vazajato
El País: O ano em que a Vaza Jato colocou a maior operação anticorrupção do país em xeque
Mensagens entre procuradores e membros da força-tarefa da Lava Jato, reveladas em 2019, expuseram os bastidores das investigações e podem mudar os rumos da operação
Regiane Oliveira e Marina Rossi, do El País
Em junho de 2019, quando o The Intercept Brasil divulgou a primeira reportagem feita com base em mensagens do Telegram que haviam sido entregues ao jornalista Glenn Greenwald por uma fonte anônima, a Lava Jato já estava consolidada como a maior operação anticorrupção do Brasil. Naquele momento, já havia derrubado empresários, colocado políticos como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na prisão e feito com que seu juiz mais eminente, Sergio Moro, da 13ª Vara de Curitiba, fosse convidado para ser ministro da Justiça do Governo recém-eleito de Jair Bolsonaro.
Até então os feitos da Lava Jato davam o tom dos noticiários. Todos seguiam atentos à divulgação das prisões cinematográficas e dos números grandiosos—centenas de conduções coercitivas, outras centenas de condenados, milhares de buscas e apreensões, bilhões de reais devolvidos aos cofres públicos. Até novos movimentos sociais foram criados para apoiar a missão do chefe da operação em Curitiba, o procurador Deltan Dallagnol. Curitiba se apresentava como o Brasil em cruzada contra a corrupção —e, de fato, trouxe avanços na área. Mas nem todo o Brasil se sentia representado por Curitiba.
Críticos afirmavam que a sacralização da Lava Jato abria espaço para justificar qualquer tipo de ação. Havia dúvidas sobre até onde a operação estaria esticando os limites da Justiça em vazamentos seletivos de informações sigilosas, suspeitas de violação do devido processo legal e do princípio da imparcialidade, além do uso de prisões para forçar acordos de delações premiadas. Muitos tinham convicção de que a operação tinha problemas, mas não tinham provas. Até a Vaza Jato colocar a credibilidade da operação em xeque.
À luz das conversas do Telegram, o agora ministro da Justiça e os procuradores se tornam protagonistas de uma trama que revelou as zonas cinzentas do funcionamento do Judiciário, onde as linhas que separam o que é ilegal, imoral e legítimo se confundem sob os olhos da Justiça e da opinião pública. Os documentos permitiram um mergulho nos bastidores da operação.
Desde a primeira reportagem feita pelo The Intercept Brasil com base nas conversas do Telegram, todos os envolvidos sempre negaram a veracidade das mensagens, afirmando que elas são produto de um crime por terem sido subtraídas dos telefones dos procuradores. Sergio Moro e a força-tarefa da operação afirmam ainda que se, de fato, fossem reais, não possibilitariam saber se foram ou não editadas e que, portanto, não serviriam como prova para nada. Mas elas mostraram, em muitos momentos, Moro orientando o procurador Dallagnol para que trocasse a ordem de fases da Lava Jato, cobrando agilidade em novas operações e até mesmo dando conselhos estratégicos e pistas de investigação, como se fosse seu superior hierárquico.
Chamado para se explicar na Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça do Senado em junho, Moro repetiu que as mensagens foram adquiridas por “uma invasão criminosa” por meio de um grupo organizado e não por “adolescentes com espinhas”. No mês seguinte, quatro pessoas foram detidas suspeitas de hackear celulares de autoridades. Walter Delgatti Neto, um dos suspeitos, disse ter invadido o celular de um promotor de Araraquara (SP) e, a partir daquele aparelho, saltou de telefone em telefone até chegar em autoridades mais graúdas. Com isso, Delgatti Neto, que está preso até hoje, ganhou o apelido de hacker de Araraquara. Mas um relatório da Polícia Federal, concluído no último dia 18, apontou que o hackeamento começou pelo celular do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente da República, em março do ano passado. Segundo o documento, Deltan Dallagnol e o ministro Sergio Moro estão entre os alvos dos hackers. Os investigadores ainda avaliaram que os suspeitos "tinham a intenção explícita de interferir nas investigações de organizações criminosas que estão sendo conduzidas pela força-tarefa da Operação Lava Jato, tendo por objetivo final a obtenção de ganhos financeiros.”
As revelações da Vaza Jato
O EL PAÍS foi um dos veículos que teve acesso ao conteúdo das mensagens e o publicou. Primeiramente, procurou se assegurar da veracidade do material. Com auxílio de fontes externas, que viram suas conversas com procuradores divulgadas em meio ao material recebido pelo The Intercept, foi possível verificar a autenticidade do conteúdo.
Apenas em um segundo momento o EL PAÍS passou a pesquisar no banco de dados —em um trabalho bastante artesanal, feito por meio de buscas com termos pré-definidos, que retornavam milhares de resultados—. Diante da imensidão do material, era preciso ter um ponto de partida. E começou-se pelas dúvidas que foram levantadas durante os anos de cobertura da Lava Jato e também após o início da Vaza Jato: afinal, porque os procuradores confiaram tanto no Telegram? Qual era a relação entre a Lava Jato e os ministros do Supremo? Como foi recebida a nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge? Onde foi parar a Lava Jato dos bancos tão prometida pela força-tarefa de Curitiba? Por que a força-tarefa de São Paulo parece tão inexpressiva quando comparada com a do Rio de Janeiro ou Curitiba? O que aconteceu nos bastidores da prisão do ex-presidente Michel Temer?
A partir destes questionamentos, foram cruzadas as informações encontradas nas mensagens, com confirmações de fontes e pesquisas sobre o que foi noticiado de cada assunto em cada momento da Lava Jato. Assim, foi revelado que a força-tarefa de Curitiba tinha um plano de ação que diferenciava a estratégia adotada contra empreiteiras e contra bancos. Enquanto as construtoras deveriam ser responsabilizadas por meio de ações penais, a meta para bancos era buscar acordos, a título de indenização. Paralelamente, Dallagnol realizou palestra para a Federação Brasileira de Bancos (Febraban). Sua assessoria afirma que o “procurador foi escolhido por preencher critérios técnicos relacionados ao tema e a sua participação foi remunerada e formalizada por meio de contrato”.
Um exemplo dessa estratégia utilizada com as instituições financeiras foi um acordo da Lava Jato que blindou o banco Safra de punições por negociar com o doleiro Alberto Youssef. A força-tarefa arquivou em outubro do ano passado o inquérito que investigava conduta suspeita do banco em empréstimo ao doleiro.
Também foi descoberto que a força-tarefa de Curitiba planejou buscar na Suíça provas contra o ministro do STF Gilmar Mendes, um conhecido crítico da operação. Procuradores discutiram usar o caso de Paulo Preto, considerado operador do PSDB, para reunir munição contra ministro. As conversas apontaram ainda o empenho da força-tarefa pelo impeachment do magistrado.
O cruzamento de informações com as mensagens encontradas também mostrou que às vésperas do afastamento de Dilma Rousseff da Presidência, em 2016, a Lava Jato rejeitou a delação que acabou prendendo Temer em 2019. As conversas no Telegram mostram que, à época, a procuradoria não viu interesse público nas acusações contra o então vice-presidente.
A apuração mostrou que procuradores tratavam a chefe Raquel Dodge, então procuradora-geral da República, como um entrave para operação. Eles buscaram driblá-la e planejaram vazamentos de informação na imprensa para pressioná-la a liberar ao STF delações, entre elas, a de Léo Pinheiro, da construtora OAS, uma testemunha-chave de casos que incriminam o ex-presidente Lula.
Foi por meio dessa investigação que foi possível revelar que a força-tarefa de São Paulo era considerada o elo fraco da operação por Curitiba e conflitos entre os membros fizeram com que a equipe implodisse em dezembro de 2018. Daí a menor visibilidade da procuradoria paulista diante dos trabalhos realizados em Curitiba e no Rio de Janeiro.
Os procuradores de Curitiba, em sua confiança cega no aplicativo Telegram, o utilizaram, inclusive, para enviar documentos sigilosos, como a proposta de delação do ex-ministro Antonio Palocci, documento que deveria estar protegido pela lei da colaboração premiada.
Ainda não é possível medir exatamente os impactos da Vaza Jato para a operação deflagrada em 2014. O STF já vem realizando movimentos para tentar corrigir seus excessos. As conduções coercitivas, um instrumento comum da operação, já haviam se tornado ilegais em junho de 2018, em uma votação apertada (6x5) na Corte. Ministros do Supremo Tribunal Federal já afirmaram que verificarão a autenticidade do material e que ele pode influenciar o julgamento de futuros casos.
Está na na fila para ser votada pelos ministros a suspeição de Sergio Moro, pedida pela defesa de Lula e que pode anular o processo do tríplex do Guarujá, que já condenou o ex-presidente em três instâncias. No habeas corpus, que já havia sido pedido antes das revelações da Vaza Jato, os advogados do petista anexaram as mensagens trocadas por procuradores para reforçar a tese da defesa de que Moro atuou com “parcialidade” quando era juiz da Lava Jato.
Foi também depois da Vaza Jato que os magistrados acordaram em fixar tese sobre manifestações de réus e delatores nos processos da operação. No entendimento dos ministros, a ordem em que as defesas são feitas pode influenciar na sentença. Por isso, o acusado deve ser o último a fazer sua defesa, depois de todos os delatores. Esse entendimento ainda pode beneficiar dezenas de presos pela operação. Mas o golpe mais forte sofrido pela Lava Jato até agora talvez tenha sido a reversão do entendimento sobre a prisão em segunda instância, realizada também pelo STF. A decisão nocauteou a operação, tirando da cadeia o ex-presidente Lula.
El País: Lava Jato planejou buscar na Suíça provas contra Gilmar Mendes
Procuradores discutiram usar caso de Paulo Preto, operador do PSDB, para reunir munição contra ministro, mostram mensagens enviadas ao 'The Intercept'. Diálogos no Telegram apontam o empenho da força-tarefa pelo impeachment do magistrado
Procuradores da Operação Lava Jato em Curitiba fizeram um esforço de coleta de dados e informações sobre o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, com o objetivo de pedir sua suspeição e até seu impeachment. Liderados por Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa, procuradores e assistentes se mobilizaram para apurar decisões e acórdãos do magistrado para embasar sua ofensiva, mas foram ainda além. Planejaram acionar investigadores na Suíça para tentar reunir munição contra o ministro, ainda que buscar apurar fatos ligados a um integrante da Corte superior extrapolasse suas competências constitucionais, de acordo com especialistas ouvidos pela reportagem. A estratégia contra Gilmar Mendes foi discutida ao longo de meses em conversas de membros da força-tarefa pelo aplicativo Telegram enviadas ao The Intercept por uma fonte anônima e analisadas em conjunto com o EL PAÍS.
Na guerra contra o ministro do Supremo, os procuradores se mostraram particularmente animados em 19 de fevereiro deste ano. "Gente essa história do Gilmar hoje!! (...) "Justo hoje!!! (...) "Que Paulo Preto foi preso", começa Dallagnol no chat grupo Filhos do Januário 4, que reúne procuradores da força-tarefa. A conversa se desenrola e se revela a ideia de rastrear um possível elo entre o magistrado e Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto, preso em Curitiba num desdobramento da Lava Jato e apontado como operador financeiro do PSDB. Uma aposta era que Gilmar Mendes, que já havia concedido dois habeas corpus em favor de Preto, aparecesse como beneficiário de contas e cartões que o operador mantinha na Suíça, um material que já estava sob escrutínio dos investigadores do país europeu.
“Vai que tem um para o Gilmar…hehehe”, diz o procurador Roberson Pozzobon no grupo, em referência aos cartões do investigado ligado aos tucanos. A possibilidade de apurar dados a respeito de um ministro do Supremo sem querer é tratada com ironia. “vc estara investigando ministro do supremo, robinho.. nao pode”, responde o procurador Athayde Ribeiro da Costa. “Ahhhaha”, escreve Pozzobon. “Não que estejamos procurando”, ironiza ele. “Mas vaaaai que”. Dallagnol então reforça, na sequência, que o pedido à Suíça deveria ter um enfoque mais específico: “hummm acho que vale falar com os suíços sobre estratégia e eventualmente aditar pra pedir esse cartão em específico e outros vinculados à mesma conta”, escreve. “Talvez vejam lá como algo separado da conta e por isso não veio" (...) "Afinal diz respeito a OUTRA pessoa”. A força-tarefa de Curitiba tem dito que não reconhece as mensagens que têm sido atribuídas a seus integrantes e repetiu à reportagem que o "material é oriundo de crime cibernético e tem sido usado editado ou fora de contexto, para embasar acusações e distorções que não correspondem à realidade".
Nas mensagens, que o EL PAÍS optou por deixar com a grafia original, tudo começa porque Dallagnol comenta saber de "um boato" vindo da força-tarefa de São Paulo (FT-SP) de que parte do dinheiro mantido por Paulo Preto em contas no exterior pertenceria a Mendes. "Mas esse boato existe mesmo?", pergunta o procurador Costa. "Pessoal da FT-SP disse que essa info chegou a eles", responde Julio Noronha, em referência aos colegas paulistas.Procurada, a assessoria de imprensa do FT-SP afirmou que “jamais recebeu qualquer informação sobre suposto envolvimento de Gilmar Mendes com as contas no exterior de Paulo Vieira de Souza”. E também que “se recebesse uma informação a respeito de ministro do STF, essa informação seria encaminhada à PGR [Procuradoria Geral da República]". E que “jamais passaria pela primeira instância para depois ir para a PGR”.
O artigo 102 da Constituição determina que os ministros do Supremo só podem ser investigados com autorização de seus pares, a não ser que apareçam em uma investigação já em curso, a chamada investigação cruzada. Caso seja este o caso, a competência é necessariamente da PGR. Para o procurador da República Celso Três, que atuou no início do caso Banestado, um marco contra a lavagem de dinheiro, e trabalhou diretamente com o ex-juiz Sergio Moro, os procuradores não cogitam nos diálogos apenas um atalho para chegar a Mendes. "É uma violação grave do devido processo legal", afirma em entrevista ao EL PAÍS. Ele avalia que, nas conversas, os procuradores de Curitiba demonstraram intenção de desviar a finalidade da investigação, porque tinham autoridade para escrutinar o operador do PSDB, mas planejaram aprofundar essa colaboração com o intuito de atingir o ministro do Supremo. “Não estou defendendo Gilmar, mas está muito claro que estavam em seu encalço”.
[ASSINE A NEWSLETTER DIÁRIA DO EL PAÍS]
A reportagem questionou à força-tarefa de Curitiba se os procuradores pediram informações aos investigadores na Suíça sobre possíveis ligações de Mendes e Paulo Preto. E, caso tenham encontrado elementos, se foram enviados à PGR. Por meio da assessoria de imprensa, os procuradores afirmaram que "não surgiu nas investigações nenhum indício de que cartões da conta de Paulo Vieira de Souza tenham sido emitidos em favor de qualquer autoridade sujeita a foro por prerrogativa de função". "Qualquer ilação nesse sentido, por parte de quem for, seria mera especulação", ressaltou a nota. "Em todos os casos em que há a identificação de pagamentos de vantagens indevidas e lavagem de ativos no exterior, o Ministério Público busca fazer o rastreamento do destino de todos os ativos ilícitos, para identificar os destinatários desconhecidos", ressalta. Eles insistem que sempre que surgem indícios do envolvimento em crimes de pessoas com foro privilegiado, a força-tarefa encaminha as informações à Procuradoria-Geral da República e ao Supremo Tribunal Federal.
"Cuidado porque o STF é corporativista"
Celso Três diz que os procuradores poderiam até enviar à PGR material contra Gilmar, desde que estas provas tenham sido encontradas acidentalmente em alguma investigação. "Isso pressupõe fundamentalmente que a prova caia no teu colo", afirmou. "Não existe encontro fortuito de prova quando você busca alguma coisa", acrescentou. Outro especialista, que concordou em analisar as mensagens sob anonimato, acrescenta que, no caso de toparem com alguma prova relacionada com detentores de foro privilegiado, como Mendes, a investigação é suspensa e precisa ser remetida para a PGR. “Isso é bem comum em casos de políticos que foram encontrados em investigações da Lava Jato”, explica o jurista, que frisa não conhecer casos de ministros do Supremo que tenham sido denunciados a partir de investigações cruzadas.
Ciente do terreno minado que a força-tarefa entra ao mirar Mendes, Dallagnol tenta se precaver: “E nós não podemos dar a entender que investigamos GM”, diz em certo momento, em referência a Gilmar Mendes. Mas, na sequência, afirma: “Caso se confirme essa unha e carne, será um escândalo”, diz sobre a relação próxima entre o ministro e o operador. E sugere: “Vale ver ligações de PP pra telefones do STF”, ressalta, referindo-se a Paulo Preto. Mais uma vez, Dallagnol recebe um alerta de um colega. “Mas cuidado pq o stf é corporativista, se transparecer que vcs estão indo atrás eles se fecham p se proteger”, diz Paulo Galvão. Dias depois, a força-tarefa descobriria que o ex-senador tucano Aloysio Nunes ligou para o gabinete de Mendes no dia da prisão de Paulo Preto.
A tese levantada nas conversas por alguns procuradores para ligar Mendes a Paulo Preto, especialmente por Dallagnol, passa justamente pelo tucano Aloysio. Nas conversas, os procuradores lembram que Paulo Preto era subordinado do tucano durante o Governo FHC, quando o ex-senador foi ministro-chefe da Secretaria-geral da Presidência, entre 1999 e 2001. E que Gilmar Mendes trabalhava “do ladinho” —segundo as palavras de Roberson Pozzobon— de ambos. A triangulação se fecharia porque, naquele período, Mendes foi subchefe para assuntos jurídicos da Casa Civil (entre 1996 a 2000) e advogado-geral da União (de 2000 a 2002). Em 21 de fevereiro deste ano, no mesmo chat, Pozzobon diz: “Acho que tem uma chance grande de ALOYSIO ter colocado GILMAR no STF”. O procurador Paulo Roberto Galvão pondera. “Mas calma que isso não quer dizer muita coisa rs”. Dallagnol, então, discute uma estratégia para direcionar a pauta e fazer a história aparecer na imprensa. "Tem q botar no papel. Mostrar suspeição. Pegar quem trabalhava nessa época no mesmo local. Imprensa é o ideal", ressalta ele.
Mais uma vez, o procurador Paulo Galvão tenta puxar o freio de mão do entusiasmo do coordenador da força-tarefa. “Mas não é novidade que Gilmar veio do psdb e de dentro do governo fhc!!! Cuidado com isso”. Mas Dallagnol insiste: “agora é diferente" (...) "Não é uma crença ou partido em comum" (...) "É trabalhar lado a lado, unha e carme”. Pozzobon também pondera e diz que é preciso ter informações mais fundamentadas antes de passá-las para a imprensa. “Mas acho que temos que confirmar minimamente isso antes de passar pra alguém investigar mais a fundo, Delta”.
Na semana passada, a Folha de S. Paulo e o Intercept revelaram que Dallagnol também tentou buscar informações a respeito de Antonio Dias Toffoli. Nas mensagens, aparece o interesse do procurador no eventual envolvimento de Toffoli, Gilmar Mendes e suas respectivas mulheres com empresas envolvidas no esquema de corrupção da Petrobras. Os ministros do Supremo prontamente reagiram à notícia. Gilmar Mendes afirmou que a Lava Jato é uma “organização criminosa para investigar pessoas”. Outro ministro do STF, Marco Aurélio, disse ser “inconcebível que um procurador da República de primeira instância busque investigar atividade desenvolvida por um ministro do Supremo”.
"Sonho que Toffoli e GM acabem fora do STF"
Apesar da animosidade da força-tarefa contra Gilmar Mendes, nem sempre o magistrado, um dos mais criticados da Corte, esteve contra a Lava Jato, segundo pensavam os procuradores. Em março de 2016, por exemplo, Gilmar se mostrou um aliado tático da operação, quando suspendeu a nomeação de Luiz Inácio Lula da Silva como ministro da Casa Civil, deixando assim o ex-presidente sem foro privilegiado. Pelo menos desde 2017, no entanto, Dallagnol aparece nas mensagens atribuindo ao magistrado o objetivo de “desmontar as investigações de corrupção”, por estar, segundo o procurador, ligado a parte delas.
As mensagens analisadas pelo EL PAÍS e o The Intercept, parte do pacote de arquivos que o site começou a revelar em 9 de junho, apontam para uma busca sistemática de Dallagnol por maneiras de afastar o ministro do Supremo das ações da Lava Jato, mas não apenas ele. "Sonho que Toffoli e GM acabem fora do STF rsrsrs", comenta. O procurador chega a mobilizar assistentes para produzir um documento com "o propósito de mostrar eventuais incongruências [de Mendes] com os casos da Lava Jato". E, ao longo de anos, insiste nas possibilidades de pedir a suspeição do ministro e encampar um processo de impeachment. Os colegas, entretanto, ponderam sobre a ideia de partir para a via do impedimento político e a iniciativa acaba não saindo do papel.
Em 5 de maio de 2017, por exemplo, o coordenador da força-tarefa falou aos pares de pleitear o impedimento de Gilmar Mendes caso o ministro concedesse habeas corpus a Antonio Palocci, condenado na Lava Jato. "Caros estive pensando e se perdermos o HC do Palocci creio que temos que representar/pedir o impeachment do GM". O habeas corpus (HC), ele sustentava, seria a gota d’água que faltava para pedir o afastamento do ministro. Para embasar o pedido, elencou declarações públicas do ministro contra a força-tarefa, “incoerência de votos”, “favorecimentos”, e até seus antigos confrontos com o ex-ministro da Corte Joaquim Barbosa — "só para dar força moral”.
“Calma, Deltan”, diz a procuradora Laura Tessler. Ela afirma, então, que soube que o jurista Modesto Carvalhosa entraria com um pedido de impeachment contra o ministro. “Eu não acho que nós devemos fazer pedido de impeachment. outros fazerem é bom”, completou o procurador Paulo Roberto Galvão. Carvalhosa protocolaria o pedido de impedimento neste ano de 2019, o terceiro contra o ministro, que se soma a ao menos a outros nove pedidos de impedimento de membros da corte que esperam encaminhamento do presidente do Senado, o único capaz de iniciar os processos.
Na lista de Dallagnol também entrou o caso envolvendo os empresários do setor de transportes Lélis Teixeira e Jacob Barata Filho, acusados de pagar propina a políticos. Conhecido como o Rei do Ônibus, Barata Filho é pai da afilhada de casamento de Gilmar e sua mulher, Guiomar Mendes. O caso também envolve um advogado de Gilmar que faz a defesa também de Barata Filho. Gilmar Mendes mandou soltar os empresários por três vezes seguidas ao longo de 2017.
Naquele ano, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, chegou a pleitear a suspeição do ministro no caso, mas o pedido foi arquivado pela presidenta do Supremo, ministra Cármen Lúcia, em setembro de 2018. Na época, Cármen Lúcia afirmou ter consultado Raquel Dodge, atual procuradora-geral da República, antes de tomar a decisão. No xadrez da Lava Jato, Dodge é a rainha do outro lado do tabuleiro dos procuradores. Nas conversas, eles afirmam que ela é muito próxima de Gilmar e que só não o confronta porque “sonha” com uma cadeira no Supremo assim que seu mandato na PGR terminar, em cerca de um mês, afirma Dallagnol em mensagem em junho de 2018.
Em março de 2019, a força-tarefa insistiria de novo em mais um pedido de suspeição de Gilmar Mendes, desta vez no caso Paulo Preto, alegando relações do magistrado com Aloysio Nunes. Dallagnol articularia com as forças-tarefas da Lava Jato de Curitiba, do Rio de Janeiro e de São Paulo para dar força ao pedido, que seria arquivado novamente.
Ainda por meio de nota enviada à reportagem, os procuradores afirmaram que "dentre os deveres do membro do Ministério Público, está o de 'adotar as providências cabíveis em face de irregularidades de que tiver conhecimento, em especial quando relacionadas a casos em que atuam". "A eventual pesquisa das decisões de um julgador para analisar qual a eventual medida a adotar seria perfeitamente regular", ressaltaram. "Dentre as medidas que podem ser analisadas e estudadas pelo Ministério Público em face de decisões que cogite inadequadas de um julgador está a análise de jurisprudência para apresentar recursos, a representação à respectiva corregedoria ou ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça) ou ainda a representação pela suspeição ou pela apuração de infração político-administrativa (seguindo o rito de impeachment). Nesse contexto, contudo, como é público, os procuradores jamais realizaram representação pelo impeachment do ministro Gilmar Mendes, embora tenham apresentado pedido de reconhecimento de suspeição", destacou a nota.
Noves fora as iniciativas consideradas fora da alçada de Curitiba na avaliação de especialistas, Dallagnol não está só em sua frustração contra algumas decisões do Supremo, e de Gilmar Mendes em particular. Grupo de estudiosos da corte tem apontado a proliferação de medidas individuais dos magistrados e a falta de coerência na jurisprudência do STF com um fator instabilidade política. Um dos problemas é que, excetuada a saída via do impeachment, "no sistema judicial, o Supremo é o ponto cego", pondera o jurista que analisou as mensagens dos procuradores sob anonimato. "Um ministro do Supremo não está sujeito ao Conselho Nacional de Justiça, não tem corregedoria e um ministro, inclusive, não pode corrigir o outro”, explica.
Para Gilmar Mendes, no entanto, o problema da falta de correição e do corporativismo estão do outro lado. “O próprio CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público] funciona muito mal. A corregedoria do Ministério Público praticamente não funciona. Estamos a falar de uma questão que, em termos republicanos, é muito séria. Quem vigia o guarda neste caso? Os malfeitos cometidos por procuradores são investigados por quem? Essa é uma questão que precisa ser respondida”, disse o ministro nesta segunda-feira, no registro do site especializado Jota. O CNMP tem ao menos um procedimento aberto contra Dallagnol, o que apura se ele e um colega cometeram falha disciplinar ao serem flagrados, em mensagens reveladas pelo The Intercept e pela Folha, planejando obter lucro ou benesses com a realização de palestras pagas por empresas e entidades interessadas em se associar à imagem da Lava Jato.