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Ana Carla Abrão: Terra de Cora
O Goiás rico e próspero se perdeu com os empréstimos generosos e gastos crescentes
Quem vai a Goiás pela primeira vez ainda hoje se surpreende com a terra vermelha, o clima quente e seco e a luminosidade de um céu azul claro e um sol que não descansa. Além disso, logo percebe que muito além da pamonha, do pequi e das fazendas onde se cria gado, há ali uma economia diversificada, com uma indústria que se instalou em torno do agronegócio e juntos garantem um nível de riqueza que não se imaginaria possível duas ou três décadas atrás.
Esse é um Goiás rico, próspero, que cresceu acima da média nacional por mais de dez anos e cuja pujança é de causar inveja a vários Estados periféricos que, por estarem também longe dos grandes centros consumidores ou por terem menor potencial econômico, ficam à mercê dos repasses federais e a duras penas enfrentam as dificuldades de um país tão diverso e desigual como o Brasil.
Mas a partir de 2010, compensando um arrefecimento na taxa de crescimento da arrecadação própria, Goiás começou a receber empréstimos generosos dos bancos públicos, amparados por um governo federal cada vez mais camarada. E Goiás se perdeu, assim como tantos outros Estados. Limites foram ignorados e o que antes era receita extraordinária se transformou em despesa ordinária, obrigatória e crescente. Já em 2014 o desequilíbrio era grave, numa combinação de crise econômica com excessos nas isenções fiscais e gastos sempre crescentes.
Foi no apagar das luzes de 2014 que fui convidada para ser Secretaria de Fazenda de Goiás. Neófita em contas públicas, me fiz então uma única pergunta: Goiás atende os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal? Para meu alívio, internamente convencida de que aceitaria o convite, vi que sim. Ignorei os sinais no convite feito pelo então governador Marconi Perillo, que foi claro no seu objetivo de promover um forte ajuste fiscal no Estado, e desembarquei em Goiás cheia de planos.
Não foram necessárias nem 24 horas no cargo para entender que a realidade do Estado diferia em muito da normalidade dos relatórios de gestão fiscal exigidos pela LRF. O caixa do tesouro estadual mal dava para o pagamento da folha e dos serviços da dívida, num desafio diário de se buscar recursos para minimizar atrasos com fornecedores e repasses constitucionais. O descolamento entre caixa e contabilidade vinha validado por dois caminhos: por uma determinação do Tribunal de Contas do Estado de retirar os gastos com pensionistas e com o imposto de renda sobre a folha dos cálculos das despesas com pessoal; e por Leis Orçamentárias completamente desconectadas da realidade. O primeiro, ao subestimar os gastos com pessoal, evitava as sanções pelo descumprimento da LRF. O segundo validava receitas infladas que acomodavam despesas sem limites num jogo de faz de conta.
Ao longo de dois anos o ajuste permitiu a redução de custos de mais de R$ 6 bilhões, equivalentes a quase 30% de um orçamento de pouco mais de R$ 20 bilhões. Gastos com pessoal e custeio foram contidos, investiu-se no combate à sonegação e privatizou-se a companhia de distribuição de energia. Isso trouxe algum fôlego para novos investimentos, sacrificados pelo excesso de gastos correntes e uma acertada restrição a novos empréstimos a partir de 2015. Além disso, um programa de consolidação do ajuste foi apresentado por meio de uma PEC, com várias ações adicionais que deveriam ser adotadas nos próximos anos para garantir a perenidade do ajuste.
Mas nada disso foi suficiente para evitar o colapso fiscal de Goiás. A partir de 2017 as despesas de pessoal voltaram a crescer de forma descontrolada, os recursos da privatização da Celg se transformaram em asfalto que não resistirá a este período de chuvas e os fornecedores estão ao relento, apesar das promessas de que tudo se resolveria após as eleições. A PEC virou o instrumento que oficializou a maquiagem no cálculo das despesas com pessoal. Tanto se fez, que a verdade do caixa, de tão grave, dessa vez prevaleceu sobre os relatórios fiscais, mostrando que o faz de conta um dia acaba.
Como bem disse Cora Coralina, nossa melhor síntese: “Goiás é água e pão. Água para toda sede e pão para toda fome”. Mas para que o potencial e a riqueza de Goiás se distribuam por todos os goianos, o interesse público precisa estar no centro das decisões políticas. Sempre.
*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman
César Felício: A cartucheira de Flávio está cheia
Senador eleito tem muitas linhas de defesa a explorar
O exército que guarda o senador eleito Flávio Bolsonaro ainda tem muitas linhas de defesa a serem rompidas, antes da sobrevivência política do primogênito do presidente ser dada como ameaçada. É verdade que o coração do grupo político que empalmou o poder está exposto com o escândalo e talvez toda a sequência de disparates que aconteciam no gabinete de Flávio na Assembleia não tenha vindo à tona. Há várias maneiras, contudo, do caso não dar em nada.
A primeira linha, decerto a principal, estará nas mãos do ministro Marco Aurélio Mello, dentro de dez dias. O pedido da defesa do senador eleito, acolhido por Fux, não trata apenas da questão do foro ao qual Flávio deve responder. Sobre este ponto, Marco Aurélio já sinalizou que não deve aceitar a reclamação. Também menciona que o Ministério Público do Rio de Janeiro, de certo modo, provocou o Coaf a detalhar as operações suspeitas, o que configuraria quebra de sigilo e demandaria autorização judicial. É uma questão sobre a qual não é possível prever a decisão do relator.
Flávio pode se tornar beneficiário de uma briga que a princípio não é a sua: a luta do Judiciário para demarcar limites à atuação do Ministério Público. A reclamação pode ser a ocasião para ficar estabelecido se o Coaf pode ou não atender a pedidos do Ministério Público, uma decisão que pode ter um alcance muito maior do que a polêmica sobre o sigilo do filho do presidente. Pode marcar uma inflexão na tendência de fortalecimento do Ministério Público que se tornou patente nos últimos anos.
A segunda linha é a sombra de alguma ação governamental no caso Flávio. Esta hipótese estava em baixa, já que o Planalto tem sinalizado que trata -se de uma situação particular do parlamentar, que deve se defender sozinho. A tese é de que Bolsonaro iria erguer um cordão sanitário em torno do próprio filho, soltando sua mão e o entregando à correnteza. A consulta pública aberta pelo Banco Central dá margem para que se coloque em dúvida se o cordão sanitário vai mesmo existir. Se o Banco Central acabar com a compulsoriedade de uma transação potencialmente suspeita ser comunicada ao Coaf, o cheque de R$ 24 mil de Fabrício Queiroz para a madrasta do senador, a primeira-dama Michelle Bolsonaro, poderia ter passado despercebido.
Em Davos, Sergio Moro procurou estancar a manobra com dois movimentos: em um "quebra-queixo" com jornalistas disse que a sugestão do BC "não era decisão tomada". "O governo ainda vai se posicionar", garantiu. Mais adiante, em entrevista para a Reuters, o ministro procurou ser claro: "O governo nunca vai interferir no trabalho dos investigadores ou no trabalho com promotores". O tempo dirá se Moro prevaleceu ou foi vencido.
O BC publicou uma nota para dizer que a sugestão na realidade vai apertar, e não afrouxar o controle sobre transações, já que os bancos terão de monitorar todas as transações e reportar o que considerarem suspeito. Seria uma maneira de os bancos aprimorarem seus controles, de acordo com a autoridade financeira. É uma maneira também de cortar os poderes do Coaf, que deixaria de receber informações compulsórias e passaria a ter informações espontâneas.
Parece claro haver uma disputa entre Sergio Moro e Banco Central sobre o tema. O Coaf dependerá de uma autorregulação bancária para poder atuar?
É outra queda de braço que pode beneficiar Flávio.
Escalada
Vive-se no Brasil agora uma incerteza sobre o funcionamento de mecanismos de controle sobre o poder central. Com uma canetada, o vice-presidente Hamilton Mourão ampliou ontem a capacidade do governo de atribuir o selo de "ultrassecreto" a documentos e dados passíveis de serem alcançados pela Lei de Acesso à Informação. O carimbo poderá ser usado por funcionários que exercem cargo de comissão. É muito mais gente para colocar a venda.
Já no primeiro dia do governo, com a Medida Provisória 870, o governo estabeleceu supervisão e monitoramento sobre organismos internacionais e organizações não governamentais indistintamente, recebam elas ou não recursos públicos. O mesmo instrumento legal levou a órgãos como o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) a temerem, no limite, pela criação de restrições orçamentárias que ameacem a sua própria existência, temas que já foram tratados nesta coluna e na de Malu Delgado, publicada na quarta-feira.
A onda de violência que atinge o Ceará levou o presidente a usar as redes sociais para colocar na ordem do dia a proposta do senador Lasier Martins que reforça a lei antiterrorismo. Pelo projeto de Lasier, elogiado por Bolsonaro, é tipificado como terrorismo "incendiar, depredar, saquear, destruir ou explodir qualquer bem público ou privado", se o objetivo for pressionar os governantes. É uma amplitude tão grande que permite abarcar neste critério a derrubada de uma torre de transmissão e a pichação de um muro.
Wyllys
A desistência de Jean Wyllys de exercer o mandato é um ato político, mais além da possível ameaça que pesa à sua vida. Wyllys cria um constrangimento de porte ao governos federal e estadual em um momento de baixa em sua carreira.
Wyllys surgiu como figura pública na condição de celebridade instantânea, após vencer um programa BBB, e elegeu-se como militante da causa LGBT. Mas se notabilizou por antagonizar e ser antagonizado por Jair Bolsonaro e seu filho Eduardo. "Eles fizeram um jogo de ganha-ganha. Um serviu de escada para o outro", comentou uma vez, cinicamente, um dos mais poderosos congressistas do país. Não foi bem assim.
Foi reeleito com apenas 24.295 votos, o menos votado dos 46 deputados do Rio de Janeiro. Entrou na sobra de quociente aberta pela votação de Marcelo Freixo. Em 2014 havia conseguido 144.740 sufrágios.
Malu Delgado: Mais Brasília, menos Brasil
Sob FHC e sob Lula, alguns conselhos marcaram a história
Exatos 15 dias separam a data de criação do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, em 16 de março de 1964, do golpe militar. Nem mesmo sob a ditadura houve a ousadia de admitir abertamente a extinção do colegiado. Relatos da época comprovam, obviamente, manobras do governo militar para esvaziar e controlar politicamente o conselho que defendia os direitos humanos. Ainda que desidratado, o CDDPH sobreviveu à ditadura. Hoje, após uma luta de quase duas décadas no Congresso, foi transformado, pela Lei 12.986, em Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), em 2014, com definições claras sobre a paridade dos membros, mandatos, eleição e, sobretudo, suas atribuições.
Significa dizer que nem com caneta Bic ou Montblanc, caso se queira dar mais glamour à medida, o CNPH poderá ser extinto por decreto presidencial, ainda que Jair Bolsonaro já tenha associado direitos humanos a "politicagem", "bandidagem" e "esterco da vagabundagem". O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, afeito a bravatas, antecipou a pedido do chefe que "todos os conselhos que existem nos últimos anos" serão revisados pelo atual governo. São centenas de colegiados, alegou o ministro, "todos eles com um volume muito grande de pessoas, o que traz custos para a administração pública".
O pente-fino dos conselhos está em curso e pouco se sabe sobre o assunto, definido a portas fechadas no Palácio do Planalto. É difícil crer, pelas circunstâncias, que o governo vai analisar em profundidade o mérito das atividades por muitos destes colegiados que expõem as disparidades de um Brasil que está a léguas de distância da burocracia do Planalto Central, parafraseando o presidente, que passou a campanha prometendo "Mais Brasil e menos Brasília".
A canetada do primeiro dia de governo, a Medida Provisória 870, extinguiu o Consea, Conselho Nacional de Segurança Alimentar. A atuação do colegiado foi fundamental para que o Brasil passasse a ter uma política nacional de segurança alimentar e nutricional. Políticas públicas implementadas com ajuda do Consea permitiram, por exemplo, que a merenda escolar tivesse 30% de produtos de agricultura familiar. Inclusões produtivas de pequenas comunidades foram impulsionadas.
O Brasil deixou o Mapa da Fome em 2014, de acordo com relatório global da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO): de 1990 a 2014, 84,7% dos brasileiros deixaram a situação de subalimentação. O Consea também travou embates sérios sobre o uso abusivo de agrotóxicos. São exemplos de medidas práticas, com resultados favoráveis ao Brasil. Talvez nem tanto a Brasília. Mas essa história foi apagada pela Bic de Bolsonaro.
Para evitar que a carga de uma caneta que parece bastante cheia possa produzir danos irreversíveis, a Mesa Diretora do Conselho Nacional de Direitos Humanos vai estar com a ministra Damares Alves amanhã, em Brasília. Como o CNDH tem paridade entre representantes da sociedade civil e do governo federal, estarão na audiência também representantes da Defensoria Pública da União, do Ministério Público e da Secretaria Nacional da Cidadania, ligada à pasta da ministra.
Damares se mostra disposta a receber entidades da sociedade civil, mas quem passou por seu gabinete nas primeiras semanas de governo reparou mais na vestimenta azul que a ministra insiste em usar do que em seu discurso obsessivo sobre a "família brasileira". Tem também preocupação peculiar em enfatizar que sua pasta não desmontou a estrutura de proteção a direitos da população Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (LGBTI). Pouco se escuta, em seu gabinete, sobre população ribeirinha, população em situação de rua, população carcerária, liberdade de expressão, povos indígenas e quilombolas, conflitos fundiários, racismo, trabalho em condições análogas à escravidão. Ou seja, setores em que os direitos humanos são flagrante e constantemente violados, o que reflete muito do que é o Brasil.
O presidente do CNDH, Leonardo Pinho, vai enfatizar à ministra a necessidade de o conselho ser preservado, agir com autonomia e ter o reconhecimento do governo federal, para que trabalhem em parceria e em favor do Brasil. A lei de 2014 previu dotação orçamentária ao colegiado, mas a liberação da verba depende, mais uma vez, da caneta - neste caso a da ministra Damares.
Na vida real, fora dos gabinetes de Brasília, o Conselho Nacional de Direitos Humanos mandou missões, em 2017, a áreas indígenas com alto grau de violência. Em 2018, conselheiros foram ao Vale do Ribeira, em que um processo de titulação de terra quilombola agravava ainda mais os conflitos agrários locais. Em Anapu (Pará), o CNDH interveio em disputas envolvendo extração ilegal de madeira. Em 2018, a atuação do colegiado foi fundamental para assegurar a aprovação da Lei 13.769, que alterou o Código de Processo Penal para permitir que mulheres gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou com deficiência tivessem o direito de substituir a prisão preventiva por prisão domiciliar. A lei surgiu depois que uma missão do CNDH visitou mulheres detidas em presídio do Distrito Federal e constatou situações de desrespeito a direitos humanos a mulheres gestantes ou lactantes.
O presidente da CNDH está disposto a ter um "papo reto" com a ministra Damares, como gosta o governo. Os conselheiros acham que é preciso esgotar todas as possibilidades de diálogo e aguardar ações concretas do governo federal. Sob Lula e FHC, o Consea e o Conselho Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), respectivamente, marcaram a história. Em 2014 o Brasil deixou o Mapa da Fome, mas brasileiros voltaram a enfrentar o desnutrição no triênio 2015-2017, como constatou a ONU recentemente. Em 1995, FHC reconheceu a existência de trabalho escravo no Brasil e criou o Conatrae para combater esse drama. Bolsonaro terá que definir qual registro histórico quer deixar sobre sua relação com esses conselhos.
Daniela Chiaretti: Governo tem poucas ideias sobre clima. E confusas
Nenhum país pode sair do Acordo de Paris antes de 2020
Há 30 anos um amigo jornalista ouviu de seu primeiro editor, ao entregar o primeiro texto de sua vida profissional, a seguinte avaliação: "Suas ideias são poucas, porém confusas". A frase cômica se aplica tristemente ao reordenamento feito pelo governo do presidente Jair Bolsonaro no tópico "mudança do clima" nos ministérios pertinentes. Se há algum clima (com o perdão do trocadilho) nas pastas que eram protagonistas do assunto, a de Meio Ambiente (MMA) e a das Relações Exteriores, é o de "barata-voa". São só 22 dias de governo, é verdade, mas por enquanto reina o caos.
Caso esses ministérios tenham agora alguma atribuição verdadeira em termos de mudança climática, o tópico foi bem escondido no organograma que reestruturou o governo. O que era uma forte prioridade nas duas pastas foi enxugado, disperso e relegado a um plano indefinido. A Secretaria de Mudança do Clima e Florestas era a maior do MMA, com 140 pessoas. Produziu planos nacionais de adaptação aos impactos climáticos e levava adiante políticas de combate ao desmatamento da Amazônia e do Cerrado. Agora, ninguém sabe, ninguém viu. No Itamaraty, que tinha um formidável time de negociadores climáticos e uma subsecretaria para lidar com o tema, o assunto foi pendurado em algum lugar da recém-criada Secretaria de Assuntos de Soberania Nacional e Cidadania. Imagina-se que esteja em "proteção da atmosfera".
Esse redesenho traduz desinformação, ideologia e uma inevitável dose de risco à economia e à segurança do país. As declarações de "saio-e-fico" do presidente Jair Bolsonaro sobre a permanência ou não do país no Acordo de Paris, iniciadas durante a campanha e repetidas por integrantes do governo, ilustram esses equívocos.
Na terça-feira, a última agenda do chanceler Ernesto Araújo foi com seus pares Teresa Cristina Corrêa da Costa Dias, da Agricultura, e Ricardo de Aquino Salles, do Meio Ambiente. A agenda é pública, mas o conteúdo, não. A versão que corre é que Araújo teve que ser convencido pelos outros dois a não retirar o Brasil do Acordo de Paris. A soturna desconfiança do chanceler sobre o maior acordo climático internacional parece ter sido vencida por argumentos econômicos e ambientais dos outros dois. Basta passar os olhos pelo acordo e ver o quanto essa discussão é bizarra.
Nenhum dos 195 países signatários do Acordo de Paris pode sair dele, se assim desejar, antes de novembro de 2020. Nenhum é nenhum mesmo. Os Estados Unidos - surpresa! - continuam lá. Os negociadores americanos seguem indo a todas as conferências do clima, as famosas CoPs, sentam em seus devidos lugares e trabalham. Defendem os interesses americanos, brecam o que entendem ser recuos chineses em transparência, cuidam para que as posições dos EUA estejam lá. Não são tontos de abandonar o barco e deixar os outros decidirem à revelia. Vai que um dia os EUA tenham outro governo e voltem. Renegociar o texto é muito mais difícil, até para a nação mais poderosa do mundo.
Não se sai do Acordo de Paris com bravatas. Em 1º de junho de 2017, nos jardins da Casa Branca, o presidente Donald Trump fez seu show ao anunciar que os EUA "sairiam" do acordo. O futuro do pretérito se explica pelo artigo 28 do acordo.
Funciona assim: o acordo começou a vigorar em 4 de novembro de 2016. A comunicação oficial de um país signatário que se arrependeu só pode ser feita três anos depois de o tratado ter entrado em vigor - em 4 de novembro de 2019. Só então o país rebelde pode informar a Seção de Tratados da ONU em Nova York. Se Trump cumprir o que prometeu, os EUA poderão sair do acordo em 4 de novembro de 2020.
Há uma coincidência irônica nessas datas: trata-se do dia seguinte às eleições americanas, que devem acontecer em 3 de novembro de 2020. Seja qual for o resultado da eleição, Trump ainda será presidente, pode assinar a saída e, aí sim, os EUA terão deixado o Acordo de Paris. Mas, se o tratado tem regras para quem quer sair, não estabelece normas para quem quer voltar. O novo presidente pode decidir assim e tudo se resolver rápido. O que vale para os EUA vale para todos. O dano disso tudo está na mensagem ruim que o país dá aos outros, aos investidores em energia limpa, ao fluxo de capital da nova economia.
Outro ponto que revela desconhecimento sobre como funcionam as negociações internacionais é a conversa de Trump (copiada pelo presidente Bolsonaro e pelo ministro Salles) de que o país pode até ficar no Acordo de Paris, mas quer renegociar o texto. Não que a ideia seja impossível de concretizar, mas é improvável. As mudanças precisariam ser combinadas com os russos, com os chineses, com os indianos, com os outros 190 países que ratificaram o tratado climático. Trump quis reabrir o texto, ninguém deu a mínima abertura. Para o Brasil, este debate não faz o menor sentido econômico, ambiental e jurídico.
O que está por trás do capricho de tirar os termos que remetem a clima e ao combate ao desmatamento da estrutura dos ministérios? Supõe-se que, pela falta do nome, a sociedade não vai mais cobrar políticas para a Amazônia? Quando a seca continuar castigando colheitas e cidades, de quem se cobrará as políticas de adaptação? Quando chuvas cada vez mais fortes castigarem o país, a quem se recorrerá? Qual o entendimento do governo Bolsonaro para o maior desafio desta e das futuras gerações de humanos? Será tudo entendido como um castigo divino porque brasileiros não vestem azul e brasileiras não vestem rosa? Ou uma grande conspiração marxista para impedir nossa venda de grãos?
É um alívio notar que em outras pastas as atribuições continuam similares. O Ministério da Ciência e Tecnologia deve continuar com os inventários nacionais de emissões de gases-estufa. No da Economia juntou-se o que fazia a Fazenda e o Planejamento - estudos de precificação e mercados de carbono e o acompanhamento do financiamento climático de fontes externas - e a vida segue.
O Ministério da Agricultura é uma exceção: ali o tema ganhou status. Pode ser um bom sinal de se querer impulsionar a agricultura de baixo carbono e a pecuária sustentável. O ruim são as outras mensagens da pasta que se apropriou da demarcação de terras indígenas, territórios quilombolas e reforma agrária e do Sistema Florestal Brasileiro, com o cadastro que indica os passivos ambientais dos produtores rurais.
Claudia Safatle: A economia sob falsa calmaria
Investidores externos retomam o interesse pelo Brasil
Os mercados reagem bem e com tranquilidade às primeiras semanas de governo Bolsonaro. Atribuem pouca atenção ao bate-cabeças e às derrapadas do próprio presidente e de alguns dos seus subordinados, que consideram normal em início de gestão, e guardam grandes expectativas para fevereiro, quando o Congresso receberá do Executivo a proposta de reforma da Previdência.
Todos os "soft datas" melhoraram e muito das eleições para cá, dos índices de confiança ao risco de crédito. O Credit Default Swap (CDS), que chegou a 311 pontos-básicos em setembro, ontem fechou em 183 pontos.
Não há exuberância nos mercados de juros, câmbio e ações dado os preços dos ativos.
O que há é uma calmaria que o ministro da Economia bem definiu no seu discurso de posse. "Estamos respirando, aparentemente, à sombra de uma falsa tranquilidade, que é uma tranquilidade à sombra da estagnação econômica", disse ele, ao defender um ataque frontal ao déficit público pelo lado do controle do gasto.
O Brasil, sob o comando de um governo liberal, de direita, volta a instigar o apetite dos investidores internacionais e isso deverá ficar claro na reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos (Suiça), na próxima semana.
O economista-chefe do Itaú Unibanco, Mário Mesquita, ex- diretor do Banco Central, pode constatar essa mudança na semana passada em viagem aos Estados Unidos para diversos encontros com grandes investidores. "Quem tem ativo no Brasil não vende e quem não tem está esperando uma queda de preços para comprar", assinalou.
O foco da atenção dos investidores tanto internamente quanto no exterior é a reforma da Previdência que o governo enviará ao Congresso no mês que vem e que, imagina-se, será uma proposta que vai além do projeto de Michel Temer aprovado na Comissão Mista da Câmara. Eles querem saber das articulações políticas do novo governo para a aprovação da nova Previdência e sobre qual será o envolvimento do presidente da República na reforma, dentre inúmeras outras perguntas. "O interesse no Brasil é enorme e fiquei impressionado", comentou Mesquita.
O país é um caso singular no mundo. Está com as principais questões macroeconômicas resolvidas, mas carrega um déficit próximo de 7% do PIB e uma dívida de quase 80% do PIB. Ou seja, tem uma situação fiscal totalmente fora do prumo.
Os destaques, do lado macro, são para os juros, que estão baixos de forma sustentável, para a inflação, que está sob controle, para os preços administrado, que estão bem alinhados, e para a grande capacidade ociosa da economia.
Paralelamente a isso, o endividamento das empresas estatais (basicamente Petrobras e Eletrobras) diminui e os bancos públicos encolhem, gradualmente, sua participação no mercado de crédito. Os bancos privados, por seu turno, estão dispostos a responder positivamente à desestatização do crédito no país, expandindo sua fatia de mercado.
Bolsonaro é o presidente com as melhores condições cíclicas no começo de mandato, aponta Mário Torós, sócio da Ibiúna Investimentos e também ex-diretor do Banco Central.
Tomando como um dado que a produtividade do trabalho aqui corresponde a um quatro da produtividade de um trabalhador nos Estados Unidos, a economia está razoavelmente bem arrumada e o hiato do PIB é grande o suficiente para permitir o crescimento não inflacionário da economia antes mesmo da expansão dos investimentos.
Mas, ao mesmo tempo, tem uma das piores situações fiscais do mundo, realça Torós. "Ela é ruim tanto no fluxo quanto no estoque", completa ele.
O lado positivo dessa questão é que, depois de tanto circundar os problemas, agora sabe-se exatamente o que tem que ser feito. O teto dos gastos demanda a reforma da Previdência e esta, hoje, já é mais bem compreendida e tem maiores condições de ser aprovada do que no passado recente.
E mesmo que a reforma de Bolsonaro apenas reduza o tempo da transição de 20 para 15 anos, como noticiado, o valor dessa mudança é bem relevante.
O fato é que a piora das contas públicas foi tanta que ficou mais fácil de ser resolvida.
Mas a calmaria é passageira.
O economista e ex-presidente do Banco Central Chico Lopes ofereceu o primeiro emprego a Paulo Guedes quando o agora ministro da Economia voltou de Chicago, no fim dos anos de 1970. Lopes era superintendente do Inpes/Ipea escolhido pelo então ministro do Planejamento, Mário Henrique Simonsen, em 1979. A oferta de emprego, porém, não vingou. Primeiro porque o salário era baixo e insuficiente para os planos de Guedes de comprar um apartamento. Segundo, porque Simonsen pediu demissão em outubro daquele mesmo ano e Chico Lopes perdeu o cargo.
Como se vê, ambos se conhecem há muitos anos e pode-se dizer que são amigos.
Em um evento no Rio, na semana passada, que reuniu 12 ex-presidentes do Banco Central, Chico Lopes contou a história acima, de como conheceu o jovem economista da escola de Chicago, e fez um reparo pertinente ao discurso do agora ministro da Economia - que tem feito críticas aos 30 anos de social-democracia no Brasil (PMDB, PSDB e PT). Durante todo esse tempo, diz Guedes, eles promoveram o inchaço do Estado, cujos gastos saltaram de 18% do PIB para 40% do PIB em 40 anos, a partir do governo militar.
"Acho que o Paulo [Guedes] está cometendo uma injustiça, ao não reconhecer que foi a social-democracia que construiu as bases da estabilização com o Plano Real, a criação do Copom com o regime de metas - que conferiu a independência ao BC - e a lei do teto do gasto", disse o ex-presidente do BC.
Chico Lopes admite que essa foi uma construção custosa e lenta, mas advoga que foi justamente essa herança da social-democracia brasileira que "botou a bola na marca do pênalti para a liberal-democracia marcar o gol".
Maria Cristina Fernandes: O clone que abrilhantou o show de Trump
Subalternidade já causa danos à imagem do Brasil
É preciso acreditar que Fabrício Queiroz vai pagar a conta do hospital com a venda de carros usados para ter enxergado unicamente um elogio na declaração feita esta semana por Donald Trump sobre o presidente Jair Bolsonaro. A íntegra do discurso de 58 minutos do presidente americano na convenção anual de uma centenária federação do agronegócio em Nova Orleans deixa poucas dúvidas sobre suas intenções.
Nos primeiros 35 minutos de seu discurso, Trump dedicou-se a falar do muro que pretende construir na fronteira com o México. Num dos momentos mais aplaudidos, disse que o construção não dificultaria a contratação de migrantes para a agricultura - "Vocês precisam dessa gente". Nos sete minutos seguintes dedicou-se aos feitos na redução de impostos e na desregulamentação do setor.
Foi aos 43 minutos que começou a falar da concorrência no agronegócio mundial. Disse que o país assistia ao declínio da participação americana. "O que estou interessado é na América primeiro", disse, fazendo uso de seu bordão de campanha. O presidente americano citou que a Argentina, pela primeira vez em um quarto de século, abriu-se às exportações americanas de suínos - "Quando eles me pedem algo, digo, ok, mas antes me abram mercado" - e que o Japão passou a comprar as batatas de seu país.
A menção ao Brasil veio aos 47 minutos do discurso: "Temos, pela primeira vez desde 2003, a exportação de carne americana exportada para o Brasil". Deu uma parada e acrescentou o comentário: "Eles têm um novo grande líder. Dizem que ele é o Donald Trump da América do Sul". Nesse momento, com absoluto domínio de palco, perguntou, em tom de ironia, à plateia: "Vocês acreditam nisso?". Arrancou uma das mais prolongadas salva de palmas do show e foi em frente: "E ele está feliz com isso. Se não estivesse eu não gostaria do país, mas eu gosto dele [Bolsonaro]".
Depois da menção ao Brasil, Trump citou a abertura do mercado chinês, também à carne americana, "pela primeira vez em anos". E se disse disposto a reagir ao que chamou de 'roubo' de tecnologia de sementes desenvolvida em seu país. O discurso laudatório aos produtores rurais americanos terminou com uma ovação: "A grande colheita ainda está por vir. A agricultura americana será maior do que nunca".
Foi a primeira vez, em décadas, que um presidente americano compareceu à convenção anual da mais tradicional associação de lobby do agronegócio do país (Farm Bureau). Precisava conter as insatisfações do setor com o bloqueio orçamentário nem que para isso precise radicalizar a retórica da guerra comercial.
Se Trump elogiou algo no Brasil foi a subalternidade. Preza o desejo do presidente Jair Bolsonaro de replicá-lo porque assim acredita fazer valer os interesses de seu país. Na visão externada pelo presidente americano, o colega brasileiro está feliz por se achar parecido com ele, o que deve ser motivo de dúvida mas é a única razão pela qual ele gosta do Brasil.
Foi como dissesse, ok, mr. Bolsonaro o senhor deve me imitar não porque um dia vá conseguir ser um clone, mas porque é a única condição de eu levar seu país em consideração. Tudo isso num evento do setor em que o Brasil tem sua mais competitiva presença na economia mundial. É mais fácil acreditar nos fastos rendimentos do negociante de Passats e Belinas do que na percepção de que o discurso do presidente americano vai ao encontro dos interesses nacionais.
Bolsonaro não arrancou tamanha deferência de uma hora para outra. Quarenta e seis dias se passaram entre o discurso e a continência prestada por Bolsonaro a John Bolton, quando o conselheiro de segurança nacional do governo americano o visitou em sua casa no Rio. Integrante da Associação Nacional do Rifle, mais poderoso lobby pró-armas do Brasil, Bolton foi um dos principais responsáveis pela demissão do diplomata brasileiro José Maurício Bustani que, à frente do Órgão para Proibição de Armas Químicas, das Nações Unidas, atestou a inexistência de armas químicas no Iraque.
O deboche do presidente americano aconteceu ainda dois meses depois da escolha do chanceler Ernesto Araújo que aposta em sua liderança como a salvação do Ocidente e vem fazendo eco à sua política externa. A retórica beirando o escárnio do novo messias da civilização ocidental veio depois da propalada intenção de Bolsonaro de abrir o território nacional a uma base militar americana, gostosamente saudada pelo secretário de Estado, Mike Pompeo.
O impetuoso alinhamento foi freado por intervenção dos generais do governo mas vê-se, pelo discurso de Trump, que não se deu sem danos à imagem do Brasil. Com um governo cada vez mais da caserna, é natural que ganhe escopo a defesa da corporação nas reformas do Estado que aí virão. Mas só um esforço, de igual monta, poderá conter a desenvoltura com a qual este governo afronta os símbolos da soberania.
A designação de mais um general da reserva, como Sérgio Etchegoyen, para a embaixada brasileira em Washington, como chegou a ser cogitado, mais serviria para tornar mais tensas as relações entre Itamaraty e Forças Armadas do que para dar conta das inquietações sobre o futuro das relações externas do país.
Se o chanceler Ernesto Araújo tem prazo de validade, o passe de quatro anos do presidente da República, renovável por mais quatro, oferece tempo suficiente para que o dogmatismo, dissociado dos interesses permanentes do Estado nacional, leve a danos sempre mais fáceis de serem disseminados do que revertidos.
A retaguarda burocrática de Brasília e da representação brasileira em organismos internacionais até podem segurar os impactos da nova ideologia do poder no cotidiano do governo, mas na diplomacia a retórica não é inócua. E arrisca se refletir na capacidade política do Brasil de articular os acordos de que precisa para manter a salvo o desenvolvimento nacional. Na diplomacia, o único clone possível da América em primeiro lugar é o Brasil em último.
Rosângela Bittar: Militares tutelam o governo como partido
Há que separar a euforia do emprego da euforia política
Com tantos generais nos gabinetes próximos do presidente e ao longo da Esplanada, Jair Bolsonaro, mesmo que discordasse, não teria como levar adiante uma reforma da Previdência Social que os atingisse. Mas ele, além disso, concorda plenamente e encoraja o tratamento diferenciado a essa categoria, a sua, vez que é capitão da reserva.
O Exército, a Marinha e a Aeronáutica não ocuparam o governo em vão. Não vão deixar escapar a única disputa em que realmente se envolvem desde sempre, além daquela batalha anual por mais verbas: a de evitar a mudança do seu sistema de aposentadoria. Nos últimos dias, com tantas posses e transmissão de comando nas três forças, além das trocas de ministros nos gabinetes do Palácio do Planalto e de vários ministérios, seus interesses reais ficaram mais expostos.
Expressam, sem censura, a alegria de ter voltado ao poder, - "agora pelo voto", como apregoam. E não se fazem de rogados quando questionados sobre a reforma da Previdência. Dizem que são disciplinados e acatarão ordens, mas logo fica claro que estão marcando distância da vala comum: "Somos diferentes".
Livrando-se os militares das novas regras, outros funcionários públicos devem também se sentir especiais e reivindicar uma saída exclusiva para outras categorias. Com certeza, a Polícia Militar, a Polícia Civil, delegados em geral, agentes penitenciários em particular, entre outros que se submetem a riscos semelhantes em sua carreira, unidos pela atividade de segurança.
Daí para outras categorias do funcionalismo também mostrarem que seu caso é singular, o caminho é curto, rápido e até justo, como se pode achar, a princípio, embora muitos discordem dessa última condição. Uma vez tirados os militares, o justo será deixar saírem todos os demais cujas atividades são análogas. Ao arrastarem consigo outras categorias do funcionalismo, os militares fragilizam institucionalmente e politicamente a reforma da Previdência.
Automaticamente levam consigo, no mínimo, a Polícia Militar, considerada uma força auxiliar do Exército. Como dar tratamento especial ao Exército e não à PM, além de outras atividades a que estão amarrados pela atividade de risco? Não há como separar as Polícias Militares das Forças Armadas.
As sessões da Comissão Especial que aprovou a reforma da Previdência do ex-presidente Michel Temer mostraram como pode funcionar o lobby militar na votação. Seus representantes nas discussões eram os mais reativos, os que se manifestaram de forma muitas vezes agressiva.
Por que seria diferente agora, com líderes do governo e líder do partido do presidente, um é major, o outro delegado?
Aberta a porteira para Forças Armadas e Polícia Militar, cria-se a brecha no muro e todos podem sair. É essa a discussão a ser levada em torno da ideia de não mexer na Previdência dos militares.
Sem razão para argumentar contra sua inclusão na reforma, os militares, infinitamente mais fortes hoje do que ontem, são cem por cento fiadores do governo Bolsonaro e têm razão, desta vez, sim, de estarem eufóricos com isso.
Eufóricos por terem recuperado o poder e, já de posse do trono, sentirem-se à vontade para responder perguntas sobre a reforma prioritária.
Sem dúvida, estão mesmo no comando. Jair Bolsonaro não tem quadros no seu partido, não conhece equipes que atuem em universidades e institutos, não tem correntes de especialistas da academia, não tem militância. Se falta um porta-voz, é anunciado logo um general; se há expectativa sobre quem será o líder do governo no Congresso lá vem um major de primeiro mandato.
Até o momento, no primeiro escalão, assumiram: o general Hamilton Mourão, na vice-presidência; o general Augusto Heleno no Gabinete de Segurança Institucional; o general Santos Cruz na Secretaria de Governo; o general Maynard Santa Rosa, na Secretaria de Assuntos Estratégicos; o general Otávio Santana do Rêgo Barros, porta-voz da Presidência, ainda não oficialmente nomeado. Rêgo Barros é ligado ao general Eduardo Villas Bôas, que deixou o comando do Exército e não vai para casa, assumirá um cargo no Gabinete de Segurança Institucional no Planalto.
Há, ainda, no primeiro escalão, ministros egressos das Forças Armadas: Fernando de Azevedo e Silva (Defesa), Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura), Bento Costa Lima (Minas e Energia), Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), Wagner Rosário (Controladoria Geral da União); general Franklimberg Ribeiro de Freitas (Funai).
O ex-comandante da Marinha, assim como o ex-comandante do Exército, ingressou na equipe: o almirante Eduardo Bacellar Leal Ferreira foi indicado por Bolsonaro para presidir o Conselho de Administração da Petrobras.
No discurso de transmissão do cargo de comandante do Exército, o general Villas Bôas, marcou a nova era com um exagero. Para ele, os dois maiores brasileiros são Bolsonaro e Sergio Moro, os homens capazes de mudar a agenda do país, de restaurar o patriotismo. Estava, porém, exaltando terem finalmente chegado ao topo.
É preciso separar a euforia do emprego da euforia da política, do mando. Bolsonaro deu emprego para todos. O seu partido terminou virando, na prática, um partido de duas alas: a ala dos negócios da Economia, tocada por Paulo Guedes, que tinha sua própria equipe adotada pelo presidente, e o partido do Quartel.
As três Forças assumiram as suas missões como quadros de um partido. E foram tomando gosto: eles querem e a eles é permitido controlar o governo.
Há muito pouco tempo, Jair Bolsonaro era visto no alto comando do Exército como uma caricatura. Aos poucos, as tropas da reserva, que apoiavam sua candidatura, foram conquistando as da ativa até formar um partido militar bolsonarista que tem o governo sob tutela.
Claudia Safatle: É hora de decidir o destino de 135 estatais
Há empresas para privatizar, liquidar ou incorporar
Há um esforço real para reduzir o número de empresas estatais federais e para melhorar seus resultados que vai um pouco além das privatizações. Em 2016, a Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (Sest) contabilizava 155 empresas públicas federais. Hoje são 135.
As 20 companhias que desapareceram da lista foram privatizadas, liquidadas ou incorporadas. No ano passado houve a liquidação de duas empresas, a Companhia Docas do Maranhão (Codomar) e a Companhia de Armazéns de Minas Gerais (Casemg). Outras oito foram vendidas, a exemplo da Petroquímica Suape e de empresas de distribuição e transmissão de energia. A Companhia de Pesquisa de Energia Elétrica (Copel) foi incorporada pelo Grupo Eletrobras.
Ciente de que não dá para se desfazer de todas as empresas, há, também, uma determinação do governo de melhorar os resultados das companhias públicas federais. Até setembro do ano passado, último dado oficial, o resultado líquido era de quase R$ 52 bilhões positivos, uma virada importante se comparada com o resultado negativo de R$ 32 bilhões do início de 2016.
O endividamento também caiu no mesmo período. Era de R$ 544 bilhões e teve uma redução de 26%, para R$ 401 bilhões, basicamente por causa da Petrobras e da Eletrobras.
O patrimônio líquido aumentou de R$ 500 bilhões para R$ 582 bilhões entre 2016 e 2017. Há, porém, 22 empresas com patrimônio líquido negativo, que cresceu de R$ 27,8 bilhões para R$ 46,47 bilhões em igual período. Ainda não há dados oficiais para o ano passado.
O orçamento de investimentos, que chegou a R$ 123 bilhões em 2013, caiu para R$ 76 bilhões em 2016 e aumentou para R$ 115,8 bilhões em 2018. Desse total, metade foi executada até setembro.
No início de 2018 o quadro geral da Sest mostrava a existência de 47 empresas sob controle direto da União - sendo que destas, 18 são dependentes - e 97 sob controle indireto. Os últimos dados do Ministério da Economia indicam que agora são 89 companhias sob controle indireto e 46 diretamente controladas pela União.
As dependentes de recursos públicos continuam as mesmas 18 empresas e elas foram as responsáveis pelo aumento do quadro de pessoal, que passou de 58.533 funcionários em 2014, até então número recorde, para 78.420, um acréscimo de quase 20 mil cargos. Parte relevante desse aumento refere-se à absorção de hospitais universitários pela Ebserh, empresa pública prestadora de serviços hospitalares.
No geral houve redução de cerca de 51 mil empregos se consideradas todas as empresas federais em comparação com os dados de 2014, quando o número de empregados chegou a quase 555 mil funcionários. Na sua grande maioria, o que houve foi adesão aos Programas de Demissão Voluntária (PDV).
Apesar da redução do numero de empresas ou de melhor gestão nos casos em que já se sabe, de antemão, que não há decisão política para vender nem para extinguir, no entanto, o Estado brasileiro ainda é muito grande. São 40 empresas de energia, entre a holding Eletrobras e suas subsidiárias. Na área de petróleo e gás são 20 empresas, além de 18 no setor financeiro e 14 companhias de comércio e serviços, dentre várias outras nas áreas portuária, indústria de transformação, seguros etc.
Gasta-se muito com essas empresas. As 18 estatais dependentes da União tiveram dotação orçamentária de R$ 20,9 bilhões no ano passado, embora tenham executado apenas R$ 9,34 bilhões até o terceiro trimestre do ano. Esses são recursos para financiar as despesas correntes e de capital dessas companhias, sendo que cerca de 67% são gastos com folha de salários.
As não dependentes também recebem dotações, embora bem menores - somaram R$ 3,46 bilhões em 2018, sendo que R$ 2,58 bilhões foram executados até setembro. A Emgepron (empresa gerencial de projetos navais), a Infraero e a Telebras foram as três companhias não dependentes que mais aporte tiveram.
Embora o Tesouro Nacional tenha repassado ao ministro da Economia, Paulo Guedes, uma estimativa de receita de R$ 800 bilhões caso todas as empresas federais fossem privatizadas, esta é uma cifra meramente hipotética.
É possível uma aceleração do processo de privatização ou extinção, segundo técnicos oficiais. Há projetos maduros para colocar em execução.
O; Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) tinha suas verbas constantemente contingenciadas pelos governos. Em 2015, porém, decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu que o orçamento do fundo fosse objeto de contingenciamento para cumprir as metas fiscais. Afinal, há uma crise carcerária permanente, estrutural, no país que precisa ser enfrentada com políticas públicas e estas demandam recursos.
Em 2016 o governo liberou R$ 1,2 bilhão para os Estados e o Distrito Federal investirem no sistema penitenciário. Até hoje somente 24% desses recursos foram efetivamente gastos, segundo informações que foram repassadas ao gabinete do ministro da Justiça, Sérgio Moro. Esse é mais um caso do problema crônico de dificuldade de execução que empoça o dinheiro público. Em 2018 o empoçamento, até novembro, era de R$ 12,2 bilhões.
Do total de recursos que cada Estado recebe, o governo tem que aplicar 30% em obras de construção, ampliação, reforma ou conclusão de unidades prisionais, cuja finalidade é o aumento de vagas. A parcela restante (70%) é de livre aplicação.
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Quando Michel Temer deixou a vice-presidência para assumir o cargo de presidente da República, com o impeachment de Dilma Rousseff em agosto de 2016, a estrutura da vice-presidência foi extinta. Não há, no organograma do Poder Executivo, uma escala funcional definida para o vice-presidente Hamilton Mourão preencher com seus assessores. Enquanto não recria os cargos e salários da vice-presidência, os assessores de Mourão trabalham com crachás de visitantes.
César Felício: Terceiro setor na mira
ONGs temem monitoramento criado por Bolsonaro
O alerta máximo foi acionado no terceiro setor. Existe apreensão em relação ao governo federal entre organizações não governamentais, desde as mais alinhadas com bandeiras tradicionalmente da esquerda até as bancadas pelo sistema financeiro.
Nos próximos dias caberá ao ministro da secretaria de Governo, Carlos Alberto Santos Cruz, desarmar o confronto que está montado com as entidades da sociedade civil ou levá-las a uma espécie de oposição ao Palácio do Planalto. A polêmica está no inciso II do artigo 5º da Medida Provisória 870, de 1º de janeiro. É a MP inaugural do governo Bolsonaro, que determinou as atribuições dos ministros palacianos. Trata-se de um dispositivo de uma única frase: estabelece que cabe à Secretaria de Governo "supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional".
Para um grupo de 47 ONGs que solicitou imediatamente uma audiência a Santos Cruz, a MP abre espaço para uma espiral intervencionista. "Para resguardar o espaço cívico brasileiro, o que deveria ser garantido no momento é exatamente o contrário. É assegurar mecanismos para a sociedade civil sem fins lucrativos monitorar e acompanhar as atividades e ações do governo", disse a cientista política Ilona Szabó, do Instituto Igarapé, centro de estudos especializado em políticas de segurança pública e sobre drogas.
O Igarapé recebe recursos dos governos do Canadá, Noruega, Reino Unido e da Fundação Open Society, do investidor de origem húngara George Soros. O magnata ganhou notoriedade por especular contra a libra esterlina, nos anos 90, mas usa boa parte de seu patrimônio para financiar instituições progressistas e liberais. Mais recentemente, foi forçado a encerrar suas atividades na Hungria por se sentir ameaçado por um antigo auxiliar, o atual primeiro-ministro Viktor Órban, uma das referências ideológicas de Bolsonaro e dos primeiros chefes de Estado a cumprimentá-lo após a posse, dia 1º de janeiro.
O modo como Órban encaminhou seu país para uma vertente autoritária já é objeto de uma literatura vasta na ciência política internacional. Um de seus métodos é o de agir contra instituições e entidades que vigiam o Poder. Ele interferiu no Ministério Público, na Corte Constitucional, mudou as regras eleitorais, sufocou as empresas de mídia e, por fim, criou uma norma que permite ao governo banir ONGs que sejam consideradas uma ameaça à segurança nacional.
Ilona, neta de húngaros, ressalta que Santos Cruz, militar com presença destacada em missões internacionais, conhece bem o terceiro setor e tem o perfil de uma pessoa aberta ao diálogo. O temor não é direcionado a ele, mas ao contexto maior que o governo Bolsonaro pode significar. "O populismo em si representa um risco. Na Hungria, Rússia e Polônia houve restrições do espaço da sociedade para divergir", diz a ativista.
No limite, as entidades ameaçam judicializar a questão, caso a supervisão, coordenação, monitoramento e acompanhamento do governo signifique intervenção. "Dentro da Constituição você tem dispositivos que asseguram a manifestação da sociedade de forma autônoma e livre, desde que respeitadas as regras e princípios legais", disse a diretora executiva do Centro de Liderança Pública (CLP), Luana Tavares. O CLP capacita lideranças públicas e recebe apoio do BTG Pactual, B3 e Credit Suisse, entre outros. Luana faz referência claro a três incisos do artigo 5º da Constituição, aquele trata de direitos e garantias individuais e que é cláusula pétrea. São os que permitem a liberdade de associação e que vedam a interferência estatal.
Pode-se argumentar que a medida tomada por Bolsonaro significaria zelo com o uso de recursos públicos, mas o argumento é duvidoso. Atuam no Brasil cerca de 800 mil organizações não governamentais. Destas, cerca de 10 mil recebem recursos do governo federal ou dos estaduais, em sua maioria para programas nas áreas de saúde e educação. Estão sob escrutínio de diversos órgãos de controle. "O que todos devem se perguntar é porque isto aparece agora?", indaga o cientista social Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Dieese. A entidade mantém contratos e convênios com o poder público, a quem presta serviços.
A pergunta do dirigente do departamento intersindical de estatística é retórica. Todos imaginam o que motiva o cuidado do governo em acompanhar de perto estas entidades. A autopreservação é um instinto natural e a tendência de monitorar quem o monitora sobressai em governos que não primam pela formação de consensos.
Está claro nas últimas duas décadas, pelo menos, que a representatividade social dos partidos está em queda e entidades da sociedade civil ganharam peso no debate político. É um fenômeno que não pode ser superestimado - ONGs não derrubaram governos e nem elegeram presidentes - mas que ajuda a entender por que se abriu espaço para a vitória de um político como Jair Bolsonaro.
A ameaça concreta à base de apoio de um grupo político que concentra o poder não está no meio partidário. Não será o PT, cuja presidente, a senadora Gleisi Hoffmann viaja a Caracas para render homenagens a um ditador como Maduro, que desgastará neste instante a Bolsonaro. E nem Ciro Gomes com suas entrevistas. Antes pelo contrário, antagonizar estas forças tende a vitaminá-lo. Trata-se de um jogo jogado.
Villas Bôas
Passa o comando do Exército hoje o general Eduardo Villas Bôas. Afora o destemor com que enfrentou doença grave, ele ficará marcado por representar um ponto de inflexão. Por 20 anos não se conheceu o som da voz dos comandantes da Força, na algaravia do debate político. Em entrevista há dois meses, ao jornal "Folha de S.Paulo", o general relatou como se esforçou em ter o que chamou de "domínio da narrativa", frente à pressão crescente, muito estimulada por militares da reserva, para que os generais entrassem no jogo político, o que terminou por acontecer. O general alertou: o ativismo dentro dos quartéis é "um risco sério". Saber se o próximo comandante, Edson Pujol, pisará no freio ou no acelerador, ou deixará o carro descer a ladeira no embalo, será essencial para a democracia.
Valor Econômico: Derrotados nas eleições tentam manter influência no jogo político
Por Amália Safatle, do Valor Econômico
O escritor e jornalista britânico George Orwell dizia que a história é contada pelos vencedores. Ouvir os perdedores, no entanto, ajuda a compreender o fim de um ciclo no Brasil, que varreu nomes históricos (ao menos temporariamente), levou a uma renovação de 53% na Câmara e de 85% no Senado e inaugura, no período pós-eleições de 2018, um novo cenário político.
Na campanha eleitoral pautada pela rejeição a partidos, a políticos tradicionais e ao sistema vigente, venceu quem teve o menor descrédito e ocupou o vácuo de um centro que se esvaziou. Os perdedores foram, portanto, elemento definidor nos resultados das eleições, a começar da Presidência da República.
"Noventa milhões não votaram em [Jair] Bolsonaro, mas é preciso fazer um registro importante: 100 milhões não votaram no PT. Ou seja, o presidente foi eleito porque sua rejeição foi menor do que a petista", afirma o analista político Carlos Melo, professor do Insper. Octavio Amorim Neto, professor titular da Fundação Getulio Vargas do Rio, emenda: "No desabamento completo do centro político brasileiro, quem preencheu o vácuo foi Bolsonaro".
O fato de os perdedores estarem sem mandato não os tira do jogo a partir de agora. Alguns nomes, por meio de seus partidos e possíveis articulações e composições, funcionarão como peso e contrapeso, moldando as condições de governabilidade e a capacidade de sucesso do novo governo.
O jogo começará efetivamente no dia 1º, quando toma posse o novo Congresso. "Como teremos uma Câmara absolutamente fragmentária e um Senado que renovou 85%, haverá uma inexperiência brutal", afirma Ciro Gomes, candidato derrotado à Presidência da República pelo PDT e que integra o bloco de oposição. "Se fizermos um movimento competente, poderemos forçar Bolsonaro ao jogo democrático. Estimulá-lo, mas ao mesmo tempo garantir, se for necessário, a imposição desse jogo a ele. E é disso que nós estamos cuidando."
O "nós" incluía, até o mês passado, PSB, PCdoB, PDT e Rede, que conta com apenas um deputado, mas cinco senadores. Após a derrota acachapante de Marina Silva na eleição presidencial de 2018, o Rede, de futuro incerto, cogita uma fusão com o PPS, assunto que será tema de congresso do partido a ser realizado neste mês.
"Diante de riscos imediatos pela invocação que Bolsonaro faz contra questões muito importantes no processo político e civilizatório de qualquer nação, há necessidade de fazer uma oposição democrática", diz Marina. Para ela, trata-se de não sabotar ou torcer pelo "quanto pior, melhor". "Oposição contribui para o governo sendo oposição", resume.
Ciro diz que quer fazer oposição em outro plano. "Não em cima do desastre, porque o desastre não me ajuda. O desastre ajuda a fortalecer quem deu a Bolsonaro essa vitória, o PT." Ele afirma que aceitaria apoiar a reeleição do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), desde que haja um compromisso com três agendas centrais: garantir a democracia, perseguir o interesse nacional e proteger os pobres, temas de um livro de sua autoria, que estava sendo finalizado em dezembro. "Quer dizer que Maia tem de romper com Bolsonaro? Não, [quem diria] isso é o PT! Achamos completamente legítimo que Maia dialogue com o presidente da República."
Marina Silva defende que não se deve ter uma ansiedade tóxica sobre quem comandará a oposição. "Não precisa ter um centro fixo para um partido, para uma liderança. Senão você enfraquece a própria ação", diz a professora e ex-candidata que retomou a rotina de aulas e palestras. Ela entende a frente como "um processo multicêntrico de contribuições", ou seja, "em alguns momentos haverá alguém que terá uma fala com maior legitimidade, e essa fala se intercalará com outras".
O governo assume sob uma situação econômica ainda adversa, já constrangido por suspeitas de desvios levantadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e diante de uma população ávida por saúde, emprego, combate à corrupção, segurança e educação, conforme pesquisa Ibope divulgada no mês passado. "Uma parcela da população votou em Bolsonaro porque deseja respostas rápidas. Se tivesse paciência, teria votado em Geraldo Alckmin [PSDB]", diz Melo.
Nesse contexto, Maria Hermínia Tavares de Almeida, professora aposentada do Departamento de Ciência Política da USP, lembra que o presidente Bolsonaro formou seu ministério sem negociar com os partidos que o apoiam, cumprindo uma promessa de campanha. Cita estudos de Octavio Amorim Neto, segundo os quais governos compostos dessa maneira, independentemente da qualidade dos escolhidos, são mais frágeis e sujeitos a crise na medida em que não possuem uma base firme no Legislativo. "Foi o que aconteceu no final do governo João Goulart e durante o governo Fernando Collor, dois presidentes que não completaram seu mandato", afirma.
"No começo, governar assim é perfeitamente possível. Jânio Quadros fez isso, Fernando Collor fez isso. Mas, a partir de um certo momento, os presidentes vão sentindo a necessidade de uma integração maior com o poder político, com o Congresso Nacional", diz o veterano Edison Lobão (MDB-MA), que acumulou 32 anos de mandatos no Congresso, governou o Estado do Maranhão, foi ministro em dois governos, presidiu o Senado Federal - e não se reelegeu senador em outubro.
Em seu currículo consta também a Emenda Lobão, que restabeleceu as eleições diretas de governadores e senadores a partir de 1982, mas ele mesmo se absteve na votação das Diretas-Já para Presidência da República por considerar que "era necessário haver mais segurança na consolidação do processo". Hoje, diante da gestão Bolsonaro, Lobão questiona: "Quero saber até que ponto o presidente conduzirá o governo com essa linha de atuação".
O professor de relações internacionais da USP José Augusto Guilhon-Albuquerque considera que será necessário articular uma coalizão estável em torno de um programa mínimo de objetivos. "Bolsonaro já está aprendendo a fazer política politiqueira, dificilmente fará as reformas vitais e terá de negociar no dia a dia, com um alto custo e aumento da insatisfação popular."
Para o cientista político, a indignação do povo continuará a piorar, porque é praticamente impossível para o novo governo resolver problemas essenciais que atingem de imediato o homem comum e só podem apresentar resultados a longo prazo. Guilhon diz não acreditar que haverá lua de mel.
"Não esqueçamos que o desgaste de Dilma [Rousseff] começou na noite da apuração e só foi aumentando até a posse."
Segundo pesquisa do Datafolha, no entanto, 65% dos entrevistados acham que a situação econômica do Brasil vai melhorar nos próximos meses, ante apenas 23% que diziam isso no levantamento anterior, de agosto de 2018. É o mais alto índice de uma série histórica que começa em 1997, no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Segundo pesquisa CNI/Ibope, a expectativa de 64% dos brasileiros é de que governo Bolsonaro será ótimo ou bom. Desse percentual, 39% dizem acreditar que a futura administração será ótima e 25%, boa. Para 18%, o governo será regular; para 4%, ruim; e para outros 10%, péssimo.
Sobre o apoio formal do MDB ao governo eleito, Lobão diz que o partido tem sido parte do equilíbrio democrático e trabalha pela governabilidade. "Dependendo do convite que possa vir, não se furtará a ajudar o governo que chega com ideias, em muitos casos, parecidas com as do partido." Já o correligionário Eunício Oliveira (MDB-CE), que ocupa a presidência do Senado e também não se elegeu, preferiu não conceder entrevista. Um interlocutor afirmou, no entanto, que Eunício defendia que o MDB "se desgovernasse" por um tempo, para se afastar da imagem de "partido do governo", e então repense e se reestruture politicamente.
"Eunício está se reorganizando mentalmente para a política. E ainda não se desapegou das funções no Senado", disse a fonte. Enquanto isso, prossegue o interlocutor, Eunício deverá manter-se na função de tesoureiro do partido, tendo o senador Romero Jucá como presidente e o ex-presidente Michel Temer como presidente de honra. Será preciso ver, no entanto, os desdobramentos da Lava-Jato sobre integrantes do MDB, como Lobão, Temer e Jucá, ainda mais considerando a aprovação por comissão da Câmara, em dezembro, do fim do foro privilegiado para crimes comuns. Isso faz com que ministros, parlamentares, governadores e prefeitos possam ser processados na Justiça de primeira instância.
Sobre a Lava-Jato, Lobão afirma que em relação a ele "existem investigações, algumas arquivadas por absoluta falta de provas. E outras em curso. Se há uma delação, é preciso uma investigação para mostrar que a delação não procede". Dos seus 82 anos, diz que contribuirá com o partido como puder, oferecendo sua experiência por meio de aconselhamentos e opiniões. "Entendo que a política é exercida não apenas pelo detentor de mandatos eletivos, mas por quem tem vocação. Sairei do mandato, mas não da política."
Para Amorim Neto, não se pode esquecer a frase do historiador e sociólogo brasileiro Francisco José de Oliveira Viana (1883-1951): "A história do Brasil é um museu de elite". Com isso, o professor da FGV quer dizer que as elites brasileiras não são totalmente superadas como no modelo europeu, em que a aristocracia é varrida do mapa e surgem novos atores. "Aqui, não. As velhas elites são preservadas de alguma maneira." Muita gente, principalmente de uma geração mais antiga, vai aposentar-se, mas, a seu ver, a capacidade de perdedores ressurgirem das cinzas dependerá muito do desempenho do governo federal e da situação dos políticos em seus respectivos Estados.
"Se, por exemplo, a gestão de Wilson Witzel [PSC-RJ, eleito governador do Rio] der errado rapidamente, não é impossível que eleitores voltem a sentir saudades do MDB, que teve Eduardo Paes como candidato derrotado à reeleição. Além disso, quadros relativamente novos, como os ex-senadores Lindbergh Farias [PT-RJ] e Vanessa Grazziotin [PCdoB-AM] têm mais chance de retornar", afirma Amorim.
Já Carlos Melo entende que se encerrou um ciclo, sem que o novo ainda tenha se consolidado. É possível que líderes como Romero Jucá, senador derrotado em Roraima, voltem a ganhar a eleição no seu Estado. "Regionalmente esses homens são capazes de se articular, dado o fracasso de seus sucessores. Jucá pode tornar a ser senador por causa do caciquismo regional. Mas voltará a ter a mesma mobilidade que tinha no Senado?"
Essa questão é, para o cientista político, uma incógnita, pois, por mais que tenha elementos para analisar como o senador pensa e age, Melo não faz ideia das características que o Senado terá daqui a quatro ou oito anos. "Gosto muito da frase 'Nada é, tudo flui', do [cientista político] Sérgio Abranches no livro 'A Era do Imprevisto'. As instituições estão se alterando, ficando muito diferentes em relação ao que esses atores aprenderam sobre elas. Estarão eles capacitados para voltar a atuar nessas instituições? Creio que não."
Melo lembra da acirrada eleição de 2014 entre Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB) e compara com a situação em que esses políticos estão hoje. A ex-presidente da República, derrotada no próprio Estado, não conseguiu vaga para o Senado mineiro, enquanto Aécio teve de buscar um cargo de deputado federal para se proteger de denúncias com o foro privilegiado. Eram atores relevantes que "evaporaram" em apenas quatro anos.
De lá para cá houve fatos como Lava-Jato e impeachment, mas o professor do Insper atribui a velocidade da mudança, em grande parte, a transformações de caráter estrutural provocadas pela tecnologia digital. Passou a haver, de forma inédita, um uso massivo no campo político de canais como WhatsApp e redes sociais, eliminando intermediários, rompendo hierarquias e horizontalizando o poder, sem falar no peso da disseminação das notícias falsas.
Trata-se, a seu ver, de um fenômeno capaz de alterar instituições e configurações de liderança. Mais que fechar ciclos, essas mudanças provocam a necessidade de transição geracional. "Quem será o próximo líder do PT em dez anos? Não será Lula, e ninguém pode garantir que será [o candidato derrotado à Presidência Fernando] Haddad. Aliás, não se pode nem mesmo garantir que haverá PT nos próximos dez anos. Mas há dez anos você podia garantir que o PT continuaria existindo", afirma.
O professor ainda cita outros casos: Leonel Brizola, Mário Covas e Ulysses Guimarães eram políticos com grande ascendência sobre os seus liderados. "Hoje, Ciro não tem a ascendência sobre o PDT que o Brizola tinha. Alckmin não tem a ascendência sobre o PSDB que Covas tinha. Aliás, este é um dos motivos da crise política", avalia.
Para Cássio Cunha Lima (PSDB-PE), derrotado na reeleição ao Senado, os partidos em geral terão de se repensar porque perderam muita importância com as redes sociais. "Cada um com seu smartphone encontra seu nicho de pensamento e forma sua corrente política. Bolsonaro é presidente do Brasil ao largo dos partidos políticos. O partido político surgiu no século XIX a partir de pessoas com interesses, como os trabalhistas, convergindo ideias e temas. Hoje, as pessoas convergem pelas redes, e os partidos começam a ficar tontos nesse processo. O Congresso é analógico, mas a sociedade é digital", afirma o ex-senador, que a partir de 2019 pretende voltar a advogar e prestar consultoria nos temas de gestão de crise.
O Congresso fragmentado do ponto de vista partidário requererá grande trabalho de articulação para constituir maiorias em apoio às propostas do governo, na visão de Maria Hermínia. "A gestão da economia e da questão fiscal, central para o êxito do governo, exigirá muita coordenação e negociação política, sobretudo porque esse governo tem uma agenda de reformas econômicas bastante ambiciosa, muitas delas requerem reforma constitucional, de difícil execução simultânea mesmo para um ministro mais familiarizado com o Congresso ou com os meandros da administração pública", diz a cientista política.
O ponto mais sensível será a reforma da Previdência, crucial para o sucesso do governo estreante, como ressalta Argelina Figueiredo, doutora em ciência política pela Universidade de Chicago. "Reformar a Previdência é o que nós, cientistas políticos, chamamos de 'política politicamente inviável', porque afeta camadas muito grandes da sociedade e impõe algumas perdas para obter benefícios futuros."
Argelina diz acreditar em uma boa vontade inicial dos partidos opositores em relação ao novo governo, lembrando que eles nunca foram obstáculo a nenhum governo. "A oposição feita ao Collor, por exemplo, não chegou a paralisar o governo nem mesmo em relação à drástica medida do confisco da poupança. Embora determinado por Medida Provisória, o Congresso poderia, a rigor, ter barrado, e mesmo quem não participava do núcleo eleito foi minorando os efeitos do confisco sem tomar uma atitude radical."
Cunha Lima também diz acreditar que nos primeiros meses não haverá problemas de governabilidade. "A tradição brasileira é de absoluta boa vontade com os governos legitimados pelas urnas. Bolsonaro chega ao Palácio do Planalto com 57 milhões de votos e, num primeiro momento, ninguém vai brigar com essa decisão do eleitor", afirma.
Após conversas internas e com o presidente no fim de 2018, o PSDB procurou afastar as ambiguidades, depois de uma campanha eleitoral que bateu duramente no candidato Bolsonaro. "Não podemos errar, o partido tem que ter clareza na posição de contribuição com o próximo governo, até por uma questão de brasilidade e também do interesse majoritário dos nossos eleitores", afirma Antônio Imbassahy [PSDB-BA].
Derrotado na reeleição à Câmara, o deputado diz ainda não ter definido posição em relação às suas próximas atividades na vida pública. "Após o encontro que tivemos com Bolsonaro [em novembro], medimos as redes sociais e houve uma aceitação extraordinária, fenomenal, excelente. A população está nessa direção, de ajudar o cara, ajudar o país", afirma. Procurado pela reportagem, Geraldo Alckmin, presidente nacional do partido, disse que não concederia entrevista neste momento.
Para Cunha Lima, o esforço será para preservar o PSDB coeso. "Existe uma nova realidade na composição de forças partidárias com a eleição do governador João Doria [em São Paulo]. No momento em que ele é o grande vencedor do partido, precisa de um papel de maior destaque. A política, como na vida: quem ganha leva. E quem ganhou foi João Doria", afirma. "Agora, caberá a ele, como vencedor, ter a grandeza de saber conduzir essa vitória para agregar e somar com os tucanos fundadores do partido, que já deram contribuição muito grande. [A coesão] vai depender muito dele, da forma como conduzirá esse processo."
O senador diferencia o PSDB do histórico inimigo PT: "Não faremos uma oposição irracional, cega, como a que deverá ser feita pelo PT.
Igualmente não seremos base incondicional do governo como o PSL. Vamos formar blocos na Câmara e no Senado para construir cada vez mais nossa posição de centro, sobretudo no campo econômico, e discutir outros temas de caráter comportamental, de relação com a sociedade. O espírito será de colaboração", afirma. "Vai ficar, a meu ver, o PT isolado em uma posição mais extremada."
Ciro Gomes diz que o PT não está descartado da frente de oposição. Reconhece a força de uma sigla que tem 56 deputados e conta com boas lideranças livres de escândalos, como Olívio Dutra, Tarso Genro, Henrique Fontana e Miguel Rossetto. Mas o que não aceita é sua hegemonia. O ex-ministro, no entanto, é mais crítico do MDB: "Isso é uma quadrilha. Vai chantagear no atacado e dividir no particular. Quanto a Jarbas Vasconcelos [eleito senador], se bem conheço sua história, não acho razoável que vá se somar a uma agenda maluca de Bolsonaro. O Eunício Oliveira não vem. E Renan Calheiros está assim [faz zigue-zague com a mão], não entendeu nada e quer ser presidente do Senado com o beneplácito nosso e do Bolsonaro". Já Roberto Requião (MDB-PR), derrotado na reeleição ao Senado, deve compor o bloco de oposição.
Requião afirma que caberá a essa frente "fazer a crítica e tentar impedir barbaridades" do governo. Diz que poderia contribuir com ideias, mas se houvesse disposição ao diálogo. "Bolsonaro diz a mesma coisa há 27 anos. Como você pretende reeducá-lo? Que ideias ele aceita? Como acabar com o MST, em cruz de madeira ou câmara de gás?", pergunta. Requião diz acreditar que contradições vão se estabelecer na gestão Bolsonaro: "Temos oficiais do Exército brasileiro. Esses direitistas nacionalistas vão concordar com a venda da Eletrobras, da Petrobras? Vejo um governo ancorado em uma visão sionista-cristã, suportado em algumas igrejas evangélicas e malucos, aderindo aos EUA e esquecendo o mundo, a América Latina, o Mercosul, a China. Só vejo disparates."
O senador não descartaria o PT. "Sem o PT não sai uma frente, pela capacidade de mobilização e organização. A sigla tem quadros valorosos, embora grandes culpas também." E bate na tecla: "Mas a hegemonia burocrática do PT, jamais".
Ao defender algumas medidas petistas, diz que sofreu o efeito colateral do processo de derrocada. "Sou militante, não me arrependo de nada, o que fiz faria de novo mesmo sabendo que perderia a eleição", diz ele, contando que continuará fazendo política por meio da participação em conferências no país e exterior.
Em entrevista publicada no Valor no mês passado, Haddad disse ser difícil o PT ter um bloco monolítico de oposição. "Precisaremos ter a agilidade necessária para angariar apoio e evitar retrocessos drásticos. Talvez sejamos minoritários no Congresso sobre temas como a venda da Embraer, mas em relação a direitos civis, talvez sejamos majoritários."
Marina Silva vê a campanha eleitoral de 2014 - já turbinada por notícias falsas, as fake news, e dinheiro de corrupção - como o início do processo que culminou em Bolsonaro: "Em 2018, isso se aprofundou e os criadores [PT] acabaram tragados pela criatura. Por isso eu digo, não invente inimigos para derrotá-los. Ajude a ter amigos para poder ser conquistado ou conquistá-los".
Para Argelina Figueiredo, o que a oposição derrotada nestas eleições precisará fazer é recompor a centro-esquerda, da qual o PT, a seu ver, não poderá ser alijado. "A esquerda tem de ocupar esse centro, até porque há tempos já vinha se dirigindo para essa posição. A eleição de 2018 comprovou: enquanto a direita migrou radicalmente para o extremo, os votos de partidos mais à esquerda não estavam no extremo oposto", avalia.
A cientista diz acreditar que a oposição não precisa ter uma unidade de pensamento, mas sim uma ação concertada e com muito foco. "Não adianta ficar na crítica geral e superficial, é necessário atacar os pontos certos, para angariar algum apoio da população. Como se trata de um governo bem à direita, o papel da oposição será muito importante para colocar limites a certas ações", afirma.
Amorim Neto também vê como fundamental a oposição democrática centrista para evitar o que ocorreu na Venezuela, onde os centristas entraram em depressão e não apenas se tornaram minoritários, se retiraram da política. "O vácuo centrista deixa o campo político exclusivamente ocupado pela extrema-direita e pela extrema-esquerda, com os quais não há diálogo possível. Por isso, mesmo que seja pequena, a oposição centrista brasileira tem de se fazer relevante. E aí vai depender habilidade política e da capacidade de se sintonizar com os clamores da população, atendendo eleitores que estão dispostos a ouvir um discurso mais racional, baseado em fatos."
Isso inclui aprender a lidar com os novos instrumentos de comunicação via rede social, mas não só. Para promover essa reconexão, Argelina entende que a centro-esquerda precisará voltar a cultivar valores e bandeiras que vão além da inclusão social pelo consumo, tais como cidadania, igualdade de oportunidades e solidariedade - da mesma forma que a direita soube cultivar o valor do patriotismo. Além disso, diz ela, o PT terá de estimular a renovação das lideranças, diante de um grande perdedor de 2018, o ex-presidente Lula.
Mas o pêndulo da política é dinâmico. "Hoje, quem Bolsonaro chamar, vai [apoiá-lo], porque o poder é grande. Mas vai para fazer o que foi feito com a Dilma?", questiona Ciro Gomes. Ele lembra quando Dilma estava fazendo a "faxina" de um governo que havia herdado, no intuito de atacar os malfeitos.
"Disse naquela época que isso daria errado. Quando a pessoa acaba de se eleger, todo mundo se encolhe, contemporiza. Mas, na hora que tiver uma crisezinha e virar a esquina, essas unhas todas vêm na goela dela. Não deu outra. Não porque sou profeta, é porque é uma obviedade."
Nota Redação: na versão impressa, este texto foi publicado com o título A política dos perdedores
César Felício: Scripta manent
Presidente implantou lógica parlamentarista
Não há precedentes na história democrática brasileira para as vitórias que Michel Temer conseguiu no Congresso durante sua presidência. O presidente que se vai na próxima semana fez aprovar em primeiro turno na Câmara uma mudança constitucional que engessa o gasto público por 20 anos, na véspera de um feriado, em 10 de outubro de 2016, o que não é pouco. Seis meses depois, às portas de nada menos que o Dia do Trabalho, conseguiu da Câmara a chancela para a reforma que demoliu a CLT.
Mas isso não foi tudo. A hecatombe desencadeada por Joesley Batista, que explodiu na tarde de 17 de maio de 2017, apenas desviou o foco presidencial, mas manteve o padrão de eficácia do presidente no Congresso. Temer passou a trabalhar exclusivamente para a autopreservação e salvou-se duas vezes. No dia 2 de agosto, derrubou a primeira denúncia formulada pelo então procurador geral da República, Rodrigo Janot. Em 25 de outubro, foi a vez de a segunda denúncia cair.
Foram quatro vitórias emblemáticas de Temer no plenário da Câmara, algo sugestivo para um presidente nascido do Congresso e abençoado pelo Supremo, entre abril e maio de 2016. Época em que a Câmara aprovou o afastamento de Dilma Rousseff em um domingo, com direito a espocar de rojões de papel picado em plena votação, sob o pulso firme de Eduardo Cunha. O STF só entendeu que o deputado do MDB não podia presidir uma casa do Legislativo poucos dias depois de completado o serviço em relação ao impeachment.
O rio desaguou no mar porque correu no sentido certo. O vice-presidente nomeou um ministério integralmente formado por parlamentares. Implantou uma lógica parlamentarista no país. Não houve mulher ou negro na primeira equipe ministerial formada porque a lógica do governo Temer não era a de pactuação com o eleitorado, mas sim com o Congresso. Sarney, Fernando Henrique e Lula lotearam a administração. Temer a feudalizou.
Sua administração tinha em Henrique Meirelles, ministro da Fazenda, uma âncora, que reverteu as expectativas negativas do mercado em relação ao déficit público galopante, mas seus motores foram múltiplos na área política. Na linha de frente, havia quatro pontas de lança: Geddel Vieira Lima, Moreira Franco, Eliseu Padilha e Romero Jucá.
Em uma semana Jucá estava fora, com a divulgação do célebre diálogo com Sérgio Machado sobre a necessidade de um grande acordo nacional.
Era um produto derivado da à época chamada "megadelação" da Odebrecht, que vitimaria também Geddel e o então ministro do Turismo, Henrique Eduardo Alves. A segunda onda de denúncias, movida por Joesley, trouxe o bombardeio para o Palácio do Jaburu.
Foi nesta disjuntiva, entre a força extrema no Congresso e a sombra das suspeitas de corrupção, que oscilou Temer em seus dois anos de estadia na Presidência. Muito se escreverá sobre a sobrevivência de Temer no poder depois do 17 de maio. Um dos fatores, sem dúvida, foi o fato de os áudios de Joesley não comprometerem apenas o presidente. O mais discreto dos operadores de Temer, Aécio Neves, também foi atingido.
Na luta para garantir o próprio pescoço, Aécio travou o desembarque do PSDB do governo. Para um Planalto acostumado a ceder um Refis ou uma anistia do Funrural a cada votação fundamental, a aliança com Aécio saiu barato. Qualquer um que tenha ouvido os áudios do senador com o empresário se lembra do exaspero do tucano com a incapacidade do governo federal em barrar o ritmo das investigações. Aécio redobrou a aposta a favor de Temer porque a alternativa era pior.
O tucano temia o que poderia sobrevir de uma queda do presidente em maio de 2017. A falta de um roteiro de saída para o governo Temer causava receio a toda a elite em Brasília, mas só o PSDB vivia uma guerra intramuros. Um processo sucessório em eleição indireta, da qual os tucanos seriam protagonistas, seria fatal para Aécio. Não é possível desvincular a trajetória de Temer da do senador mineiro.
Muito se falou até o começo deste ano de uma candidatura à reeleição de Temer. É difícil pensar que o emedebista e seus acólitos realmente tenham considerado a sério a ideia. Mesmo sem o caso Joesley, Temer nunca teve aprovação a seu governo superior a 14%.
O presidente transitou nas pesquisas de intenção de voto na faixa inferior a 5%, o que condiz com o perfil de sua carreira. Temer diversas vezes se colocou em São Paulo como pré-candidato a algum cargo majoritário - prefeito, governador ou senador - sempre com o mesmo propósito: mudar de patamar na negociação das alianças.
O que de fato parece ter sido a intenção de Temer foi a de influir na escolha do candidato do PSDB à Presidência. O nome preferido de Temer, está claro, era o de João Doria, a partir do momento que este se elegeu prefeito de São Paulo, em 2016. A alternativa Doria à Presidência começou a se apagar em meados de outubro do ano passado. Por volta desta época Temer inflou o balão de ensaio do 'semipresidencialismo', que poderia permitir ao MDB manter-se no poder mesmo fora do jogo de alianças nacionais. A ideia de Temer era obter aval do Supremo para a possibilidade de uma mudança no sistema de governo sem necessidade de plebiscito. A conjura foi abortada assim que ganhou espaço na imprensa.
Também foi sepultado pela mesma época o último ensaio da reforma da Previdência. Convenientemente, a reforma saiu de cena diante de uma situação de fato, a decretação da intervenção federal no Rio de Janeiro. Em fevereiro deste ano não havia propriamente uma sequência de calamidades na área que justificava a medida extrema, ou pelo menos nada que fosse mais sério do que o que se passava no Estado em novembro e muito menos de o que aconteceria em março, com o assassinato da vereadora Marielle Franco.
Há os que acreditam que a reforma poderia ter sido aprovada se Temer não tivesse que desviar seu foco em função do áudio de Joesley. É uma crença que o próprio presidente ajudou a propagar, mas a história contrafactual é complicada. A negociação com o Congresso só teve início no segundo trimestre de 2017. O texto base passou na Comissão Especial no dia 3 de maio, duas semanas antes de Joesley. Em momento algum a contabilidade de votos que o governo fazia indicou atingir os 308 votos necessários para a aprovação na Câmara. É uma incógnita o que aconteceria se o rumo fosse outro. O fato é que Temer desistiu da votação. Como ele consignou a Dilma, as palavras voam e vale o escrito.
Valor: Governo fará 'desmanche' do Estado, diz Mourão
Por Claudia Safatle, Carla Araújo e Andrea Jubé, do Valor Econômico
Prestes a assumir a vice-presidência do país, o general Hamilton Mourão defende que o governo de Jair Bolsonaro envie ao Congresso uma proposta de emenda constitucional para desvincular o Orçamento da União. "A Constituição engessa o país", disse, em entrevista ao Valor. Mourão afirmou que governo não começará "na base de impactos e pacotes", mas que todos os ministros deverão no dia 14 de janeiro, data marcada para acontecer a primeira reunião ministerial, apresentar metas e objetivos para "desregulamentar" e "desburocratizar" suas áreas.
O general defende que o texto da reforma da Previdência enviado pelo governo Michel Temer seja aproveitado e diz que os militares também estão dispostos a dar a sua contribuição com mudanças. O vice-presidente sugeriu ainda que Bolsonaro dê explicações da situação das contas públicas aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que, a aprovarem um aumento de 16,38% nos vencimentos, mostram" desconhecer a realidade".
Mourão defende ainda que, com as reformas aprovadas, será possível conversar com os investidores sobre o alongamento do prazo dívida mobiliária interna. O vice-presidente eleito se negou a comentar a situação do ex-motorista de Flavio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, que se apresentou como comerciante de carros para justificar a movimentação milionária em sua conta corrente: "Isso é um assunto do Ministério Público do Rio de Janeiro", resumiu. A seguir os principais trechos da entrevista:
Valor: Como estão distribuindo as missões no início do governo? A economia dará respostas nos primeiros dias.
Hamilton Mourão: A economia é o carro-chefe para arrumar essa situação que o país está enfrentando. Nós tivemos uma reunião preliminar na semana passada e foi dada a orientação que no dia 14 de janeiro, que vai ser a primeira reunião ministerial para valer, todos os ministros terão que apresentar o seu planejamento e as suas metas para os primeiros 100 dias, para serem aprovadas pelo presidente. Nessa reunião preliminar, alguns ministros que já dispunham de algum conhecimento anterior apresentaram alguma visão mais objetiva do que eles têm pela frente, outros ainda estão tomando pé da situação.
Valor: O ministério da Economia está entre esses que estão mais avançados?
Mourão: Na economia nós temos uma noção muito clara, isso é uma visão do conjunto, que as reformas são muito importantes. Se a gente não conseguir levar adiante tanto a reforma da previdência como a tributária nós vamos ter muita dificuldade.
Valor: Os senhores irão aproveitar o texto atual da reforma da previdência que já está na Câmara?
Mourão: Eu acho que vai ter que ser aproveitada, até pelo problema de prazo. Se a gente for voltar para a estaca zero não vamos conseguir produzir nada no ano que vem. Poderia ser feito um adendo aqui outro ali dentro da visão que se tem. Mas o que está sendo trabalhado, eu não tenho dado concreto disso, vai ser colocado só nessa reunião de janeiro. Mas temos que usar o que está lá e colocar uma coisa a mais, que isso é permitido pelo regulamento [sic] interno do Congresso, para que a gente consiga no primeiro semestre tentar passar isso aí.
Valor: Antes dessa reunião de 14 de janeiro tem alguma coisa que já pode ser anunciada?
Mourão: Nós não vamos começar na base de impactos e pacotes. Eu acho que gente tem que ser mais objetivo e não fazer coisas espalhafatosas que vão resultar em muito pouco resultado depois.
Valor: Mas tem coisas também que podem dar uma sequência, por exemplo, abertura comercial, não?
Mourão: Abertura comercial vamos ter que fazer um trabalho que tem que estar em fases, porque a nossa indústria não suporta um choque de abertura da noite para o dia. Nós vamos ter que fazer um faseamento. Numa reunião que eu tive com o pessoal da indústria eu usei um termo que era do presidente (Ernesto) Geisel (1974-1979) que dizia que era "lenta, gradual e segura" e acho que a abertura comercial tem que ser dessa forma, porque nós não vamos resistir a um choque.
Valor: E sobre a intromissão do estado na vida do cidadão?
Mourão: Todos receberam orientações sobre desregulação. Todos os ministros receberam orientação e têm que apresentar trabalhos e metas neste sentido, de você soltar um pouco, liberar as pessoas para que possam empreender com mais segurança.
Valor: Antigamente, se dizia que era impossível empreender com os juros altos, hoje os juros não são tão pesados, mas a carga tributária...
Mourão: A nossas carga tributária está aí na faixa de 35% a 37% do PIB. O Estado leva 45% do PIB e não devolve. Se devolvesse, se tivéssemos hospitais de primeira qualidade, escolas maravilhosas, estradas fantásticas, estava todo mundo bem, mas não temos. É só para sustentar uma máquina pesada em termos de pessoal e pesada em termos de estrutura.
"O acúmulo de recursos nas mãos do governo cria espaço para a política do toma-lá-dá-cá, para a corrupção"
Valor: Além da reforma da previdência e tributária, tem a reforma do estado, dá para ser feita?
Mourão: É um troço difícil, por que qual é a margem de manobra que existe? São os cargos em comissão, que dentro do governo federal tem um número cabalístico ai que serão em torno de 23 mil, mas se somar em toda a estrutura da federação chegaria a 120 mil. Incluindo função gratificada, cargo em comissão, estatal, isso aí você tirando os concursados. De todos os entes somados, os três níveis. É um exército.
Valor: Dá pra reduzir para quanto?
Mourão: Não para chegar e dizer: 'vou reduzir em 50%'. Cada um vai ter que avaliar dentro da sua estrutura qual é quantidade que ele pode manter, tem que ser um processo de estrangulamento e nós temos o problema do próprio funcionalismo público que a gente não consegue reduzir, porque isso mexe com as igrejinhas. Lá em São Paulo foi aprovado o novo regime de previdência do funcionalismo e já está colocada greve.
Valor: Como convencer os parlamentares sobre a necessidade da reforma da Previdência?
Mourão: Temos que fazer uma campanha de esclarecimento, tanto no Congresso como da população. O homem comum, o cidadão que não estuda muito, tem ideias preconcebidas do papel do estado na vida futura dele. A gente tem que explicar isso, porque se não ocorrer (a reforma) ninguém vai ter futuro. Mas se ela for aprovada vai trazer mais confiança para o país dos investidores.
Valor: Vocês querem romper com o fisiologismo, o Congresso vai corresponder?
Mourão: Vai ser um governo de persuasão. A gente tem que mostrar pra eles a responsabilidade que eles têm. Não querendo jogar a população contra, mas é tentar ser mais coerente. Tem muito parlamentar ali que não entende. Você tem ali - como em qualquer grupo social - tem 30% que são realmente esclarecidos, tem 40% que é a 'meiuca' que vai pra onde sopra o vento, e mais 30% que não sabe nem onde é a "curva do A".
Valor: Isso é atribuição do presidente?
Mourão: Acho que do presidente, do coordenador político, o general Santos Cruz (Secretaria de Governo). Se o presidente me delegar essa tarefa eu vou lá conversar. Vamos expor didaticamente.
Valor: E os filhos dos presidente, dois deles são parlamentares, qual vai ser o papel deles?
Mourão: Os filhos devidamente orientados pelo presidente podem auxiliar e muito. Compete ao presidente conversar e orientar eles. É a primeira vez que temos na história da República presidente com filhos parlamentares. Eles têm uma interação muito grande, são muitos amigos. Estamos num momento de acomodação. Quando começar a nova legislatura em fevereiro eles estarão com as tarefas bem definidas.
Valor: E a previdência dos militares, ela também será feita?
Mourão: O que tem que ficar muito esclarecido é que o militar não tem uma previdência, eles têm um sistema de proteção pelas peculiaridades da profissão. Mas já estão colocadas as questões que entrariam, como o aumento de permanência do serviço ativo. Hoje precisa de 30 anos de serviço e a ideia é passar para 35 no primeiro momento. E também as pensionistas passariam a descontar, seria uma forma a mais de contribuição. A questão dos militares é infraconstitucional.
Valor: O senhor tem recebido investidores estrangeiros?
Mourão: Alguns. Recebi o Bank of America, JP Morgan. O dado que eu tenho é que existem US$ 9 trilhões no mundo sendo negativados porque não estão sendo investidos em atividade de risco, então temos que absorver alguma coisa disso.
Valor: Há anos se fala em fazer reforma tributária, como ela seria?
Mourão: A reforma tributária tem de estar atrelada à reforma do Estado, e essa reforma é a do pacto federativo. Temos que colocar o recurso o mais cedo possível nas mãos do Estado e do município, e não ficar distribuindo migalhas. Caberá ao Governo Central ficar com menos recursos na mão dele. O governador do Estado e o prefeito são aqueles que têm a melhor noção das carências e necessidades.
Valor: Mas para fazer isso tem que ter uma desvinculação geral.
Mourão: Essa é a outra ideia que nós temos que eu considero extremamente pertinente, e isso daria um papel relevante para o Congresso. O Congresso hoje discute - sem querer desmerecer o papel dos congressistas -, assuntos periféricos. Se eles tivessem todo o Orçamento para realmente dizer o que vai para cada um eles teriam uma responsabilidade maior e o Executivo ficaria com a função de executar o Orçamento. O Executivo tem 8%, 9% para mexer.
Valor: Como isso será feito?
Mourão: Essa desvinculação teria que ser feita por emenda constitucional, porque a Constituição diz que tanto vai pra saúde, outro tanto para a educação. A Constituição foi feita na saída do que foi o período militar, quando várias corporações estavam batalhando um naco. Então se colocou coisa demais na Constituição. A Constituição da forma como está engessa o país.
"O militar não tem uma previdência; eles têm um sistema de proteção pelas peculiaridades da profissão"
Valor: O presidente Jair Bolsonaro vai sancionar ou vetar a prorrogação dos incentivos fiscais para empresas que investirem nas áreas da Sudam, Sudene e Sudeco, diante de possível rombo?
Mourão: Não conversei esse assunto com o presidente. Ali no dia 2 a gente vai ter bastante trabalho. Há os outros prejuízos lançados, como o aumento do Judiciário e dos funcionários públicos.
Valor: O STF está fora da realidade?
Mourão: Há um certo ativismo lá dentro, ora político, as simpatias políticas que alguns dos ministros têm, e às vezes uma coisa pessoal. A gente tem que conversar. Sentar um dia com os 11 ministros e expor para eles a situação do país. Acho que eles não conhecem. Sou favorável a que o presidente vá lá um dia e explique que se os senhores aprovam medidas dessa natureza, vamos cada vez mais nos encalacrar. Levaria o ministro da economia a tiracolo.
Valor: O Brasil está quebrado...
Mourão: Eu sei disso, pagamos R$ 400 bilhões por ano de juros, temos um déficit de R$ 139 bilhões, isso na conta de padeiro. Por isso precisamos aprovar essas reformas, porque com a melhoria do nosso rating nós poderemos até emitir títulos pagando juros menores. Podemos fazer uma repactuação dessa dívida, podemos alongar o prazo, diminuir o pagamento anual dos juros para R$ 350 bilhões; R$ 50 bilhões a mais é muito pra gente investir em coisas que a iniciativa privada talvez não queira.
Valor: Esse é um tema muito delicado: a repactuação não pode ser interpretada como um calote?
Mourão: O PPI vai ficar com o general Santos Cruz na Secretaria de Governo. O que ele precisar, a gente apoia. Eu montei uma equipe multidisciplinar capaz de oferecer soluções caso seja necessário.
Valor: Mas é como um suporte, um conselho?
Mourão: Não é um conselho, é uma equipe capacitada a trabalhar em qualquer assunto temático. Por exemplo: precisamos discutir o Acordo de Paris, tem gente para dar esse subsídio. É o meu dream team: são oito analistas.
Valor: O presidente se encontra com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu nesta sexta-feira. O governo vai ter uma relação especial com Israel?
Mourão: Não sei ainda. O que eu vejo é que hoje Israel tem uma aproximação muito grande com o presidente, já de algum tempo. Vamos ver até que ponto isso vai acontecer. Até porque temos que olhar, dentro do sistema internacional, pragmaticamente, o que se pode auferir nesse processo. Não podemos ficar só com o ônus, a gente tem que ter bônus também.
Valor: Pode haver alguma retaliação dos países árabes com essa aproximação de Israel?
Mourão: Depende do grau da aproximação, né? Isso aí tem que ser estudado até porque o presidente não tomou nenhuma decisão a respeito, e quando chegar a hora, a gente vai apresentar uma visão pra ele, e ele poderá decidir em melhores condições.
Valor: E essa relação com os Estados Unidos, será de adesão automática?
Mourão: Não, o que existe, e que acho inegável, é que nós temos hoje um governo pró-Trump que tem uma visão pró-valores da democracia americana, que admira esses valores. Mas não é um concorde imediato com qualquer coisa que for produzida por lá. É uma relação de governo, que não pode ultrapassar esses limites.
Valor: Logo no início, o governo vai ter que decidir sobre o subsídio do diesel aos caminhoneiros.
Mourão: Sim, o general Heleno fez uma reunião a esse respeito. Acho que a tendência é manter o subsídio até que se consiga uma solução melhor. Tem a questão da tabela de frete, que o [ministro da Infraestrutura] Tarcísio Freitas está trabalhando em cima também. Nós não temos condição de, de hoje para amanhã, solucionar esse problema.
Valor: Quando haverá uma solução?
Mourão: Na minha visão, onde está a raiz desse problema todo? No sistema tributário. Então, se a gente consegue dar uma acertada na questão da tributação, e os combustíveis, qual o índice maior da tributação? É o ICMS, que é de onde os Estados tiram o dinheiro. Onde eu moro, no Rio de Janeiro, é absurdo. É a gasolina mais cara do Brasil, custa R$ 5, é 35% o ICMS lá sobre o combustível.
Valor: Tudo virou uma indústria pra arrecadar...
Mourão: Mas arrecadar por que? Porque você tem que alimentar o dragão. É isso tudo que tem que ser explicado pra um conjunto de parlamentares e população, porque nós temos que domar o dragão. Domamos o dragão da inflação, mas esse outro dragão do Estado ainda não está domado. Está solto aí. Temos muito para fazer, na realidade, pra desfazer. Um desmanche, se fizer um desmanche. Eu já fiz essa comparação, eu gosto de cavalo, gosto de montar, já disse que Brasil é um cavalo olímpico capaz de saltar 1m80, mas tá todo amarrado, só salta 0,70 cm. O Paulo Guedes falou, tem que tirar as bolas de ferro do pé industriais.
Valor: Como chegamos a esse ponto?
Mourão: Porque aqui existe a associação do patrimonialismo com essa visão de que o Estado é o grande protetor. E depois pronto. E aí você junta o populismo, que tivemos tanto de direita como de esquerda.
Valor: Talvez a principal tarefa seja esse desmanche
Mourão: É, no Exército a gente tem um ditado: chefe bonzinho morre coitadinho. Não pode ser bonzinho, porque depois as próximas gerações serão beneficiadas. Hoje as próximas gerações não têm futuro, do jeito que tá.
Valor: O que o senhor achou das explicações do ex-assessor e motorista de Flavio Bolsonaro, que disse que as movimentações atípicas identificadas pelo Coaf eram resultado de compra e venda de carros?
Mourão: Sem comentários. Hoje isso é um problema do Ministério Público do Rio de Janeiro, não tenho nada a ver com isso.