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Maria Cristina Fernandes: Uma garantia estendida por 27 anos

Vínculos de Kassio Nunes com a OAB precedem Bolsonaro

O desembargador Kassio Nunes Marques foi inquirido por quase dez horas, só perdendo para a sabatina do ministro Edson Fachin (11 horas), mas duração não foi reflexo de contenciosos. Com 57 votos favoráveis, 10 contrários e 1 abstenção no plenário do Senado, o novo ministro chegará ao Supremo Tribunal Federal com uma aprovação menos contestada que a de Fachin (52 a 27), Gilmar Mendes (57 a 15) e Rosa Weber (57 a 14). O quórum de sua aprovação aproxima-se daquele de Dias Toffoli (58 a 9), o último dos ministros a ter um currículo tão contestado quanto o de Nunes Marques. Apesar da pandemia, a votação teve a presença de um número maior de senadores (68) do que a aprovação dos ministros Cármen Lúcia (56), Marco Aurélio (54), Ricardo Lewandowski (67) e Luís Roberto Barroso (65).

O panorama da votação foi antecipado pelo voto em separado de Alessandro Vieira (Cidadania-SE). O senador anotou que o desembargador “é a mais perfeita materialização do sistema de cruzamento de interesses que impera no Brasil há décadas”. Por esta razão, disse o senador, “não surpreende o fato de a indicação angariar apoios entusiasmados de políticos que vão do petismo ao bolsonarismo, nem a recepção expressiva por parte de ministros da Suprema Corte que confundem costumeiramente o republicano dever de urbanidade com a condenável confraternização efusiva com investigados poderosos e seus representantes”.

No condomínio de lealdades montado pelo presidente da República para a indicação de Kassio Nunes Marques, o senador não incluiu a Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB, certamente, não esteve entre as instâncias consultadas por Jair Bolsonaro, mas nenhum outro ministro terá chegado à Corte com tão fortes vínculos com a instituição. Durante a sabatina, Kassio Nunes Marques falou até do carrinho de cachorro-quente que teve em Teresina, mas não da parceria com o ex-presidente da OAB, Marcus Vinícius Coelho Furtado, maranhense de nascimento, mas criado no Piauí.

Com a parceria, chegou ao conselho da Ordem e, a partir dele, ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no Distrito Federal. Contou, ainda, para o cargo, com o apoio do ex-presidente da OAB-DF, hoje governador, Ibaneis Rocha, outro que morou por muitos anos no Estado natal do novo ministro e cujo escritório, em Brasília, tem muitos processos em tramitação no TRF-1. A ambos juntou-se o senador Ciro Nogueira (PP-PI) e o presidente do STJ, ministro Humberto Martins, para a chegada do desembargador ao Superior Tribunal de Justiça. Foi neste momento, que o presidente, alertado pelo filho, o senador Flávio Bolsonaro, o fisgou para o Supremo Tribunal Federal.

Trata-se quase de uma “República do Piauí”, que tem planos de futuro buscando atrair ainda o jovem Pedro Felipe Oliveira Santos. Juiz auxiliar do Supremo Tribunal Federal, alçado pelo ministro Luiz Fux para a Secretaria-Geral da Corte, Santos tem um currículo sem os mesmos puxadinhos do futuro ministro. Foi primeiro lugar no concurso para a Justiça Federal, tem mestrado em Harvard e é doutorando em Oxford.

Ao longo de sua sabatina, o desembargador mostrou-se merecedor da confiança do seu condomínio de indicações ao definir como o principal ativo de sua indicação, o “garantismo”, rótulo que situou entre o “originalismo”, tradução literal do texto constitucional, e o “ativismo”, interpretação da Carta que comporta um judiciário participante da mudança social e política. Suas origens acrescentam, senão um ativo, mas uma decorrência de sua indicação, a importância, para a OAB, da ocupação de tribunais por ministros egressos da Ordem.

É uma força que tem tradução numérica. Para que um recurso ao Supremo seja acolhido, é preciso o aval de um ministro do STJ. Para que um apelo suba ao STJ, também é necessário que um desembargador o ponha no elevador. Decisões como essas podem render, a advogados, valores de até sete dígitos em honorários. Na atual conjuntura da OAB, a proximidade com um ministro como Kassio Nunes Marques, pode, ainda, desbalancear favoravelmente à atual direção “garantista” na queda de braço travada internamente com os conselheiros de filiação lavajatista. A se confirmarem as expectativas dos antigos companheiros do futuro ministro na OAB, sua filiação aos princípios que hoje movem a Ordem ultrapassarão, e muito, o mandato do presidente Jair Bolsonaro. Se ficar na Corte até a aposentadoria compulsória, Kassio Nunes Marques só a deixará em 2047.

Ao longo da sabatina, Nunes Marques valeu-se de vedações legais que o impedem de vir a se manifestar sobre temas que podem entrar na pauta do Supremo, da prisão em segunda instância à existência da TV Justiça. Disse ao senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), que lhe perguntou sobre a mediação do senador Flávio Bolsonaro e do advogado Frederick Wasseff, que o presidente havia tomado a decisão sozinho. E repetiu, em quase todas as respostas, sua determinação em fazer valer a necessária segurança jurídica do país, numa sabatina que teve na audiência Humberto Martins, do STJ. O ministro liderou a decisão daquele tribunal que levou o prefeito do Rio e aliado de Bolsonaro, Marcelo Crivella, a encampar a Linha Amarela.

O ministro foi menos convincente na reação às acusações em torno de seu currículo turbinado. Inventou o verbo “aspasar” numa tentativa de mostrar que sabe usar aspas. Disse que a Universidade Autônoma de Lisboa tem a “melhor ferramenta antiplágio do mundo”, mas não explicou porque sua orientadora, alertada pela revista “Crusoé”, teria aberto a possibilidade de rever o título concedido. Na dissertação acusada de plágio, o novo ministro defende que a União forneça medicamentos a todos os pacientes que deles necessitem. Chegará ao Supremo num momento em que a Corte pode vir a ser instada a se pronunciar sobre a vacina que o presidente quer negar aos brasileiros. Terá, então, oportunidade de mostrar o que, de fato, pensa sobre o tema.


Pedro Cafardo: Brasil é o pior dos Brics e ainda brinca com fogo

Eventual vitória de Biden nos EUA acabará com o espaço para o negacionismo ambiental e pode levar o país a um bloqueio internacional capaz de asfixiar ainda mais a economia brasileira

O Brasil é, de longe, a maior decepção entre as quatro grandes países emergentes incluídos no histórico trabalho da Goldman Sachs que criou o grupo do Brics - Brasil, Rússia, Índia e China. Se você quer saber quais desses países mais corresponderam às previsões de crescimento econômico, basta ler a sigla de traz para frente. A China foi disparadamente melhor, seguindo-se Índia e Rússia, com o Brasil na lanterna.

O estudo da Goldman Sachs é normalmente atribuído a Jim O’Neill, que formulou o conceito e a sigla em 2001, mas foi assinado por Dominic Wilson e Roopa Purushothaman, com a publicação do “Dreaming With BRICs: The Path to 2050”. Embora tenha sido divulgado em outubro de 2003, esse “paper” trabalha com uma série histórica que começa no ano 2000. A previsão principal é que os quatro grandes emergentes - o texto original não inclui a África do Sul - deverão se tornar, até 2050, a maior força da economia mundial, superando em valor de PIB os países do G-6 - Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França e Itália.

As projeções, porém, são extremamente detalhadas, a ponto de estimarem o crescimento ano a ano para cada um dos quatro Brics até 2050. Passados os primeiros 20 anos dessa projeção, já é possível fazer um balanço do acerto parcial da previsão. O economista Robinson Moraes, coordenador de Pesquisa Econômica do Valor Data, comparou os dados projetados com a expansão real dos PIBs (método convencional) e o resultado está nos gráficos ao lado, de fácil compreensão. A linha vermelha mostra o crescimento efetivo de cada país e a azul indica a projeção feita pelo estudo. Se a Goldman Sachs tivesse acertado em sua previsão, o PIB do Brasil teria crescido 101,7% nos primeiros vinte anos do século, mas deve crescer apenas 43,6%, já levando em conta as estimativas do FMI para a recessão deste ano. A Rússia também não correspondeu às expectativas e cresceu apenas 78,4% no período, bem menos que os 127,3% previstos no trabalho da Goldman Sachs. A China e a Índia superaram as projeções: cresceram respectivamente 425,4% e 229,8%, bem mais que os previstos 249,3% e 206,1%.

É incrível a semelhança das curvas das linhas do Brasil e da Rússia. Observe que ambos os países acompanharam praticamente a trajetória prevista na primeira década do século, superando razoavelmente a crise global de 2008. A partir de 2014, porém, passaram a ter crescimento sistematicamente inferior ao previsto no estudo.

Por que Brasil e Rússia ficaram para trás na corrida do Brics? As causas têm diferenças e semelhanças. No caso da Rússia, segundo analistas, houve grande impacto na economia interna das sanções aplicadas pelas potências ocidentais a partir de 2014 por causa da anexação da Crimeia. Ocorreu também uma queda dos preços do petróleo, principal produto de exportação russo. Além disso, problemas internos como a falta de reformas e a expansão do Estado são citados como inibidores de investimentos. E houve ainda, a partir de 2014, a adoção de uma severa política de restrição de gastos governamentais que desaqueceu a economia. Por tudo isso, mais de 20 milhões de russos, de uma população total de 145 milhões, vivem hoje abaixo da linha da pobreza.

No caso do Brasil, ainda vivemos uma disputa de diagnósticos. Por que o país desabou a partir de 2014? Os mais ortodoxos dirão - alias, já se cansaram de dizer - que tudo foi consequência de políticas irresponsáveis dos governos petistas, principalmente o de Dilma Rousseff, que criaram um grande problema fiscal e desestimularam investimentos. Os heterodoxos da esquerda também já se cansaram de dizer que tudo correu muito bem até 2013 - o gráfico abaixo mostra isso -, mas a economia desabou depois que passou a predominar a teoria da austeridade fiscal.

Brincar com fogo

Esse embate nunca vai terminar. Fato é que o Brasil ficou parado no tempo nos últimos seis a sete anos. E há semelhança preocupante entre o que ocorre hoje com o Brasil e a derrocada russa a partir de 2014. Lá, as sanções externas se deram por questão geopolítica, a guerra com a Ucrânia pela posse da Crimeia. Aqui, as ameaças já começaram e as possíveis sanções envolvem questões ambientais, porque a comunidade internacional não aceita a catastrófica política brasileira nessa área.

Por enquanto, com Donald Trump na Casa Branca, o Brasil ainda pode continuar com sua política irresponsável, mas, se Joe Biden vencer as eleições, poderá sofrer uma asfixia econômica semelhante à da Rússia após a anexação da Crimeia. Não haverá mais complacência global para negacionismos ambientais. Para quem já é o pior do Brics, seria um desastre. O governo brasileiro, literalmente, brinca com fogo.


Gustavo Loyola: Riscos no horizonte

O fracasso na aprovação de reformas trará um quadro de turbulência econômica em 2021

A mediana das projeções para o crescimento do PIB brasileiro em 2021 está em 3,47%, segundo a pesquisa Focus divulgada pelo Banco Central na última segunda-feira. Entretanto, alguns riscos relevantes se acumulam no horizonte e podem levar tais previsões a se frustrarem, deixando a economia brasileira bem aquém de uma recuperação em “V”, após o gigantesco tombo provocado pela covid-19.

O risco mais óbvio deriva da provável queda da renda disponível das famílias, em razão do término do programa do coronavoucher, para o qual não há substituto possível em razão das limitações fiscais. Alguma mitigação parcial deste efeito pode ser viabilizada, observadas as possibilidades orçamentárias, mas somente uma recuperação mais forte da ocupação faria a massa real de renda das famílias crescer em 2021 e sustentar o aumento do consumo.

Ocorre que a dinâmica do mercado de trabalho no pós-pandemia vem sendo afetada negativamente por diversos fatores que ainda estarão presentes nos próximos meses. Há, é verdade, um processo de recuperação do emprego em curso, mas com uma velocidade inferior à que seria desejável. Além disso, a retomada ocorre de maneira heterogênea, com desempenho ainda negativo do segmento de serviços. Isso decorre não apenas do legado de estragos que a pandemia deixou sobre as empresas - muitas quebraram e outras diminuíram de tamanho - como também das incertezas ainda existentes tanto no campo da saúde quanto no da economia.

Com relação à pandemia, o agravamento da situação europeia e também nos EUA nas últimas semanas tem sido um balde de água fria sobre o otimismo que vinha se construindo aqui com a redução da taxa de infecção e de mortalidade que trazem maior relaxamento das restrições à movimentação das pessoas. Não se pode descartar a possibilidade que uma segunda onda de infecções ocorra também aqui no Brasil em alguns meses. Nesse contexto, é bem compreensível a relutância de algumas empresas em retomar plenamente a recontratação de mão-de-obra, enquanto não fique mais clara a questão da covid-19.

O ambiente de incertezas em relação à pandemia pode se dissipar caso se viabilize no curto uma vacina efetiva contra o novo coronavírus que possa ser massivamente aplicada nos próximos meses.

Contudo, há outro fator que está afetando negativamente as expectativas: a percepção sobre o estágio atual do debate público a respeito do risco fiscal, no contexto de um endividamento público fortemente magnificado pelas despesas e renúncias de receita associadas ao combate aos efeitos econômicos negativos da pandemia. Preocupa especialmente a falta de definição do governo federal sobre o que fazer diante dos desafios sérios que se apresentam no campo das finanças públicas.

O ministro Paulo Guedes, infelizmente, não tem conseguido liderar o debate do tema no seio da administração, contestado que tem sido até pelo próprio Presidente da República em questões viscerais para a manutenção da responsabilidade fiscal.

Não bastasse isso, os demais poderes da República parecem absolutamente descompromissados com o tema, como se restrição orçamentária fosse apenas uma criação ficcional de alguns economistas amalucados. A propósito, deve ser mencionado que o aumento do risco fiscal já está levando o mercado a exigir prêmio crescentes nos leilões de títulos públicos, o que é um sinal grave e incontestável da degradação das expectativas.

A questão fiscal, vale dizer, não se cinge apenas à manutenção ou não do teto constitucional de gastos. Pode até surgir um remendo qualquer que preserve o teto em 2021, mas sem um ataque mais direto às fontes endógenas do crescimento das despesas públicas e uma reforma tributária mais abrangente o ambiente de incertezas se manterá ao longo do ano que vem, derrubando o ritmo da retomada da economia. Cabe lembrar que em 2022 haverá eleições presidenciais, quando será muito mais difícil a aprovação de reformas ou medidas impopulares no Congresso Nacional. Em razão disso, é bem provável que um eventual remendo fiscal dure pouco, não sobrevivendo ao início do debate sobre o orçamento de 2022.

Assim, para restaurar a confiança dos agentes econômicos e afastar o risco de insolvência no endividamento público, o Brasil necessita de instrumentos estáveis e embutidos no nosso quadro legal que sejam compatíveis com a responsabilidade fiscal numa perspectiva de médio e de longo prazos. O fracasso na aprovação nos próximos meses de reformas que sejam conducentes à restauração do equilíbrio fiscal no futuro imediato trará um quadro de turbulência econômica em 2021, com maior volatilidade no câmbio e aumento das taxas de juros, que inviabilizará a retomada sustentável da atividade e a queda do desemprego.

*Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV, ex-presidente do Banco Central, é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo


Fernando Exman: Uma ideia que pode ser mais palatável

Projeto pode garantir verbas na ponta sem assustar o mercado

Brasília é uma ilha, costumam dizer os seus críticos quando identificam uma desconexão do que é discutido no centro do poder com o que ocorre no restante do país. E aqui vale o alerta: afirmar isso a um brasiliense mais fervoroso pode provocar discussão séria, briga mesmo. O incauto interlocutor logo é acusado de ser mais um paulista arrogante ou defender o retorno da administração federal para o Rio de Janeiro, onde se podia ir ao Parlamento e à praia no mesmo dia. Mas, feito o protesto, o próprio brasiliense há de reconhecer que a assertiva tem um fundo de verdade, o qual, inclusive, voltou a ficar em evidência na pandemia.

Durante muito tempo, uma caminhada pelo Plano Piloto, área nobre e central, de fato pouco dizia sobre a situação do Brasil e do brasileiro, as mazelas vividas nos rincões ou os desafios enfrentados nos grandes centros urbanos. Infelizmente, a crise acabou aproximando Brasília da realidade observada já há muitos anos em outras capitais e regiões metropolitanas.

O aumento da pobreza é concreto. Pilotis transformaram-se em abrigos precários para um número crescente de moradores de rua. Trabalhadores informais, que nunca foram “invisíveis” para os mais preocupados com os problemas sociais do país, hoje estão presentes em praticamente todos os semáforos ou estacionamentos. Buscam formas de ganhar a vida, sem saber que a poucos quilômetros de distância autoridades negociam o futuro do auxílio emergencial.

Talvez esse até seria o assunto nas mesas do Piantella hoje à noite, mas o tradicional restaurante fechou as portas logo no início da crise. Jornalistas também não poderão mais discutir as conjunturas política e econômica no Moisés - estabelecimento bem mais acessível, mas não menos tradicional. O bar não fez jus ao seu nome bíblico e sucumbiu à praga. Não atravessará a pandemia.

Casos semelhantes são vistos por todo país, porém em Brasília cenas aparentemente corriqueiras podem dar pista de algo errado que esteja ocorrendo ou alguma má alocação de recursos públicos em curso. A circulação de parlamentares e dirigentes partidários por uma determinada agência do Banco Rural passou despercebida por muito tempo, por exemplo, até que surgiu o escândalo do mensalão no governo Lula.

Há poucos dias, observou-se a curiosa movimentação de uma servidora do governo local num conhecido centro comercial especializado em móveis. Sem maiores preocupações com quem a ouvia, ela cotava os preços de diversos modelos de cadeira de escritório e alertava a vendedora: estava com pressa, pois tinha que concluir a compra do mobiliário antes do fim do decreto de calamidade. A partir de janeiro, acrescentava, o orçamento seria mais curto. O controle no uso dos recursos? Mais rígido.

Escancarou-se, em poucos minutos e num episódio pontual do cotidiano brasiliense, uma das motivações da possível prorrogação do estado de calamidade pública.

O governo federal e a base aliada até demonstram sincera preocupação com a situação das famílias mais vulneráveis. Como era de se esperar, o desembarque do coronavírus no Brasil levou Executivo e Legislativo a chegarem a um entendimento em relação à ampliação dos gastos na área social. Os dois Poderes também decidiram calibrar o valor do auxílio até o fim do ano, mas até agora não conseguiram encontrar espaço no Orçamento para dar lastro ao novo programa assistencial que o governo pretende manter a partir de janeiro.

A despeito do impasse, o presidente Jair Bolsonaro insiste num instrumento capaz de continuar alavancando sua popularidade. E essa sinalização tem fomentado discussões, no Congresso e em segmentos desenvolvimentistas do governo, sobre a necessidade de se prorrogar o estado de calamidade e os mecanismos de flexibilização das regras fiscais para além do dia 31 de dezembro.

Gestores estaduais e municipais acompanham com grande interesse. A medida possivelmente ampliaria também o fôlego financeiro dos prefeitos no início de mandato. Sem a prorrogação, os gestores tendem a correr para gastar o máximo possível, como demonstrou a jovem servidora do GDF.

Segundo publicou o Valor nesta semana, os municípios podem chegar ao fim de 2020 sem usar grande parte dos recursos que têm em caixa carimbados para combater a covid-19. Isso representa, mais especificamente, cerca de metade dos R$ 42,2 bilhões em repasses extraordinários feitos pela União às prefeituras neste ano, montante que pode ter que retornar ao governo federal.

As articulações sobre o Renda Brasil, a PEC do pacto federativo e o Orçamento estão, portanto, perigosamente se mesclando com os interesses e as necessidades de curto prazo dos entes subnacionais. Em outras palavras, dos cabos eleitorais dos deputados e senadores em 2022.

Para contornar esse risco, está em curso uma articulação no Congresso em favor da tramitação de um projeto de lei de autoria da senadora Simone Tebet (MDB-MS) que autoriza o uso, até o fim de 2021, dos recursos transferidos para Estados e municípios durante a pandemia e que não foram ainda executados.

O PL já foi aprovado no Senado e pode ganhar regime de urgência na Câmara dos Deputados, se essa amarração for bem-sucedida. Seu texto original estendia o prazo para recursos vinculados diretamente apenas à saúde e à assistência social, mas agora eles poderiam ser usados para qualquer finalidade.

Essa seria uma saída para se dar efetiva destinação a verbas que já entraram no radar do mercado e na contabilização da equipe econômica, sem representar um atentado ao teto de gastos. Na visão dos responsáveis pela iniciativa, os valores “estão precificados”.

Pela sua viabilidade política, a ideia despertou a atenção de representantes dos prefeitos. Esse é um exemplo de como a ilha pode se conectar ao restante do país com mais responsabilidade.


Armando Castelar Pinheiro: Xadrez tributário

Há quem tema que os novos tributos irão abrir espaço para novos tipos de conflitos e processos na Justiça

Sexta-feira me pediram para ensinar a jogar xadrez. Tenho um tabuleiro e peças grandes, da época em que jogava regularmente, e fomos em frente. É um jogo complicado, com peças que se movimentam de formas variadas e que se joga pensando no agora e em vários lances à frente. Depois fiquei pensando como seria absorver e processar tanta informação.

Não muito diferente, conclui, do que ocorre comigo em relação à reforma tributária. Depois de seis reuniões que tivemos no Ibre sobre o tema, com alguns dos maiores especialistas no assunto, das áreas de direito, economia e ciência política, todos querendo o melhor para o Brasil, ainda não consegui formar uma opinião, ou entender tudo o que está em jogo.

Eis o que captei. Todo tributo incide sobre uma base: por exemplo, patrimônio, renda, movimentação financeira, folha salarial ou receita ou valor adicionado com a produção de um bem ou serviço. Esta última categoria, a tributação sobre bens e serviços, é o foco das propostas em discussão no Congresso: o PL 3887/2020, enviado pelo governo; a PEC 45/2019, de iniciativa da Câmara; e a PEC 110/2019, em tramitação no Senado. A proposta é cuidar desses tributos separadamente dos incidentes sobre as demais bases.

Tributos reduzem a eficiência econômica, alguns mais que outros. Quem defende a reforma argumenta que, na tributação de bens e serviços, aplicar alíquota única, uniforme em todo território nacional, incidente sobre o valor adicionado, cobrada no local de domicílio de quem compra, penalizaria menos a eficiência. Há, porém, dois problemas com isso.

Um, que a eficiência não é o único objetivo. Assim, há quem defenda uma tributação progressiva, com alíquotas mais baixas para itens que pesam mais na cesta de consumo dos mais pobres, como alimentos, e mais altas para os usados pelos mais ricos, como carros ou barcos de luxo. Há também quem defenda diferenciar alíquotas por preocupação com saúde (fumo e bebidas alcoólicas, por exemplo), educação (livros, escolas, cursinhos), meio ambiente (carros a álcool vs gasolina), ou política industrial. E há quem defenda a liberdade das unidades da federação fixarem alíquotas distintas para atrair investimentos.

Obviamente, levar tudo isso em conta é reproduzir o que temos hoje, com a briga das empresas por classificações favoráveis de seus produtos e a guerra fiscal. E esses outros objetivos podem e devem ser atingidos via outros instrumentos. Só que aí a coisa fica mais complexa e entra em cena a desconfiança quanto ao cumprimento de promessas.

Dois, que a capacidade do fisco arrecadar os tributos devidos não é a mesma em todos os setores e em todo o país. Em princípio, isso pode ser atenuado via a substituição tributária, como ocorre hoje em dia com combustíveis, em que o recolhimento se dá na refinaria, não no posto de gasolina. Mas desde os trabalhos de Frank Ramsey se sabe que é mais fácil e eficiente tributar bens e serviços cuja demanda é pouco sensível ao preço, o que explica porque eletricidade e telecomunicações são tão taxados. Em especial, um aumento da tributação em setores com muitas empresas e consumidores sensíveis a preço pode levar a um aumento da informalidade, frustando as projeções de receita e de aumento da eficiência. A manutenção do Simples mitiga esse problema, mas não se sabe em que escala.

Há um certo consenso de que pagar imposto no Brasil é complicado, dá muito trabalho e dá margem a disputas judiciais trilionárias, o que joga contra a eficiência e a capacidade do país atrair investimentos. Também há convergência de que muito disso se deve às chamadas obrigações acessórias, que dizem respeito à miríade de documentos que precisam ser apresentados ao fisco, e às regras que regem os conflitos entre o fisco, em busca de arrecadar mais, e os contribuintes, dedicados ao planejamento e à elisão tributária.

Mas há forte divergência sobre como resolver esses problemas, se é possível fazê-lo sem mudar a estrutura tributária, com medidas infra-legais, ou não. Também há quem tema que os novos tributos irão abrir espaço para novos tipos de conflitos e processos na Justiça. A coisa se complica pela necessidade, em caso de reforma, de um período de transição, que pode ser longo, para calibrar a alíquota a cobrar e permitir a amortização de investimentos realizados com a atual estrutura tributária.

Uma das reuniões foi sobre como avançar politicamente com a reforma. A experiência sugere que a forma como ela é apresentada ao eleitor faz bastante diferença, mas que o debate atual está centrado apenas em quem perde ou ganha com ela. Em paralelo, me parece, há um debate entre nossos enxadristas tributários, em que o público torce, mas não entende. Não soa como um caminho promissor para resolver nossos problemas nessa área, que não são pequenos.

Pode até ser que algum grupo dê um xeque mate nos outros, ou que uma torcida prevaleça sobre as demais, mas acho difícil. Mais seguro seria destrinchar esse debate para o grande público, mostrando as vantagens de cada alternativa em itens como produtividade, custo de cumprir as regras, litigiosidade etc.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ


Andrea Jubé: A eleição da Mesa e a dança das cadeiras

Fábio Faria, Guedes, Maia, Renan e Kátia: todos por um

Aos trancos e barrancos, com a democracia equilibrando-se na corda bamba por um período, o governo do presidente Jair Bolsonaro engrenou e está cada dia mais parecido com um governo convencional pós-retomada democrática, sustentado pelos partidos do Centrão.

É nesse cenário que soa natural a reforma ministerial que se avizinha. Cada vez mais pragmático, como todo político, Bolsonaro está sendo convencido por aliados a promover uma reforma ministerial após a eleição para as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado em fevereiro.

O objetivo será recompor espaços e consolidar a base governista no Congresso, a fim de garantir a governabilidade e começar a alinhavar as alianças para a reeleição.

Bolsonaro já negou, e para não perder o costume, chamou de “fake news” as primeiras notícias sobre as iminentes mudanças no time de auxiliares.

Contudo, aliados de seu núcleo mais próximo confirmaram à coluna, reservadamente, o movimento nos bastidores, que dependerá dos resultados das eleições para a sucessão de Rodrigo Maia (DEM-RJ) na Câmara e Davi Alcolumbre (DEM-AP) no Senado.

Como já se sabe, a dança das cadeiras começa com a nomeação do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, para a vaga de José Múcio Monteiro no Tribunal de Contas da União (TCU). Múcio deixa a cadeira em dezembro.

Bolsonaro é uma caixa de surpresas, mas, neste caso, a tendência é que ele confirme as principais apostas, indicando o secretário especial de Assuntos Estratégicos, vice-almirante Flávio Viana Rocha, para o lugar de Oliveira.

Os passos seguintes da reforma dependerão da emocionante sucessão nas duas Casas. A começar pelo impasse constitucional que obnubila a reeleição da dupla Maia e Alcolumbre. A Constituição veda a reeleição dos dirigentes das Casas. A brecha criativa, instituída por Antônio Carlos Magalhães, contempla a passagem de uma legislatura para outra, o que não ocorre no momento.

Para se preservar, Maia já rechaçou a reeleição. Mas na política, assim como na vida, quem desdenha, quer comprar.

Rodrigo Maia está no comando do Legislativo há quatro anos, desde que se elegeu para um mandato-tampão em 2016, após a renúncia de Eduardo Cunha.

A combinação do traquejo político com a longevidade no cargo, a proximidade do mercado e o trânsito franqueado em quase todas as bancadas, o alçaram ao patamar de um “player” estratégico, quase indispensável.

Por isso, um time expressivo de aliados argumenta que um político com o perfil de Maia não pode se despedir do cargo e, simplesmente, no dia seguinte, aterrissar na planície. Esse grupo articula sua nomeação para um ministério - fala-se na pasta da Educação -, caso sua recondução para novo mandato se revele impraticável.

Segundo fontes do palácio, pelo menos dois ministros - Fábio Faria (Comunicações) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) - estão na linha de frente dessa articulação. Até porque Ramos é cabo eleitoral da candidatura de Arthur Lira (PP-AL) à cadeira de Maia.

Como ministro, Maia seria um articulador de luxo do governo para ajudar a impulsionar as reformas econômicas no Legislativo.

Por sua vez, reconstituídos os laços com Maia, o ministro da Economia, Paulo Guedes, não seria óbice ao projeto. Aliás, estão todos vestindo a mesma camisa: Rodrigo Maia, Fábio Faria e Paulo Guedes uniram-se em torno de um núcleo de poder, ao qual se somam os traquejados senadores Renan Calheiros (MDB-AL) e Kátia Abreu (PP-TO).

As cenas dos últimos capítulos mostraram Renan, Kátia e Rodrigo Maia como as lideranças do parlamento mais engajadas no socorro a Paulo Guedes. Renan, registre-se, articulou o jantar de reconciliação de Maia e Guedes, do qual participaram Fábio Faria, Kátia e Luiz Eduardo Ramos.

Não foi aleatória a alfinetada de Guedes em Alcolumbre, quando afirmou que o presidente do Senado teria mais tempo para ajudar o governo se não se empenhasse tanto na reeleição.

A visão de uma ala do Palácio do Planalto é que o Supremo Tribunal Federal (STF), sob a batuta de Luiz Fux, impedirá a “aventura constitucional”, que avalizaria a reeleição de Maia e Alcolumbre.

A se confirmar essa hipótese, o cenário que essa ala palaciana vislumbra é uma candidatura competitiva do MDB ao comando do Senado, com a simpatia do governo. Os candidatos seriam Renan Calheiros ou Eduardo Braga (MDB-AM), ambos com o respaldo de Paulo Guedes, Ramos, Fábio Faria e Rodrigo Maia.

Na Câmara, sem Maia, o palácio continua apostando em Arthur Lira. Mas a factível postulação da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, do DEM, não desagrada ao Planalto. Neste cenário, Maia teria que trabalhar o apoio de seu grupo ao nome de Cristina, e trazer a oposição para esta candidatura.

Nesta hipótese, a redistribuição de espaços na Esplanada seria decisiva para prosperar a articulação. Uma eventual eleição de Tereza Cristina para o comando da Câmara - avançando-se, aqui, 20 casas no tabuleiro - obrigaria Bolsonaro a abrir espaços no primeiro escalão para acomodar o PP de Ciro Nogueira e Arthur Lira, e o Republicanos, do vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (SP) - outro nome competitivo para a sucessão de Maia, que também conta com a simpatia do governo.

Pelo umbigo

E por falar em Republicanos, o clã Bolsonaro nunca esteve tão umbilicalmente ligado ao partido, lembrando os apoios a Celso Russomanno em São Paulo, e a Marcelo Crivella no Rio de Janeiro. Com a eleição da nova direção do Senado, o senador Flávio Bolsonaro (RJ) deixará a Terceira Secretaria, que Davi Alcolumbre ofereceu a outro aliado. Para não ficar na planície, Flávio será o novo líder do Republicanos no Senado a partir de fevereiro. É mais um passo na direção contrária do Aliança pelo Brasil, do qual Flávio é o primeiro vice-presidente.


Bruno Carazza: Siga o dinheiro

Caso do senador devia deixar legado para combate à corrupção

A cada escândalo nós atualizamos as medidas. Em 2005, José Adalberto Viera da Silva, então assessor do deputado José Guimarães (PT-CE) foi preso em flagrante no aeroporto de Congonhas com US$ 100,5 mil acondicionados na cueca e mais R$ 209 mil transportados numa sacola. Doze anos depois, a Polícia Federal precisou de sete máquinas e um dia inteiro de trabalho para contabilizar os R$ 51 milhões, em cédulas de dólares e reais, guardados em malas e caixas de papelão guardadas num dos apartamentos da família do ex-deputado Geddel Vieira Lima (DEM-BA).

Na Lava Jato, o executivo Hilberto Silva, responsável pelo setor de pagamentos do departamento de “Operações Estruturadas” da Odebrecht, acondicionava R$ 500 mil em mochilas que eram distribuídas em hotéis e flats a emissários de políticos dos mais variados partidos. Fernando Migliaccio, seu subordinado, chegou a distribuir R$ 35 milhões dessa forma num único dia. “Foi o meu recorde”, confessou ao Ministério Público Federal. Para comprovar a medida de capacidade pecuniária das bagagens, era de justamente meio milhão o valor contido na mala de rodinhas recebida pelo ex-deputado Rodrigo Rocha Loures (MDB-PR) em nome de Michel Temer, no episódio da JBS que decretou, na prática, o fim do seu governo. E tudo isso aconteceu numa época em que a maior nota brasileira era a garoupa, e não o lobo guará.

Os R$ 33.150 encontrados na cueca do senador Chico Rodrigues (DEM-RR) foram motivo de piadas e chacotas, além de ter provocado mal estar na base de apoio de Bolsonaro, de quem era vice-líder. Mas eles representam, sobretudo, nossa incapacidade de aprender com os erros e evitar que eles se repitam.

Traficantes de drogas e armas, terroristas, sonegadores, corruptos e corruptores, entre outros, se valem de pagamentos em espécie para “reciclar” capitais obtidos ilicitamente e tornar mais difícil sua rastreabilidade caso sejam investigados. É por essa razão que organismos internacionais como a Força Tarefa de Ação Financeira (FATF, na sigla em inglês), criada pelos países do G-7 em 1989 para combater a lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo, recomendam que transações financeiras envolvendo valores elevados sejam comunicadas aos órgãos de controle para, se for o caso, serem monitoradas mais de perto.

No Brasil, o Conselho de Controle e Atividades Financeiras (Coaf) foi criado em 1998 justamente para cumprir o objetivo de examinar atividades dessa natureza. Desde a aprovação da Lei nº 9.613/1998, instituições financeiras, casas de câmbio, cartórios, joalherias, imobiliárias, concessionárias de veículos e outros estabelecimentos que transacionam bens de luxo devem comunicar ao Coaf operações realizadas por “pessoas expostas politicamente” ou por qualquer cidadão, desde que efetuadas em espécie, em montante acima de R$ 30 mil.

A se julgar pelos casos de corrupção que periodicamente sacodem o país, essas determinações legais não têm sido suficientes. Pouco antes da descoberta de cédulas no cofrinho do senador, a própria família presidencial já vinha sendo assombrada por investigações conduzidas pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro a respeito de diversas transações imobiliárias realizadas em dinheiro vivo que supostamente teriam origem ilícita, seja nas rachadinhas na Assembleia Legislativa fluminense ou talvez em algo até mais grave.

O mais lamentável é que, ao longo de décadas e mais décadas de escândalos de corrupção, avançamos bem menos do que seria necessário para fechar o cerco contra políticos e outros criminosos que se valem de pagamentos em espécie para requentar e ocultar patrimônio obtido de forma ilegal. Ao politizarmos operações como o Mensalão e a Lava-Jato, perdemos a oportunidade de pressionarmos por mudanças legais e institucionais que poderiam tornar mais efetivo o combate a desvios de recursos públicos no país.

E não é por falta de iniciativas legislativas que não tornamos mais efetivo o combate ao “branqueamento de capitais” no Brasil. Ainda em 2011, o PL nº 2.847, do ex-deputado Carlos Manato (PDT-ES), previa a proibição de pagamentos em cash de operações acima de R$ 1.500,00. Já na esteira da Lava-Jato, o PL nº 7.877/2017, do parlamentar paulista Gilberto Nascimento (PSC) atribuía ao Conselho Monetário Nacional a competência para definir um limite a partir do qual só seriam concretizadas transações por meio eletrônico. Mais recentemente, o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP) acatou uma das “Novas Medidas contra a Corrupção”, elaboradas por um grupo de especialistas a pedido da Transparência Internacional, e apresentou o PL nº 75/2019, que veda o uso de dinheiro vivo para o pagamento de boletos e faturas acima de R$ 5 mil e outras operações superiores a R$ 10 mil.

Limitar o uso de pagamentos em espécie, a princípio, não traria nenhum prejuízo ao brasileiro comum - de um lado, os não bancarizados não dispõem de renda para compras de elevado valor, e de outro as classes média e alta já se habituaram a utilizar cartões de crédito e débito, DOCs, TEDs e transferência bancárias em seu dia-a-dia. A restrição legal só não avança por falta de pressão sobre justamente as “pessoas politicamente expostas” que se beneficiam do sistema atual ou têm conexões com a criminalidade.

Com o advento do Pix e das novas formas de pagamentos eletrônicos, não haveria motivos para o Brasil não aderir a uma tendência internacional que já inclui China, Índia, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Portugal e Itália. Todos esses países, em alguma medida, já adotaram ações para restringir transações em dinheiro vivo com o intuito de combater a corrupção, a criminalidade e o terrorismo.

O caso dos reais nas partes íntimas do senador Chico Rodrigues talvez não dê em nada - com muita sorte, levará à sua cassação ou a uma condenação judicial. Melhor seria se deixasse como legado alguma mudança efetiva na legislação para tornar mais fácil investigações no estilo “follow the money” - mesmo que as buscas conduzam, ao final, a um lugar sujo e mal-cheiroso.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Humberto Saccomandi: O que pode mudar na economia com Biden?

Democrata tem plano de US$ 2 trilhões em investimentos verdes

Se as pesquisas estiverem corretas, um grande “se”, o democrata Joe Biden será eleito em 3 de novembro presidente dos EUA. O que isso significa para a economia dos EUA e mundial? Há algumas certezas e muitas dúvidas ainda. A indefinição principal é com a continuidade, e em que medida, da guerra econômica com a China, que tem efeitos em cadeia por toda a economia global. O Brasil precisa atentar aos riscos e se preparar para oportunidades.

As pesquisas recentes indicam vantagem nacional expressiva do candidato democrata e uma vantagem mais apertada nos Estados decisivos, aqueles que definem a eleição presidencial nos EUA. Mas a dinâmica favorece Biden: a epidemia voltou a avançar, a economia perdeu força e a votação antecipada está muito alta. Há a possibilidade ainda de os democratas, que devem manter a maioria na Câmara, conquistarem a maioria no Senado. Isso seria vital para Biden aprovar suas propostas.

Uma vitória democrata por ampla margem parece ser o cenário mais favorável para os mercados, apesar de o setor financeiro ser tradicionalmente mais simpático aos republicanos. Isso porque a vitória democrata incontestável é provavelmente o único cenário possível em que não haveria judicialização da eleição, com meses de incerteza, e nem a paralisia do Congresso que marcou os últimos anos.

A economia ficou à margem do debate na campanha eleitoral. Os democratas estão focando no desastre que foi a reação do governo Trump à epidemia de covid-19 e, mais genericamente, na incapacidade de Trump para liderar o país. Já o presidente busca se colocar como o defensor da lei e da ordem contra a ameaça da extrema-esquerda democrata. Os enormes desafios dos próximos anos, na esteira da destruição econômica causada pela epidemia, não tornam o debate econômico atraente para nenhum dos candidatos.

No plano interno, Biden promete aumentar impostos e adotar um amplo programa de gastos públicos, para tentar tirar a economia americana da sua maior crise em quase cem anos. O PIB americano deve recuar 4,3% neste ano e crescer 3,1% em 2021, segundo as projeções do FMI. Isso significa que, ao fim de 2021, a produção ainda estará menor do que no fim de 2019. Após cair no meio do ano, o desemprego voltou a subir. O avanço da epidemia nos últimos meses, freou a retomada da economia.

O ponto central do programa econômico de Biden é um plano de investimentos verdes de US$ 2 trilhões ao longo de quatro anos, voltado principalmente para a transição para as energias renováveis. O democrata ainda promete retomar um programa de saúde similar ao Obamacare (que ampliou o acesso a serviços de saúde), a um custo ainda incerto, além de investimentos em educação e infraestrutura e centenas de bilhões em ajuda às empresas dos EUA para pesquisa. O Congresso deve aprovar ainda um novo pacote trilionário de estímulo à economia, no fim deste ano ou no início de 2021, com mais ajuda financeira às empresas e aos trabalhadores.

Para financiar esses gastos, Biden pretende ampliar a arrecadação. Para isso, ele reverteria os cortes de impostos aprovados por Trump e pelos republicanos em 2017. Os impostos aumentariam para os mais ricos e para as empresas. A alíquota de IR das empresas, que era de 35% e caiu para 21%, iria para 28%. Há ainda planos de elevar a taxação sobre ganhos de capital e herança.

Antes mesmo da pandemia já havia dúvidas sobre como financiar os gastos prometidos por Biden e pelos democratas. O aumento da arrecadação não cobriria a alta de despesas. Agora, com os EUA beirando um déficit fiscal de 16% neste ano, o maior em tempos de paz, a dificuldade só cresceu. Provavelmente Biden teria de manter o déficit elevado por muitos anos, com aumento significativo da dívida pública dos EUA, que vai superar 100% do PIB neste ano pela primeira vez desde a Segunda Guerra.

Mas, com o crescente consenso, apoiado nesta semana pelo FMI, de que os países ricos precisam gastar mais (e melhor) para sair da crise, isso não deverá ser um problema para Biden, desde que a inflação e os juros se mantenham baixos por vários anos, o que é o cenário base hoje, mas não é uma certeza. Se tiver maioria no Congresso, o democrata não terá problemas para aprovar mais déficit.

No plano externo, a grande decisão de Biden, que terá maior repercussão global, é sobre a continuidade da guerra econômica com a China, que é parte da tentativa americana de conter a ascensão da potência asiática. Biden parece endossar o consenso anti-China que se instalou em Washington, mas deverá adotar estratégias diferentes das de Trump.

A expectativa é que ele reorganize o bloco ocidental sob a liderança dos EUA (encerrando os conflitos comerciais com a União Europeia) e busque soluções multilaterais para lidar com o desafio da China. Isso passa, por exemplo, pela reforma da OMC, para que o comércio mundial possa lidar melhor com o capitalismo de Estado chinês.

Mas é provável que o processo de separação das economias dos EUA e da China continue, com a transferência para fora da China de parte da produção voltada para o Ocidente. Como observou o ex-embaixador americano no Brasil Thomas Shannon, em entrevista nesta semana ao Valor, esse processo pode trazer oportunidades para o Brasil, ainda que mais para o México, que está mais perto e integrado à cadeia produtiva dos EUA.

Assim, Biden manteria, por exemplo, a pressão para que a empresa chinesa Huawei seja banida das redes 5G dos países aliados dos EUA. Essa será uma decisão difícil para o Brasil, que tem na China seu maior parceiro comercial. Pequim já sinalizou que barrar a Huawei afetaria as relações entre os dois países.

Com Biden, os EUA apoiariam as negociações na OCDE para elevar a taxação de empresas digitais (o que traria mais receita aos governos). O país voltaria ao acordo de Paris, com mais pressão para a descarbonização da economia global e a proteção do meio ambiente - Biden falou em ajudar o Brasil na preservação das florestas, mas ameaçou com sanções se isso não for feito.

É provável também que os EUA retornem, em algum momento, à Parceria Transpacífica (TPP), o acordo comercial negociado pelo governo Obama e que inclui diversas economias da região do Pacífico, mas não a China. Trump deixou a TPP, que é uma iniciativa importante para conter a China comercialmente. O plano da UE de impor uma taxa de carbono a produtos de países poluidores tem a simpatia dos democratas.


Maria Cristina Fernandes: ‘União estável’ com senador tem fim abrupto

Senador empregou parente dos filhos de Bolsonaro e controlava distrito sanitário especial indígena

O ex-vice-líder do governo Bolsonaro no Senado, Chico Rodrigues (DEM-RR), flagrado com dinheiro grotescamente escondido e afastado do cargo pelo STF, foi o responsável pela indicação de Vitor Pacarat para o Distrito Sanitário Especial Indígena Leste, em Roraima, vinculado ao Ministério da Saúde. Lá, por meio de empresas de aliados, Rodrigues passou a fornecer equipamentos superfaturados.

A proximidade com o governo lhe valeu presença na viagem do presidente a Israel, em 2019, e na visita do secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, a Roraima. Em vídeo, ainda na campanha, Bolsonaro diz ter com Rodrigues “quase uma união estável”, que ainda garantiu a um primo dos filhos do presidente, Leonardo Rodrigues, um emprego no gabinete do senador.

Em entrevista na manhã de ontem, à saída do Palácio do Alvorada, o presidente da República, Jair Bolsonaro, disse que a operação de busca e apreensão da Polícia Federal na casa do senador Chico Rodrigues (DEM-RR) é uma demonstração de que seu governo não tem corrupção. Na tentativa de se descolar do vice-líder do seu governo no Senado flagrado com dinheiro grotescamente escondido, o presidente disse que seu governo, na verdade “combate a corrupção”.

Coube ao senador, porém, a indicação, em 2019, de Vitor Pacarat como coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena Leste, em Roraima, um dos 34 DSEIs do país. Os distritos, responsáveis pelas comunidades indígenas, estão sob o chapéu do Ministério da Saúde. As etnias sob a supervisão do DSEI Leste tinham um outro candidato para o cargo e ocuparam as instalações do órgão em protesto.

As investigações da Polícia Federal mostram que, com o advento da covid-19, o senador, por meio de empresas comandadas por familiares e aliados, passou a fornecer equipamentos de proteção individual superfaturados ao DSEI. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) aponta este distrito como um dos recordistas em casos de covid-19 entre as comunidades indígenas do país. O DSEI Leste é responsável pela saúde de 51 mil indígenas de 325 comunidades.

A aproximação entre Chico Rodrigues e o governo também ficou patente quando o senador acompanhou o chanceler Ernesto Araújo na recepção ao secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, em Roraima. O secretário fez da visita um palanque para um discurso ameaçador ao presidente venezuelano Nicolás Maduro na reta final da campanha eleitoral americana. A adesão de Chico Rodrigues aos princípios da política externa bolsonarista também motivou o convite para que integrasse a comitiva do presidente na viagem a Israel, em 2019.

Em vídeo, ainda na campanha eleitoral, Bolsonaro diz que tem, com o senador, seu colega na Câmara dos Deputados por cinco mandatos, “quase uma união estável”. A proximidade também foi retribuída com o emprego, no gabinete do senador, do primo dos filhos do presidente, Leonardo Rodrigues, mais conhecido como “Leo Índio”.

Menor colégio eleitoral do país, com 331 mil eleitores, Roraima costuma ficar de fora das rotas dos candidatos a presidente em campanha. Não foi o caso de Jair Bolsonaro, que lá teve uma de suas mais expressivas vitórias. Alcançou 78,6% dos votos no segundo turno, patamar só batido pelo Acre (82%).

Fez campanha no Estado com um discurso em defesa da mineração em terras indígenas e contra a “exportação” de refugiados pela Venezuela.

Eleito com apoio do presidente, o governador Antonio Donarium (PSL) foi um dos sete a não assinar a carta dos governadores que, no início da pandemia, protestou contra as ameaças do presidente da República às instituições. Foi em Roraima também que o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, foi buscar o empresário e ex-deputado federal Airton Cascavel para o cargo de assessor especial do ministério.


Maria Cristina Fernandes: A única frente ampla é a do poder

Enquanto a esquerda se divide, Bolsonaro aprende a compor

Numa disputa em 5.569 municípios, sempre será possível comprovar uma tese e seu contrário, principalmente na eleição mais apartada da história. Uma parte dos eleitores está trancada na autossuficiência de seu ensino e trabalho remoto, plano de saúde e entregas em casa. Outra, mais numerosa, se depara com o despreparo das escolas públicas para o ensino à distância, de um transporte público desaparelhado para um serviço sem riscos, de postos de saúde desorientados pela ausência de uma política nacional de prevenção à pandemia e de um Estado que pretendeu anestesiar tudo isso com um auxílio financeiro.

É difícil imaginar que tamanhas fissuras num colégio eleitoral de 147.918.498 pessoas mantenham quaisquer teses em pé, mas aí estão muitas a pontificar. A primeira delas é a de que o mote da anti-política, que moveu as eleições de 2018, perdeu força. Três indícios respaldam esta tese: o presidente Jair Bolsonaro abraçou a velha política e respira sem ajuda de aparelhos; estrelas da renovação, como os governadores Wilson Witzel (RJ), Carlos Moisés (SC) e Wilson Lima (AM), caíram em desgraça; e, finalmente, a gravidade da pandemia levou o eleitor a revalorizar a experiência de políticos testados.

A liderança dos prefeitos Alexandre Kalil (PSD), em Belo Horizonte, Rafael Greca (DEM), em Curitiba, Marquinhos Trad (PSD), em Campo Grande, dos ex-prefeitos Eduardo Paes (MDB), no Rio, e Edmilson Rodrigues (Psol), em Belém, e do ex-governador Amazonino Mendes (Podemos), em Manaus, serve aos arautos da tese. Por outro lado, se houvesse tanto conformismo assim com a política tradicional, o candidato do Psol em São Paulo, Guilherme Boulos, não estaria tão à frente de seus adversários de esquerda, todos eles com mais estrada na política. Também fica difícil explicar, com a tese da revalorização de políticos testados, a liderança da candidata do PCdoB em Porto Alegre, Manuela D’Ávila, que hoje tem a soma das intenções de voto de um ex-prefeito, José Fortunati (PTB) e de seu ex-vice, Sebastião Melo (MDB).

É bem verdade que pesquisa não é voto, mas trata-se da disputa mais curta da história. É, também, uma campanha com poucos ou nenhum debate em que os candidatos que largam na frente estarão menos expostos ao contraditório. Sempre podem cair, mas correm mais o risco de tropeçar nas próprias pernas, como, por exemplo, o deputado federal Celso Russomanno (Republicanos), líder da disputa em São Paulo com apoio do presidente Jair Bolsonaro, ao dizer que a sujeira dos moradores de rua de São Paulo os imuniza contra o coronavírus.

A outra tese é a de que a eleição municipal prediz o desempenho dos partidos nas eleições proporcionais dois anos depois. A tese não resiste ao resultado das ultimas eleições. Entre 2012 e 2016, o MDB manteve, com uma variação negativa de 1%, seu número de prefeituras. Nas eleições gerais (2018) que aconteceram no meio do mandato desses prefeitos, porém, o partido perdeu metade de suas cadeiras na Câmara dos Deputados.

O PSDB chegou a crescer em número de prefeituras entre 2012 e 2016 (15%), mas não foi capaz de evitar que, na eleição de 2018, perdesse quase metade de suas cadeiras na Câmara dos Deputados. Com o DEM foi diferente. O partido manteve relativamente estável o número de prefeituras (-4%) entre as duas últimas eleições municipais, mas conseguiu aumentar em 38% o número de cadeiras na Câmara nas últimas eleições. Já o PT teve o maior tombo em número de prefeitos (perdeu 60%), mas foi capaz de conter as perdas de sua bancada, com uma redução de 20% na atual composição.

Ainda que o resultado de uma eleição não explique a outra, este ano os partidos não têm alternativa senão buscar nesta a sobrevivência para a próxima. Por isso, batem recordes em número de candidatos. Com a proibição de coligações e a entrada em vigor da cláusula de desempenho nas eleições de 2022, os partidos precisam ganhar musculatura com bases municipais capazes de gerar cabos eleitorais que os livrem da guilhotina.

Esta mudança desfavoreceu qualquer tentativa dos partidos para começar, a partir das eleições municipais, a ensaiar uma frente ampla para as eleições gerais capaz de enfrentar a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. No conjunto dos 96 maiores colégios eleitorais do país, cidades que podem ter segundo turno, o PT disputará sem coligação em 36 delas, como mostrou o Valor (23/9). As mudanças na lei explicam uma parte. O cálculo político das lideranças explica a outra.

O do PDT, por exemplo, passa por sedimentar uma aliança capaz de aglutinar o centro e levar, de arrastão, a esquerda, em torno de Ciro Gomes. Foi assim que se frustrou, num domingo de agosto, a derradeira tentativa de se formar uma frente em torno do deputado Marcelo Freixo (Psol), no Rio, cuja disputa é a mais emblemática para o presidente da República e sua família.

O PT topava retirar a candidatura deputada federal Benedita da Silva, mas o PDT se recusou a discutir em que termos negociaria a candidatura da deputada estadual Martha Rocha. No dia seguinte ao encontro combinado, Ciro estava em Salvador firmando aliança com o prefeito de Salvador, Antônio Carlos Magalhães Neto (DEM). Sinalizou o mesmo rumo já tomado pelo partido em Fortaleza, onde rompeu a aliança com o PT, responsável pela aliança que elegeu os atuais prefeito e governador. Ciro reaproximou-se, depois de décadas em raias separadas, do senador Tasso Jereissati (PSDB). O candidato de ambos, o deputado estadual Sarto Moreira (PDT), está em terceiro.

Na disputa de novembro, o eleitor quer, sobretudo, alguém que cuide do espaço e dos serviços públicos. Leva em consideração o que dispõe hoje e as chances de melhorar. Isso não impede que se constate a ausência de ensaios para as movimentações de 2022. Em toda eleição lideranças testam compromissos, capacidade de se cumprir acordos e a definição de metas em conjunto para a conquista do poder.

Por enquanto, é a busca de sua manutenção que sai na frente. O presidente sem partido tem se movimentado em Brasília, em suas alianças com o Congresso e o Judiciário, com muito mais foco para formar uma frente ampla para 2022, do que a miríade de partidos que um dia compuseram a esquerda.


Valor: Salles “joga contra” ambiente, diz Jungmann

Para ex-ministro da Defesa, proposta de Joe Biden para Amazônia é “colonialista”

Por Rafael Rosas e Daniela Chiaretti, Valor Econômico

RIO E SÃO PAULO - A saída do ministro Ricardo Salles da pasta do Meio Ambiente é fundamental para que o Brasil seja “levado a sério” na área ambiental. A afirmação foi feita ontem pelo ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública Raul Jungmann durante sua participação na Live do Valor.

“Ele joga contra o projeto de desenvolvimento sustentável”, disse Jungmann, acrescentando que Salles também “joga contra” o que o ex-ministro do governo Michal Temer acredita ser o pensamento do segmento militar e daqueles “que querem o desenvolvimento sustentável da Amazônia”. “Ricardo Salles efetivamente não nos credencia externamente e internamente como tendo um projeto sério de desenvolvimento e defesa do meio ambiente do Brasil”, frisou Jungmann, que considerou ainda uma “estupidez” a decisão de derrubar os acordos fechados no âmbito do Fundo Amazônia.

Durante os mais de 40 minutos de conversa, Jungmann procurou demonstrar a necessidade de diálogo e entendimento entre diferentes setores nas questões relativas à defesa da soberania brasileira e na preservação do meio ambiente. Nesse sentido, fez uma dura crítica à postura do candidato do Partido Democrata à Presidência dos Estados Unidos, Joe Biden, que em debate com Donald Trump propôs uma ajuda de US$ 20 bilhões para preservação da Amazônia e ameaçou o Brasil de sanções caso o desmatamento continue a avançar. Para Jungmann, a postura de Biden “é cheia de boas intenções, mas é colonialista”.

“Ajuda à Amazônia tem que ser de acordo com nossos objetivos e com a nossa soberania”, ressaltou.

O ex-ministro demonstrou de que maneira o conceito da defesa da soberania acabou virando um sinônimo de luta exclusiva da ala militar da sociedade. Para Jungmann, a omissão da elite política civil em debater a questão acabou transformando os militares praticamente no único segmento organizado da sociedade a discutir o tema. Ele afirma que os integrantes das Forças Armadas são defensores da preservação ambiental e que o principal problema na região amazônica hoje passa pela falta de projeto nacional para o desenvolvimento sustentável e pela falta de diálogo entre militares, ambientalistas e outros atores da sociedade.

“Se a elite política civil não leva em conta os militares, também não será levada em conta [pelos militares]. Não cabe exclusivamente aos militares esse papel [de pensar a defesa do país e da Amazônia], que cabe à liderança política, que tem que estar à frente do processo, e não está”, disse.

Para o ex-ministro, o distanciamento entre militares e sociedade civil é um erro, uma vez que “o mundo militar é uma ferramenta da nossa soberania”, que não deve ser usada como o “bombril da República” sempre que há uma questão em que o governo precisa agir e acaba utilizando as Forças Armadas fora do seu escopo original.

Jungmann lembrou os temores dos militares com a existência de áreas indígenas e regiões de preservação próximas às fronteiras, o que, na visão deles, abre uma possibilidade futura de ameaça à soberania. “Esse é o entendimento militar”, frisou. “Preocupação que tem que ser reconhecida e tem que gerar diálogo”, acrescentou.

Jungmann fez questão de frisar que as organizações não governamentais “são importantíssimas” na Amazônia, embora haja o estereótipo de que elas não querem desenvolvimento da Amazônia. “A saída é dialogar e chegar a um consenso”, frisou. “Mas onde está o Estado?”, questionou, ressaltando que há a necessidade de convergir a preocupação de soberania dos militares com a preservação defendida por ambientalistas. “Enquanto não se construir isso e transformar isso em atividades sustentáveis, vamos estar queimando árvores. E isso é queimar dinheiro”, frisou.


Fernando Exman: Bolsonaro vai ter que escolher lado da briga

Cisão de pasta deixaria Guedes em situação delicada

As inconfundíveis orelhinhas inchadas sempre foram um indicativo da presença de praticantes de jiu-jitsu. Durante muito tempo, até serviram de alerta visual aos demais presentes: “Melhor manter distância ou se preparar para correr, pois haverá briga”.

Preconceito, claro. O jiu-jitsu ficou estigmatizado por causa do comportamento inadequado de parte de seus adeptos. Hoje, essa situação parece controlada. Mesmo os entusiastas que não ostentam as tais orelhas aplicam com naturalidade os princípios da arte marcial em suas tarefas cotidianas, tanto no trabalho quanto em atividades pessoais, sem medo de eventuais danos à imagem que essa correlação poderia gerar num passado recente. Em Brasília, inclusive.

Provavelmente o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, seja hoje, no centro do poder, o mais famoso praticante da arte marcial desenvolvida pela família Gracie no Brasil e que ganhou o mundo. Fux é bom de briga. Sabe defender seus pontos de vista com os instrumentos e as técnicas que estiverem à disposição, como se tem visto em seus primeiros dias à frente do STF. Entretanto, essa é outra história.

O que poucos sabem é que o jiu-jitsu também passou a inspirar a equipe econômica. E isso explica a mudança adotada pelo Ministério da Economia na sua estratégia de relacionamento com o Legislativo, desde que a pandemia avançou sobre o território brasileiro.

No início, as autoridades da área acharam que conseguiriam emplacar uma agenda dando uma “prensa” no Congresso. Foi o que o ministro Paulo Guedes chegou a defender em novembro de 2018, poucos dias depois de o presidente Jair Bolsonaro ganhar a eleição, evidenciando como seriam conflituosas as relações entre os dois Poderes.

Acreditava-se, no grupo mais próximo a Bolsonaro, que o resultado das urnas daria força suficiente para o Executivo impor seu programa de forma praticamente irrestrita. Esses auxiliares do presidente haviam esquecido, obviamente, que deputados e senadores saíam da campanha eleitoral com a mesma legitimidade e estariam dispostos a medir forças.

O resultado é conhecido. O governo precisou ceder já na reforma da Previdência. Vieram outros embates com o Congresso, muitos dos quais ruidosos, mas Guedes procurou manter seu plano original de derrubar a trajetória futura dos gastos públicos mais descontrolados: Previdência Social, juros e despesas com o funcionalismo.

Realizada a reforma da Previdência, a qual deve impedir que os gastos da área cresçam mais do que o Produto Interno Bruto (PIB) nos próximos anos, foi a vez de o governo se preocupar com os juros. Na visão de autoridades do Executivo, o governo estava conseguindo melhorar o balanço da União, desalavancar os bancos públicos e reduzir a relação dívida/PIB.

A expectativa, inclusive verbalizada pelo próprio presidente de forma questionável poucos dias antes de uma reunião do Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom), era que a Selic continuasse caindo. E isso até poderia ocorrer, se não houvesse uma mudança de percepção no mercado em relação ao compromisso do governo com o teto de gastos.

Enquanto isso, a equipe econômica trabalhava, sem sucesso, com o objetivo de controlar as despesas com o funcionalismo. Este era, afinal, o terceiro pilar da estratégia que ainda está em execução e agora deve se concentrar em ampliar o horizonte de investimentos, principalmente privados.

A primeira tentativa naquele sentido se deu quando o ministério encaminhou ao Planalto uma proposta de reforma administrativa com mecanismos que visavam estancar o crescimento dos salários dos servidores. A ala política, contudo, brecou a iniciativa.

Bolsonaro foi convencido de que emendar uma reforma à outra, ou seja, a previdenciária à administrativa, era politicamente arriscado demais. Sua popularidade seria prejudicada e o governo não demoraria a enfrentar manifestações de rua, argumentavam seus auxiliares do núcleo palaciano.

A segunda tentativa de Guedes foi durante a discussão da Proposta de Emenda Constitucional do Pacto Federativo, a qual também acabou não avançando no Congresso.

Foi então que a pandemia chegou e, com ela, nas palavras de autoridades da própria pasta, a equipe econômica decidiu se inspirar nos princípios do jiu-jitsu.

Esta é uma arte marcial que utiliza golpes de alavancas, torções e pressões. Aproveita a força e os movimentos dos adversários para - de forma silenciosa - estrangulá-los ou imobilizá-los, independentemente de seu estilo de luta ou porte físico.

Em outras palavras, o Ministério da Economia conseguiu aproveitar a crescente demanda de Estados e municípios por recursos para fazer valer sua própria vontade. Buscou sujeitar o envio de verbas ao compromisso de que o dinheiro não seria usado para aumentar salários. Gastos pontuais e emergenciais não seriam transformados em despesas permanentes e, além disso, os vencimentos do funcionalismo seriam congelados até o fim de 2021.

A ideia enfrentou resistência do Congresso, mas Bolsonaro ficou ao lado de Guedes. Porém, ao fim do segundo ano do governo, agora a equipe econômica se vê envolvida em algo que se assemelha a uma briga de rua.

Enquanto se esforçava para imobilizar os adversários que considerava mais perigosos, ela começou a apanhar por outros lados e, na confusão, pode acabar perdendo alguns pertences - parte do superministério concebido por Guedes, instrumentos de condução da política econômica, cargos e orçamento.

Os críticos da atual estrutura da pasta sugerem desmembrá-la supostamente por questões administrativas ou para abrigar aliados. Mas eles sabem que, se a ideia for levada adiante, a situação da atual equipe pode ficar insustentável. Com ela fragilizada ou até mesmo reformulada, poderia enfim ser criada a oportunidade que muitos esperam para ultrapassar de vez o teto de gastos. Caberá a Bolsonaro mostrar de que lado está da briga.