele continuou ministro. E da boca para fora admitiu Queiroga, que continuou sem ser ministro.

Não bastasse tal comportamento inédito e, convenhamos, esquisito, o fez ao longo de uma pandemia que só bate recordes. Bateu mais um. Foi a primeira vez que em 24 horas, o número de mortes pela Covid-19 ultrapassou a casa dos 3 mil. Hoje, o total de mortos vai atingir a marca inacreditável de 300 mil.

O vírus já é a principal causa de óbitos no país, segundo o jornal O GLOBO. Doenças cardiovasculares levam em média 3 dias para matar 3 mil pessoas; o câncer, cinco dias; a violência, 19; e acidentes viários, 28. A dar-se crédito a Bolsonaro, não passaria de uma “gripezinha” que, em dezembro, estava “no finalzinho”.

Ignora-se, por enquanto, o destino de Pazuello. Se não voltar a ser ministro, se não for indicado para um cargo que lhe garanta o direito de só ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal, responderá a processos na primeira instância da justiça. E qualquer juiz, de repente, poderá mandar prendê-lo.

Pense na encrenca que seria um general, e ainda por cima da ativa, preso, mesmo que solto depois. Bolsonaro carregará mais essa na sua folha corrida? Seu aniversário de 66 anos foi comemorado no último domingo. Mas o inferno astral cavado por ele não passou. Ao falar ao país, foi recepcionado com um panelaço.

O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo, rejeitou a ação impetrada por Bolsonaro contra medidas de isolamento mais rígidas baixadas pelos governadores da Bahia, Distrito Federal e Rio Grande do Sul. Bolsonaro disse outra vez que não deseja para ninguém o cargo que ocupa. Simples: vá pra casa, capitão!


Ricardo Noblat: O preço a ser pago por uma “boquinha” para o general Pazuello

O país pode esperar. O vírus agradece

Pois não foi que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária se esqueceu de passar no último sábado o e-mail que convocaria para o dia seguinte uma reunião sobre a falta de remédios necessários à intubação de pacientes vítimas da Covid-19?

Situação insólita, assim os mais tolerantes a definiriam. Quer algo mais insólito do que o país estar sem ministro da Saúde há 8 dias apesar de Bolsonaro ter anunciado a demissão do general Eduardo Pazuello e a entrada do médico Marcelo Queiroga?

A demissão não havia sido publicada até ontem no Diário Oficial, tampouco a nomeação do novo ministro. Oficialmente, Pazuello continua ministro da Saúde, à espera de ser substituído por Queiroga. Enquanto isso, o ministério parou.

É concebível que tal coisa aconteça em meio a uma pandemia que se aproxima do número de 300 mil mortos em menos de um ano? Pior: em meio a uma pandemia que se agrava, superando os picos que alcançou no ano passado? Neste governo, tudo é possível.

O presidente da República procura um novo cargo para oferecer ao general. Um cargo que lhe assegure foro especial para só ser processado pelo Supremo Tribunal Federal. Entregue ao sol e à chuva é que Pazuello não ficará para evitar o risco de ser preso.

Quem sabe, o presidente não cria um novo ministério só para abrigá-lo. Está pensando nisso, mas não é tão simples. Pode não ser um novo ministério com pesada carga de obrigações. Pazuello tem dificuldade de encarar várias tarefas ao mesmo tempo.

Se não der, talvez dê para alocar o general em algum cargo no exterior, como se fez com Abraham Weintraub, ex-ministro da Educação, promovido a diretor do Banco Mundial. Ele também fugiu do país para escapar de processos. Agora, ganha em dólares.

De alguma maneira, a demora na troca está sendo providencial para Queiroga. Os órgãos de inteligência do governo se esqueceram de pesquisar a fundo a vida do futuro ministro da Saúde, e ignoravam que ele era sócio de empresas na área médica.

Deve andar ocupado em transferir para terceiros sua parte nos negócios. O Ministério da Saúde pode ficar inativo enquanto tudo isso se resolve. Afinal, não é para morrer os que tiverem de morrer, como disse mais de uma vez o presidente da República?

Então não fará tanta diferença assim. Bolsonaro providenciou mais uma distração para que o tempo corra e o vírus avance: amanhã, reunirá os presidentes dos demais poderes da República e anunciará um pacto nacional de combate à pandemia.

Seria conveniente que desta vez não se esquecesse de transmitir o e-mail de convocação do encontro.

Vaidade, o pecado favorito do diabo e de Paulo Guedes

Ruim com ele, talvez pior sem...

Ao fundo, ouve-se a voz baixinha de Paulo Guedes, ministro da Economia, o ex-Posto Ipiranga de Jair Bolsonaro: ”Sou a favor das vacinas. Quero me vacinar”. Como se isso o fortalecesse, de um lado, junto ao chamado mercado financeiro que acreditou em suas promessas não realizadas até aqui, e do outro, junto à maioria dos brasileiros que reprovam o governo do qual ele faz parte.

Tem uma cena memorável do filme “Advogado do Diabo”, estrelado por Al Pacino, que conta a história do diabo na pele de um bem-sucedido advogado de Nova Iorque. Depois de possuir e de perder a alma de um talentoso colega do interior, atraído por ele para defender suas causas, o diabo a recupera no final e comenta com malícia: “Ah, a vaidade, o meu pecado favorito”.

É o pecado da vaidade que justifica a permanência de Guedes no governo. Se estivesse no mercado, ganhando muito dinheiro como sempre fez por obra e graça do seu talento, sua posição seria mais confortável. Quem sabe não teria subscrito a carta de mais de 1.500 nomes de peso do país, entre empresários e economistas, que pedem ao governo mais vacina e mais respeito pelo Brasil.

Nada, na carta, contraria o que Guedes pensa. Em conversas reservadas a respeito, ele mesmo admite. Mas o ministro sofre do complexo de inferioridade de nunca ter sido chamado a servir aos governos passados, nem reconhecido por seus pares como acha que merecia. Criticou todos os planos econômicos que sem sua rubrica deram certo ou errado. O seu, sem dúvida, seria melhor.

Bolsonaro representou para Guedes a oportunidade de fazer parte da elite dos economistas do país e de poder pôr em prática suas ideias – mas aí deu ruim. O candidato não precisava de um iluminado para introduzi-lo no complexo e traiçoeiro mundo da economia. Bastava que fosse seu avalista junto aos donos do dinheiro. Uma vez eleito, Bolsonaro, tem feito o que quer.

Por que mesmo assim Guedes não pede para ir embora? Ah, a vaidade, o pecado favorito do diabo e dos homens que ele seduz! Ir embora para quê? Para que digam que fracassou? Guedes prefere dizer que sem ele a situação seria pior. O mercado começa a achar que talvez não fosse bem assim. Só ainda não o abandonou, nem a Bolsonaro, por medo da eventual volta de Lula ao poder.

Mas – quem sabe? -, Bolsonaro não se reelege? Quem sabe não se deixa governar por Guedes no segundo mandato? Vai que o país se recupere e que Bolsonaro faça seu sucessor… Lula não se elegeu, reelegeu-se, elegeu e reelegeu Dilma? É verdade que ela foi derrubada. Mas nem sempre a história se repete. Guedes, vacinado, vai recobrar o ânimo, acredite. Quanto às reformas…

Elas podem esperar.


Ricardo Noblat: Engrossa o caldo dos que querem ver Bolsonaro pelas costas

O mau uso que ele faz do apoio militar

Qual o sonho de consumo do brasileiro ameaçado pelo vírus que bate à sua porta? Se for inevitável contraí-lo, quer uma vaga de UTI no melhor hospital que existir, medicamentos em profusão, cilindros de oxigênio à farta e uma equipe de sábios doutores e de experientes enfermeiros que cuidem dele em tempo integral.

A isso a pandemia nos reduziu. A isso que nos reduziu um presidente da República genocida por natureza que parece ter forte compulsão pela morte, sabe-se lá por quê. Freud explica, certamente. Assunto para estimular discussões intermináveis entre psicanalistas das mais diversas escolas.

Seria o caso também de eles se debruçar, junto com sociólogos, antropólogos e historiadores, sobre o comportamento até aqui indiferente ou resignado da maioria dos brasileiros diante do número de mortos pela doença que em breve superará a marca dos 300 mil. Por que procedemos assim? O que nos move?

Bolsonaro, que tantas vezes desafiou a morte como paraquedista do Exército antes de ser afastado de lá, acusado de conduta antiética, é movido pela falta de compaixão e pelo firme propósito de tirar vantagem de tudo, até de um banho nas águas frias do rio Jordão. Ele, acima de tudo! Os filhos, acima de todos!

Só muda quando o desespero toma conta de sua alma. Sempre que se vê acuado, apela às Forças Armadas e finge contar com o seu apoio para governar e, em situação extrema, ir além – se der, via adoção de medidas capazes de instalar no país um regime autoritário. Seu compromisso com a democracia é zero.

Se não a sabota mais do que já faz é porque lhe falta respaldo. Nas eleições de 2018, ele de fato foi o candidato dos militares, preocupados em impedir um eventual retorno da esquerda ao poder. Nas eleições de 2022, tudo indica que continuará sendo. Mas se for derrotado, lhe baterão continência à saída,  tchau, e só.

Por formação, militar é de direita, aprecia armas, trata os subordinados aos berros e cobra obediência. Mas muitos nos escalões superiores são estudiosos e bons analistas. Sabem ler o mundo e o país. Sabem que a supressão da democracia faria do Brasil um pária internacional. E isso eles não querem.

Pária já é. A nova cepa brasileira do vírus aterroriza os governos da região. Peru e Colômbia proibiram voos do Brasil. O Uruguai mandou mais doses de vacinas para a fronteira com o Rio Grande do Sul. Quem vai do Brasil para o Chile fica em quarentena. Os argentinos impuseram restrições à entrada de brasileiros.

Insensível ao que se passa ao redor, Bolsonaro usa os militares como espantalho doméstico, e eles se deixam usar, encantados, como estão, com a volta ao poder, desta vez pelo voto. Não ligam quando o presidente fala em seu nome como fez, ontem, outra vez. É coisa de político, desculpam. Bolsonaro proclamou:

“Pode ter certeza, o nosso exército é verde-oliva e vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade. Estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir.”

E ao concluir uma das peças mais demagógicas do seu pobre repertório, prometeu: “Enquanto for vivo, enquanto for presidente, porque só Deus me tira daqui, eu estarei com vocês”. Estará para quê? Para associar-se ao vírus e dar passagem à morte? Para destruir a Amazônia? Para pôr a educação ao rés-do-chão?

Engrossa o caldo dos que à esquerda e à direita querem ver Bolsonaro pelas costas, se possível antes do fim do mandato. Já foi melhor negócio para o Centrão apoiá-lo em troca de benefícios. A companhia dele começa a tornar-se tóxica. Um deputado federal pernambucano, bolsonarista convicto, disse a este blog:

– Poderemos ir com ele até a porta do cemitério, mas não entraremos.

As muitas pedras no caminho de Lula até a eleição de 2022

Para 57% dos brasileiros, a condenação dele foi justa

Ora, dirão os petistas de quatro costados: é natural que uma pequena maioria dos brasileiros desaprove a decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, que suspendeu as condenações de Lula e o tornou elegível – afinal, nos últimos anos, Lula foi alvo de um massacre midiático.

Houve um massacre. Mas é bom esclarecer que Lula não foi inocentado por Fachin. Depois de 4 anos, o ministro finalmente concluiu que a Vara Federal de Curitiba, à época comandada pelo então juiz Sérgio Moro, não era o juízo natural para julgar Lula. Caberá à Vara Federal de Brasília julgá-lo outra vez.

A reclamação dos petistas advém da descoberta feita pelo Datafolha em pesquisa aplicada na semana passada e só revelada hoje: para 57% dos entrevistados, foi justa a condenação de Lula por Moro, que o sentenciou a 9 anos e 6 meses de cadeia, pena reduzida a 8 anos e 10 meses pelo Superior Tribunal de Justiça.

Para 38%, a condenação foi injusta, e 5% não souberam responder. Em abril de 2018, o Datafolha quis saber o que os brasileiros pensavam sobre essa mesma questão. Os resultados foram semelhantes: 54% viram justiça, 40%, injustiça, e 6% disseram não saber. Lula quer enfrentar Bolsonaro na eleição do ano que vem.

Não terá vida fácil se a opinião a seu respeito permanecer a mesma. Será alvo de ataques dos adversários, mas poderá se defender usando os mesmos meios dos quais se queixa. Bolsonaro o chamará de ladrão. Lula o chamará de genocida. Um candidato do centro se apresentará como alternativa ao genocida e ao ladrão.

Ainda faltam 19 meses para as próximas eleições. Só torcedor se arrisca a prever o resultado.


Ricardo Noblat: Presidente só pode o que a lei permite e o Congresso aceite

Liberdade de expressão ganha mais uma

Guardo, emoldurada, minha ficha do Serviço Nacional de Informações, o órgão de espionagem da ditadura de 64. Tão poderoso que dos seus quadros saíram dois presidentes da República: os generais Garrastazu Médici e João Figueiredo.

Ao rever a ficha, dei-me conta das vezes que já fui alvo da Lei de Segurança Nacional em 54 anos de jornalismo. A primeira foi em 1968 por ter participado do congresso da União Nacional dos Estudantes, entidade amaldiçoada pelo regime militar.

A segunda vez foi quando eu e mais 25 colegas, em março de 1969, fomos expulsos da universidade por “atividades” qualificadas de “subversivas” – tais como fazer passeatas e discursos contra a ditadura. Por um ano fomos proibidos de estudar.

Os processos que respondi com base na famigerada lei não deram em nada. Como deu em nada o mais recente – desta vez por publicar na versão deste blog no Twitter uma charge do cartunista Aroeira sobre Bolsonaro. Ambos respondemos a inquérito.

O inquérito foi aberto pela Polícia Federal a pedido do ministro André Mendonça, da Justiça, e a mando do presidente da República que defendeu a tortura de presos políticos e está pronto para celebrar, em breve, mais um aniversário do golpe militar.

Perguntaram-me se pretendi ofender a figura do presidente, injuriá-lo, caluniá-lo ou difamá-lo. Respondi que não, Deus me livre. Respeito as autoridades públicas, principalmente as eleitas, por mais que as critique, dever de todo jornalista que se preza.

Perguntaram-me então por que postei a charge. Respondi que ela já havia sido postada centenas de vezes antes, alcançando merecido sucesso nas redes. A meu ver, jornalismo serve para satisfazer os aflitos e afligir os satisfeitos – é o caso de Bolsonaro.

Devo satisfações ao meu patrão – o distinto público de todas as cores, credos e ideologias. Se ele me dá as costas, perco o emprego. Já perdi algumas vezes porque foram meus empregadores que, incomodados, me deram as costas. Fazer o quê? Vida que segue.

O jornalismo não é diferente de qualquer outra profissão. Cobra talento, disciplina, paixão, suor e sorte. Mas não é igual a qualquer outra profissão. E por causa de um detalhe crescentemente desvalorizado desde a erupção das redes sociais: a verdade.

A missão do jornalista é buscar a verdade ou a melhor versão dela e oferecê-la ao público de maneira compreensível e honesta. É só para isso que serve o jornalismo. Se servir para outras coisas, não serve ao público. E se não serve, é um simulacro de jornalismo.

Antes de se eleger deputado federal pela primeira vez, Miro Teixeira foi jornalista. Como político, destacou-se por combater a ditadura com firmeza, sempre em defesa das melhores causas. Foi ele que advogou agora a meu favor e a favor de Aroeira.

O despacho da procuradora da República Marina Selos Ferreira, favorável ao arquivamento do inquérito, deu razão integral aos argumentos usados por Miro. Depois de citar farta jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ela concluiu:

“Assim, sem descurar da compreensão de que o direito à manifestação não se reveste de caráter absoluto, tem-se que a liberdade de expressão, concretizada através da produção e publicação de charge devidamente contextualizada, e como fundamento do pluralismo de ideias, deve se sobrepor a interpretações punitivistas que buscam por meio da sanção penal intimidar ou mesmo suprimir a força do pensamento crítico e da oposição, os quais são indispensáveis à dialética do regime democrático”.

Mais do que informações, o jornalismo deve transmitir entendimento. Porque é do entendimento que deriva o Poder. Numa democracia, o Poder é dos cidadãos. E para que funcione na sua plenitude, a democracia depende de cidadãos bem informados.

Todas as pessoas têm direito à própria opinião, mas não têm direito aos próprios fatos, ensinou um senador americano. Fatos são fatos, não escolhas aleatórias. O vírus só poderá ser vencido com vacina, é fato! A terra é plana não é fato, é opinião de idiota.

É fato que Bolsonaro foi eleito pela maioria dos brasileiros. Como é fato que foi eleito por apenas 39% dos eleitores aptos a votar. Poderiam ter votado 147 milhões, e ele teve menos de 58 milhões dos votos. Não recebeu o poder para fazer o que quiser.

O Presidente da República só pode o que a Constituição permite e o Congresso aceite. Não foi eleito para esmagar a minoria. Não pode interpretar as leis ao seu bel prazer, e muito menos valer-se delas para tentar intimidar quem quer que seja.


Cristovam Buarque: Turno único

Democracia em risco

Diversos candidatos se propõem a impedir a reeleição do atual presidente. Na medida que a eleição se aproxime, disputarão mais entre eles do que contra o opositor deles. Porque vão concentrar a disputa na busca de chegar ao segundo turno. Seus adversários serão seus aliados. Ao concentrarem a disputa entre eles, os candidatos criarão antagonismos que serão levados até o segundo turno, por eles próprios e por seus eleitores.

Vimos isto em 2018, quando os candidatos que perderam no primeiro turno não se empenharam na campanha de Haddad, quando este chegou ao segundo turno. Muitos dos eleitores preferiram votar nulo ou branco ou simplesmente se ausentarem. Isto ocorre em qualquer tempo, muito mais em momentos de confrontos e acusações radicalizadas, como atualmente. Apesar de que Bolsonaro hoje assusta e indigna mais do que em 2018, depois de tantas acusações, será o envolvimento pleno dos perdedores, apoiando quem chegar no segundo turno.

Os candidatos democratas que percebem este risco têm a obrigação de evitar um segundo turno e consequentemente o risco de um novo mandato para o presidente atual. Devem perceber também que o papel desempenhado pelas Forças Armadas nestes dois anos e a farta disseminação de armas entre bolsonarista podem levar a um “terceiro turno” nas ruas, caso ele perca por uma margem estreita no segundo turno. As afirmações de que não acredita nas urnas eletrônicas e de que prevê fraudes indica uma possibilidade de se manter no poder, usando milícias para invadir Congresso e Tribunal Eleitoral, prender ou eliminar adversários.

As forças democráticas devem evitar este risco: construir uma aliança que una os partidos e os candidatos para vencerem logo no primeiro turno, por uma diferença indiscutível, e em função disto estruturarem um governo de concertação nacional, sem o qual será difícil levar adiante o novo governo diante das sequelas das epidemias e malditos que afligem o país.

É preciso colocar o país na frente dos interesses e posições de cada partido e de seus líderes, seus programas e ambições. Construírem uma unidade vencedora e capaz de conduzir o país. Para tanto, é preciso reconhecer os erros cometidos no passado, aceitar que não foi dada a devida prioridade para reformas estruturais que servissem às necessidades das camadas pobres, nem aquelas necessárias para ajustar o Brasil ao futuro, além de que foram mantidas indecentes mordomias e privilégios. Sobretudo, houve aparelhamento partidário da máquina do Estado que permitiram a corrupção avassaladora sobre as estatais.

Nada disto pode ser ignorado, e a Justiça deve ser feita. Cumprida a Justiça em relação aos crimes do passado, a Política precisa olhar o futuro. Os juízes devem prender quem for preciso prender, os políticos devem dialogar com quem for preciso para salvar o País. Em busca de vencer Bolsonaro no primeiro turno, por uma margem que acalme seus fanáticos desarmados e constranja suas milícias armadas.

Se não for possível o impeachment antes, ainda é tempo de construir-se um turno único contra Bolsonaro em 2022.

*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro


Foto: Beto Barata\PR

Murillo de Aragão: Um novo presidencialismo

O Judiciário ganha força e, com a pandemia, o federalismo também

O governo Bolsonaro, por suas características, reforçou uma tendência iniciada no segundo mandato de Dilma Rousseff: a transformação do chamado “presidencialismo de coalizão”. Esse processo continua, embora ainda não seja claramente percebido.

Até 2015 todas as emendas orçamentárias parlamentares possuíam caráter discricionário, ou seja, dependiam de autorização do governo federal para liberação. Tal sistemática estimulava as negociações com o Executivo em troca de apoio.

Em 2019, já no governo Bolsonaro, o Legislativo estabeleceu, com a Emenda Constitucional nº 100/19, que as emendas de bancadas estaduais também deveriam ser obrigatoriamente pagas. No mesmo ano, a Emenda Constitucional nº 105/19 autorizou repasses diretos a estados, municípios e ao Distrito Federal de recursos de emendas individuais impositivas, sem a necessidade de convênios com o governo federal.

Por fim, a partir da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020, a obrigatoriedade de execução passou a abranger tanto as emendas do relator-­geral da Lei Orçamentária Anual quanto as das comissões permanentes da Câmara e do Senado. As emendas do relator-geral do Orçamento têm até mesmo prioridade de empenho, com prazo máximo de três meses.

“O governo deve ser mais proativo na atração de apoios, pois o poder é compartilhado como nunca no país”

Tais mudanças alteraram o desequilíbrio de forças entre o Poder Executivo e o Congresso Nacional. E por que digo desequilíbrio? Pelo fato de que o Executivo sempre teve uma soma maior de poderes do que as esferas legislativa e judiciária, situação que só tem sido modificada ao longo das últimas décadas.

A questão orçamentária tirou do Executivo o poder de barganhar a execução de emendas em troca de apoio. Agora, governo, independentes e oposição têm as suas emendas executadas por força constitucional.

Qual a consequência disso? Parlamentares podem votar contra o governo sem temer que seus recursos orçamentários sejam bloqueados. Assim, o governo deve ser mais proativo na atração de apoio político, visto que o poder está sendo compartilhado como nunca antes no Brasil.

Ainda em 2019, Jair Bolsonaro se tornou o presidente com o maior número de derrotas porcentuais em vetos no Congresso. O modelo político adotado pelo governo não lhe permitia apoio consistente no Congresso.

Já no ano seguinte, Bolsonaro tratou de construir uma base política. Essa base ainda se encontra em formação, mesmo assim a autonomia dos parlamentares já é muito maior. Sem uma base sólida no Congresso, o governo poderá ser contrariado.

Fato é que estamos caminhando para um regime semipresidencialista numa época em que o Judiciário ganha força e o federalismo também. A pandemia de Covid-19 mostrou uma federação em funcionamento.

O presidente da República está deixando de ser a “Sua Majestade” descrita por Ernest Hambloch. Embora ainda não estejam claras e não sejam percebidas pela opinião pública, as transformações já produzem efeitos significativos na política nacional.

Publicado em VEJA de 24 de março de 2021, edição nº 2730


Ricardo Noblat: Acuado pelo vírus, Bolsonaro assiste Lula atrair velhos aliados

Versão Lulinha paz e amor de volta à cena

De Guilherme Boulos a Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda na ditadura entre 1967 e 1974, passando por José Sarney (MDB) e Fernando Henrique Cardoso (PSDB), todos admitem votar em Lula se ele disputar com Bolsonaro o segundo turno da eleição do próximo ano. É o tal “arco da sociedade” de antigamente.

Boulos e Delfim são os mais entusiasmados. O primeiro ainda não explicitou seu apoio a Lula porque tem antes de convencer o seu partido. A tarefa de Delfim é mais hercúlea – abrir trincas no paredão do mercado financeiro que resiste a Lula e ainda põe um resto de fé em Bolsonaro à espera das reformas.

Na eleição de 2018, quando o candidato do PSDB a presidente obteve no primeiro turno apenas 5% dos votos válidos, Fernando Henrique, embora amigo de Fernando Haddad (PT), preferiu não votar em ninguém no segundo turno. Arrependeu-se, como admitiu ontem em entrevista a Tales Faria, do UOL:

– Se ficar Lula e Bolsonaro, faço minha culpa, minha culpa e voto no menos ruim.

Fernando Henrique ainda espera que seu partido escolha um nome com chances de derrotar Bolsonaro, mas já avisa: “Se não se opuser a Bolsonaro com firmeza, fracassará”. João Doria (PSDB), governador de São Paulo, recuou do seu propósito de enfrentar Bolsonaro, embora tope enfrentar se seu partido quiser.

João Leite (PSDB), governador do Rio Grande do Sul, persevera na intenção de bater-se contra o atual presidente. Até aqui, pelo menos, seu nome parece encontrar menor oposição dentro do partido. Na eleição de 2018, o Rio Grande do Sul deu 63% dos seus votos a Bolsonaro no segundo turno.

O MDB de Sarney é também o MDB de Michel Temer que, por enquanto, permanece calado. Em segredo, Temer deu conselhos a Bolsonaro na esperança de que seu governo se ajeitasse. Pouco escutado, retraiu-se. Ele e Lula sempre se deram bem. Dilma não quer conversa com Temer, mas ela está fora do jogo.

Bolsonaro é quem deve se preocupar com sua permanência no jogo. Começou a colher os resultados desastrosos de sua omissão no combate à pandemia. Ou melhor: da sua parceria com a Covid no estrago que ela provoca no país. Sucessivas e recentes pesquisas de opinião pública atestam que ele está ladeira a baixo.

No dia em que o número de mortes alcançou o recorde de 2.798, quase duas por minuto, e a Fundação Oswaldo Cruz anunciou que o país enfrenta o maior colapso hospitalar de sua história, o Datafolha conferiu que a atuação de Bolsonaro na guerra contra o vírus é considerada ruim ou péssima por 54% dos brasileiros.

Na pesquisa Datafolha realizada em 20 e 21 de janeiro último, 48% reprovaram o desempenho dele. Na rodada atual, para 43%, ele é o principal culpado pela fase aguda da pandemia, seguido pelos governadores (17%) e os prefeitos (9%). O índice dos que nunca acreditam no que ele diz oscilou de 41% para 45%.

No ocaso da gestão do general Eduardo Pazuello, substituído no cargo pelo médico bolsonarista Marcelo Queiroga, a avaliação positiva do Ministério da Saúde, de janeiro para cá,  caiu de 35% para 28%, o menor índice desde a chegada do novo coronavírus. A avaliação negativa subiu de 30% para 39%.

Em sua primeira fala como ministro, Queiroga disse a que veio. Recomendou o uso de máscara e a lavagem das mãos, solidarizou-se com as vítimas da Covid e repetiu que dará continuidade ao trabalho de Pazuello e seguirá as orientações de Bolsonaro. É uma nova versão do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

Hamilton Mourão, vice-presidente da República, deu razão a Queiroga: “A função do ministro, quem define é o presidente. O ministro é um executor das decisões do presidente. Até por isso, o presidente é o responsável por tudo o que aconteça ou deixe de acontecer, essa é a realidade”. (Maldade com Bolsonaro!!!)

Na célebre e barulhenta reunião ministerial de abril do ano passado, o ministro do Meio Ambiente sugeriu a Bolsonaro “passar a manada” da desregulamentação do setor enquanto a mídia estivesse ocupada com a pandemia. Acuado pelo vírus, Bolsonaro assiste Lula aparar suas eventuais diferenças com antigos aliados.

O futuro assegura um emprego bem pago ao general Pazuello

A quarta estrela será difícil

Se quiser retornar ao quartel, tudo bem. O general Eduardo Pazuello, de saída do Ministério da Saúde, deixou ali grandes amigos. Só não deve contar necessariamente com a quarta estrela que lhe falta no ombro. Doublé de general e de ministro de um governo turbulento, ele desgastou-se no Exército.

Mas o provável é que ganhe uma embaixada para não ficar ao desamparo, e ainda por cima sob o risco de ser chamado a depor diante de um juiz da primeira instância e de ouvir voz de prisão, acusado de improbidade administrativa. Embaixada quer dizer: um emprego bem pago que lhe confira visibilidade.

Pode ser dentro do Palácio do Planalto, a relativa distância do gabinete do presidente Jair Bolsonaro, ou fora, no comando de alguma empresa estatal. Ou como conselheiro de uma dessas empresas. Desabrigado não ficará para não sujeitar-se a vexames e em reconhecimento aos serviços prestados ao ex-capitão.