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Ricardo Noblat: As duas faces de Bolsonaro no Natal da pandemia

Escolha a que lhe pareça mais verdadeira

Na véspera do Natal, o presidente Jair Bolsonaro ofereceu aos brasileiros duas versões dele mesmo – uma por cadeia nacional de rádio e televisão e a outra por meio das redes sociais.

Na primeira, ao lado de Michelle, sua mulher, ele leu um texto escrito por assessores. Na segunda, ao vivo, falou de improviso como costuma fazer sempre às quintas-feiras.

O Bolsonaro que tratou o novo coronavírus como “gripezinha”, receitou cloroquina para os doentes e disse que morreriam os que tivessem de morrer, ficou de fora do rádio e da televisão.

Ali foi servido um presidente da República que se solidarizou com as vítimas da pandemia, destacou que seu governo agiu para salvar vidas e empregos e que por isso acabou sendo bem-sucedido.

“Nessa ocasião, solidarizo-me com as famílias que perderam seus entes queridos. Externo meus sentimentos, pedindo a Deus que conforte os corações de todos”, afirmou Bolsonaro.

Em seguida, lembrou o pagamento do auxílio emergencial, o financiamento a micro e pequenas empresas e a medida que compensou parte da redução de salários em empresas.

No dia em que o Brasil ultrapassou a marca das 190 mil mortes pela Covid-19, o Bolsonaro das redes sociais preferiu atacar o governador João Doria (PSDB-SP).

 “Eu quero o cidadão de bem armado. Com o povo de bem armado, acaba essa brincadeirinha de ‘vai ficar todo mundo em casa que eu vou passear em Miami’”, disparou Bolsonaro.

Que insistiu: “Pelo amor de Deus. Oh… calcinha apertada! Isso não é coisa de homem. Fecha São Paulo e vai passear em Miami. É coisa de quem tem calcinha apertada. Isso é um crime”.

Outra vez pôs em dúvida a segurança das vacinas que estão sendo desenvolvidas por vários laboratórios e que já começaram a ser aplicadas na Inglaterra, Estados Unidos, México e Chile:

– A eficácia da vacina em São Paulo parece que está lá embaixo, né? Não vou aceitar uma vacina que não está devidamente comprovada, que está em fase experimental.

Por fim, da vacina saltou para o uso de armas e declarou: “Ajudamos muita gente a comprar armas e munições. Quero que o brasileiro se arme. O povo armado jamais será escravizado”.

A primeira vez que Bolsonaro falou em armar o povo foi dentro de um quartel do Exército em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, seis meses depois de empossado na presidência da República.

Contra o regime militar de 64, a esquerda brasileira usou os slogans “O povo unido jamais será vencido”, “O povo organizado derruba a ditadura” e “Só povo armado derruba a ditadura”.

Feliz Natal para todos com o Bolsonaro que melhor lhe aprouver.


Ricardo Noblat: Vacina pouca, minha toga primeiro

No país do “você sabe com quem está falando”...

O que você entenderia se recebesse do Supremo Tribunal Federal um ofício pedindo a reserva de vacinas para imunizar 7 mil servidores do tribunal e do Conselho Nacional de Justiça?

Naturalmente, que o tribunal pretendia que do total de vacinas a serem entregues ao Ministério da Saúde para aplicação em massa nos brasileiros, 7 mil fossem destinadas aos seus servidores.

Não há outra leitura possível do ofício assinado por Edmundo Veras, diretor-geral do tribunal, enviado à Fundação Oswaldo Cruz, fabricante da vacina Oxford/AstraZeneca contra a Covid-19.

Veras argumenta no ofício que a vacinação dos servidores representará “uma forma de contribuir com o país em momento tão crítico, pois ajudará a acelerar o processo de imunização”.

Segundo o plano do Ministério da Saúde, primeiro serão vacinados trabalhadores da saúde, idosos, pessoas com comorbidades, profissionais de segurança, indígenas e quilombolas, por exemplo.

Se houver idosos e pessoas com comorbidades entre os servidores do tribunal e do Conselho Nacional de Justiça, eles serão contemplados. Indígenas e quilombolas certamente não há.

“Nós vacinaremos todos os brasileiros de forma igualitária, de forma proporcional ao número de pessoas por Estado e de graça”, prometeu Eduardo Pazuello, general e ministro da Saúde.

O ofício era desnecessário. A não ser que ele quisesse sugerir o desejo dos ministros do tribunal e dos servidores de serem vacinados em primeiro lugar ou o mais rapidamente possível.

Veras nega que teve essa intenção. Ofício semelhante também foi remetido à fundação por Marcos Antonio Cavalcante, diretor-geral do Superior Tribunal de Justiça. Que o justificou assim:

– A intenção de compra de vacinas vem sendo manifestada por diversos órgãos públicos que realizam campanhas de imunização entre seus funcionários.

Resposta da fundação a Cavalcante: “Infelizmente, a Fiocruz não possui autonomia nem mesmo para dedicar parte da produção da vacina para a imunização de seus servidores e colaboradores”.


Ricardo Noblat: Baleia Rossi será o candidato de Maia a presidente da Câmara

Falta o PT decidir se o apoiará desde já ou só mais adiante

Luiz Felipe Baleia Tenuto Rossi, ou apenas Baleia Rossi como prefere que o chamem, 48 anos de idade, deputado federal no seu segundo mandato, ex-deputado estadual e ex-vereador de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, atual presidente nacional do MDB, será anunciado amanhã como o candidato do grupo montado por Rodrigo Maia (DEM-RJ) para disputar a presidência da Câmara.

O grupo é formado por 11 partidos – PT, PSL, MDB, PSB, PSDB, DEM, PDT, Cidadania, PV, PC do B e Rede. Juntos, eles somam 269 votos de um total de 513. Para eleger o presidente em primeiro turno são necessários 257 votos. Ao grupo ainda poderão se juntar o NOVO (8 deputados) e o PSOL (10 deputados). A disputa será contra o candidato de Bolsonaro, o deputado Arthur Lira (PP-AL)

Lira conta com o apoio do PP, PL, PSD, Republicanos, Solidariedade, PTB, Pros, PSC, Avante e Patriota que, juntos, somam 204 votos. Ou seja: 65 votos a menos do que tem hoje o grupo de Maia, o atual presidente da Câmara. O Podemos (10 deputados) deverá aderir a Lira. A eleição será realizada em 1º de fevereiro e, como o voto é secreto, haverá traições nos dois lados.

O PT decidirá hoje se apresentará um pré-candidato à presidência da Câmara só para marcar posição ou se declarará desde já apoio a Rossi. Já foi maior a resistência ao nome de Rossi dentro do PT. Em carta enviada, ontem, aos seus colegas de bancada, o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) defendeu o apoio do partido ao candidato de oposição ao governo Bolsonaro.

No último sábado, por mais de duas horas, Maia e Rossi conversaram em São Paulo sobre a sucessão na Câmara com o ex-presidente Michel Temer (MDB). Até aquele momento, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) ainda era uma opção ao nome de Rossi. Deixou de ser porque seu partido, por larga maioria de votos, apoiará Lira. A conversa de Maia com Temer sacramentou a escolha de Rossi.

Levou-se em conta também a pretensão do deputado Fábio Ramalho (MDB-MG) de ser candidato à presidência da Câmara. Ramalho já foi vice-presidente, é famoso pelos magníficos almoços e jantares que oferece no seu apartamento em Brasília, e calcula-se que possa atrair de 50 a 60 votos caso concorra. Mas dificilmente concorrerá contra o presidente do seu próprio partido.

A candidatura de Rossi reduzirá as chances de que seja lançado um nome do MDB para presidente do Senado. Dois nomes despontavam até então: Fernando Bezerra Coelho (PE), líder do governo no Senado, o que agradaria Bolsonaro, e Eduardo Braga (AM). Rara é a vez, como acontece agora no caso do DEM, de um partido presidir ao mesmo tempo a Câmara e o Senado.


Ricardo Noblat: Taokey, Jair Bolsonaro, você venceu!

Sociedade com o vírus pouco custou ao presidente até agora

Morreram quase 187 mil pessoas? Mais de 7 milhões foram infectadas? E daí? Quem tiver que morrer, morrerá. A pandemia só chegará ao fim depois que o vírus contaminar mais de 75% da população. É assim que o presidente Jair Bolsonaro sempre pensou desde quando o então ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, o pressionava para combater a pandemia. E assim será.

O governo não tem pressa em comprar vacinas. Ou melhor: gastar com vacinas, seringas, agulhas. Foi o próprio presidente da República quem o disse numa conversa com seu filho Eduardo, o Zero Três, deputado federal, lobista de empresas americanas de armas, o embaixador do Brasil em Washington que tentou ser, mas deu ruim. A natureza de Bolsonaro não mudou nem mudará.

Só tirou Abraham Weintraub do Ministério da Educação porque se sentiu ameaçado por um processo de impeachment. Weintraub havia sugerido a prisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal, “esses vagabundos”. Como prêmio de consolação, ganhou uma diretoria do Banco Mundial nos Estados Unidos. Salário em dólar. Aí começou a farsa de que Bolsonaro iria trocar de pele.

Dizia-se que, assustado, ele aprendera a respeitar a Justiça e o Congresso, escolhera o diálogo como principal instrumento de governo e decidira compartilhar o poder com os partidos. Tudo como fizeram seus antecessores. Finalmente, um presidente normal, e não um destruidor do sistema como ele se pretendia. A democracia estava salva. Aleluia, irmãos! Deus é pai!

Mas no final de maio último, Fabrício Queiroz, amigo há 40 anos de Bolsonaro, designado por ele para tutelar Flávio, o Zero Um, na Assembleia Legislativa do Rio, foi descoberto e preso numa casa no interior de São Paulo do advogado Frederick Wassef. Advogado de quem? Ora, de Flávio e do seu pai, embora os dois jurem de mãos postas que jamais souberam que Wassef escondia Queiroz.

Então o presidente normal ou normalizado reuniu ministros militares e anunciou que estava disposto a fechar o Supremo Tribunal Federal. Para tanto, talvez bastasse um cabo e dois soldados como Eduardo sugeriu. Não houve golpe porque, consultados, os chefes das Forças Armadas tiraram os deles das seringas. É no que dá ser um país de maricas…

Até o momento, não há plano estratégico do Ministério da Saúde para o enfrentamento da segunda fase da pandemia do coronavírus, concluiu uma auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União e apresentada no dia 8 deste mês. Falta a entrega de equipamentos de proteção individual, respiradores, kits de testes e sobram irregularidades em contratos assinados.

Não haverá vacina para todo mundo como Bolsonaro tem prazer de repetir. Estados Unidos e Inglaterra já começaram a vacinar. Chile e Colômbia começarão a vacinar em janeiro. A Índia prevê que terá vacinado 300 milhões de pessoas até agosto. É mais gente do que há por aqui. Bolsonaro tem 20 bilhões de reais para arcar com tudo isso, mas prefere pôr em dúvida a eficácia das vacinas.

Em poucos dias, 59 milhões de brasileiros deixarão de ter direito ao auxílio emergencial criado para atenuar os efeitos da pandemia. Isso quer dizer que, dos 68 milhões que receberam o auxílio de abril para cá, apenas os 19 milhões inscritos no programa Bolsa Família continuarão a contar com alguma ajuda do governo. Sem o benefício, 24 milhões de brasileiros voltarão à pobreza extrema.

E daí? E daí que Bolsonaro está pouco ligando porque para ele vidas pouco importam. Está mais preocupado em eleger os próximos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado para poder aprovar, ali, propostas que lhe assegurem o apoio da parcela dos brasileiros, estimada em mais de 50%, que o isenta de responsabilidade pelas mortes que o vírus provocou.

Uma vez que preserve o apoio da metade dessa parcela, terá lugar garantido no segundo turno da eleição presidencial de 2022. E aí seja o que Deus quiser.


Ricardo Noblat: Bolsonaro volta a atacar a imprensa e humilha seu filho Eduardo

“Você teve um voto. O resto foi meu”

Ao assumir a presidência da República em janeiro de 2019, a prioridade número um de Jair Bolsonaro era reeleger-se dali a quatro anos. Quanto ao resto, empurraria com a barriga.

Depois, à medida que seus três filhos zeros começaram a ser alvos de denúncias por corrupção, a reeleição passou a ser a prioridade número dois. Se não salvar os filhos, não se salvará.

É preciso, pois, desacreditar os autores das denúncias, especialmente a imprensa, que as divulga e pressiona os demais poderes a investigá-las a fundo.

A mais recente denúncia bateu diretamente à porta do gabinete presidencial no terceiro andar do Palácio do Planalto, e isso explica a escalada recente dos ataques de Bolsonaro à imprensa.

Ele reuniu-se com advogados do seu filho Flávio, acusado de embolsar dinheiro público à época em que era deputado estadual no Rio, com o propósito de ajudá-los no que fosse possível.

Estavam presentes o ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e seu subordinado, o delegado Alexandre Ramagem, chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Dois relatórios, mais tarde, enviados por Ramagem aos advogados, são a prova de que a Abin deu o caminho das pedras para que eles fossem bem-sucedidos em sua tarefa.

A descoberta de que isso aconteceu, pode configurar crime de responsabilidade praticado por Bolsonaro e, no limite, até custar-lhe o mandato, deixou o presidente da República apoplético.

Sua entrevista, ontem, ao canal do filho Eduardo no Youtube não contém nada de novo, mas é uma demonstração de como ele está fortemente incomodado com o episódio.

“Me chama de corrupto, vamos lá”, desafiou Bolsonaro referindo-se à imprensa. “Me chama de corrupto, porra. Não tem mais grana mole para vocês. Acabou a treta. O fim de vocês está próximo”.

“Imprensa canalha, não vale nada”, insistiu. “Não leiam jornais. É tudo um lixo. Vão para a internet. […] Ai do ministro se eu souber que [no seu local de trabalho] tem jornais”.

Como seria impossível ocupar mais de uma hora de entrevista somente falando mal da imprensa, Bolsonaro revisitou seu estoque de temas preferidos. Ao fazê-lo, repetiu as velharias de sempre.

Sobre a facada que levou em Juiz de Fora: o caso foi mal apurado porque Sérgio Moro era o ministro da Justiça. Líderes políticos da esquerda queriam matá-lo, e ainda querem.

Sobre o voto eletrônico: não confia nele e, por seus cálculos, mais de 70% dos brasileiros também não. Perguntou: “Em que país do mundo esse sistema foi adotado?”

Sobre tortura no período da ditadura militar de 64: “[Os que reclamam] não eram presos políticos, eram terroristas. E eram tratados [nos porões do regime] com toda a dignidade”.

Sobre as eleições municipais: “A imprensa falou que eu perdi. Quantos prefeitos eu tinha? Zero. Então vou dar uma de Dilma aqui: Eu não ganhei nem perdi”.

E sobre a pandemia: “Ela está chegando ao fim. A pressa da vacina não se justifica. Vão inocular algo em você. O seu sistema imunológico pode reagir ainda de forma imprevista”.

Por último, em meio a risadas, humilhou o filho ao trocar de posição com ele. Travou-se então o seguinte diálogo:

– Vamos ver se você está ficando inteligente. Você teve quantos votos nas últimas eleições? – perguntou Bolsonaro.

– Eu fui eleito [deputado federal por São Paulo] com 1.843.735 votos em 2018 – informou Eduardo.

– Não aprendeu nada. Você teve um voto. O resto foi meu.

Enquanto o pai gargalhava, o filho apenas retrucou:

– Você não acha que foi o meu trabalho?

Bolsonaro não respondeu.


Cristovam Buarque: IDH - A culpa é nossa

Ignorar a responsabilidade dos governos anteriores é uma forma de negacionismo

O atual Presidente da República é o menos dotado de inteligência, capacidade gerencial, empatia social, espírito de tolerância e gosto pelo diálogo entre todos os que foram eleitos ao longo dos 130 anos de República; isto não justifica jogar sobre ele a responsabilidade pela queda da classificação do Brasil na escala do IDH. Ignorar a responsabilidade dos governos anteriores é uma forma de negacionismo, mentira que impede conhecer a realidade e aprender com os erros.

O IDH de cada país foi definido por dados de 2019, mas resultantes de anos e até décadas de descasos anteriores. A culpa, portanto, é dos governos precedentes ao longo de toda a República, especialmente nos 33 anos da nova democracia, dos quais 26 por governos progressistas, 13 dos quais de esquerda. A piora na renda per capita entre o IDH anterior e o atual não ocorreu por causa de 2019, mas devido a recessão iniciada em 2014. Os efeitos do período Bolsonaro serão vistos no futuro, e tudo indica que teremos quedas ainda maiores. Mas esta queda foi culpa nossa, não dele. Até porque nosso IDH melhorou ligeiramente, outros cinco países melhoraram mais e nos superaram.

Nisto está nossa falta: melhoramos ficando para trás, sobretudo em educação. Depois de quase 50 anos de medidas paliativas, avançamos piorando ao ampliar três brechas: avançamos, mas os outros países avançaram mais; a educação dos pobres melhorou, mas a dos ricos mais; estudamos mais, entretanto, o que ensinamos aumentou menos do que o que o mundo moderno exige.

Tudo indica que os países vizinhos, inclusive mais pobres, erradicarão o analfabetismo de adultos antes do Brasil. Os que se preocupam com a educação investem em escolas privadas para resolver o problema de seus filhos, não do país. Não têm educação de qualidade como propósito nacional, apenas para seus filhos, ignoram a educação de todos que é utilizada para calcular o IDH. Não vemos a necessidade de executarmos uma estratégia nacional consistente a longo prazo, para termos educação de qualidade para todos, sem o que o IDH não sobe em relação aos outros países.

A resistência à essa estratégia decorre, em primeiro lugar, de que não e gostarmos de longo prazo, preferimos as ilusões dos pequenos passos – Fundef, Fundeb I e II, Piso Salarial do Professor, Merenda, Livro Didático, PNE-I e II, IDEB, ENEM. Tudo certo e tudo insuficiente. Em segundo lugar, porque educação com a máxima qualidade pelos padrões internacionais não é um sonho brasileiro, ainda menos a crença de que a escola deve ter a mesma qualidade independente da renda e do endereço da família. Preferimos nos comparar pelo padrão FIFA do que pelo padrão PISA ou IDH. Nestas condições, dificilmente vamos ter uma estratégia de longo prazo para o governo federal adotar a educação de base nas cidades pobres. o apego municipalista prefere sacrificar as crianças das cidades pobres a entregar as escolas municipais ao governo federal.

Por isto, daqui a dois anos teremos novas surpresas tristes com o PISA e com o IDH e jogaremos a culpa no governo do momento, esquecendo os erros de todos nós no passado e relegando a tragédia no futuro.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador


Ricardo Noblat: O dia em que auxiliares de Bolsonaro se ocuparam em corrigi-lo

Vexame!

Na última quinta-feira à noite, depois de amargar uma série de derrotas no Supremo Tribunal Federal e no Congresso, o presidente Jair Bolsonaro aproveitou sua live semanal no Facebook para responder aos seus seguidores nas redes sociais que cobravam o pagamento da 13ª parcela do Bolsa Família como ele prometeu na campanha eleitoral de 2018.

E o que ele disse logo se espalhou com cheiro de queimado entre os principais ministros do governo. Bolsonaro culpou o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, por ter deixado caducar a Medida Provisória que garantia o pagamento este ano. Para variar, mentiu. Foi a pedido dele que a Medida Provisória deixou de ser votada. Faltou dinheiro para honrar o compromisso.

Maia reagiu chamando Bolsonaro de mentiroso e anunciou que no dia seguinte poria a Medida Provisória em votação. Tocou o Deus nos acuda dentro do governo. E a fórmula encontrada para reparar o estrago foi escalar auxiliares do presidente para corrigi-lo. Em entrevista coletiva, a pretexto de fazer um balanço do ano, o ministro Paulo Guedes, da Economia, admitiu:

– Sou obrigado, contra minha vontade, a recomendar que não seja dado o 13º do Bolsa Família. É lamentável, mas precisamos escolher entre um crime de responsabilidade [que seria o pagamento da 13ª parcela] e a lei [de responsabilidade fiscal que pune a realização de gastos sem previsão no Orçamento].

Enquanto o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria do Governo, disparava telefonemas para líderes de partidos insatisfeitos com o que dissera Bolsonaro, o deputado Ricardo Barros, líder do governo, reconhecia nas redes sociais que tudo não passara de um mal entendido do presidente da República. Mais tarde renovou o pedido de desculpas em discurso na Câmara.

O dia ainda não tinha terminado. Na contramão do discurso oficial do governo, o secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia, Roberto Fendt, em evento virtual da Sociedade Nacional de Agricultura, afirmou que o Brasil nada ganhou com os acordos comerciais assinados recentemente com os Estados Unidos

“Se me prometerem que não vão contar ao presidente (Jair Bolsonaro) o que vou contar agora… Mas o protocolo é bom para eles [EUA]”, observou Fendt. “Não ganhamos nada com a aproximação com o presidente Donald Trump.” E repetiu: “Celebrou-se abertura de linha crédito nos EUA. Para quem? Para os exportadores americanos. Ganhamos muito pouco”.

Bastou por aí? Não. Bolsonaro criticou a decisão do Supremo Tribunal Federal de tornar obrigatória a vacinação em massa contra a Covid-19 e de impor restrições a pessoas que não quisessem se vacinar. Garantiu que o governo federal não imporia nenhuma restrição. Porém, em entrevista ao STB, o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, disse o contrário:

– É uma decisão [a do Supremo] que vejo com muita naturalidade, porque já estava previsto por lei. Só está sendo ratificada e define o que o Ministério da Saúde vai dizer… Cabe a nós colocar quais são essas restrições. Então é uma coisa natural, isso será avaliado. Claro que não é uma obrigação forçada, ninguém vai tirar você da sua casa para vacinar. Ficou claro essa posição.

Bolsonaro disse que não haveria vacinas para todos. Pazuello disse:

– Existe um cronograma. Dentro de um cronograma será disponibilizada para todos […] Chegando ao final de um cronograma, considerando aí as entregas dos laboratórios, as produções nacionais, os registros da Anvisa, a logística como um todo, ao final nós teremos disponibilizado a todas as pessoas do nosso país, de forma gratuita, universal e igualitária.

Em tempo: embora tenha contraído o vírus e se recuperado, Pazuello antecipou que irá se vacinar, sim. Bolsonaro foi vítima do vírus, mas nega que tomará a vacina. Confia na sua saúde de atleta.


Ricardo Noblat: O dia amargo em que Bolsonaro só colheu derrotas

Seus seguidores estão ficando impacientes

Para o gosto do presidente Jair Bolsonaro, a quinta-feira 17 de dezembro até que começara bem. Em cerimônia no Palácio do Planalto, ele deu posse ao novo ministro do Turismo, Gilson Machado, líder de uma banda de forró em Pernambuco, e sanfoneiro que costuma tocar o instrumento nas lives semanais do presidente no Facebook. Uma vez até cantou a Ave-Maria.

O que disse Machado no seu discurso soou como música aos ouvidos de Bolsonaro e o deixou feliz a poucas horas de ter que voar para inauguração de obras em Minas Gerais e na Bahia. Refratário, como seu chefe, a medidas de isolamento social, Machado defendeu que festas de fim de ano reúnam ao menos 300 pessoas. Assim as aglomerações seriam evitadas.

“A gente tem que viver a vida, não morrer por antecipação”, argumentou o ministro, e recebeu aplausos. Em seguida, derramou-se em elogios a Bolsonaro: “O senhor está recuperando a autoestima do povo” (mais aplausos). “Aonde o senhor vai, o povo o aclama” (nesse momento, Bolsonaro sorriu). A cerimônia foi curta. O dia seria estafante para o presidente, e de fato foi.

Ele ainda estava em Jacinto, município de Minas Gerais, para o lançamento da pedra fundamental da implantação e pavimentação da BR-367, quando começou a receber notícias que o indignaram. O Supremo Tribunal Federal decidira que a vacinação contra a Covid-19 seria obrigatória. E também que governadores e prefeitos poderão impor restrições a quem não se vacinar.

Em Porto Seguro, na Bahia, segunda escala da viagem, Bolsonaro ficou sabendo que uma liminar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski autorizara Estados e municípios a comprar vacinas registradas por agências sanitárias de outros países. Foi em Porto Seguro que Bolsonaro resolveu passar recibo do seu desconforto. Sem referir-se às notícias, discursou:

– Se o cara não quer ser tratado, que não seja. Eu não quero fazer uma quimioterapia e vou morrer, o problema é meu, porra.

Ao desembarcar de volta a Brasília, seu humor só fez piorar. Foi quando conheceu trechos dos votos dos ministros do Supremo no julgamento das ações sobre a vacinação. Todos, à exceção do único ministro indicado por ele para o tribunal, Kássio Nunes Marques, bateram de frente com o que Bolsonaro pensa, fala e repete à exaustão país afora, dia sim e o outro também.

“A preservação da vida, da saúde individual ou pública, em país como Brasil com quase 200 mil mortos pela Covid-19, não permite demagogia, hipocrisia, ideologias, obscurantismo, disputas eleitoreiras e ignorância” (Alexandre de Moraes). “O egoísmo não é compatível com a democracia. A Constituição não garante liberdade a uma pessoa para ela ser egoísta” (Cármen Lúcia).

Para amargar ainda mais o dia de Bolsonaro, a Câmara endossou decisão do Senado e rejeitou ampliar o repasse de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica para escolas ligadas a igrejas. E, nas redes sociais, seguidores dele ocuparam-se em criticá-lo a pretexto de qualquer coisa – uma delas, o não pagamento este ano da 13ª parcela do Bolsa Família.

Bolsonaro jogou a culpa no deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara. Que retrucou chamando-o de “mentiroso”. O presidente só foi dormir depois de responder pessoalmente aos ataques dos que antigamente se limitavam a lhe dar razão em tudo ou em quase tudo:

– Impressionante, os caras descem a lenha em mim. Lógico que a esquerda bate palma para essa direita burra, direita idiota. Bateram palmas para vocês. Vocês não sabem, não interpretam, não conseguem saber o que foi votado e descem o cacete. Não fica agindo como papagaio, repetindo o que um idiota escreve.

A certa altura, cairá a ficha da maior parte dos brasileiros e eles descobrirão que o presidente acidentalmente eleito lhes fez muito mal. O risco é de que tal momento de iluminação só se dê depois de ele ser reeleito daqui a dois anos. Seriam mais quatro anos perdidos – e a que preço? Preservar o meio ambiente não lhe interessa como já demonstrado. Tampouco educação e cultura.

Reforma do Estado foi promessa para atrair o voto dos liberais. A combater a corrupção, prefere aliar-se a políticos corruptos. Segurança pública resume-se a facilitar o acesso a armas – e os milicianos agradecem. Enfrentar a pandemia é deixar o vírus livre para infectar o maior número de pessoas. Vidas não importam porque todos haverão de morrer um dia, e ele não é coveiro.


Dora Kramer: Recuo estratégico

Realista, a esquerda prefere negociar a marcar posição na Câmara

Coisa rara, a esquerda em geral e o PT em particular imbuíram-se de realismo na atual disputa pela presidência da Câmara. Outras raridades cercam esse que é o principal movimento na política nacional no momento. Ele dará o tom de estabilidade ou de instabilidade no Congresso daqui em diante e norteará o início das articulações dos grupos postulantes à sucessão de Jair Bolsonaro, muito embora os acertos de agora no Parlamento não valham para a presidencial de 2022.

É a primeira vez desde a redemocratização que a esquerda não apresenta candidatura ao comando da Câmara. O PSOL ainda insiste, mas está sendo convencido a desistir sob o argumento de que é hora de deixar a adolescência e entrar da idade adulta, abandonando veleidades de caráter quixotesco.

Isso porque também é a primeira vez que esse campo, sendo como diz um petista, “irritantemente minoritário”, é tão decisivo para a definição de vitória ou derrota dos grupos em disputa. Ambos, um mais outro menos identificado com Bolsonaro, residentes no espectro direito (do centro ao extremo) da cena política.

Dada essa equivalência no terreno da doutrina, prevalece na esquerda o entendimento de que não se pode perder a oportunidade de conquistar espaço no andamento dos trabalhos legislativos. Vale dizer, lugar na mesa diretora, influência na pauta de votações e participação relevante nas comissões permanentes e especiais da Casa.

Nada disso se consegue com candidaturas destinadas só a marcar posição, pois o gesto se esgota no dia da eleição. Aqui pesa também a avaliação de que o resultado sairá no primeiro turno, não havendo uma segunda chance para negociar compromissos e posições. A opção preferencial pelo pragmatismo, no entanto, não significa que haja unidade entre as legendas marcadamente de oposição. Muitíssimo ao contrário. Hoje prepondera a divisão interna nos partidos, com cada ala procurando vencer a guerra da comunicação de acordo com o respectivo interesse. Há apoios significativos tanto a Arthur Lira, do PP, apoiado por Bolsonaro, quanto ao oponente respaldado pelo atual presidente, Rodrigo Maia.

Embora a imposição de uma derrota a Bolsonaro seja uma variável do jogo e muito usada para inibir publicamente os apoios a Lira, a esse argumento se contrapõe o seguinte raciocínio: seja quem for o eleito, não terá condições de atuar em consonância absoluta com os interesses do Planalto, pois não teria o respaldo do conjunto dos parlamentares hoje convencidos das vantagens da autonomia experimentada nos últimos dois anos. Tanto para os ideológicos quanto para os fisiológicos.

Portanto, o essencial para a esquerda serão os compromissos firmados pelos antagonistas do centro à direita, a avaliação sobre o grau de firmeza de cada qual na palavra empenhada e a consciência de que na Câmara dissidência em eleição não dá camisa a ninguém.

Publicado em VEJA de 23 de dezembro de 2020, edição nº 2718


Ricardo Noblat: Doria derrota Bolsonaro, e o Brasil só tem a ganhar com isso

Presidente rende-se à vacina chinesa e à pressa do governador

Quando se vê em apuros depois de esticar a corda e ela dá sinais de que se romperá do seu lado, o presidente Jair Bolsonaro costuma recuar e falar manso. Foi o que fez mais uma vez – desta, no anúncio do que chamou de “plano de vacinação contra a Covid-19”, ao pregar “a união” para combater “algo que nos aflige há meses”.

O “algo”, tratado por ele como “gripezinha” incapaz de matar 8 mil pessoas, matou até ontem quase 184 mil e infectou mais de 7 milhões. A média móvel de casos chegou a 44.654. O país não atingia esse nível de contaminação desde 4 de agosto. Já a média móvel de mortes foi de 684, a maior desde 2 de outubro.

O recuo de Bolsonaro deve-se à iminente aprovação da vacina CoronaVac pela agência de vigilância sanitária da China, uma das quatro referências globais para a avaliação de novos medicamentos. Pela lei brasileira, tão logo isso aconteça, o uso da CoronaVac em território nacional torna-se imediatamente possível.

Daí porque o Ministério da Saúde anunciou que a CoronaVac será uma das vacinas a ser compradas, no caso ao Instituto Butantã, de São Paulo, encarregado de produzi-la. Vitória do governador João Doria (PSDB) que saiu na frente. Doria poderá se dar ao luxo de deixar por conta do ministério a aplicação da vacina.

Eduardo Pazuello, doublé de general especialista em logística e ministro da Saúde, disse não ver motivo para tanta “angústia” e “ansiedade”. Bolsonaro, que havia falado que o Brasil vive “o finalzinho da pandemia”, completou que o país vive agora uma “situação de quase normalidade”. Negacionismo na veia!

Não haverá normalidade até que todos ou quase todos os brasileiros sejam vacinados. Isso se dará só ali pelo final do próximo ano ou início de 2022 por culpa de um governo que não levou a pandemia a sério, não preparou-se para enfrentá-la e até aqui sequer dispõe de seringas e agulhas para aplicar as vacinas.

Edital do Ministério da Saúde publicado ontem prevê a aquisição de 300 milhões de kits de seringas e agulhas. A entrega será permitida até 31 de dezembro de 2021. O ministério ignora há 6 meses um pedido do Ministério da Economia para que diga se tem interesse ou não na importação de seringas da China.

“Com o desastre que é o ministro da Saúde, os militares vão perder o que ganharam de imagem nos últimos anos após a redemocratização”, afirmou Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara. “Pazuello é um ótimo general para fazer a logística do Exército, mas, para fazer a logística da Saúde, é um desastre”.

Desastre maior é quem o escolheu para a tarefa.


Ricardo Noblat: Bolsonaro descumpre a Constituição que jurou respeitar

Comportamento criminoso

Jair Messias Bolsonaro tem o direito de comportar-se como um suicida diante da pandemia que matou mais de 182 mil pessoas no Brasil desde março último. A vida é sua e ele faz com ela o que quiser. Mas nem ele e nem ninguém tem o direito de pôr em risco a vida alheia por não dar valor à sua ou porque se julga imortal.

Direito à opinião todo mundo tem. Bolsonaro e seus devotos de raiz, por exemplo, acreditam que a Covid-19 é um vírus criado em laboratório e posto a circular pelo mundo para servir aos interesses geopolíticos da China. Direito a fatos ninguém tem. Fatos são verdades provadas, comprovadas e inquestionáveis.

Repete o presidente que sua saúde é de atleta. De fato, foi de atleta quando ele se destacava nos quartéis por correr a grande velocidade. Ganhou várias provas. Há registros no seu prontuário. Quanto a gozar ainda de saúde de atleta, não passa de opinião. Nunca mais deu provas disso. Foi vítima do coronavírus.

Somente ontem, em três ocasiões, protagonizou atos contra a vida – dos outros, diga-se. O primeiro ao reunir-se com milhares de produtores e de vendedores de frutas e legumes em São Paulo, quase todos sem máscaras, ele também. O segundo, outra vez sem máscara, ao visitar Sílvio Santos, um idoso de 90 anos de idade.

O terceiro foi o mais escandaloso. Bolsonaro aconselhou Eduardo Pazuello, doublé de general e de ministro da Saúde, a fazer uma campanha nacional de propaganda alertando os brasileiros para o perigo de se vacinarem. Desta vez não se referiu diretamente à vacina da China. Haveria perigo de morte em tomar qualquer uma.

Sua conduta não foi quase criminosa. Foi inteiramente criminosa. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão técnico do governo agora contaminado pelo vírus ideológico, existe para testar e conferir a eficácia de remédios e de vacinas. Sem o seu aval, nenhum produto médico é liberado para uso em massa.

Desacreditar a Anvisa, e é isso o que está em curso, e tocar horror nas pessoas para que elas fujam de vacinas que estão sendo aplicadas largamente em outros países, é atentar contra a vida coletiva. Haverá crime maior do que esse? E logo praticado por um presidente que ao tomar posse jurou cumprir a Constituição?

Diz o artigo 5º do Capítulo 1 da Constituição em vigor: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Inviolabilidade do direito à vida!

O que isso significa? Que na atual legislação brasileira “o direito à vida é tido como o alicerce para a prerrogativa jurídica da pessoa, motivo pelo qual o Estado tem por dever resguardar a vida humana, desde a concepção até a morte. Diante de sua importância o direito à vida é uma cláusula pétrea.”

E o que é uma cláusula pétrea? “É um artigo da Constituição que não pode ser alterado. Pétrea é um adjetivo para aquilo que é como pedra, imutável e perpétuo. Uma cláusula pétrea é, portanto, um dispositivo do texto constitucional que é estabelecido como regra e que não pode sofrer nenhuma mudança.”

Por quanto tempo mais o país assistirá inerte o presidente da República afrontar a lei? Não se trata de opinião que ele desrespeita a vida, é um fato que se sucede à vista de todos e quase que diariamente. Se apesar disso nada acontece, a Constituição então serve para quê?


Ricardo Noblat: Nota da Anvisa trai sua contaminação pelo bolsonavírus

Órgão técnico vira órgão político

Criada pela Lei nº 9.782 de 1999, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é uma autarquia que “tem por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população […] mediante a intervenção nos riscos decorrentes da produção e do uso de produtos e serviços sujeitos à vigilância sanitária, em ação coordenada e integrada no âmbito do Sistema Único de Saúde”

É um órgão de natureza eminentemente técnica como ela própria, em nota distribuída, ontem, a propósito do uso de vacinas contra o coronavírus, fez questão de ressaltar. Ocorre que a nota é o maior atestado público de que a Anvisa, em tempos de governo presidido por um ex-capitão do Exército e de Ministério da Saúde repleto de militares, foi inoculada pelo vírus ideológico.

A primeira parte da nota disserta sobre o plano mal ajambrado de vacinação em massa ainda sem data marcada para começar – mas até aí nada demais a levar-se em conta um presidente que tratou a Covid-19 como uma gripezinha, estimou que não mataria mais do que oitocentas pessoas, menos ele dotado de saúde de atleta, e que ao fim acabariam morrendo os que tivessem de morrer, e daí?

Vale como confissão do aparelhamento político da Anvisa o que está escrito na nota do seu meio para seu final. Está dito lá que deve ser levada em consideração ao se avaliar o uso emergencial de vacinas “a potencial influência de questões relacionadas à geopolítica que podem permear as discussões nacionais e decisões estrangeiras relacionadas à vacina da Covid-19”.

Segundo a Anvisa, “há o risco ainda de que países coloquem interesses nacionais em primeiro lugar na garantia de acesso a uma vacina para seus próprios cidadãos, criando potencial de corromper o rigor com que as vacinas candidatas contra a Covid-19 são avaliadas para autorização de uso de emergência”. E aí? Aí a nota entra no assunto que de fato a justifica: a vacina chinesa.

O Brasil é o líder internacional no processo de avaliação da Coronavac, vacina que já se encontra com Autorização de Uso Emergencial (AUE) na China desde junho. A agência argumenta que os critérios chineses para concessão de autorização de uso emergencial não são transparentes e que não há informações sobre os critérios empregados para essa tomada de decisão.

E decreta: “Até o momento, nenhuma outra autoridade reguladora estrangeira tomou decisão semelhante. Caso venha a ser autorizada a replicação automática da AUE estrangeira no Brasil, sem a devida submissão de dados à Anvisa, são esperados enfraquecimento e retardação na condução do estudo clínico no Brasil; além de expor a população brasileira a riscos”.

Há pouco mais de um mês, depois de ter sido autorizado pelo presidente Jair Bolsonaro, o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, reuniu-se com mais de 20 governadores e anunciou que todas as vacinas comprovadamente eficazes seriam compradas pelo governo federal, inclusive a Coronavac. Desautorizado no dia seguinte, recuou sob a desculpa de quem tem juízo obedece.

A questão é muito simples: à falta de interesse do governo federal em preservar vidas, João Doria (PSDB), governador de São Paulo, saiu em defesa do seu rebanho, e o Instituto Butantã fechou um acordo com a China para a produção da Coronavac. Ao invés de correr atrás de outras vacinas, Bolsonaro faz tudo para impedir que Doria seja bem-sucedido, mesmo que à custa de mais mortes.