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Andrea Jubé: Eles só pensam naquilo

Renan Calheiros prega reeleição de Davi pela “estabilidade”

O bordão é da Dona Bela, a “moça intocada” vestida de colegial, que se atirava ao chão com histeria, depois se levantava, embicava os lábios e revirava os olhos com aquele ar de quem comeu e gostou, na Escolinha do Professor Raimundo.

Mas também saiu dos versos do malemolente Genival Lacerda, cantor de “ele tá de olho é na butique dela”. Até hoje, o quase nonagenário paraibano se sacoleja em shows pelo Nordeste, ao som de:“ você só pensa naquilo; você só pensa naquilo; você só pensa naquilo, meu bem; você só pensa naquilo”.

Da turma de Chico Anísio ou do xote nordestino, poucas vezes o bordão da comédia e do forró serviu tanto para definir os bastidores de Brasília como nos últimos dias.

Todos os comensais negam, mas somente uma pauta fazia salivar os participantes da rodada de jantares dos últimos 20 dias em Brasília, nas residências do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), da senadora Kátia Abreu (PP-TO), e do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas: a sucessão na Câmara e no Senado.

Sobrava algum espaço para discutirem a sabatina do desembargador Kássio Marques, indicado para o Supremo Tribunal Federal (STF), e com menos interesse, a vacina da Covid-19. O coronavírus não é mais prioridade para os políticos, que após meses de isolamento, voltaram a Brasília e renunciaram às máscaras nesses encontros gastronômicos para matar a fome de articulação política ao vivo, depois de tanto debate online.

Como consequência desse desinteresse pela pandemia, normalizaram-se as notas oficiais lacônicas, em que o político informa que se infectou, mas passa bem. Nenhum deles menciona uma tomografia de pulmão, um eletrocardiograma, um monitoramento médico diário ou uma discreta perda de olfato ou paladar.

Menos de uma semana após o evento na casa do ministro Bruno Dantas, para reconciliar Maia e Paulo Guedes, dois convidados vieram a público informar que se infectaram, mas passam bem: o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, e o líder do MDB no Senado, Eduardo Braga (AM).

Rodrigo Maia, recém curado da covid, estava, teoricamente, com os anticorpos nas alturas. Por isso, não se preocupou em receber a oposição para um jantar um dia após a reunião na casa de Dantas.

Segundo um dos presentes, Maia pediu à oposição apoio a candidatos que estejam comprometidos a “valorizar a instituição”. Nesse rol, citou nominalmente seus aliados: o vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (Republicanos-SP), o autor da proposta da reforma tributária e líder do MDB, Baleia Rossi (SP), o deputado Marcelo Ramos (PL-AM).

Para arrepio do líder do Centrão, Arthur Lira (PP-AL), principal adversário de Maia na sucessão, o presidente incluiu na lista de candidatos de seu grupo dois nomes do PP: o relator da reforma tributária, Aguinaldo Ribeiro (PB) e a deputada Margarete Coelho (PI). Aguinaldo é competitivo, mas a cúpula do PP fechou com Lira. A ideia é contemplar Aguinaldo com outro posto. Eventualmente, um ministério no ano que vem.

A referência de Maia a Baleia Rossi embaralha um dos cenários no Senado. Se ao fim, o Supremo proibir o presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), de disputar a reeleição, o caminho estaria aberto para um emedebista, pela prerrogativa de representar a maior bancada.

Todavia, o Centrão não endossaria o retorno da hegemonia do MDB na cúpula do Legislativo. Uma das leituras é que Baleia sendo contemplado com a eventual aprovação da reforma tributária ao menos na Câmara, Braga teria o caminho livre para tentar o comando do Senado.

Segundo outro participante do jantar na casa de Maia, ele se declarou convencido de que não deve ser candidato, caso a reeleição seja franqueada para os titulares das duas Casas.

A fonte ressalva, entretanto, que Maia não poderia afirmar o contrário em público. Nos bastidores, contudo, a recondução da dupla Maia-Alcolumbre entusiasma o mercado, em nome da estabilidade institucional e da garantia de continuidade das reformas.

Nas conversas reservadas, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), que ganhou novo protagonismo com a interface com Guedes, tem pregado justamente essa tese. A interlocutores que o ouviram nos três jantares de que participou - dois na casa de Kátia Abreu, um na de Bruno Dantas - o ex-presidente do Senado disse que apoia a reeleição de Alcolumbre em nome da estabilidade institucional e democrática.

Renan argumenta que num cenário em que a democracia esteve por um fio - até os caciques se deixarem levar pela crença de que domesticaram o presidente Jair Bolsonaro - a reeleição de Alcolumbre, um interlocutor reconhecido do Palácio do Planalto, é a garantia de dois anos de harmonia institucional e da defesa das reformas necessárias ao ajuste fiscal.

A coluna apurou que aliados de Alcolumbre fizeram essa tese chegar a ouvidos de ministros do Supremo, que julgarão a legitimidade constitucional de sua eventual reeleição.

Um senador bem informado pondera, entretanto, que apesar do aparente favoritismo de Davi, há três grupos distintos organizados sobre a sucessão na direção da Casa.

O primeiro grupo está comprometido com Alcolumbre, que já dividiu espaços na Mesa Diretora e nas presidências das comissões.

Um segundo grupo, que este senador chama de “ingênuos”, estaria convencido de que o Supremo agirá com responsabilidade para impedir a “aventura constitucional”, de autorizar a reeleição do presidente no meio da legislatura.

O terceiro grupo seria formado por senadores que fazem “jogo duplo”. Fingem que estão com Alcolumbre, tentam iludi-lo desse compromisso, mas dia e noite estão dedicados à procura de um plano B.

Contudo, mesmo este grupo se inclina para Alcolumbre quando bate o receio de que a ausência de um segundo nome competitivo abra caminho para um tertius de espírito intrépido, disposto a aventuras como processar o impeachment de um ministro do STF, ou instalar uma “CPI da Toga”.


Fernando Abrucio: País precisa dizer o que quer ser no século XXI

Parafraseando o “50 anos em 5” de JK, o que guia Bolsonaro é um projeto de “40 anos em 4”, mas para trás, de volta ao mundo da ditadura e da Guerra Fria

Mal começaram as campanhas municipais de 2020 e os atores políticos já falam em 2022. Especialmente o bolsonarismo e seus aliados estão concentrados na aprovação de seu elixir político, que no momento tem o nome de Renda Cidadã, continuação do auxílio emergencial que catapultou a popularidade presidencial. Obviamente que há outros projetos no Congresso, mas seu sentido mais amplo está deslocado da estratégia política de curto prazo, que é reeleger Bolsonaro e salvar sua família das querelas judiciais. E qual é o projeto dos opositores do presidente? Novamente, há uma miríade de temas, muitos louváveis, mas não uma visão clara e articulada de como o Brasil deve lidar com os desafios do século XXI.

A ideia de projeto para o país, com metas claras, meios definidos e articulando as questões numa visão ampla, está em falta no momento. Geralmente, o comandante do Executivo federal tem a primazia na definição dos rumos nacionais, pois foi votado pela maioria dos brasileiros, além de ter um enorme poder político e administrativo. Mas o governo atual padece de cinco problemas que dificultam liderar um processo mais amplo de mudanças.

O primeiro é a falta de um diagnóstico para as grandes questões do século XXI. Parafraseando o “50 anos em 5” de JK, o que guia Bolsonaro é um projeto de “40 anos em 4”, mas para trás, voltando ao mundo do final do regime militar e da Guerra Fria. O passadismo domina o presidente, que se concentra em temas morais que lutam contra mudanças contemporâneas de valores e é saudosista da época da ditadura. É verdade que ele enviou várias propostas administrativas e econômicas ao Congresso Nacional, que poderiam ser colocadas dentro de um “pacote modernizador”. Porém, a soma dessas medidas geraria qual tipo de Estado? Quais devem ser as principais funções governamentais dentro da ótica bolsonarista? Como deveria ser a articulação do setor público com a sociedade? Qual é o modelo de gestão pública do bolsonarismo?

Em outras palavras, o governo Bolsonaro não apresentou até agora, com clareza, um diagnóstico de quais são os principais obstáculos para o desenvolvimento brasileiro do século XXI. Na verdade, o bolsonarismo é muito frágil no diagnóstico e no prognóstico na grande maioria das políticas públicas. Está aqui o segundo obstáculo para se construir um projeto mais amplo para o Brasil. Quem são os principais formuladores do governo? Quais países inspiram as políticas públicas ou, então, quais são as evidências que alimentam as decisões do primeiro escalão da área social?

Haveria vários exemplos dessa falta de perspectiva das políticas públicas. Para citar um deles: todos os economistas apontam o grande problema da produtividade da economia brasileira e como a questão educacional tem um peso decisivo neste tema. Pois bem, o que o MEC está fazendo ou pretende para melhorar efetivamente a Educação do país? Ninguém sabe. Falar contra Paulo Freire é lutar contra o passado - e uma luta equivocada - e não aponta um rumo para o futuro. Quais são as medidas inovadoras que estão pensadas para que o país melhore sua posição no PISA nos próximos dez anos? O que está sendo pensado para reduzir as desigualdades educacionais do país? As perguntas são muitas, e o silêncio das respostas é ensurdecedor.

Outro exemplo: é impossível imaginar o futuro do Brasil sem propor políticas consistentes sobre a questão ambiental. Aparentemente, o que governo tem conseguido é apenas piorar neste setor, com o esvaziamento dos órgãos públicos, a desregulação selvagem da legislação e, para coroar o retrocesso, os resultados têm sido apenas mais desmatamento, queimadas e desprestigio internacional. Aquilo que deveria ser um ativo para o desenvolvimento do país tornou-se um empecilho. O problema é que, em vez de apontar mudanças na postura atual, adota-se um comportamento meramente defensivo ou então se aposta na radicalização da destruição de tudo que foi feito ao longo da redemocratização. Alguém imagina que o Brasil melhorará no século XXI com o modelo bolsonarista de política ambiental?

Claro que podem ser citadas, aqui e acolá, medidas modernizadoras vindas do Executivo federal, como as ações do Banco Central para modernização do sistema de pagamentos do país. E aqui entra o terceiro obstáculo presente no governo Bolsonaro: há muitas forças políticas, muitos desiguais entre si e descoordenadas, convivendo no mesmo espaço, sem que uma liderança clara dê um sentido sistêmico às propostas.

O maior exemplo disso é a inflação de propostas que o Executivo federal mandou ao Congresso Nacional sem que haja prioridades entre elas. Cada mês uma delas é alçada ao topo das preocupações. O pior de tudo é que não há comprometimento presidencial nem com todos os pontos presentes nestes projetos. É muito estranho um presidente que manda algumas propostas de emenda constitucional bastante complexas, que mudam aspectos profundos do Estado, ter como principal preocupação a aprovação do novo Código de Trânsito Brasileiro! Que pontos estratégicos dessa legislação vão melhorar o futuro dos nossos filhos e netos?

No fundo, Bolsonaro se importa mais com aquilo que não tem evidências sobre seu impacto positivo de longo prazo, como a legislação das armas, do que com as grandes questões estruturais brasileiras, num caminho inverso aos dos países que estão efetivamente se preparando para o século XXI. Se voltarmos ao seu programa de governo apresentado na eleição, na maioria das vezes eram temas menos relevantes que ganharam destaque - e nos pontos efetivamente importantes, geralmente Bolsonaro apresentou propostas populistas ou que ele abandonou no meio do caminho, como o seu lavajatismo.

A falta de uma coalizão bem organizada no Legislativo, em termos de apoio e ideias, tem sido um quarto empecilho para a construção de uma visão clara de futuro. Isso gerou uma postura de desresponsabilização do Executivo, que muitas vezes torce para que os parlamentares resolvam sozinhos os problemas da agenda pública do país. Assim foi na reforma da Previdência, e alguns apostam que esse processo poderá ser repetido nas reformas administrativa e tributária. O problema é que quando o Executivo se ausenta, também podem ser aprovadas coisas que atrapalham o funcionamento governamental, seja em termos fiscais, seja na capacidade de execução.

Desde a prisão de Queiroz, no dia 18 de junho, Bolsonaro mudou de posição e começou a construir uma base parlamentar. Essa decisão, em boa medida, serve a ambos os lados como um mecanismo de autoproteção e sobrevivência de deputados e do próprio presidente. No entanto, vislumbra-se agora que se pode e se deve buscar algo mais dessa aliança, como revela a discussão sobre o Renda Cidadã. Só que exatamente quando essa parceria aponta para uma mudança legislativa importante, descobre-se o quinto e último aspecto que limita o reformismo bolsonarista: a dificuldade de pensar além das eleições de 2022.

É inegável que programas de transferência de renda constituem uma condição necessária para se combater a desigualdade brasileira. Mas é preciso juntá-las como outras políticas sociais. A desigualdade é múltipla e exige remédios vindos de vários setores. Qual é a política bolsonarista, por exemplo, para se reduzir a desigualdade racial? Afinal, são os negros que mais morrem com a violência na periferia, inclusive da vinda da polícia, bem como há um grande abismo educacional entre as crianças brancas e as negras. Obviamente que a renda é um ponto de partida desse processo, mas sozinha não muda este triste quadro, que já nem deveria existir em pleno século XXI.

Até agora os governistas só pensam em distribuir dinheiro para receber fidelidade na hora do voto. É esse mesmo sentido pragmático que move hoje o presidente, que no passado fora contra o Bolsa Família e todas as ações de redistribuição mais direta de renda aos pobres brasileiros. Todos podem mudar e fazer autocrítica, mas o que deve ser exigido de Bolsonaro envolve uma pergunta maior: qual será o desenho dessa política de transferência de renda para os próximos dez anos?

Do lado da oposição ao governo Bolsonaro, no seu sentido mais amplo, muitas propostas e temáticas relevantes têm sido levantadas nos últimos meses. Elas vêm de partidos ou de grupos da sociedade civil que têm apresentado bons debates e ideias sobre meio ambiente, educação, questão racial, saúde e outras questões verdadeiramente estruturais para o país. Não obstante, a fragmentação dessas visões de mundo e a falta de um modelo mais sistêmico que aponte soluções para frente, em vez de se concentrar nos sucessos e erros do passado, constituem uma fragilidade daqueles que querem se opor ao atual governo.

Muito se fala da necessidade de construir uma frente ampla, da centro-direita à esquerda, contra o bolsonarismo. Pode ser que isso seja necessário para a eleição de 2022 - e esse é um tema para um outro artigo -, mas é preciso dizer qual será o projeto mais amplo que vai orientar essa aliança, de modo que ela não seja apenas defensiva.

O país está num momento de ausência de uma proposta consistente de futuro. Para superar essa fase, além dos votos, será necessário propor ideias e soluções que vislumbrem algo além do curto prazo e do personalismo presidencial.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.


César Felício: A longa estrada de Bolsonaro

Bolsonaro precisa crescer nos grandes centros

De Parauapebas, sul do Pará, a São Paulo, são 2.365 quilômetros. Segundo aplicativos, é possível ir de carro, desde que parando apenas em pedágios, em 33 horas, pela BR-153. Viagem dura.

Em Parauapebas o presidente Jair Bolsonaro vive os píncaros da glória. Segundo levantamento desta semana do Ibope, sua administração é avaliada como boa ou ótima por 58% dos entrevistados. É uma aprovação acima da média nacional nesta cidade de 200 mil habitantes, com PIB per capita de quase o dobro da capital paulista, graças aos royalties pagos pela exploração mineral. O chão de Parauapebas é o da Serra de Carajás. Seus moradores dispõem de um shopping center, mas só 17% das residências têm ligação de esgoto.

Em São Paulo, de acordo com o levantamento XP/Ipespe divulgado ontem pelo Valor, a soma de avaliações boa ou ótimo do presidente da República é de 26%, um ponto percentual inferior ao que seu candidato na cidade, Celso Russomanno, obteve.

A candidatura de Russomanno não cumpre apenas o propósito de melar a articulação do governador João Doria de construir uma grande aliança para enfrentar o bolsonarismo em 2022. Ela também recebeu o apoio presidencial porque Bolsonaro precisa melhorar seus percentuais na capital paulista. O presidente não é uma figura popular na cidade, ainda que menos rejeitado que o governador tucano. Na pesquisa Ipespe, 46% dos entrevistados avaliaram Bolsonaro como ruim ou péssimo. Em Parauapebas, foram 16%. A ajuda que Bolsonaro dá a Russomanno e a que recebe dele se equivalem.

Existe um padrão na popularidade presidencial, quando se lê os relatórios de pesquisa e se busca esta informação. Bolsonaro está mal nos grandes centros, sem sombra de dúvida. Ele vai melhor em cidades um pouco menores, não exatamente pobres. Muitas delas ligadas a atividades extrativas ou agropastoris.

Para que não se fique apenas em São Paulo, tome-se como objeto de análise as pesquisas feitas pelo Ibope nos últimos dez dias. A avaliação boa ou ótima de Bolsonaro é de 18% em Salvador, 26% em Porto Alegre, 29% no Recife, 34% no Rio de Janeiro. O ruim e péssimo, nestas cidades, somam, respectivamente, 62%, 50%, 43% e 38%. Nem mesmo em seu domicílio eleitoral Bolsonaro está bem na foto.

Daí se entende a falta de ânimo do presidente em apoiar o seu candidato natural no Rio de Janeiro, que seria o prefeito Marcelo Crivella. Bolsonaro precisa de alguém que agregue para ele entre os cariocas. Não está muito em condição de ajudar.

Bolsonaro faz boa figura em Curitiba, onde consegue 40% de bom e ótimo, ante 34% de ruim e péssimo, resultado bem próximo do padrão nacional. No Sul e Sudeste, é seu melhor resultado nas capitais.

Para superar este patamar, é preciso chegar mais perto de Parauapebas no mapa. O presidente tem avaliação positiva grande em João Pessoa (43%), Goiânia e Palmas (ambas com 44%).

Outra vertente é se aproximar de Parauapebas em porte. Levantamentos em cidades como Santos e Ribeirão Preto, grandes centros do interior, mostram Bolsonaro em posição mais confortável do que nas capitais, mas longe ainda da registrada na cidade paraense.

Para o analista político da XP, Paulo Gama, a hipótese mais provável é que Bolsonaro vive um fenômeno de troca de base, análogo ao que Lula teve em 2006. “Existe um deslocamento claro das fontes de popularidade atuais de Bolsonaro e das que ele tinha em 2018. Dois fenômenos coincidiram e explicam a troca de base: o rompimento dele com a Lava-Jato, que ficou claro com a demissão de Sergio Moro, e a criação do auxílio emergencial. Por isso ele está mais fraco nos grandes centros e mais forte nas cidades menores”, disse.

A sagração de Russomanno como o delfim de Bolsonaro em São Paulo é a mais perfeita tradução do fenômeno. O deputado é forte em um eleitorado muito sensível a promessas de ação direta do governo para o bem estar das pessoas. Ele começou na frente e perdeu embalo em 2012 e 2016 porque PT e PSDB criaram alternativas de peso para competir por esse eleitorado. Fernando Haddad há oito anos e Doria há quatro.

Desta vez, o entusiasmo nesta faixa do eleitorado por Bruno Covas e Jilmar Tatto é bem pequeno. Guilherme Boulos é uma novidade da eleição e surpreende pela solidez de sua largada. De acordo com o Datafolha divulgado ontem, tem 10% na espontânea e 12% na estimulada. Não será fácil para Boulos repetir o mesmo sucesso que obtém na classe média intelectualizada entre os seus vizinhos do empobrecido Campo Limpo. Se for para o segundo turno - a esquerda paulistana ficou em primeiro ou segundo lugar em todas as eleições nos últimos 32 anos - pode ser um presente para Russomanno. Repetiria o cenário eleitoral do Rio em 2016. Russomanno seria o Crivella de São Paulo.

A falta de adversários fortes é um lenitivo para Russomanno. Esta é uma realidade que estaria posta com ou sem a entrada de Bolsonaro no cenário eleitoral paulistano. O perfil de eleitorado de Russomanno é semelhante ao de Bolsonaro hoje. É um eleitor que em alguma vez da vida votou no PT. Há um pouco de Parauapebas nele. Nesta cidade do interior do Pará também aconteceu assim.

Em 2014 Dilma Rousseff teve por lá 45 mil votos no primeiro turno. Quatro anos depois Haddad conseguiu 33 mil. Os tucanos e o eleitorado de Marina foram pulverizados. Somaram 45 mil em 2014 e 3 mil em 2018. Bolsonaro recebeu 60,1 mil votos.

Governadores em baixa

As pesquisas recentes também mostram que a situação está difícil para os governadores nos grandes centros urbanos. Das 11 capitais onde houve levantamento nos últimos dez dias, em seis a reprovação supera com margem larga a aprovação. A pior situação é a de Mauro Carlesse, em Tocantins. Somente 13% dos pesquisados em Palmas avaliam sua administração como boa ou ótima. 44% acham que é ruim e péssima. Dividem o segundo posto em rejeição em sua capital o paulista João Doria (21% de bom e ótimo e 40% de ruim e péssimo) e o pernambucano Paulo Câmara (respectivamente 19% e 40%).

*César Felício é editor de Política


Ribamar Oliveira: O calendário político é o que conta

Nem mesmo o mais ingênuo dos analistas vai acreditar que qualquer proposta de reforma poderá ser discutida e votada antes do término das eleições municipais

Aconteceu o que era previsível. O calendário eleitoral deste ano se sobrepôs a todas as demais questões. A partir da próxima semana, deputados e senadores terão olhos e disposição para tratar apenas das eleições municipais. Nem mesmo o mais ingênuo dos analistas vai acreditar que qualquer proposta de reforma poderá ser discutida e votada antes do término do pleito. Entramos no recesso branco, como é chamado o período pré-eleição pelos parlamentares.

Senadores e deputados não conseguiram sequer instalar a Comissão Mista de Orçamento do Congresso, responsável por apreciar e votar a lei de diretrizes orçamentárias (LDO) para 2021 e a proposta orçamentária. Isso dá uma dimensão da falta de acordo político sobre o cenário fiscal do próximo ano.

Os parlamentares estão preocupados é com a eleição de seus principais cabos eleitorais, que são os prefeitos e os vereadores de suas regiões. Neste momento de grandes disputas políticas locais, o Ministério da Economia queria que o governo encaminhasse proposta ao Congresso primeiro acabando com o abono salarial aos trabalhadores que ganham até dois salários mínimos e com o seguro-defeso, concedido aos pescadores artesanais na época da desova dos peixes. Depois propuseram a suspensão, por dois anos, da correção dos valores dos benefícios previdenciários, o que resultaria em redução, em termos reais, das aposentadorias e pensões.

Obviamente, os líderes partidários que apoiam o governo devem ter mostrado ao presidente Jair Bolsonaro que essas propostas, apresentadas pelo governo às vésperas do pleito eleitoral, significariam um suicídio político, que não estavam dispostos a cometer. Ao apresentar as propostas, a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, deu a oportunidade ao presidente de produzir um frase de grande efeito eleitoral: “Não vou tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”.

Às vésperas de uma eleição, ou se apresenta propostas populares ou não se apresenta nenhuma. Há obviedades que parecem serem esquecidas, às vezes até mesmo por pessoas inteligentes e experientes. As medidas para o ajuste das contas públicas, que são duras, e para viabilizar o programa Renda Cidadã, que exigirão cortes em outras despesas, ficaram para ser discutidas após as eleições.

Depois do famoso jantar que pacificou as relações entre o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o ministro Paulo Guedes, duas estratégias foram anunciadas. Em primeiro lugar, o novo programa social do governo terá que caber dentro do teto de gastos da União. Os ministros “fura teto” parece que foram, pelo menos temporariamente, contidos.

Ao mesmo tempo, abriu-se uma janela que já vinha sendo reivindicada pelos políticos desde agosto deste ano. O governo aceitou colocar na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 188, conhecida como PEC do Pacto Federativo, um dispositivo que torna permanente a possibilidade de acionar o chamado “Orçamento de Guerra”, instituído pela emenda constitucional 106 e adotado neste ano para o enfrentamento da pandemia.

Os políticos querem que as regras da emenda constitucional 106 possam ser utilizadas em qualquer situação de calamidade. Fonte do governo explicou ontem que os políticos estão temerosos com a possibilidade de uma segunda onda da pandemia da covid-19 no Brasil, como está ocorrendo atualmente na Europa. E querem se antecipar a essa possibilidade.

O artigo 11 da emenda 106 diz literalmente que a emenda entrará em vigor na data de sua publicação e “ficará automaticamente revogada na data do encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Congresso Nacional”. A interpretação de especialistas ouvidos pelo Valor é que, se o atual decreto de calamidade for prorrogado e o Congresso Nacional reconhecer o estado de calamidade, o regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações instituído pela emenda 106 continuará em vigor.

De acordo com essa interpretação, não haveria motivo, portanto, para que um novo mecanismo prevendo que o “Orçamento de Guerra” seja incluído na PEC 188, a menos que se queira fazer modificações no texto atual da emenda 106. Para que o “Orçamento de Guerra” continue em vigor, bastaria que o decreto de calamidade pública seja prorrogado e que tal situação seja reconhecida pelo Congresso Nacional.

A vontade dos políticos de incluir o “Orçamento de Guerra” na PEC 188 desperta suspeitas. Pode-se especular que o objetivo seja criar condições para a prorrogação do decreto de calamidade pública, que permitiria ao governo destinar recursos para pagar auxílios emergenciais e adotar outras medidas extraordinárias, à margem do teto de gastos e de regras previstas na lei de responsabilidade fiscal (LRF).

Qualquer que seja a intenção dos políticos em tornar permanente as regras do “orçamento de guerra” para os casos de calamidade, é preciso observar que o estado de calamidade precisará estar devidamente caracterizado, pois, do contrário, o acionamento das regras do regime extraordinário fiscal e financeiro poderá ser interpretado como fraude à Constituição.

Na verdade, o governo pode fazer despesas adicionais em 2021 fora do teto de gastos, mesmo sem a prorrogação do decreto de calamidade pública ou da existência do “Orçamento de Guerra”, desde que elas sejam destinadas a combater os efeitos remanescentes da pandemia. Para isso, o presidente da República poderá editar medida provisória de crédito extraordinário.

O “Orçamento de Guerra” autoriza o governo a segregar as despesas realizadas para o combate aos efeitos da pandemia, permite a adoção de processo simplificado de contratação de pessoal, de obras e de serviços, suspende a vigência de regras da LRF para a criação ou expansão de despesas, desde que destinadas ao enfrentamento da calamidade, e dispensa a União de cumprir a chamada “regra de ouro”, que limita o aumento da dívida pública às despesas de capital (investimentos e amortizações da dívida).


Maria Cristina Fernandes: Quem janta por último em Brasília

Frente a um Congresso que avança sobre o teto de gastos para definir o poder na Casa, Bolsonaro articula Tereza Cristina para comandar a Câmara

A questão não é mais se o Brasil ainda precisará de um regime de exceção fiscal para 2021. Já está claro que sim. Trata-se, agora, de definir quem dará as cartas nesse regime que estenderá parte das regras fiscais da pandemia para o próximo ano. Ou seja, quem define como, quando e para qual finalidade o teto de gastos deve ser rompido.

Foi este o guisado da noite de segunda-feira que reuniu o ministro da Economia e o presidente da Câmara dos Deputados, além de dois outros ministros de Estado, Fábio Faria (Comunicações) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), quatro senadores, Eduardo Braga (MDB-AM), Fernando Bezerra (MDB-PE), Kátia Abreu (MDB-TO) e Renan Calheiros (MDB-AL), um deputado federal, Baleia Rossi (MDB-SP), além de três ministros do Tribunal de Contas da União, José Múcio Monteiro, Vital do Rêgo e Bruno Dantas, o anfitrião.

Uma alternativa é a aprovação de um dispositivo, previsto, desde 2019, na Proposta de Emenda Constitucional do Pacto Federativo, em tramitação no Senado, que cria o “Conselho Fiscal da República”. Esta instância, formatada para os presidentes dos três Poderes e do TCU, além de três governadores e três prefeitos, pode vir a ser aclimatada aos tempos que correm.

A participação de Paulo Guedes neste Conselho, por exemplo, lhe imporia uma vantagem sobre o ministro do Desenvolvimento Regional, com quem mantém incontida refrega. No jantar, chegou mesmo a testar a hipótese da cadeira de Rogério Marinho vir a ser ocupada pelo deputado federal e ex-ministro das Minas e Energia, Fernando Bezerra Filho (DEM-PE).

Ficou registrado o esforço de Guedes em conquistar a adesão de um dos senadores presentes, pai do cortejado e sabidamente próximo de Marinho, para sua causa. Atiçou ainda o ânimo daqueles que veem nas obras do ministro do Desenvolvimento Regional uma muleta para o poder crescente do PP, partido do senador Ciro Nogueira (PI) e Artur Lira (AL), este último candidatíssimo à cadeira de Rodrigo Maia.

Se para Guedes, a disputa com Marinho ofusca o horizonte, para os presentes o que importa mesmo é a divisão de tarefas na fixação da claraboia dos gastos. Um dos senadores chegou a dizer ao ministro que o aval do presidente da República não basta para Guedes impor suas ideias ao Congresso. Deveria, sim, testar sua viabilidade primeiro com as lideranças partidárias para, aí sim, todos juntos, levar as iniciativas a Jair Bolsonaro, a quem cabe encampá-las. Se fosse possível traduzir num traçado a preleção do senador, o desenho seria o de Guedes sentado no colo das lideranças para a escolinha da política como ela é.

Além do conselho, ideia de difícil operacionalização, o próximo embate para a definição do novo regime fiscal é o da Comissão de Orçamento do Congresso. O presidente e o relator são escolhidos por votação de seus integrantes - 36 deputados e 26 senadores.

É esta disputa que definirá, em grande parte, a sucessão na Câmara dos Deputados, que opõe Lira e Maia. O candidato do primeiro - e do presidente do PL, Valdemar Costa Neto - é a deputada Flávia Arruda (PL-DF). O do segundo - e do presidente do DEM, Antonio Carlos Magalhães Neto - é o deputado Elmar Nascimento (DEM-BA).

Se as lideranças do Congresso têm a expectativa de que podem colocar Paulo Guedes no colo mediante um pedido de desculpas de Maia, já não têm a mesma desenvoltura em relação ao presidente. Bolsonaro já adquiriu a capacidade de operar os códigos do poder.

Depois do condomínio de lealdades montado para a escolha do juiz Kassio Nunes Marques para o Supremo e da confirmação de seu braço direito, o ministro Jorge Oliveira, para a Corte (TCU) que aquilata com quantas pedaladas se derruba um presidente da República, Bolsonaro mira agora na disputa pela Câmara.

Entre a visita ao ministro Gilmar Mendes, quando selou sua escolha para o STF, e o caloroso almoço na casa do ministro Dias Toffoli, Bolsonaro recebeu um ministro de tribunal superior e pôs na pauta de uma longa conversa o nome de um tertius, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina.

Deputada federal pelo DEM do Mato Grosso do Sul, a ministra, uma das mais bem avaliadas da Esplanada, tem servido de barreira a dois franco-atiradores do governo, os ministros do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Encontrar um substituto para a Agricultura, porém, parece ser, ao presidente, uma tarefa menos difícil do que tirar da cartola um novo comando para a Câmara.

Ao pinçar uma correligionária de Rodrigo Maia, Bolsonaro sinalizaria que não quer se indispor com o presidente da Câmara, ainda que se exponha ao risco das imprevisíveis disputas da Casa. Liderança egressa do PSB que se projetou na poderosa bancada ruralista da Câmara, Tereza Cristina ainda teria a capacidade de fazer, no cargo, a transição para a chapa de Bolsonaro em 2022. No PRTB, e fora dele, dá-se por certo que a vaga de vice não voltará a ser ocupada por Hamilton Mourão na eleição de 2022.

A colocação de Tereza Cristina na roda, à revelia da ministra, não é uma demonstração apenas de que o presidente se antecipa ao apetite com o qual o Congresso retomará os trabalhos em fevereiro de 2022. É também sinal de que Bolsonaro pretende assumir, de uma vez por todas, a condição de presidente do sistema, que pretende ser o candidato do centro em 2022. Abraçado pelos tribunais e pelo Congresso, já não precisará tanto assim dos pentecostais, dos reservistas e dos terraplanistas.

Dois termômetros indicam que o comportamento do presidente é pesado e medido. Na aferição da Bites, este movimento de Bolsonaro não trouxe dano à sua base de 38 milhões de seguidores, mas impôs uma perda de 1,2 milhão nas redes sociais do pastor Silas Malafaia. Nas pesquisas qualitativas de Esther Solano (Unifesp), com eleitores bolsonaristas mais pobres, o presidente é visto como uma vítima que precisa buscar alianças para governar.

É um eleitor que avalia ter errado uma vez, com o PT, e resiste a aceitar que possa ter errado de novo. Só vai mudar de ideia se não tiver o que comer. Se conseguir fazer prevalecer o acordão dos tribunais, o instinto de sobrevivência de Bolsonaro estará focado neste eleitor. É ante o apetite do Congresso e o temor do mercado sobre a situação fiscal, que se definirão os rumos do poder - e da fome.


Fernando Exman: Guedes continua sob ataque especulativo

Modelo de superministérios é alvo de críticas

Brasília enfrenta por estes dias aquela época do ano marcada pela extenuante transição entre a seca e o início da temporada de chuvas. A estiagem chega ao seu ápice, pelo menos do ponto de vista de quem habita a capital federal construída no meio do cerrado, com taxas de umidade relativa do ar que se aproximam dos 10%. A torcida geral é para que qualquer chuvisco seja o prenúncio de um período mais fértil, mas o tempo é traiçoeiro e pode decepcionar os mais ansiosos. Neste clima insistentemente árido se desenrolou o jantar de segunda-feira promovido para reaproximar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o ministro Paulo Guedes, da Economia.

Para quem desejava ter notícias positivas, até que chuviscou. Gestos públicos foram feitos: o presidente da Câmara desculpou-se por chamar o chefe da equipe econômica de “desequilibrado”. Guedes, por sua vez, reconheceu os trabalhos prestados por Maia desde fevereiro do ano passado para assegurar a aprovação de itens da agenda econômica e outros projetos de interesse do governo.

Poucas horas depois do encontro, não se fala em vencedor ou derrotado. O jantar serviu a ambos, que buscavam um reposicionamento no jogo e podem ter percebido que, juntos, têm mais a ganhar neste momento.

Maia andava afastado da cena por causa da covid-19, enquanto Guedes precisava dar um novo lustre à imagem do governo e se reapresentar como interlocutor privilegiado do Executivo com a cúpula da Câmara. O MDB aproveitou a oportunidade para lançar uma boia em direção ao ministro da Economia, antes que Guedes seja arrastado pela correnteza para o alto mar, ao mesmo tempo em que se mostrou um parceiro estratégico de Maia nesta reta final de gestão à frente da Casa.

A mensagem geral foi a defesa do teto de gastos, hoje a preocupação central dos agentes do mercado e dos políticos que passaram a vincular o respeito a esta regra às perspectivas de permanência do ministro da Economia no governo.

O ambiente era propício. O anfitrião era o ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU). Junto com Maia, o dono da casa desempenhou um papel central na confecção da proposta de emenda constitucional do Orçamento de guerra, instrumento que flexibilizou as regras fiscais deste ano para viabilizar, por parte do governo, o combate aos efeitos da crise decorrente da pandemia tanto na economia quanto na vida de milhões de famílias.

Dantas é o relator natural dos assuntos relativos à área econômica no TCU, o que lhe confere ainda maior legitimidade para tratar desses temas em contatos reservados ou pronunciamentos públicos. E ele tem se mostrado um defensor do teto de gastos na Corte de Contas, a despeito do assédio de integrantes do governo favoráveis à flexibilização do dispositivo constitucional que se tornou a principal âncora fiscal do país.

Os demais convivas eram principalmente do MDB, o partido que esteve à frente das articulações para a implementação do teto durante o governo Michel Temer. A sigla relata o Orçamento de 2021, a PEC do Pacto Federativo e não hesitará em ocupar os espaços políticos que a conjuntura lhe oferecer.

Ainda é cedo, contudo, para se ter uma nova previsão do tempo de Brasília.

A permanência do ministro da Economia segue sob ataque especulativo - por parte de alas do próprio governo, segmentos do Congresso e setores do mercado. Seu rigor fiscalista é questionado pela ala desenvolvimentista do Executivo, que escorou o presidente Jair Bolsonaro em seu pior momento e o ajudou a estancar as turbulências institucionais entre os Poderes que poderiam se converter num processo de impeachment.

Cessaram as ameaças ao mandato do presidente e, agora, esses setores insistem na ampliação de seus orçamentos e dos investimentos públicos.

No Congresso, a trégua esboçada durante o jantar só será realmente testada quando o ministro e Maia precisarem se sentar à mesa para discutir os temas que os levaram ao rompimento.

Um deles é a reforma tributária e a intenção do Executivo de instituir um novo imposto sobre transações financeiras. Maia sempre foi contra a recriação de uma contribuição nos moldes da antiga CPMF, mas, conforme revelou o Valor, tinha sido procurado por articuladores que tentavam convencê-lo a retirar os obstáculos à discussão do tema. Em contrapartida, o governo concordaria em levar adiante a proposta de reforma tributária por ele defendida.

Então veio o rompimento, quando o governo decidiu adiar as discussões sobre a reforma tributária para depois das eleições municipais. A estratégia interditou não só os trabalhos da comissão mista que trata do assunto, mas também atrapalhou os planos de Maia para a etapa final de seu mandato à frente da Câmara.

De forma inadvertida ou não, Guedes também acabou se intrometendo na disputa pela sucessão de Maia, ao levantar a suspeita de que o deputado teria fechado um acordo com os partidos da esquerda para se reeleger na última disputa. Em troca dos votos, diz o rumor que é rechaçado pelo grupo de Maia e aliados, haveria o compromisso de bloquear a agenda de privatizações do governo.

Quem ficou ofendido pode contra-argumentar que no início de julho Guedes estabeleceu um prazo de até 90 dias para fazer quatro grandes privatizações, mas depois não voltou mais ao assunto.

O ministro e seus auxiliares precisarão enfrentar as críticas que apontam para a pasta da Economia quando se fala do imobilismo do governo nas últimas semanas. Argumenta-se que ficou explícita a falta de contrapontos dentro da equipe econômica, algo que seria fundamental para uma melhor tomada de decisão do chefe do Executivo.

Esses críticos apontam, também, que a saída de Sergio Moro da Justiça e Segurança Pública teria demonstrado a Bolsonaro que a exoneração de superministros gera problemas pontuais absolutamente contornáveis, diante da popularidade pessoal do presidente. O ministro da Economia terá ainda mais problemas, se começar a pregar no deserto.


Andrea Jubé: Cuidado com a onça!

Para Renan Calheiros, “só a política dirá o que é possível fazer”

A “velha política” enfrentou revezes na eleição que consagrou Jair Bolsonaro e o bolsonarismo. Notórios caciques foram varridos das urnas, enquanto outros se enroscaram na Lava-Jato.

Mas o mundo dá voltas, e dois anos depois, são os velhos caciques que voltam a dar as cartas e ditar o ritmo do jogo.

Eleito com a bandeira da antipolítica, o presidente Bolsonaro nem titubeou: quando o cerco apertou, com a abertura de três inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF) que emparedam a ele e seus aliados - e tendo a prisão de Fabrício Queiroz como estopim -, ele repetiu seus antecessores e escolheu o lado certo onde se acomodar.

O presidente seguiu a máxima preconizada pelo decano dos decanos na política, o ex-presidente do Senado e do MDB Jader Barbalho: “Caititu, se andar fora do bando, vira comida de onça”. Em bom português: isolamento em política é sentença de morte.

É por isso que Bolsonaro uniu-se à velha política, e a velha política uniu-se a Bolsonaro.

A sequência de jantares entre autoridades dos últimos dias é a prova de que a lição de Jader não prescreveu: ninguém quer ficar à deriva. Na batalha naval, navio que sai da esquadra é o primeiro a ser abatido.

Ontem o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas abriu a casa para um jantar de tentativa de reconciliação entre o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), num esforço coletivo para evitar o naufrágio da agenda econômica num cenário de caos fiscal.

É certamente singular que os idealizadores do evento sejam o senador Renan Calheiros (MDB-AL), três vezes presidente do Senado, e o ex-senador e ministro do TCU, Vital do Rêgo.

“Qualquer crise tem que ser resolvida com conversa. Só a política dirá o que é possível fazer”, disse Renan à coluna, sobre os arrufos entre Guedes e Maia.

Renan é professor, enquanto o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), virou seu aluno nas coxias. Egresso do baixo clero, Alcolumbre elegeu-se com o discurso de que mudaria “tudo isso que está aí”. Caiu nas graças do “Muda, Senado”.

Menos de um ano depois, assim como Bolsonaro, caminhava de braços dados com os decanos do Senado. Porque, ao fim e ao cabo, “quem sabe, faz”. Política não é ofício para amadores. E o próprio “Muda, Senado” está em declínio.

Renan perdeu a eleição para o quarto mandato à frente do Senado, mas não perdeu a destreza na articulação. Depois de um período de isolamento forçado em sua fazenda em Murici, Alagoas, para fugir da pandemia, e após submeter-se a uma cirurgia para retirada de nódulo benigno do rim em São Paulo, Renan é navio que retornou à esquadra.

O ex-presidente do Senado estava perdendo terreno para seu adversário histórico em Alagoas, o líder do Centrão, deputado Arthur Lira (PP-AL) - pule de dez do Planalto para a sucessão de Rodrigo Maia na Câmara. Como num jogo de tabuleiro, Lira vem expandindo seus domínios: depois de se instalar no gabinete presidencial, abriu espaço para que seu correligionário, o deputado veterano Ricardo Barros, se consolidasse na liderança do governo.

O decano Renan, num piscar de olhos, reagiu e agora se articula para virar patrono da reconciliação de Guedes e Maia.

Depois da alta hospitalar, Renan e a senadora Kátia Abreu (PP-TO), uma de suas fiéis aliadas - e voto declarado na reeleição de Alcolumbre -, reuniram-se com Guedes no último dia 24. Sondaram o terreno para a reconciliação.

Foi preciso esperar a recuperação de Maia, em isolamento compulsório pelo coronavírus. (Olha a onça!)

Ultrapassado o risco de transmissão da covid-19, Renan e Vital encontraram-se com Maia no último sábado. Receberam o sinal verde do presidente da Câmara para organizar o jantar com Paulo Guedes. Bruno Dantas, ligado a Renan, seria o anfitrião.

Maia foi receptivo ao encontro com Guedes. Como mostrou o Valor hoje, interessa a Maia dar fôlego à agenda de reformas em seus últimos meses no comando da Casa. A reforma tributária votada, ao menos na Câmara, é a ambição de Maia.

“É uma briga inútil, não serve pra nada, é perde, perde”, definiu Renan, em conversa com a coluna, sobre o entrevero entre Maia e Guedes. “Eu me coloquei à disposição para selar as pazes”, disse o senador, esclarecendo que tudo que lhe interessa é uma “agenda mínima de reformas, com responsabilidade fiscal”.

Guedes e Maia nunca se bicaram. Mas a política fabrica relações para as quais Deus torce o olho. Em novembro de 2018, antes da posse de Bolsonaro, Guedes declarou que bastava dar “uma prensa” no Congresso para que a reforma da Previdência fosse aprovada. De lá para cá, foi uma sucessão de aspas desastradas. Mas a política é feita com pragmatismo, e não com o fígado.

Por isso, há esperança de reconstrução das relações após o jantar de ontem idealizado por Renan. “Espero que a conversa seja produtiva”, emendou o senador.

A pauta-desejo de Renan contempla a reforma tributária, a eliminação de “subsídios ineficientes e de salários acima do teto no setor público”, uma alíquota diferenciada para quem ganha acima de R$ 50 mil. “Só a politica pode fazer esses balizamentos”, defendeu Renan.

Discípulo de Jader Barbalho, nem Bolsonaro quis saber de isolamento, com medo de virar comida de onça. Somente na última semana, ele jantou duas vezes com o ex-presidente do STF Dias Toffoli. Uma das refeições foi na residência do ministro Gilmar Mendes.

Com três inquéritos assombrando a família Bolsonaro, o presidente quer andar em bando também no Supremo Tribunal Federal. Um deles será a despedida do decano Celso de Mello do STF, que relata o caso.

Mello sustenta que Bolsonaro tem de prestar depoimento pessoalmente à Polícia Federal porque é investigado na denúncia formulada pelo ex-ministro Sergio Moro. Significa na prática impor um constrangimento ao presidente da República.

Nessa conjuntura, expoentes da ala extremista, como Olavo de Carvalho e Sara Winter, protestaram nos últimos dias contra os movimentos de Bolsonaro para outras bandas. Olavo e Sara que se cuidem: vão virar comida de onça.


Sergio Lamucci: As incertezas fiscais e o efeito sobre a retomada

Se persistirem as incertezas fiscais, a recuperação da economia, que já terá desafios como a fraqueza do mercado de trabalho e o fim do auxílio emergencial, será ainda mais difícil

As incertezas em relação às contas públicas brasileiras em 2021 aumentaram ainda mais nos últimos dias, por causa da confusão quanto ao financiamento de um programa de transferência de renda mais amplo que o Bolsa Família e das rusgas entre os ministros Paulo Guedes e Rogério Marinho. Para completar, pioraram as perspectivas de avanço da reforma tributária e da administrativa. Se os juros futuros seguirem em alta e o câmbio continuar a se desvalorizar, como reflexo do agravamento dos riscos fiscais, a recuperação da economia poderá ser ameaçada, num quadro de deterioração das condições financeiras. Os juros básicos em níveis ineditamente baixos ficarão em xeque.

A Selic a 2% ao ano é um dos maiores trunfos para o pós-pandemia. A avaliação dominante é que a taxa poderá continuar nesse nível por alguns trimestres, apesar da alta forte dos preços dos alimentos, um reflexo da disparada da inflação no atacado, devido à desvalorização do câmbio e ao aumento das commodities. O ponto é que a ociosidade na economia é monstruosa, o que tem se traduzido em preços de serviços em níveis muito baixos, inferiores a 1% no acumulado em 12 meses.

Além disso, as expectativas de inflação estão sob controle. As previsões apontam para um IPCA abaixo das metas perseguidas pelo Banco Central (BC) em 2020 e 2021 e exatamente no alvo em 2022 e 2023.

A continuidade dos juros nos atuais níveis é fundamental para impulsionar a economia, que amargou uma recessão cavalar entre o segundo trimestre de 2014 e o quarto trimestre de 2016, cresceu a uma taxa um pouco superior a 1% ao ano em 2017, 2018 e 2019 e terá o maior tombo da história em 2020, por causa do impacto da pandemia. Os efeitos das taxas baixas ficam claros no “crescimento expressivo de setores sensíveis a crédito - principalmente o imobiliário e, em segunda medida, o de vendas de automóveis”, como nota, em relatório, o Itaú Unibanco. Além disso, os juros menores contribuem para aliviar a situação fiscal, num cenário em que a dívida bruta se encaminha para 100% do PIB. Para completar, taxas baixas ajudam a situação financeira de empresas e famílias.

Colaborar para que os juros possam seguir nos níveis atuais deveria ser uma das prioridades do governo. Isso exigiria um compromisso firme com o ajuste das contas públicas, necessário num país que tem uma dívida elevada, com taxas variáveis e prazos relativamente curtos. O que se vê, porém, não é isso. Os sinais são de que, para montar o programa de transferência de renda, não há disposição de tomar decisões difíceis. A percepção é que o teto de gastos será furado em 2021 por meio de algum subterfúrgio. Na semana passada, houve o anúncio da ideia estapafúrdia de financiar o Renda Cidadã com parte dos recursos destinados ao pagamento de precatórios e ao Fundeb (o fundo para complementação da educação básica). A proposta foi bombardeada pelos especialistas em contas públicas, que classificaram a iniciativa de usar dinheiro dos precatórios como “contabilidade criativa” e “pedalada fiscal”. O ministro da Economia, Paulo Guedes, se disse por fim contrário à medida, mas esteve presente no anúncio da proposta, não se opondo naquele momento a ela. Nesse cenário, há uma piora significativa dos preços dos ativos brasileiros. Os juros futuros e o risco país aumentam, o câmbio se deprecia e a bolsa cai.

Essa combinação leva a um aperto das condições financeiras. Nas estimativas do ASA Investments, “mantidos os patamares atuais de nível de juros futuros, risco país, índice Bovespa e outros indicadores, teríamos o crescimento econômico de 2021 reduzido para 1,2%, contra nossa projeção de 2,1%, já substancialmente abaixo do consenso Focus, de 3,5%”, aponta a instituição. “Teríamos um crescimento pífio, que nos condenaria a manter uma taxa de desemprego praticamente inalterada ao longo de 2021, em torno de seu recorde histórico de 16%, número que estimamos para o final deste ano”, dizem os economistas do ASA. Se o câmbio ficar muito pressionado, os aumentos de preços, hoje concentrados principalmente nos alimentos, podem se disseminar. As expectativas de inflação começariam a piorar, levando o BC a ter que elevar a Selic prematuramente.

Fazer um programa de transferência de renda mais amplo é uma ideia que faz todo o sentido num país tão desigual quanto o Brasil. A proposta, contudo, precisa ser bem desenhada. É possível concebê-la e executá-la sem recorrer a malabarismos fiscais, como usar recursos dos precatórios. Mas isso requer decisões complexas e eventualmente impopulares, como unificar programas sociais já existentes.

Adotar medidas para tentar driblar o teto de gastos vai piorar o risco fiscal, elevando ainda mais os juros futuros e a cotação da moeda americana. O teto tem problemas, como a dificuldade para acionar os gatilhos que controlariam em especial os gastos com o funcionalismo. Além disso, as despesas não financeiras da União só poderão aumentar 2,13% em 2021, o que levará a cortes expressivos nos gastos discricionários (como custeio da máquina e investimento). Trata-se, porém, da âncora fiscal que dá alguma previsibilidade para as contas públicas do país. Uma eventual mudança do teto precisaria ser conduzida com muita habilidade, combinada a medidas que reduzam a rigidez do orçamento - como uma reforma administrativa de fato ambiciosa - e aumentem o potencial de crescimento da economia - como a reforma tributária.

A administração de Jair Bolsonaro vai na direção oposta. A disputa entre Guedes e o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, evidencia a falta de rumo do governo de um presidente que só pensa na reeleição e não se dispõe a contrariar grupos de interesse. A percepção crescente é que não haverá iniciativas para deter a expansão das despesas obrigatórias e que a agenda de reforma vai ficar à deriva. Marinho e a ala política do governo planejam medidas que tendem a furar o teto, num quadro de isolamento cada vez maior de Guedes.

Se persistirem as incertezas fiscais, a recuperação da economia, que já terá desafios como a fraqueza do mercado de trabalho e o fim do auxílio emergencial, será ainda mais difícil. As condições financeiras apertadas vão minar a retomada e o cenário para o investimento seguirá turvo, afetando o crescimento de um país que desde 2014 exibe um desempenho econômico lamentável.


Bruno Carazza: Como as economias morrem

Depois do teto, próxima vítima poderá ser a autonomia do Bacen

As ambições de um político o tornam capaz de passar por cima de anos de amizade e a desprezar laços de parentesco mesmo em momentos difíceis de saúde - o que dirá em relação a compromissos com a estabilidade econômica do país.

Em 1959, Lucas Lopes era o ministro da Fazenda do presidente Juscelino Kubitschek. Companheiro fiel desde os tempos da campanha de JK para o governo de Minas, o engenheiro foi o cérebro por trás da criação da Cemig - polo indutor da industrialização mineira, que catapultou JK ao primeiro plano da política nacional - e idealizador do famoso Plano de Metas, o programa desenvolvimentista que prometeu entregar “50 anos em 5”. JK e Lucas Lopes eram tão próximos que seus filhos vieram a se casar.

Depois de presidir o BNDE (o “S” só viria a ser acrescentado no início da década de 1980), Lucas Lopes foi escalado para comandar a economia do país em meio ao desequilíbrio das contas públicas gerado principalmente pela construção de Brasília. Ao lado de Roberto Campos, concebeu o Plano de Estabilização Monetária (PEM), cujo propósito era deter o crescimento do déficit público por meio de um controle mais rígido dos gastos e aprovar uma minirreforma tributária destinada a aumentar a arrecadação, além de reduzir a expansão do crédito para aliviar a inflação. A dupla Lopes & Campos ainda planejava rever a política de incentivos para o café e iniciou negociações de um novo empréstimo junto ao FMI para evitar uma crise cambial.

Qualquer ministro da Fazenda que tenha que defender a austeridade fiscal frente a um presidente que só pensa na sua popularidade vive em permanente estresse - e o de Lucas Lopes era tão grande que ele acabou sofrendo um infarto em 30 de maio de 1959. Com o grande amigo (e futuro consogro) correndo risco de vida, JK não pensou duas vezes: nomeou o expansionista Sebastião Paes de Almeida em seu lugar, rompeu com o FMI, autorizou um reajuste no preço do café e ampliou ainda mais os gastos públicos para entregar a nova capital dentro do prazo. Se o populismo de um político não respeita nem os laços pessoais mais íntimos, não serão as instituições econômicas que o deterão.

Em 2018 foi lançado o best-seller “Como as Democracias Morrem”, escrito por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, ambos professores de ciência política de Harvard. O argumento central do livro é que líderes autoritários estariam sorrateiramente enfraquecendo as instituições ao rejeitarem as regras do jogo democrático, encorajarem a intolerância e a violência e restringirem as liberdade civis, atacando especialmente a imprensa.

Desde a campanha eleitoral, Bolsonaro vem sendo apontado como o exemplar brasileiro dessa nova safra de governantes que buscam permanecer no poder e impor suas vontades não pelo uso de tanques e metralhadoras, mas por forçarem diuturnamente as grades de proteção da democracia.

A aliança firmada com o Centrão nos últimos meses tende a arrefecer esses temores. Cada vez mais refém da “velha política” para proteger a si mesmo e à sua família de processos e também para ampliar sua aprovação entre a população mais pobre do Norte e do Nordeste, parece que não é mais a democracia quem corre perigo no Brasil - mas sim a economia.

Bolsonaro colheu os frutos imediatos da enorme injeção de recursos públicos para combater os efeitos do coronavírus sobre trabalhadores e empresas. Com a popularidade em níveis recordes, inebriou-se com a perspectiva de uma vitória fácil quando tentar a reeleição. O problema é que 2022 está muito distante.

Os sinais de desequilíbrio na economia brasileira aparecem em todas as frentes. O déficit e a dívida pública estão em trajetória explosiva, elevando o risco-país e afugentando o capital externo. A saída de investidores pressiona a taxa de câmbio, que encarece insumos importados e estimula o agronegócio e indústrias nacionais a direcionarem suas vendas ao exterior. Os índices no atacado já mostram uma forte inflação de custos e os consumidores nos supermercados se assustam com os preços dos alimentos.

Tecnicamente, não há muita dúvida sobre o caminho para recuperar o equilíbrio. Passado o pior da pandemia, caberia ao governo recolher a artilharia fiscal montada para combater a covid e avançar nas causas estruturais de um desequilíbrio que já incomodava desde antes da chegada do vírus: trabalhar pela aprovação das PECs emergencial e do pacto federativo e atacar uma reforma administrativa muito mais corajosa do que a apresentada ao Congresso no mês passado.

O problema é que o receituário técnico entra em colisão com as ambições políticas de Bolsonaro. Um ajuste rigoroso pode abortar a recuperação e inviabiliza a continuidade dos agrados distribuídos aos futuros eleitores de 2022. O teto de gastos parece ser a primeira vítima do populismo fiscal do Palácio do Planalto. Mas é pouco provável que o ataque às instituições econômicas pare por aí.

O abandono do teto e a falta de comprometimento do governo com a sustentabilidade das contas públicas elevarão ainda mais o câmbio ao longo de 2021 e 2022, pressionando a inflação. Estará o presidente preparado para ver o dólar romper a barreira dos R$ 6 ou R$ 7? À medida em que a eleição se aproximar, será que Bolsonaro aceitará passivamente aumentos na taxa de juros?

Uma vez derrubado o teto de gastos, quem entra na mira do populismo presidencial é a autonomia operacional do Banco Central. Para não colocar em risco seus planos eleitorais, não me surpreenderia se Bolsonaro tentasse influenciar o Comitê de Política Monetária por uma maior leniência com a inflação ou até mesmo pela busca de soluções “criativas” para conter a taxa de câmbio, como o uso mais intenso das reservas internacionais ou medidas de controle de saída de capitais.

Nestes novos tempos, são incomuns as grandes rupturas macroeconômicas provocadas por declaração de moratórias, confisco de poupanças ou rompimento com o FMI. O perigo hoje em dia é o sorrateiro enfraquecimento das instituições econômicas por líderes populistas que só pensam em permanecer no poder a qualquer custo.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Claudia Safatle: Deixa como está para ver como é que fica

Discussão sobre novo programa social do governo Bolsonaro deve ficar para depois das eleições municipais

Depois da grande confusão patrocinada pelo governo e pelas lideranças políticas em torno do financiamento do programa de renda básica por uma limitação do pagamento de precatórios, a ideia que ocorre à equipe econômica, agora, é: “Vamos deixar como está pra ver como é que fica,” sintetizou uma fonte qualificada.

Isso porque o presidente Jair Bolsonaro está focado nas eleições e tem como um objetivo político superar o prestígio do ex-presidente Lula no Nordeste. Passadas as eleições, volta-se a discutir como financiar o Renda Cidadã ou Renda Brasil, que o governo quer criar para ter sua marca, advogam assessores do ministro da Economia, Paulo Guedes.

Na quarta-feira, Guedes jogou um balde de água fria na pretensão de financiar o programa social com dinheiro economizado com o não pagamento de precatórios. A proposta de dar um calote nos credores do Estado foi anunciada em entrevista coletiva no Palácio da Alvorada na segunda-feira e soou mais como um “gigantesco bode na sala” do que uma real alternativa para o novo programa de renda. A reação do mercado foi péssima e o pai da ideia desapareceu.

Se depender da área econômica, agora, nenhuma decisão será tomada no calor da campanha eleitoral. Resolvida essa questão política, a expectativa predominante é de Guedes ainda tentar voltar à proposição original do Renda Brasil, que seria criado com a fusão de 27 programas sociais dispersos (abono salarial, Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, entre outros).

Isso, porém, não reúne uma massa de recursos suficientes para financiar as 14 milhões de famílias que já recebem o Bolsa Família e mais umas 20 milhões de pessoas colhidas entre os mais de 60 milhões de brasileiros que estão recebendo o auxílio emergencial. A ideia seria de garantir uma renda de cerca de R$ 300 por mês.

Aliás, debate-se um programa social que, a rigor, ninguém conhece e nunca viu uma folha da sua concepção. O ministro da Economia diz que o programa do Renda Brasil, ou Renda Cidadã, está nas mãos de Onyx Lorenzoni, ministro da Cidadania. Não se tem informações básicas sobre qual o publico-alvo do novo programa, quantas pessoas deverão ser beneficiadas por uma renda mínima e quanto isso custará ao Tesouro.

A proposta de Guedes é reforçar a verba para o Renda Brasil com mais cerca de R$ 40 bilhões. Dinheiro que seria tirado da classe média que declara Imposto de Renda e se beneficia de deduções de gastos com saúde e educação, que devem ser abolidas. Quanto à tributação dos ricos e muito ricos, Guedes acena apenas com o Imposto sobre Transações Digitais.

“Esse é um programa conceitualmente íntegro”, costuma dizer o ministro, referindo-se à concepção de financiamento da renda básica. O problema é que Bolsonaro não aceitou a ideia de fusão de quase três dezenas de programas sociais para bancar o Renda Brasil sob o argumento que isso significaria “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”.

O ministro da Economia, porém, acredita que poderá voltar à carga e persuadir o presidente a apoiá-lo em mais essa empreitada. Afinal, se ele já não é mais o “posto Ipiranga”, está confiante de que ainda detém uns 80% a 85% de apoio de Bolsonaro.

Da profusão de ideias anunciadas e retiradas de cena sobrou um pente-fino que o governo pretende fazer na crescente conta dos precatórios. Pelo ministro da Economia, ele paga os valores menores e vai administrando, na boca do caixa, os débitos de maior valor. Como se trata de dívida transitada em julgado, não cabe mais recurso a não ser quitá-la.

O relator da PEC do Pacto Federativo, senador Marcio Bittar (MDB-AC), abrigou no seu substitutivo a limitação dos pagamentos de precatórios a 2% da receita corrente líquida anual. Cifra equivalente a R$ 16,1 bilhões para quitar uma conta de precatórios de praticamente R$ 55 bilhões no próximo ano.

Na reta final da preparação do substitutivo, o senador tirou da PEC os “3D”, defendidos pela área econômica, na proposta de Orçamento: desindexar, desvincular e desobrigar. Ou seja, descarimbar as receitas para devolver ao Congresso a função de decidir sobre a destinação do dinheiro público e dar ao Executivo margem de manobra para gerir o Orçamento da União.

Ideia tão cara ao ministro da Economia, os “3D” teriam como objetivo eliminar correções automáticas de valores e “vícios corporativos” que reservam para grupos específicos parcelas do Orçamento.

Com a desindexação seria possível reforçar o caixa da União e não comprometer o teto de gasto.

Sem os “3D” e com a criação do Imposto sobre Transações Digitais suspensa, o programa econômico de Guedes fica ferido de morte.

O ministro, porém, acredita que o relator da PEC 186 e do Orçamento para 2021 está com duas versões de substitutivo. Em uma delas não constam a desindexação, desvinculação e desobrigação do Orçamento. Mas haveria uma outra em que ele manteve os “3D”. Assim, Guedes ainda vê uma chance de a proposta vingar.

O bate-cabeça do governo na questão fiscal tem um alto preço que deve ser visto e compreendido pelo presidente da República. A taxa Selic (juros básicos da economia), que hoje está em 2% ao ano, o nível mais baixo da série histórica, está sob elevado risco de ter que ser aumentada. Os juros futuros subiram substancialmente e estão, hoje, na casa dos 9% ao ano para o primeiro biênio do próximo governo.

Esse é o preço da incerteza e da insegurança do mercado com relação aos rumos da política fiscal do governo pós-pandemia. Com um rombo de mais quase R$ 1 trilhão nas contas do setor público e uma dívida que cresce aceleradamente e que baterá na casa dos 100% do PIB possivelmente ainda neste ano, não cabe ao governo adicionar mais tensão e volatilidade nos mercados de juros, câmbio e ações.

Cabe ao governo, isto sim, encontrar uma boa explicação para o caso de vir a romper o teto do gasto ou simplesmente cumpri-lo, que é o que se espera de uma administração séria e responsável.


Valor: Pandemia demanda um programa de renda básica permanente, diz Monica de Bolle

Para Monica de Bolle, a crise sanitária impõe desafios aos dogmas econômicos e demanda um programa de renda básica

Por Diego Viana, Valor Econômico

SÃO PAULO - Um gosto antigo pela medicina fez da economista Monica Baumgarten de Bolle uma das primeiras pessoas a alertar para o tamanho da crise que viria em 2020. A luz amarela foi acendida em janeiro, com a leitura do artigo em que o Sars-Cov-2 foi nomeado pelo Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus. “Pude perceber que seria uma calamidade absoluta, porque o novo vírus era muito mais transmissível que o Sars original. E era imprevisível, levando 20% dos contaminados para o hospital e muitos desses para a UTI”, diz a pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins.

“No caso de um país como o Brasil, ficou claro que o golpe seria ainda mais brutal”, afirma Monica. Com mais de 60% da população em situação vulnerável, fora do mercado formal de trabalho ou com grande risco de ser expulsa dele, “essas pessoas seriam imediatamente atingidas quando começassem as medidas de isolamento”. Esse raciocínio levou à conclusão de que “o Brasil não sobreviveria sem um programa de renda básica”.

Nos meses seguintes, em artigos de imprensa, “lives” e postagens de redes sociais, a economista defendeu com afinco a necessidade do auxílio emergencial. A pressão de intelectuais e entidades da sociedade civil teve efeito: o Congresso aprovou o auxílio de R$ 600 em março. Mas o problema não parava aí: à medida em que chegavam novos artigos de virologistas e epidemiólogos, ficou claro para Monica que transformações muito mais profundas seriam necessárias.

No livro “Ruptura” (Intrínseca, 320 págs.), a economista retoma os debates que a pandemia suscitou no campo da política, das medidas de mitigação à expansão dos gastos públicos, incluindo a reconversão industrial (fábricas que passaram a produzir equipamentos médicos), o papel do BNDES e a emissão de moeda. Mas as rupturas vão além. A crise sanitária deixa em seu rastro um mundo mudado. Ideias parcamente discutidas há poucos anos ganham tração. Poucos duvidam que os governos terão de conviver com níveis mais elevados de endividamento, que será necessário investir pesadamente na recuperação das economias e que a transição energética será acelerada.

“São pelo menos três níveis de ruptura”, afirma. “Primeiro, o mundo real está sendo transformado. Segundo, a teoria econômica é obrigada a examinar como ela pensa em seu papel. Terceiro, a ruptura pessoal: decidi abandonar os modelos que não ajudam mais a entender o mundo e adotar uma perspectiva mais interdisciplinar.”

Monica detalha as diferenças entre tipos de vírus, sua taxa de transmissão e sua mortalidade. Seu interesse pelo tema é anterior à formação como economista: foi demovida de seguir a carreira médica graças a Dionísio Dias Carneiro (1945-2010), professor da PUC-RJ. “Ele disse que muito do que um economista faz é parecido com a medicina. De fato, trabalhamos com diagnósticos e podemos pensar que estamos tratando de um sistema parecido com um organismo, porque é evolutivo, sempre mudando”, diz.

Aprofundando as leituras sobre a pandemia, diz Monica, “era cada vez mais evidente que não vamos voltar rapidamente à vida normal. Por mais que, agora, exista a perspectiva de uma vacina, vamos passar pelo menos dois anos difíceis. Mesmo que não seja tão complicada como foi até agora, a vida não vai estar normal”.

Para a economista, o trauma da pandemia tem o potencial de consolidar projetos ambiciosos e, até recentemente, apenas especulativos. A renda básica, adotada em caráter emergencial em vários países, se torna um primeiro impulso para projetos de renda básica universal, debatidos como meramente utópicos até o ano passado. O primeiro país a aprovar uma renda permanente é a Espanha, duramente atingida pela covid-19. “Estamos caminhando para que a renda básica seja componente normal das economias”, afirma. Para ela, porém, está se tornando consenso que não é possível deixar parte substancial da população desamparada. “Não sabemos como vai ser o mundo quando passar o pior da pandemia. O que vai acontecer com as relações de trabalho? Quais empregos estarão obsoletos?”

As idas e vindas em torno do programa Renda Cidadã, proposta do governo para substituir o Bolsa Família, mostram que “é preciso ter um projeto bem desenhado, sabendo precisamente quem é a população a ser assistida. Esse desenho é mais relevante do que o valor do benefício”, observa. Como a função do Bolsa Família é reduzir a pobreza, o programa tem um público-alvo claro. Agora, porém, “há um novo contingente: pessoas que vivem em situação precária, mas, pelo menos até a pandemia, tinham acesso ao mercado de trabalho formal. É para elas que seria necessário desenhar uma alternativa”.

Segundo Monica, o formato de um programa para essa população seria parecido com o de um seguro. “Quando estão sem renda por algum motivo, seja a pandemia ou outro, recebem um benefício, determinado de acordo com as restrições orçamentárias do país. Quando estivessem de volta ao mercado, o valor poderia ser reduzido.” A economista ressalta que não se trata de substituição ao Bolsa Família, mas programa complementar. “O que transparece é que o governo não sabe quem quer atender, nem como.”

O Brasil, portanto, terá de repensar alguns princípios econômicos que nortearam os últimos anos, diz a economista. Terá de aceitar mais investimento do Estado, o fortalecimento do sistema de saúde, a flexibilização do teto de gastos e o aumento do endividamento. “Mesmo com a rigidez do ministro [da Economia, Paulo] Guedes, queira ou não, a pandemia já está mudando a mentalidade sobre a atuação do Estado. Não temos como responder a um desafio dessa envergadura sem o governo.”

O aumento da dívida, no entanto, enfrenta a barreira da memória, já que o país enfrentou uma devastadora crise de endividamento na década de 1980 e episódios de alta inflação. “Não tem de onde vir inflação hoje”, diz a economista. Ela aponta que a crise da dívida se seguiu a um período de empréstimos fartos em dólar, que se tornaram impagáveis depois que o Federal Reserve elevou os juros americanos, em 1979.

A situação atual é inversa. Nos próximos anos, os juros devem permanecer baixos ao redor do mundo. A dívida brasileira, por sua vez, está denominada sobretudo em reais, o que protege contra súbita escassez de dólares. “Minha preocupação não é inflação, nem dívida. O debate está completamente errado no Brasil”, afirma. “O que me preocupa é a possibilidade de pegarmos dinheiro emprestado para fazer besteira. O grande perigo é ficarmos presos para sempre em uma armadilha de crescimento baixo.”

A ruptura teórica, para ela, exigirá que a economia como disciplina passe a reconhecer seu campo de estudo não mais como sistema estático, mas evolutivo e complexo. A maior vítima é a macroeconomia, que “conversa muito pouco com o mundo real e onde quase não houve inovação nas últimas décadas”. Na microeconomia, alguns desenvolvimentos das últimas décadas apontam direção mais fecunda, como é o caso das pesquisas que se apoiam sobre a psicologia comportamental ou a área do desenho de incentivos. “As aplicações são inúmeras, já que esses modelos afetam também a provisão de bens públicos, como saneamento básico”, diz.

“Muitas dessas reflexões já estavam na minha cabeça desde a crise de 2008, sobretudo as questões sobre a economia como disciplina”, relembra. “Por que ela se fechou em si mesma? Por que perdeu sua interdisciplinaridade? A que papel ela se presta nas intervenções de política pública? Sobretudo, como ela vem se tornando obsoleta ao longo do tempo?”


César Felício: Relações carnais

Eleição nos EUA mexe no jogo político brasileiro

Se alguma evidência ainda precisava ser apresentada para comprovar a extrema importância da eleição americana no processo político brasileira, essa necessidade desapareceu com o debate da última terça-feira entre Joe Biden e Donald Trump.

Sem ser provocado, Biden de moto próprio afirmou que faria uma proposta para o Brasil na área ambiental, que mais soa a um ultimato. Ou Bolsonaro aceita US$ 20 bilhões de ajuda para preservar a Floresta Amazônica, ou arcará com consequências econômicas.

Foi um aceno de Biden à ala mais radical do Partido Democrata, que precisa ser compensada de alguma maneira por todos os gestos centristas já feitos pelo candidato. Mas sinalizou para um isolamento maior do governo brasileiro no futuro. Será o fim das relações carnais entre Brasil e Estados Unidos, como o próprio Bolsonaro deixou claro ao refutar no dia seguinte a proposta de “plata o plomo” feita pelo democrata. Afora Rússia e China, o Brasil foi o único país mencionado no debate.

A reeleição de Trump empoderaria o bolsonarismo não pelo que as relações com os Estados Unidos poderiam proporcionar ao país do ponto de vista comercial, econômico. Há uma sintonia política que não passa por isso, e motiva o Brasil a se submeter a uma equação desigual, em que o alinhamento brasileiro claramente não tem retribuição.

Por Trump, o Brasil aceita condições menos favorecidas no comércio de etanol e o chanceler se abala até Roraima para servir de escada a um gesto político do secretário de Estado.

A similaridade entre Trump e Bolsonaro é assustadora, como ficou nítido no debate. Trump demonstrou na lancinante hora e meia de refrega com Biden que não titubeia em deixar no ar o risco de uma ruptura institucional, caso não consiga permanecer no poder. Também exaltou as forças armadas e policiais. Militarizou a pandemia, ao dizer que vai acionar a tropa para distribuir doses da vacina contra Covid-19.

Bateu e rebateu na tecla do anticomunismo. Agrediu a imprensa. Recusou-se a condenar a extrema-direita. Responsabilizou os governadores por dois males que afligem os Estados Unidos: a desaceleração da economia, supostamente produto de um fechamento exagerado de atividades por conta da pandemia e a escalada da insegurança,

Para completar, colocou em dúvida a qualidade do sistema de votação no seu país e flertou com o negacionismo sanitário, ao relativizar a importância do uso de equipamentos individuais de proteção, como a máscara.

Torna-se difícil citar pelo menos uma diferença entre ambos. Talvez seja possível dizer que o discurso religioso, tão preponderante na retórica bolsonarista, não marcou a fala de Trump na noite da terça-feira. Não houve as citações de João, capítulo 8, versículo 32.

Bolsonaro converteu-se, de certo modo, em uma franquia de Trump. Um dos arquitetos da vitória republicana em 2016, Steve Bannon, também foi um conselheiro na eleição do presidente brasileiro dois anos depois.

Grandes influenciadores bolsonaristas nas redes sociais fazem parte do ramo endinheirado da colônia brasileira no país, que atua nos setores financeiro e imobiliário. Estes brasileiros estão profundamente vinculados a estrategistas da direita radical americana. Olavo de Carvalho, de longe o principal agitador cultural, não tem este tipo de ligação, mas de seu bunker no sul dos Estados Unidos recebe a influência da direita americana e dá lógica e coerência interna para todo o discurso extremista brasileiro.

É para os Estados Unidos que correm os bolsonaristas que, por um motivo ou por outro, estão preocupados com a reação da Justiça brasileira às suas demasias. Não à toa Bolsonaro quis nomear um operador político- seu próprio filho, Eduardo- para ser embaixador no País. Ficou óbvio que o que guia o bilateralismo americano não é comércio e economia. É ideologia.

Há uma mesma faixa. Trump e Bolsonaro estão na mesma frequência modulada. O possível descarrilamento nos Estados Unidos da estrada da direita radical abre perspectivas perturbadoras para políticos como o brasileiro.


A eleição paulistana, como mostra a pesquisa da XP/Ipespe divulgada com exclusividade pelo Valor, mostra que Celso Russomanno nunca teve uma chance tão boa de chegar ao segundo turno como agora. Está colado ao presidente Jair Bolsonaro, que conta com 28% de aprovação na cidade, e se beneficia do recall das eleições passadas, que o situam acima do patamar de 20%. Precisamente 24% no XP/Ipespe. O desafio é o que acontece depois. A posição de Russomanno para disputar o segundo turno é ruim.

Bruno Covas tem 21% na pesquisa. Se enfrentar o tucano no segundo turno, como tudo no momento indica, será difícil para Russomanno herdar os votos da esquerda. Boulos, Tatto, Orlando Silva,, Vera Lúcia e Marina Helou no momento somam 15%. Covas consegue 37% na simulação de segundo turno. O voto do centrista Marcio França, por ora, parece estar dividido, mas pende mais para o candidato bolsonarista. Russomanno obtém 35% no embate direto contra Covas. A soma do seu caudal com os 6% de Arthur do Val, Matarazzo, Levy Fidelix e Joice Hasselman e Felipe Sabará, todos matizes de direita, agrega 30%.

Russomanno só consegue vantagem clara se enfrentar Boulos no segundo turno, porque aí é possível restabelecer o vigorosíssimo discurso antiesquerdista. Seria a repetição do cenário do segundo turno carioca em 2016, em que Crivella teve a sorte de chegar ao segundo turno contra o único candidato que conseguia sobrepujar.

Um levantamento no mês de setembro com a análise de 31,5 milhões de posts no Twitter e no Facebook, feito pela consultoria ponto Map, indica que o debate nas redes está longe da zona de conforto bolsonarista.

A saúde lidera as menções, com 17% de participação. Menos debatida, a Economia deu um salto de 5% para 9% das menções. E não se fala mais tanto de auxílio emergencial, mas de desemprego, inflação dos alimentos e perda de renda.

Bolsonaro não tem porque se envolver profundamente em uma eleição que corre o risco de perder. É bom Russomanno torcer para Boulos.