variantes
Fim da fila da vacina para quem tentar escolher o fabricante
O sommelier de vacina é um egoísta, um baita ignorante
Mariliz Pereira Jorge / Folha de S. Paulo
A Prefeitura de São Paulo, a exemplo do que já tinha feito a de Belo Horizonte, decidiu que vai para o fim da fila quem tentar escolher o fabricante do imunizante contra Covid-19. Aos críticos dos sommeliers a medida parece justa. Quem muito escolhe fica sem nada.
Com mais de 550 mil mortes, parece suicídio recusar qualquer que seja a oferta. Então, que se lasquem. Eu mesma pensei assim, num primeiro momento. Mas não é uma questão de revanche contra quem brinca com a própria sorte numa pandemia.
A medida não parece tão simples de ser cumprida. Aos profissionais de saúde, que já têm a enorme responsabilidade do corpo a corpo com a população, caberia fiscalizar e punir os dribladores. Num país onde a frase favorita é "você sabe com quem está falando?", dá para imaginar de que lado a corda roeria.
Parece também muito fácil chegar a um posto de saúde qualquer e, antes de entrar na fila, obter a informação sobre qual imunizante está sendo aplicado e dar marcha à ré, sem ser enquadrado nem receber uma advertência por escrito. Fazer de conta que o sommelier vai ficar de castigo faz barulho nas redes sociais, ganha espaço na impressa, mas resolve pouco o que de fato importa: ter vacinas, várias, para todos.
Importante dizer que o sommelier de vacina é um egoísta. E um baita ignorante. Sabemos que os imunizantes disponíveis têm performances distintas, mas os aprovados funcionam dentro de um plano nacional que inclui diferentes laboratórios.
Mais vale a maior parte da população vacinada com um imunizante que tem 50% de eficácia do que nem metade imunizada com um mais eficaz, como acontece nos Estados Unidos. O país já enfrenta uma nova pandemia, a dos não vacinados, e vê o número de casos e de internações disparar entre os negacionistas, que representam mais de 95% das mortes pela Covid-19 em alguns estados. Então, pior do que tomar qualquer uma, é não tomar nenhuma.
A batalha das variantes da pandemia da Covid-19
Resta-nos torcer pela gama, mas nos preparar para a delta
Hélio Schwaetsman / Folha de S. Paulo
A variante delta vai provocar uma terceira onda de Covid-19 no Brasil? Não sabemos, mas essa é uma possibilidade para a qual precisamos estar muito atentos.
Lidamos aqui com um experimento biológico inédito, que consiste em lançar a nova variante num ambiente em que a cepa dominante é a gama. É Darwin quem dá as cartas. Se a delta apresentar uma vantagem competitiva sobre a gama, então a variante que fez sua primeira aparição na Índia deverá se espalhar com rapidez entre nós, com grandes chances de provocar um novo round de contaminações. A delta já mostrou que é capaz de vencer a alfa e a beta.
Há, é claro, outros fatores a considerar. O mais importante é a quantidade de pessoas que ainda são suscetíveis à infecção por Covid-19. Mesmo que a delta seja muito mais contagiosa do que a gama, a devastação que ela pode causar ficará limitada se a grande maioria da população já estiver imunizada, por vacinas, por ter se recuperado da doença ou por uma combinação dos dois.
E aqui, de novo, a delta preocupa. O Brasil já vacinou 62% da população adulta com a primeira dose, mas apenas 24% estão com o esquema completo. Estudos sugerem que a imunização parcial, que já assegura uma proteção razoável contra as variantes tradicionais, não funciona tão bem contra a delta. Mesmo países que estavam bem mais adiantados na imunização (e com um gap menor entre primeira e segunda doses), como Israel, Reino Unido e EUA, experimentaram repiques quando a nova variante se espalhou.
Nesse contexto, resta-nos torcer pela gama, mas nos preparar para a delta. Não é obviamente o caso de promover lockdowns preventivos, mas prefeitos e governadores deveriam redobrar a cautela antes de relaxar restrições que ainda estão em vigor. É politicamente muito mais custoso ter de recuar em alguma liberação do que prosseguir com cuidado na reabertura. As próximas semanas nos trarão as respostas.
El País: Nelly e Erik, as inquietantes mutações do coronavírus em Manaus
Três novas variantes do vírus poderiam ser mais contagiosas e capazes de reinfectar graças a uma combinação semelhante de alterações em seu genoma
Os cientistas que vigiam a evolução do novo coronavírus estão inquietos. Depois da aparição no final do ano de duas variantes aparentemente mais contagiosas, detectadas no Reino Unido e África do Sul, um grupo de pesquisadores publicou em 12 de janeiro a descrição de uma terceira variante suspeita em Manaus, relativamente similar às duas anteriores. Os autores sugerem uma possibilidade preocupante: a evolução convergente, o mesmo fenômeno que fez os morcegos e aves desenvolverem asas de maneira independente, milhões de anos atrás. O coronavírus também poderia estar mudando na mesma direção em diferentes lugares do mundo: rumo a versões mais transmissíveis e inclusive capazes de reinfectar algumas pessoas que já tiveram covid-19, conforme adverte a equipe que descobriu a variante brasileira, encabeçada pelo epidemiologista Nuno Faria, do Imperial College de Londres.
A nova variante brasileira apresenta uma combinação singular de mutações, mas duas delas são velhas conhecidas. Alguns geneticistas as denominam Nelly e Erik, pela semelhança com seus nomes técnicos: N501Y e E484K. Nelly e Erik são duas mutações que afetam a espícula do coronavírus, a chave com a qual o vírus entra nas células humanas. A mutação Nelly está presente nas três variantes inquietantes, e Erik se soma a ela na sul-africana e brasileira.
O virologista espanhol Rafael Delgado expressa sua “preocupação” com essa possível evolução convergente, envolvendo combinações de mutações que talvez se repitam porque representam uma vantagem para o vírus. Um estudo preliminar do bioquímico norte-americano Jesse Bloom sugeriu há algumas semanas que a mutação E484K multiplica a capacidade do coronavírus de escapar dos anticorpos do plasma sanguíneo de alguns doadores que já superaram a covid-19. E outro estudo publicado nesta terça-feira sustenta que “a maioria” das pessoas que foram naturalmente infectadas pelo novo coronavírus e se recuperaram poderiam se contaminar novamente com a variante sul-africana. O trabalho, ainda um esboço pendente de revisão, foi assinado pela virologista Penny Moore, do Instituto Nacional de Doenças Contagiosas da África do Sul.
A variante britânica —com Nelly, mas sem Erik— surgiu aparentemente no Reino Unido, em setembro, e já foi registrada em 40 países. As autoridades britânicas calculam que é entre 30% e 50% mais transmissível. Na Espanha, foi identificada pela primeira vez na época do Natal, no Hospital 12 de Octubre, em Madri. “Estamos detectando atualmente entre 2% e 3% [de variantes britânicas com relação ao total de casos]. A porcentagem é pequena, por enquanto, mas claramente vem crescendo”, explica Rafael Delgado, chefe do Serviço de Microbiologia desse hospital. Na Dinamarca, a variante britânica representava 2,4% das amostras analisadas há duas semanas, e agora já chega a 7%.
A variante britânica não produz uma forma mais grave da doença, mas é mais contagiosa, segundo todos os indícios, de modo que o resultado final seria também um maior número de mortos. “Os hospitais lotam antes, Portanto, é um perigo, sobretudo na situação em que estamos agora, que já de ruim. É preocupante”, opina o biólogo Iñaki Comas, codiretor do consórcio que sequencia os genomas do coronavírus na Espanha. Comas calcula que a variante britânica só alcança atualmente uma frequência de 1% a 5% em todo o território espanhol.
A variante sul-africana já apareceu em 13 países, entre eles a França e a Alemanha. A de Manaus só foi identificada no Brasil, Japão e Coreia do Sul. Em outros países, como a Espanha, a atual onda da pandemia é causada por versões anteriores do SARS-CoV-2. “A atual onda na Espanha não se deve a nenhuma dessas variantes, e sim às que já tínhamos”, salienta Comas. Pode ser questão de tempo. Os Centros para o Controle e a Prevenção de Doenças (CDCs) calculam que a variante britânica será a dominante nos EUA em março.
Alguns especialistas, como o norte-americano Trevor Bedford, acreditam que estas novas variantes surgiram em pessoas com uma infecção crônica, um processo em que as defesas lutam contra o coronavírus durante meses, até que aparece um mutante que invade melhor as células humanas e consegue escapar. Bedford, do Centro de Pesquisas Fred Hutchinson, baseia-se no caso de um homem de 45 anos que, por um problema em seu sistema imunológico, passou cinco meses internado com covid-19 no Hospital Brigham and Women’s, em Boston (EUA). Os médicos que o trataram relataram “uma evolução acelerada do vírus” até que o paciente acabou morrendo. Entre as mutações detectadas figuravam Nelly e Erik.
É muito raro que uma única mutação mude o rumo de um vírus, mas há precedentes. Uma só mudança no vírus do chikungunya o tornou capaz de se instalar em uma nova espécie de mosquito, aumentando assim seu potencial epidêmico, segundo um estudo da Universidade do Texas. O que mais preocupa os cientistas, entretanto, é o efeito sinérgico de várias mutações relevantes. Delgado, do 12 de Octubre, teme sobretudo a coincidência de Nelly e Erik nas variantes sul-africana e brasileira.
Um estudo preliminar com 20 voluntários, publicado nesta terça, também sugere que os anticorpos gerados por vacinas (nesse estudo, as da Pfizer e Moderna) sejam ligeiramente menos eficazes contra as novas variantes com as mutações Nelly e Erik. “É possível que seja necessário atualizar periodicamente as vacinas para evitar uma potencial perda de eficácia clínica”, concluem os autores, encabeçados pelo imunologista Michel Nussenzweig, da Universidade Rockefeller (EUA). Os pesquisadores salientam que o efeito observado é “modesto”.
O geneticista Fernando González Candelas, codiretor do consórcio espanhol, recorda o excessivo alarme gerado no ano passado com outras mutações, como a D614G, apontada em meados de 2020 como talvez mais contagiosa, e hoje absolutamente dominante em todo o mundo. González Candelas, catedrático da Universidade de Valência, é muito cético quanto à hipótese de que o coronavírus esteja evoluindo em uma mesma direção. “É preciso ter muito cuidado com os vírus. Mesmo que a mesma mutação apareça várias vezes, não significa que haja uma evolução convergente. A probabilidade de aparecer uma mesma mutação de forma independente é muito alta”, argumenta. “Há muito alarme antecipado a respeito”.
González Candelas acredita, no entanto, que poderiam estar se formando as condições para o surgimento de cepas avantajadas do vírus. “À medida que vai aumentando o número de pessoas vacinadas ou com imunidade gerada por uma infecção prévia, favorece-se a infecção por aqueles vírus que podem evitar essas defesas imunológicas”, explica. O comitê de emergências da Organização Mundial da Saúde afirmou em 15 de janeiro que o risco é “muito alto” e fez um apelo aos países para que dediquem mais recursos a vigiar as mutações do coronavírus. Quase ninguém contempla a possibilidade de que as vacinas deixem de funcionar repentinamente, e sim que perca progressivamente sua eficácia atual, em torno de 95%, até que seja necessário atualizá-las, como ocorre todos os anos com a vacina da gripe.
“O problema é que muito do que sabemos sobre os efeitos das mutações procede de experimentos com mutações individuais: você coloca uma mutação [em uma réplica do vírus em laboratório] e vê o que acontece. Mas nos falta muita informação experimental sobre como todas estas mutações interagem entre si: qual é o impacto de pôr Nelly e Erik juntos”, explica Iñaki Comas, do Instituto de Biomedicina de Valência, ligado ao CSIC (agência espanhola de pesquisa científica).
Comas, no entanto, se diz otimista. “Talvez, tanto a variante da África do Sul quanto a do Brasil tenham algum efeito sobre a imunidade devido a essa mutação E484K, mas não esperamos que nenhuma destas variantes, tampouco a britânica, afete as atuais vacinas. A imunidade que conseguimos com as vacinas é muitíssimo maior que a imunidade natural depois de uma infecção”, tranquiliza. O próprio Jesse Bloom, um dos cientistas que mais estudaram a mutação E484K, declarou que confia em que “as atuais vacinas serão úteis durante bastante tempo”.
“O mais importante agora em relação às vacinas não é nos preocuparmos com as variantes, e sim com a vacinação: que chegue a todas as populações em todas as partes do mundo”, opina Comas. Quanto às novas variantes, o pesquisador espanhol recorda a estratégia básica para freá-las: “Ainda não se inventou uma variante que seja capaz de saltar uma máscara”.