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José Sarney: 'Democracia agonizante'
Para José Sarney, que consolidou a transição do governo militar para os civis, hoje os Três Poderes têm fendas que desestabilizam o país. "Estamos matando nossa democracia"
Por Monica Gugliano, do Valor Econômico
BRASÍLIA - De todos os cargos e títulos recebidos e de todas as funções exercidas ao longo de quase 70 anos de vida pública, o ex-presidente da República José Sarney se orgulha especialmente de duas atividades. Desde 1980, ele ocupa uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Na mesma década, foi o político que consolidou a delicada transição da ditadura militar para a democracia.
Sobre a carreira de escritor e poeta, há controvérsias. A respeito do segundo motivo de orgulho, há unanimidade e não paira nem entre seus mais ferozes adversários dúvidas sobre o papel que ele desempenhou. Sarney assumiu o mais alto cargo do país, substituindo Tancredo Neves (1910-1985), presidente eleito indiretamente, que ficara doente e morreria antes de tomar posse.
Entre aqueles dramáticos dias do mês de março de 1985 e hoje já se passaram 34 anos. Não sem certo pesar, Sarney adverte que o Brasil novamente vive um momento muito difícil: "Estamos matando nossa democracia. Ela está agonizando".
No dia deste "À Mesa com o Valor", em que recebeu a reportagem para um café, a acirrada disputa para a eleição do presidente do Senado (cargo que Sarney ocupou por quatro vezes) ainda repercute nos noticiários, alimentando uma hipotética crise das instituições. "Ao falar em morte da democracia, me refiro ao fato de que os Poderes têm fendas em suas estruturas que estão desestabilizando o país", afirma. "O Parlamento não legisla. O Poder Executivo legisla no lugar do Parlamento, e o Judiciário não exerce o poder moderador que deveria ter", acrescenta ele, citando o ex-deputado e relator da Constituinte, Nelson Jobim. "Como disse há dez anos Jobim, é a judicialização da política e a politização da Justiça."
O fato de o Poder Judiciário, na opinião do ex-presidente, ter perdido o poder moderador que lhe cabe nas democracias, fez com que o país passasse a viver em um regime de insegurança jurídica em que ninguém sabe qual pode ser o destino de sua reivindicação. "A interferência, a nítida divisão entre os ministros, é o sinal mais evidente dessa crise. São tantas as questões submetidas ao tribunal - tudo, na verdade - que isso cria uma insegurança jurídica muito grande."
Sarney rejeita a suposição de que a crítica tenha alguma relação com o fato de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter interferido na convulsionada eleição do Senado, mantendo a votação secreta. Uma sentença que parecia ser sob medida para beneficiar o candidato veterano Renan Calheiros (MDB-AL) - cuja candidatura teria sido apoiada por Sarney -, mas que acabou por gerar um movimento, estimulado por maciça intervenção via redes sociais, que derrotou o senador alagoano.
Ao se aproximarem da urna, os senadores abriam e mostravam a cédula com o nome do candidato que acabou vencendo, Davi Alcolumbre (DEM-AP). "Tenho uma relação de amizade com Renan e desejava seu êxito", diz Sarney. "Mas os jornais me atribuem muito que eu não faço e uma força que eu não tenho", afirma, sentado na cadeira de espaldar alto com ar de móvel antigo, em seu escritório na região central de Brasília.
No conjunto de salas mobiliado com simplicidade, onde trabalha quando está na cidade, Sarney fala com vagar, cultiva mais do que nunca as longas pausas na conversa, quando não o silêncio, e resiste a opinar sobre o comportamento sem nenhum decoro dos senadores na eleição do novato Alcolumbre. "Não me agradaria fazer críticas ou análises sobre comportamentos ou fatos. Observei tudo a distância."
Sarney, que sempre primou pelo cumprimento da liturgia dos cargos que ocupou, diz que não fará o papel de censor do Senado. Da mesma forma, afirma que não aceitará o pressuposto de que Alcolumbre foi eleito por representar o "novo" na política, enquanto Renan, e até mesmo ele, seriam remanescentes da "velha política". "Se fala na velha política no sentido de práticas ruins", afirma.
O café, o suco de laranja e os pãezinhos de queijo na mesa ainda estão praticamente intactos. Sarney convida a repórter a experimentar os pãezinhos e conta que, para manter os cuidados que dedica à saúde, não deveria comer. Mas, só um, não? A pequena pausa serve para que ele retome o raciocínio. "Tenho certeza de que dei uma contribuição valiosa ao país. Se eu não tivesse o temperamento que tenho, a experiência política que tenho, nós teríamos retrocedido. Infelizmente a política é cruel, mas a gente tem que aceitar", diz. "Veja tudo que eu fiz em meu governo. Fiz a Constituição. Como é que eu sou a velha política? Repetindo doutor Ulysses [Guimarães, 1916-1992]: eu sou velho. Mas não sou velhaco."
Batizado como José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, Sarney, o 31º presidente do Brasil, nasceu no município de Pinheiro, interior do Maranhão, no dia 24 de abril de 1930. Foi deputado, senador pelo Maranhão e pelo Amapá, governador do Maranhão, presidente da República. Desde 1950, é impossível contar a história do Brasil sem encontrar seu nome figurando entre os protagonistas. Aos 88 anos, ele é um dos políticos mais longevos do país. "Quando entrei no Congresso, ele ainda funcionava no Rio de Janeiro", conta.
A eleição de José Sarney para o governo do Maranhão em 1965 consolidou a força política de sua família no Estado. O "clã dos Sarney" deteve, desde então, as posições de poder não apenas político, mas também em diferentes áreas sociais. Um processo que se iniciou por volta da década de 50, com seu pai, o desembargador Sarney de Araújo Costa (1901-1961). Dos três filhos de José Sarney, dois seguiram carreira na política e também se tornaram conhecidos nacionalmente. Sarney Filho foi deputado federal, ministro e hoje é o secretário de Meio Ambiente do Distrito Federal. A filha, Roseana Sarney, foi deputada federal, governadora do Maranhão e senadora da República.
No folclore sobre ele, são famosas a habilidade de falar durante horas sem dizer nada, a hipocondria e as superstições que rendem saborosas histórias na voz dos amigos. Não veste marrom, joga fora peças de roupa que acredita não lhe trazerem sorte, entra e sai sempre pela mesma porta e não gosta de falar em morte.
Na extensa biografia, que inclui passagens pelo PSD, Arena, PDS e PMDB (hoje MDB), Sarney é considerado um político que quase sempre esteve ao lado do poder, crítica que costuma refutar com veemência. "Fui contra o Getúlio Vargas, fui contra o Juscelino Kubitschek. Fui vice-líder da UDN e era da 'Banda de Música' da UDN. Não toquei trombone, mas toquei reco-reco. Os militares nunca me trataram como se eu fosse uma pessoa muito ligada a eles. Pelo contrário, muitos deles me chamavam de uma coisa inacreditável: comunista."
"Banda de Música" é o nome dado ao grupo de parlamentares da União Democrática Nacional (UDN) que se destacaram pela afiadíssima oratória. Faziam oposição constante e implacável aos governos Getúlio Vargas (1951-1954), Juscelino Kubitschek (1956-1961) e João Goulart (1961-1964). Entre seus integrantes estavam Carlos Lacerda (1914-1977) e Afonso Arinos (1905-1990). "Lacerda foi o maior parlamentar, dono da maior oratória que o Brasil já teve e viu."
O ex-presidente diz não fazer o estilo saudosista. Conta que não olha para trás e que, quando termina uma etapa, dá o período por encerrado. Portanto, nunca dirá que houve tempos melhores na política. No entanto, constata que o país vive uma fase de muito ódio, apesar de o sentimento ser um fenômeno mundial e estar muito ligado, em sua opinião, ao impacto da comunicação em tempo real na sociedade. "A internet nos trouxe a perda dos direitos individuais, da privacidade. Criou tantas versões sobre o mesmo fato que já não sabemos qual é a verdadeira. É o que chamamos de a morte da verdade", diz, citando o livro "A Morte da Verdade - Notas Sobre a Mentira na Era Trump" (Intrínseca), de Michiko Kakutani, vencedora do Prêmio Pulitzer.
No Brasil, afirma o ex-presidente, o impacto dessas novas mídias alimentou a crise da democracia, somando-se aos problemas oriundos da Constituição de 1988. A Carta promulgada durante o governo de Sarney é vista por ele como um documento que, por ter sido feito logo depois de um regime autoritário, olha pelo espelho retrovisor e só enxerga o passado, em vez de mirar o futuro. "São regras que foram desmontando o país até chegarmos às crises que vivemos hoje." Sarney diz não acreditar em uma solução para os problemas nacionais que dispense revisão constitucional, ainda que continuem sendo feitas reformas como a da Previdência, que considera fundamental neste momento.
A interferência das redes sociais em um país com 39 partidos políticos - número tão grande que acaba por ser o mesmo do que não ter nenhum, em sua opinião - tem acirrado conflitos entre classe política, sociedade e mídia. Os políticos, afirma, têm sua imagem cada vez mais denegrida perante à população. "A mídia, nas redes, pergunta: Quem representa o povo? Somos nós ou são esses políticos que estão no Congresso? E isso virou um confronto diário entre a mídia e a classe política."
Mas, apesar das dificuldades, Sarney acredita que o Brasil continua "uma grande nação". Enumera alguns progressos, como o combate à corrupção - que ele define como "um fenômeno importantíssimo na política que se destina a fazer correções no país". Em sua opinião, a prioridade que se deu ao combate à corrupção e que trouxe tantas "inacreditáveis" revelações está sendo uma inflexão de conduta importante. Mesmo que, no processo, alguns excessos tenham sido cometidos - e serão corrigidos com o tempo, diz.
Entre eles, está a delação do ex-senador Sérgio Machado, que gravou uma conversa com Sarney, na casa do ex-presidente. Ele evita fazer comentários. Sarney não esconde a mágoa com o caso. E, principalmente, também não esconde ressentimento das consequências que o envolveram em uma investigação da Lava-Jato e culminaram com pedido de prisão contra ele, feito ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo então procurador-geral da República Rodrigo Janot. O pedido não foi aceito, e algum tempo depois Sarney foi inocentado. E a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva? "Lamento muito o que aconteceu e está acontecendo com Lula", responde.
Para Sarney, a importância que se deu para debelar a corrupção deveria ser dada ao combate contra a violência. "As estatísticas anuais de homicídios correspondem ao número de soldados mortos no mesmo período na Guerra do Vietnã". É insustentável conviver com essa situação", argumenta.
Primeiro presidente civil após o regime militar (1964-1985), Sarney não gosta de emitir opiniões públicas sobre aqueles que o sucederam. Diz esperar que o presidente Jair Bolsonaro faça bom governo e que dê o exemplo da conciliação, harmonizando os conflitos da sociedade. "Uma sociedade democrática é uma sociedade de conflitos. Cabe ao Estado, através da intermediação política, harmonizar esses conflitos." Para ele, o presidente da República é um ser sempre aprisionado no tempo em que governa. Recorre ao filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955) para dizer que "o presidente é ele e suas circunstâncias".
O ex-presidente acha que não deve dar conselhos aos que vieram depois dele. Mas gosta de lembrar que a cadeira é sempre maior do que o presidente sentado nela. "Nenhum presidente modifica essa cadeira. Ela é que modifica quem senta nela." Ele concorda com a visão de que, no Brasil, muitos políticos ainda não têm a visão do que significam as instituições. Atribui essa deficiência à falta de cultura, de leitura dos grandes clássicos como Tocqueville, Lincoln, Joaquim Nabuco.
Sarney foi eleito pelo Congresso em janeiro de 1985 como vice-presidente na chapa de Tancredo Neves, político do PMDB, partido de oposição à ditadura, a quem Sarney se refere como um grande estadista e um dos maiores articuladores políticos que já conheceu. Pouco antes das eleições indiretas, ele deixou o PDS (partido que substituiu a Arena) por divergências com o presidente militar João Figueiredo (1918-1999) no processo de abertura democrática. Era praticamente um estranho que o PMDB fora obrigado a "engolir".
Por isso, ao lembrar sua chegada à Presidência, Sarney observa que havia se preparado para "ser um vice discreto de um presidente forte". Mas a morte de Tancredo Neves jogou o cargo em seu colo, deixando-o em outra circunstância: a condição de um presidente que "ninguém queria" e que, segundo ele mesmo, tinha tudo para engrossar a lista dos mandatários que, mais dia menos dia, acabariam depostos.
Nessa relação, inclui Artur Bernardes, Juscelino Kubitschek, João Goulart e Getúlio Vargas, além de si próprio. "Eu não tinha apoio político, não conhecia as pessoas com quem estava governando, não escolhera meu ministério e ainda era um político nordestino", relata, atribuindo sua sobrevivência à capacidade de dialogar, ao temperamento pacífico e, principalmente, por ter mantido o Brasil na trajetória democrática.
Quando lhe é pedido que dê sua opinião sobre um governo com tantos generais da ativa e da reserva em cargos estratégicos, Sarney pondera que os militares e os civis são iguais dentro da sociedade, de maneira que não haveria razão para exclui-los de participar da vida pública. Além disso os militares, observa, são muito bem preparados, e o Brasil afastou os riscos oriundos do militarismo, ainda em seu governo e graças à atuação de ministros como o do Exército, Leônidas Pires Gonçalves (1921-2015).
"O militarismo é a agregação de poder político ao poder militar. O poder civil é a síntese de todos os poderes. O Brasil atravessou esse gargalo do militarismo, que foi uma marca na América Latina, com muito mais tranquilidade do que outros países. Fizemos a transição com os militares, e não à revelia deles", diz.
Sarney concluiu seu mandato em 1990. Entregou o cargo a Fernando Collor de Mello, o primeiro presidente eleito diretamente pela população desde o golpe de 1964. Governou mais da metade do tempo no período que se convencionou chamar de "década perdida" - uma denominação que ele repudia. Saiu do Planalto com baixa popularidade (56% dos entrevistados consideraram seu governo ruim/péssimo, segundo o Datafolha) e com a economia arrasada pela hiperinflação que já se anunciava desde a sua posse, quando o índice anual superava 200% ao ano.
Ele, porém, assinala que o crescimento médio do PIB em seu governo foi de 5% ao ano e o desemprego estava na casa de 2,69%. Reconhece que de todas as decisões que tomou, se pudesse voltar atrás, não assinaria o Plano Cruzado II. "Foi a decisão mais errada que tomei. A pior. Muitas vezes eu fui um bom presidente e muitas vezes não fui. E essa foi uma das vezes em que eu não fui um bom presidente. Porque eu paguei pelo equívoco e acho que fui quem mais pagou. Mas o povo brasileiro pagou pela decisão e eu guardo isso na alma."
O café esfriou, o suco está praticamente intacto, a tigela com os pães de queijo não dá sinais de que será esvaziada e a conversa sobre política, diz o ex-presidente, já está muito longa. Ele conta que finaliza sua biografia, já com mais de 800 páginas, mas que, por enquanto, não pensa em publicar. Atualmente, escreve artigos e textos e fez a segunda edição do "José Sarney, Bibliografia e Fortuna Crítica" (Instituto Geia). O volume de 400 páginas reúne toda a obra do autor com 120 títulos, num total de 168 edições traduzidas para 12 idiomas, entre eles coreano, grego, árabe e russo. "Agora eu só trato de livros, basicamente, e tenho tanto tempo livre que consegui editar esse volume."
O outro livro que o ex-presidente terminou e lançou no ano passado é "Galope à Beira-Mar". O título é inspirado no nome de um ritmo dos cantadores do Nordeste, e a produção do livro foi estimulada pelo assessor e amigo Pedro Costa - filho de Odylo Costa (1914-1979), jornalista, poeta e integrante da ABL -, que acompanha esta entrevista. Sarney conta histórias dos personagens da vida pública recente do país, relata "causos" de família, da infância em Pinheiro, no interior do Maranhão, e da juventude em São Luís. E contempla histórias das viagens do então presidente. Todas com um viés anedótico.
"Hoje, o que me mantém vivo é escrever", diz. O ex-presidente se divide entre Maranhão e Brasília. Tem dedicado boa parte do seu tempo também a cuidar de dona Marly, a companheira de toda uma vida, que, aos 86 anos e após sofrer uma fratura na perna, não conseguiu voltar a andar. Conta que escreve com disciplina todas as noites em sua biblioteca a partir das 22h. Depois, lê até dormir. "Durmo quatro, cinco horas por noite. Quando tem uma graça de Deus, durmo seis."
De toda sua produção literária, Sarney não esconde seu carinho por "Norte das Águas" (1969), livro que o levou à Academia Brasileira de Letras. Também se orgulha do "Dono do Mar" (1995), um romance que mereceu elogios de Jorge Amado e Darcy Ribeiro, e de "Saraminda" (2000), que Claude Lévi-Strauss descreveu como um belo livro que conquistou seu amor. "Se eu tivesse de pedir a Deus, antes de nascer, se queria ser político ou escritor, sem dúvida escolheria a segunda opção. Sei que é meio provinciano dizer isso, mas tive mais alegria em ser membro da Academia do que presidente da República."
Sarney diz que escrever é como eternizar momentos e sentimentos por meio das palavras. É ter o poder de transfigurar as coisas, os sonhos, a vida. Prestes a completar 89 anos, o ex-presidente mantém o bigode e os ternos impecavelmente cortados. Sente-se velho? "Não", responde sem vacilar. Sente, sim, as limitações e as dores que a idade impõe. E, da mesma forma que os personagens dos grandes escritores que tanto admira, como Gabriel García Márquez, Sarney reflete sobre o ocaso do tempo. Não com a perspectiva de que ele está se acabando. Mas com a certeza de que ainda há muito para viver.
César Felício: A arbitragem de perdas
Bolsonaro está fadado a fazer a reforma possível
As reformas da Previdência de hoje, em regra, são um jogo onde quase todos perdem. A regra vale para o Brasil e para o mundo. Arma-se um cenário em que se tem, de um lado, o Estado, tentando reter recursos, e do outro dependentes de assistência social, trabalhadores, empregados públicos, em alguns casos empresários, todos submetidos a rodadas adicionais de sacrifícios, pagando mais e trabalhando mais. Nada mais fácil do que armarem-se grandes frentes contra a reforma.
No ano passado, Putin aproveitou a distração na Rússia provocada pela Copa do Mundo para propor uma reforma da Previdência elevando de 60 para 65 anos a idade mínima para homens e de 55 para 63 a das mulheres. Houve grandes protestos populares e Putin foi obrigado a ceder um pouco para obter a chancela do Congresso.
A proposta de Bolsonaro impõe perdas a quase todos, ainda que de forma assimétrica - a base é mais poupada do que o topo - e há um ganhador, o sistema financeiro, a depender do avanço da capitalização. É natural a resistência ao projeto e a tendência que sua aprovação não seja sumária e seu conteúdo seja diluído. Isto não quer dizer que o ambiente para a vitória governista não exista, como já se tratou nesta coluna, mas demandará grande capacidade da articulação da base em saber a hora de ceder e estabelecer as linhas das quais não poderá transigir. Por enquanto esta linha ainda não foi traçada, já que o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo, disse que não há nenhum ponto intocável na PEC da Previdência, conforme relatou a repórter Ana Krüger no Valor PRO na tarde de ontem.
A reforma da Previdência de Bolsonaro, conforme o que venha a ser proposto em relação à capitalização, carrega uma ironia, em se tratando de um governo com tamanha participação de militares de reserva: marca a reversão de um modelo de seguridade social impulsionado nos governos Castelo Branco, Médici, Geisel e Figueiredo. Retorna-se a um dos fundamentos do que havia antes.
Quando o sistema previdenciário começou a ganhar corpo no Brasil, nos anos 30, o regime que havia era o da capitalização. Getúlio centralizou as antigas caixas de pecúlio nos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) conforme a corporação. Havia o dos servidores do Estado, o dos marítimos, o dos bancários, o de transportes e cargas, o dos comerciários e assim por diante. A contribuição era tripartite: aportavam o Estado, o setor patronal e o trabalhador. O benefício seria concedido conforme o que fosse acumulado, individualmente. Quem dava as cartas era o Ministério do Trabalho, e esta é uma diferença essencial em relação ao modelo bolsonarista.
No Brasil de Vargas, em uma primeira fase o regime de capitalização depauperou as aposentadorias, conforme demonstram os pesquisadores Lara Lúcia da Silva e Thiago de Melo Teixeira da Costa, no artigo "A Formação do Sistema Previdenciário Brasileiro: 90 anos de história", de 2016, disponível no site da "Revista Administração Pública e Gestão Social". Em 1931, o valor da aposentadoria média era de R$ 18.442,37 por ano, em valores de 2015. Em 1945 caiu para ridículos R$ 5.744,86. Os fundos, contudo, se acumulavam: em 1939 o saldo correspondia a 70,8% da receita.
No período histórico seguinte, entre 1946 e 1964, o caixa dos IAPs tornou-se o motor da máquina política ancorada no clientelismo. À época não havia separação entre o sistema de saúde e o da previdência e os institutos criaram hospitais para seus segurados. O gasto com assistência médica em relação à receita sobre contribuições pulou de 3,6% para 26% entre 1947 e 1965. Mas cada um cuidava da sua corporação: em uma lógica de capitalização, ainda que sob controle estatal, a universalização do bem-estar social não fazia sentido.
O caixa dos IAPs também bancou investimentos de infraestrutura, como os da Chesf, por exemplo. Como o sistema de financiamento era tripartite, o ônus do Tesouro aumentava conforme a expansão do sistema, que pulou de 2,7 milhões de segurados em 1945 para 4,4 milhões em 1960. À medida que a crise fiscal do governo se agravava, o Estado retardava seus aportes. Quando os militares tomaram o poder, em 1964, a capitalização comandada pelo Estado era um regime falido.
Por meio de diversas medidas, os governos militares implantaram o regime de repartição, agora em declínio. Os IAPs foram unificados no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), o financiamento passou a ser exclusivamente do trabalhador e das empresas, o Estado ficou com o comando. Na Constituição de 1967, imposta por Castelo Branco, estabeleceu-se a diferença de cinco anos entre a aposentadorias de homens e mulheres. No governo Médici, a aposentadoria foi estendida ao trabalhador rural, independentemente de contribuição. No de Geisel, a gestão do sistema de saúde foi transferida para uma autarquia separada. Figueiredo calibrou o financiamento, estabelecendo que aposentados e servidores deveriam contribuir para o sistema e aumentando as alíquotas previdenciárias do setor privada.
A previdência social daquele tempo, está claro, era injusta, mas se tornou mais universal do que era antes. Não havia preocupação em cortar benefícios, a inflação se encarregava de corroer seus valores. O que se quer argumentar com esta digressão histórica é que a concepção do modelo previdenciário que nos anos 90 começou a ser reformado nasceu no período militar. E tal como o modelo anterior, ele também faliu.
Com a redemocratização, os quatro presidentes que reformaram a Previdência miraram no corte de benefícios, sempre de maneira insuficiente para conter a escalada do déficit. Coube a Fernando Henrique substituir o tempo de trabalho pelo tempo de contribuição, como pré-requisito de aposentadoria e desestimular as requisições precoces com o fator previdenciário. Lula limitou o benefício integral para o funcionalismo que entrasse na máquina pública de 2003 em diante. Dilma regulamentou os fundos complementares para os servidores públicos. Temer nada conseguiu, mas não por falta de tentativa. Tiveram todos o azar, por assim dizer, de serem obrigados a arbitrarem perdas dentro da lógica democrática. Bolsonaro também terá o ônus de fazer uma reforma incompleta. Outras virão.
*César Felício é editor de Política.
Claudia Safatle: Previdência ou Previdência
Quanto mais tempo demorar mais dura será a reforma
O cenário para a economia brasileira é claramente binário: ou aprova-se uma boa reforma da Previdência e, a partir daí, pode-se abrir um novo horizonte de crescimento econômico; ou não se aprova e o país cai no imponderável. Esta é a avaliação de várias autoridades do Executivo um dia após o envio ao Congresso Nacional da proposta de emenda constitucional (PEC) que restringe a concessão de benefícios e aposentadorias e que estima uma economia de R$ 1,07 trilhão nos próximos dez anos.
É bastante comum entrar em um gabinete ministerial e ouvir do titular da pasta a constatação de que "estamos à beira do abismo". O desequilíbrio das contas públicas chegou a uma situação insustentável e caberá ao Congresso entender e reagir, sob pena de ressuscitar a inflação.
Se isso não ocorrer, é muito provável que a crise em que o país vai mergulhar demandará uma reforma ainda mais dura a ser aprovada em uma ação emergencial do Parlamento.
A aprovação da nova Previdência Social é necessária para evitar que o Estado, quebrado, saia dando calote de toda natureza e, sobretudo, na dívida interna. Sem a PEC, não há possibilidade de uma retomada mais intensa do crescimento. Com ela, porém, a volta do crescimento é uma forte possibilidade, mas não é uma garantia incontestável.
A expectativa que move o governo e os agentes econômicos é de que a aprovação da reforma da Previdência vai retirar da cena o risco da insolvência do Estado. Esse temor é que está na base da desconfiança dos investidores internos e externos. Removido o risco, haveria um fluxo de capitais estrangeiros no país destinado, principalmente, às obras de expansão da infraestrutura. Ele faria a roda da economia girar, criando demanda e empregos. O problema é que, agora, isso deve coincidir com o processo de desaquecimento das economias mais avançadas.
O Brasil deixou para trás a sua pior recessão, mas a economia não decolou. O país vive quase que uma estagnação da economia.
Com a PEC da Previdência no Congresso, também começará a ser testada a capacidade do presidente Jair Bolsonaro, eleito para romper com o Brasil velho, do toma-lá-dá-cá, de negociar o apoio de uma ampla base parlamentar.
O Congresso também foi renovado para apagar da memória a política da troca de apoio por cargos públicos, em que o ocupante assumia com o compromisso de desviar dinheiro para o partido; quando não, para si próprio.
Tentar reeditar tais práticas será uma temeridade.
Para quem considerava o ministro da Economia pouco pragmático e inflexível, a surpresa tem sido notável. Paulo Guedes, segundo interlocutores que têm acompanhado as suas incursões em defesa da reforma da Previdência, tem se mostrado aberto a negociações políticas.
A PEC da Previdência é dura e provavelmente será desbastada no Congresso. Mas o espaço para encolher a proposta é menor a cada dia. Os novos governadores, com os seus Estados quebrados, serão peça-chave na persuasão das bancadas para a aprovação da reforma.
BB e Caixa
É no ambiente de elevadas expectativas e baixo crescimento descrito acima que os bancos públicos trabalham. Os dois principais bancos federais, Caixa e Banco do Brasil, depois de terem sido levados a expandir a carteira de crédito a qualquer custo para sustentar um crescimento que não veio, durante o governo de Dilma Rousseff, se ajustam aos novos tempos.
A ordem do ministro da Economia é que tanto o Banco do Brasil quanto a Caixa se desfaçam da carteira de crédito às grandes empresas, que devem ser atendidas pelo mercado de capitais, e se voltem para o varejo e para o financiamento às micro, pequenas e médias empresas, ao setor imobiliário e a projetos de saneamento. Para ambas instituições, a Petrobras, que lidera a tomada de empréstimo, comprometeu-se a pré-pagar a dívida. A estatal já quitou, em janeiro, metade do que devia à Caixa.
Outro mandato dos presidentes dos dois bancos federais é para vender ativos e, nesse quesito, a realidade se impõe. O Banco do Brasil, por exemplo, só vai poder se livrar de ativos que independem da sua rede de clientes, tais como o Banco Patagonia, o Votorantim e o BB Américas. A Caixa vai vender ações, mas não o controle das suas subsidiárias de seguridade, cartões, loterias e assets.
A carteira de crédito do BB ainda está sob processo de saneamento das extravagâncias cometidas em 2013 e 2014. E, por enquanto, não há demanda saudável por crédito no país, sustenta o presidente do BB, Rubens Novaes.
Para o presidente da Caixa, Pedro Guimarães, a instituição, como o maior banco de infraestrutura do país, está buscando projetos que dão resultado financeiro para financiar e encontrou na iluminação pública uma área bastante promissora. Nessa área, há projetos para apenas trocar as lâmpadas amarelas para as de LED, para ampliação da rede ou para novos investimentos. A Caixa quer entrar nesses investimentos e ser o agente cobrador na própria conta de luz.
Outra área em que o banco está em negociação é a de parceria para operações com as "maquininhas". Na próxima semana, a Caixa deverá enviar pedidos de propostas a potenciais parceiros.
O banco aguarda autorização da Presidência da República para vender cerca de R$ 8,5 bilhões em ações da Petrobras que hoje são parte do seu patrimônio líquido.
Na política de crédito, a orientação é a de deixar as grandes empresas por conta do mercado de capitais e focar na "padaria do seu Joaquim", como costuma dizer Guimarães, em que a Caixa pretende vender seguro, cartão de crédito consignado, dentre outros produtos.
Diante da nova estratégia, a carteira de crédito tanto do BB quanto da Caixa não deverá crescer ou vai crescer muito pouco neste ano.
*Claudia Safatle é diretora adjunta de Redação
Ribamar Oliveira: Servidores precisarão pagar e trabalhar mais
STF terá que definir alíquota máxima da Previdência
As grandes novidades da proposta de reforma enviada ontem ao Congresso pelo presidente Jair Bolsonaro são as alíquotas progressivas de contribuição para a Previdência Social e a permissão para que a União, os Estados e municípios instituam contribuições extraordinárias para equacionar os déficits atuariais dos regimes próprios de seus servidores.
Hoje, a alíquota do servidor que ingressou no serviço público antes de 2013 e não fez opção pela aposentadoria complementar é de 11% sobre o salário. Com a aprovação da proposta de emenda constitucional (PEC) apresentada pelo governo Bolsonaro, haverá alíquotas diferentes para cada faixa de remuneração, da mesma forma que existe atualmente para o Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF).
Para o servidor, a contribuição previdenciária ordinária será de 14%, e não mais 11%. A alíquota de 14% será reduzida em 6,5 pontos percentuais para a faixa da remuneração de até um salário mínimo. Ou seja, a alíquota será de 7,5% (14% menos 6,5 pontos percentuais). Para a faixa da remuneração acima de um salário mínimo até R$ 2 mil, a alíquota será reduzida em cinco pontos percentuais (ou seja, será de 9%). Para a faixa da renda acima de R$ 2 mil até R$ 3 mil, a redução será de dois pontos percentuais (12%). Acima de R$ 3 mil até R$ 5.839,45, não haverá redução. Para a faixa da remuneração de R$ 5.839,46 até R$ 10 mil, a alíquota de 14% será acrescida de 0,5 ponto percentual (14,5%).
Acima de R$ 10 mil até R$ 20 mil, o acréscimo será de 2,5 pontos percentuais (16,5%). Na faixa de renda acima de R$ 20 mil até R$ 39 mil, o acréscimo será de cinco pontos percentuais (19%). Para a faixa da renda acima de R$ 39 mil, o acréscimo será de oito pontos percentuais. Ou seja, a alíquota incidente sobre essa última faixa de renda será de 22% (14% mais oito pontos percentuais). As alíquotas efetivas da contribuição previdenciária, obtidas comparando-se o valor pago com a remuneração total, vão variar desde 7,5% até mais de 16,79%.
No caso do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), dos trabalhadores da iniciativa privada, as alíquotas atuais variam de 8% a 11% sobre o salário de contribuição. Com a incidência progressiva, as alíquotas irão variar de 7,5% a 14%, dependendo da faixa de renda. A alíquota efetiva de contribuição ao RGPS vai variar de 7,5% a 11,68%. "Quem ganha mais contribuirá com mais", enfatizou o secretário Especial de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho.
O governo espera uma arrecadação extra de R$ 33,6 bilhões nos próximos quatro anos com a mudança das alíquotas do Regime Próprio de Previdência dos Servidores (RPPS) da União e de R$ 173,5 bilhões em dez anos. No caso do RGPS, a mudança de alíquotas reduzirá a arrecadação em R$ 10,3 bilhões nos próximos quatro anos e em R$ 27,6 bilhões em dez anos.
A progressividade é uma questão é controversa. O Supremo Tribunal Federal (STF) cristalizou entendimento contrário ao estabelecimento de alíquotas progressivas para as contribuições previdenciárias de servidores públicos, com o argumento principal de que a medida exige autorização expressa no texto constitucional. A proposta da reforma da Previdência do governo Bolsonaro pretende justamente mudar a Constituição para permitir a progressividade.
Existe outra discussão no Judiciário, ainda inconclusa, em torno da alíquota previdenciária máxima que pode ser cobrada dos servidores. Alguns tribunais têm chamado de abusiva, considerando até mesmo confisco, alíquota em torno de 20%. O argumento é que, além da contribuição previdenciária, os servidores também pagam imposto sobre a renda e os tributos sobre o consumo.
O Supremo ainda não decidiu qual é o limite para a alíquota previdenciária não ser considerada confisco. O secretário de Previdência, Leonardo Rolim, admitiu ontem que essa questão dependerá de pronunciamento do STF.
A definição do limite para a contribuição previdenciária do servidor é uma questão central, pois, além da "alíquota ordinária", a PEC permite que a União, os Estados e os municípios cobrem alíquotas extraordinárias para o equacionamento dos déficits atuariais dos regimes próprios de seus servidores. A PEC não estabelece limite para a alíquota extraordinária. Em tese, a soma das duas (ordinária e extraordinária) poderá superar 20%. O déficit atuarial dos servidores da União ultrapassa R$ 1,2 trilhão, e o dos Estados, R$ 2,4 trilhões.
Se a PEC for aprovada, os servidores também terão que trabalhar mais. Quem ingressou no serviço público antes de 2003, por exemplo, embora mantenha o privilégio da aposentadoria igual à remuneração que recebe na ativa (integralidade), terá que trabalhar até 65 anos, se homens, e 62 anos, no caso das mulheres. Não há regra de transição para este caso. Atualmente, a idade mínima é de 60 anos para homens e 55 anos para mulheres.
Os maiores afetados pela PEC, no entanto, serão os servidores que ingressaram no serviço público depois de 2003 e antes de 2013 e que não optaram pelo fundo de aposentadoria complementar. A regra de transição a que eles serão submetidos exigirá mais tempo de trabalho para ter acesso à aposentadoria e um tempo de serviço público de 20 anos. Para eles, a PEC reduz o valor do benefício, pois o cálculo passa a considerar todas as contribuições realizadas durante o período de atividade. Hoje, o cálculo considera 80% das maiores contribuições.
Para aprovar a sua proposta de reforma da Previdência, o governo Bolsonaro terá, portanto, que enfrentar as grandes corporações de servidores. Foi esse embate que inviabilizou a reforma do ex-presidente Michel Temer, além, é claro, da denúncia contra ele apresentada pelo ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot.
Para os trabalhadores da iniciativa privada, a proposta de Bolsonaro só é mais dura do que a de Michel Temer no prazo de transição. Bolsonaro estabeleceu prazo de 12 anos. Temer propôs 20 anos. A atual equipe econômica desistiu de desvincular os benefícios assistenciais (BPC) do salário mínimo, da mesma forma que fez a equipe de Temer. Na verdade, colocou uma "isca" para elevar de 65 a 70 anos a idade mínima para a requerer aposentadoria pelo BPC e ter direito a um salário mínimo: concede R$ 400 para quem está com 60 anos e tem renda familiar abaixo de 1/4 do salário mínimo.
Maria Cristina Fernandes: Previdência testará serventia de Bolsonaro
Ambições de Moro, Guedes e caserna superam trapalhadas
A reforma da Previdência do governo Jair Bolsonaro foi talhada para arregimentar o apoio dos trabalhadores mais pobres dos centros urbanos contra a elite do funcionalismo. É este o fundamento da progressividade da proposta que reduziu a alíquota dos servidores públicos e dos trabalhadores da iniciativa privada com rendimento até um salário mínimo para 7,5% e aumentou aquela de carreiras de Estado com rendimentos alinhados pelo teto para 16,8%.
Esta será a propaganda que escorregará para a fantasia se incorporar o discurso de que a alíquota máxima será de 22%. Este percentual apenas incidirá para aqueles que recebem acima do teto de R$ 39 mil, só ultrapassado com penduricalhos que não entram na base de cálculo da contribuição previdenciária.
Entre aqueles que serão onerados com alíquotas de 16,8% estão servidores responsáveis pelo caixa do Estado (Receita, Tesouro e Banco Central), pelo sistema de Justiça (juízes, procuradores e defensores públicos) e pelas castas mais altas do Legislativo. Contra esta tropa, a proposta tem as digitais militares e a aposta redobrada na mobilização pelas redes sociais.
Entre os militares da reserva que compõem o primeiro escalão do governo, há generais que recebem aposentadorias de R$ 12 mil, o equivalente a menos de um terço dos rendimentos previdenciários da elite do funcionalismo alvo da proposta.
Ao reduzir, ainda que simbolicamente (meio ponto percentual), a alíquota dos trabalhadores de mais baixa renda, o presidente Jair Bolsonaro se dirige às periferias urbanas que engrossaram a votação do PT em 2018, e busca incorporá-las à sua base de apoio. Precisará delas para enfrentar desgastes em setores do seu próprio eleitorado que viu seu discurso de campanha envelhecer precocemente.
Ao manter a equiparação da idade mínima dos trabalhadores dos setores público e privado como cerne da proposta, o presidente apostará no discurso da justiça social para reverter o desgaste. Não terá, no entanto, facilidade em emplacar o figurino Robin Hood. Enfrentará o dissabor de trabalhadores rurais que terão que comprovar contribuição de 20 anos para uma aposentadoria hoje automaticamente concedida por idade. Encontrará ainda a resistência à elevação de 65 anos para 70 anos para o acesso ao Benefício de Prestação Continuada que atende os 3 milhões de idosos mais vulneráveis da população.
A proposta foi hábil em três lances. Mitigou os danos sobre categorias com poder de mobilização urbano, como professores e policiais. Protegeu os militares das barganhas corporativas, jogando as mudanças no seu regime para uma proposta posterior. E, finalmente, ao mandar para a legislação complementar as regras da previdência privada, também adiou o embate entre fundos de pensão de servidores e os bancos gestores de fundos de previdência.
A proposta é talhada para o embate entre redes sociais, de um lado, corredores e galerias do Congresso, espaço por excelência das corporações, do outro. O espetáculo da demissão do secretário-geral da Presidência, no entanto, mostra um golpe no modelo virtual ainda a ser superado. Um governo minoritário não é capaz de se mover sem acordos no Congresso e não é possível mediá-los quando a política é operada "on the records".
Michel Temer perdeu qualquer capacidade de operar quando teve seus diálogos com Joesley Batista expostos à luz do dia. A diferença é que a iniciativa de exibi-los partiu de um réu acuado. No governo Bolsonaro, é uma manobra apadrinhada pelo próprio presidente. Nem se o PSL fosse um partido de anjos teria chance de dar certo.
A aposta redobrada nas redes terá a 'prensa' como órgão auxiliar de sua articulação política. A surpreendente companhia feita pelo ministro da Economia ao colega da Justiça na apresentação do pacote de combate à violência e à corrupção mostra que ambos esperam que a tramitação conjunta dos projetos lhes traga benefícios mútuos.
Verbalizado ainda na transição, por Paulo Guedes, o modelo da 'prensa' parte do pressuposto de que os parlamentares não negariam reformas a um governo intransigente na defesa da moral pública. O novo Congresso ainda não havia tomado posse quando o filho mais velho do presidente se tornou vítima desse alçapão. Foi apenas a primeira. A exibição do laranjal do PSL mostrou que o partido de Bolsonaro só contribuiu com a renovação das fichas corridas do Congresso.
O enfraquecimento de Bolsonaro levou Moro a transformar o combate ao caixa dois de eixo fundamental em acessório, enferrujando precocemente a 'prensa'. O ministro deixou seu pacote refém da crítica de que tem visão unilateral do combate à violência. Credita-o mais ao endurecimento das penas do que à transparência das políticas de segurança pública e ao combate da corrupção policial.
A aliança entre Moro e Guedes ainda cobrará do ministro da Justiça a defesa de uma proposta que atinge os benefícios previdenciários de sua base no Judiciário e no Ministério Público. O ministro conta, no entanto, com o apoio de fatia das redes sociais bolsonaristas que se afastaram do presidente mas mantêm sua aposta no Partido da Justiça e em suas pretensões de poder. A aliança com os ministros da caserna é nítida no entrosamento com o qual incorporaram o combate ao narcotráfico à política de segurança nacional, ícone do alinhamento militar entre Brasil e Estados Unidos.
A dobradinha entre Moro e Guedes mostra que as ambições deste governo ultrapassam as trapalhadas da família Bolsonaro. Juntos, abriram frentes de batalha contra o Sistema S, contra os adversários da Lava-Jato e, agora, se insurgem contra as castas da Previdência. Compraram mais inimigos do que a mobilização política do governo é capaz de enfrentar. Para lhes ser útil, Bolsonaro terá que ser capaz de mobilizar a audiência.
No melhor dos cenários, a reforma da Previdência, vai operar uma mudança na base de apoio bolsonarista semelhante àquela do governo Luiz Inácio Lula da Silva. No pior, cederá espaço à aliança entre a caserna e Moro, que usufruirá da prerrogativa de liderar um Estado policial que prescinde das baionetas para se impor.
Andrea Jubé: O quarto poder
Generais despontam como o quarto poder no governo
Desde a transição democrática, há 34 anos, a articulação política não se concentrava tão ostensivamente nas altas patentes militares. A demissão do ministro Gustavo Bebianno isola o ministro Onyx Lorenzoni no quarto andar do Palácio do Planalto, ante a ascensão do general Floriano Peixoto à Secretaria-Geral da Presidência. Considerando-se o vice-presidente, Hamilton Mourão, e o porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, são cinco generais e um civil no primeiro escalão do palácio, elevando as Forças Armadas ao patamar de quarto poder da República.
Na última semana, foi uma dupla de generais que entrou em campo com a espinhosa missão de aconselhar o presidente, apaziguar as relações no entorno familiar e político e evitar a demissão de Bebianno, vista como um gesto temerário neste começo de governo. Por acaso, um desses generais exibe no currículo um curso de combate na selva, que talvez faça a diferença neste início bélico, com o abate do primeiro ministro em 50 dias de gestão.
Essa dupla é formada pelos ministros do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, e da Secretaria de Governo, general Carlos Alberto Santos Cruz, que integram o núcleo mais próximo a Bolsonaro. Eles se reuniram quase diariamente com o presidente desde o seu retorno a Brasília, na fase aguda da turbulência, quando o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ) foi a público chamar Bebianno de "mentiroso". Naquela hora, Bolsonaro já havia gravado entrevista para a televisão endossando as acusações do filho.
Heleno recebeu Bolsonaro na Base Aérea, e o acompanhou até o Alvorada, de onde saiu horas depois. No dia seguinte, uma quinta-feira, o general Santos Cruz chegou às 8 horas para despachar com Bolsonaro no Alvorada, e uma hora depois foi a vez do general Heleno. Na sexta-feira, a reunião que selou o destino de Bebianno contou com Heleno e Mourão, que foi acionado quando estava a caminho do Palácio do Jaburu, retornando de uma agenda no Mato Grosso. Era o segundo despacho de Heleno com Bolsonaro naquele dia.
No entorno de Bolsonaro, a intervenção dos generais na gestão da crise política foi comparada ao exercício do poder moderador, a principal novidade da Constituição do Império, outorgada por dom Pedro I em 1824. Tratava-se de um quarto poder que se sobrepunha e arbitrava eventuais divergências entre o Executivo, Legislativo e Judiciário. Era a "chave de toda a organização política", dispunha o texto constitucional.
O poder moderador era privativo do imperador, a quem cabia nomear e demitir livremente os ministros, e até mesmo dissolver a Câmara dos Deputados. Entre 1824 e 1889, dom Pedro I e dom Pedro II invocaram o quarto poder 12 vezes para dissolver a Câmara - em média, uma vez a cada cinco anos.
Inspirado nas ideias do pensador franco-suíço Henri-Benjamin Constant de Rebecque, o poder moderador foi concebido para que o soberano mediasse e evitasse o choque entre os poderes. A proposta era velar pela independência, equilibrio e harmonia dos outros três poderes. Passados 195 anos da Constituição do Império, o quarto poder agora é atribuído aos generais. Com interlocução de respeito e confiança com o presidente, os oficiais investiram-se da missão de zelar pela estabilidade do governo. Uma das condições era de que o presidente botasse limites na ingerência dos três filhos mais velhos - Flávio, Carlos e Eduardo - sobre o governo.
"Os generais Heleno e Santos Cruz são os sustentáculos do Bolsonaro no palácio", afirma um oficial com trânsito na cúpula do governo. A afinidade e a sintonia entre ambos - dois ex-comandantes das forças de paz da ONU no Haiti - somadas à proximidade de Bolsonaro, os credencia, segundo este oficial, como conselheiros presidenciais no cenário de instabilidade, num momento em que o governo precisa consolidar a formação da base parlamentar e concentrar-se na votação da reforma da Previdência.
Os generais Hamilton Mourão e o ex-comandante do Exército general Eduardo Villas Bôas - que já começou a despachar no Planalto, na equipe do general Heleno - despontam como forças auxiliares na missão encabeçada por Heleno e Santos Cruz. Na sexta-feira, Mourão declarou, após uma solenidade em Sorriso (MT), que "os filhos são um problema de cada família", e que Bolsonaro saberia impor limites. "Tenho certeza de que o presidente, em momento aprazado e correto, vai botar ordem na rapaziada dele".
Até agora, entretanto, o chefe do Executivo resiste ao quarto poder. Apesar da articulação dos generais para evitar ou adiar a demissão de Bebianno - cenário que prevalecia até a tarde de sexta-feira - a implosão provocada por Carlos Bolsonaro culminou na baixa do soldado. "As consequências virão depois", era a advertência que ecoava de um núcleo militar do governo no fim de semana.
Na entrevista concedida na quarta-feira, Bolsonaro colocou-se ao lado dos filhos. "Parte da mídia tenta me jogar contra meus filhos e meus filhos contra mim, não existe isso", rechaçou. Os sinais até agora são de que os filhos estarão cada vez mais presentes nas articulações governistas. Após a mediação dos generais, Carlos baixou o tom nas redes sociais, mas continua gerenciando as contas de Bolsonaro.
O senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) - sem cargo de liderança, e ainda implicado na investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro sobre o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) - tornou-se assíduo em reuniões no Planalto. Na quinta-feira, Flávio participou de reunião para discutir a reforma da Previdência com Onyx Lorenzoni, o general Santos Cruz e o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL). Na sexta-feira, Flávio acompanhou o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (PSL-AP), na primeira audiência com Bolsonaro após sua eleição.
Por fim, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ) articula para ser eleito presidente da Comissão de Relações Exteriores na Câmara. O cargo o credenciará para acompanhar as viagens internacionais do presidente: Estados Unidos e Israel estão no horizonte. Eduardo também é padrinho de dois assessores palacianos: o secretário de Comunicação Social, Floriano Barbosa, e o subchefe de Assuntos Jurídicos da Casa Civil, Jorge Antônio de Oliveira, que antes despachavam em seu gabinete.
Valor: 'Com regra atual, nem em dez anos Estados vão ajustar as contas', diz economista
"Agora pelo menos nos Estados percebe-se que o problema independe de partidos, é sistêmico. Dar alívio a Estados em troca da Previdência é resolver um problema e agravar outro que já é grande"
Por Marta Watanabe, do Valor Econômico
SÃO PAULO - Desde que foi secretária da Fazenda de Goiás em 2015 e 2016, Ana Carla Abrão participa intensamente do debate sobre as contas públicas e agora propõe uma "reforma de RH do Estado", que inclui mudanças estruturais nas carreiras dos servidores públicos e um plano de ajuste para os governos estaduais. Elaborada em conjunto com o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga e com o jurista Carlos Ari Sundfeld, a proposta se concentra em mudanças na legislação infraconstitucional.
Pela proposta, os Estados devem reconhecer o tamanho da despesa de pessoal, seja como resultado de mudanças na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), seja pela harmonização de interpretações da lei pelos Tribunais de Contas dos Estados (TCEs). Com isso, todos os Estados, diz a sócia da Oliver Wyman, ficarão acima do teto de gastos de pessoal, de 60% da receita corrente líquida no consolidado dos poderes.
O prazo para reenquadramento dos Estados, segundo a ex-diretora do Itaú, será ampliado de dois quadrimestres para dez anos. A contrapartida dos governadores será replicar em seus Estados mudanças que inicialmente seriam feitas na legislação federal, com regulamentação de avaliação de desempenho relativo dos servidores, fim das promoções e progressões automáticas e reestruturação de carreiras. As alterações precisam passar pelas Assembleias Legislativas. O ajuste seria gradual e monitorado pelo Tesouro Nacional no decorrer dos dez anos e pode, num cenário otimista, resultar em redução nominal de 30% da folha ao fim de quatro anos.
Ex-economista chefe da Tendências Consultoria, Ana Carla avalia que atualmente há um grupo de Estados que claramente caminham no sentido de mudanças estruturais para reequilíbrio fiscal. Seria o que ela chama de coalizão, formada pelos governadores João Doria (PSDB), de São Paulo, Eduardo Leite (PSDB), do Rio Grande do Sul, Ronaldo Caiado (DEM), de Goiás, Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, e Helder Barbalho (MDB), do Pará. Renan Filho (MDB), de Alagoas, destaca ela, se aproxima desse grupo em temas como a reforma previdenciária. Antes, diz Ana Carla, entre os governadores do mandato anterior, o ajuste era bandeira de vozes isoladas, como Paulo Hartung (sem partido/ES) e Renan Filho. O agravamento da crise, afirma ela, tornou o problema dos Estados mais claro. Ana Carla diz que não é possível esperar que todos abracem todas as agendas, mas à medida que a coalizão se amplia, avalia, há pautas básicas "passíveis de serem adotadas Brasil afora".
Apesar do quadro mais propício entre os governadores, Ana Carla teme que a reforma previdenciária vire moeda de troca por pacote de apoio aos Estados. O governo federal, diz ela, tem sido firme no sentido de que a reforma previdenciária é importante e prioritária. "O que me preocupa não é o governo federal, mas o jogo político no Congresso Nacional", diz. "Aqui temos uma brecha que, se for usada, será ruim. Tenho receio que, cedendo a essa pressão, mais uma vez erremos ao interpretar que o problema dos Estados é de falta de recursos, quando o problema é de excesso de gastos. Não haverá recursos suficientes para dar conta dessa trajetória de excesso de gastos." A reforma tributária, defende, precisa ser aprovada por si só porque é imprescindível para que o país tenha alguma chance de crescer.
A seguir, os principais trechos da entrevista concedida no escritório da Oliver Wyman:
Valor: Como é a proposta para ajuste dos Estados elaborada com o economista Arminio Fraga e o jurista Carlos Ari Sundfeld?
Ana Carla Abrão: A ideia é uma reforma de base, uma reforma de RH [recursos humanos] dos Estado para alterar a legislação infraconstitucional, deixando a discussão de estabilidade para depois. Mexer na estabilidade exige mudança na Constituição Federal e não há espaço para discutir isso agora, já que a prioridade é a emenda da reforma previdenciária. Nossa proposta está dividida em duas etapas: uma que trata do governo federal e do serviço público federal e uma que trata de Estados e municípios. Na esfera federal propomos três pontos. O primeiro é regulamentar critérios de avaliação de desempenho. Vamos regulamentar e estabelecer que é obrigatória a avaliação de desempenho de forma periódica num nível relativo de todo o servidor público do país. Nas avaliações de hoje, todo mundo ganha nota dez ou mil. E sabemos que os serviços públicos não são nem nota dez nem nota mil. O bom servidor público, que trabalha duro, está recebendo a mesma nota muitas vezes de outro que não é tão comprometido. O segundo ponto é acabar com promoções e progressões automáticas, que têm duas implicações nefastas. A primeira é que as pessoas não precisam se esforçar para ganhar mais ou ocupar cargos mais altos. Segundo, há impacto fiscal relevante. Porque mesmo se não der aumentos salariais a folha crescerá de forma vegetativa.
Valor: E isso afeta a capacidade de gestão da folha?
Ana Carla: Sim, tira a possibilidade de gestão do administrador público. As promoções e progressões continuarão porque fazem parte do desenvolvimento profissional, mas precisam ser vinculadas ao mérito. O terceiro ponto é resgatar a capacidade de planejamento da força de trabalho no setor público. Hoje na máquina pública se abrem concursos e não há mobilidade entre as carreiras. Então existem órgãos em que sobra gente e outros em que falta, o que gera mais concursos. O processo não tem fim. As empresas do mundo estão discutindo como lidarão com a disrupção tecnológica e o avanço da digitalização. Precisamos preparar o setor público para isso, atrair pessoas com perfil diferente, com capacidade de mobilidade dentro da máquina.
Valor: E Estados e municípios?
Ana Carla: É o outro pilar da proposta. Não é possível aceitarmos serviços públicos tão ruins num país onde mais da metade da população depende de educação e saúde pública e gratuita. Isso reforça a desigualdade social e precisa ser revertido. Os Estados e municípios são os provedores da maior parte desses serviços e é onde temos também o maior problema fiscal. Estamos alocando mal os recursos, e hoje o servidor público responsável por prover os serviços está desmotivado porque não recebe salários em razão da situação de colapso fiscal. A proposta original é rever a LRF e atualizar os conceitos de despesa de pessoal. Sabemos que nenhum Estado cumpre a LRF. Propomos rever o conceito de despesa de pessoal, reconhecer as despesas. A consequência disso é que 100% dos Estados estarão desenquadrados. A LRF estabelece dois quadrimestres de prazo para reenquadramento.
Valor: Mas o prazo não é viável.
Ana Carla: É absolutamente impossível. Não é razoável achar que os Estados vão baixar 15 ou 20 pontos de comprometimento da receita nesse prazo. Então criaríamos uma disposição transitória para, especificamente para neste momento, dar dez anos de prazo para o reenquadramento. Com os instrumentos atuais, é impossível enquadrar mesmo em dez anos. O enquadramento se dará com os Estados aderindo aos dispositivos que propusemos para o governo federal, com avaliação de desempenho relativa, proibição de promoções e progressões automáticas e revisão de planos de cargos e salários. A redução da despesa será feita de forma linear. Ao final, vão ter alguns ganhando mais, outros menos, mas teremos um contingente mais racional de servidores. Será possível dar condições de trabalho a eles e recuperar a capacidade de investimento. Com base em análise de planos de carreiras e de legislações de cargos e salários em entes federados e levando em conta uma situação otimista, a mudança pode trazer redução nominal de 30% da folha salarial ao fim de um período de quatro anos. Estudei leis de carreiras do país todo e esse modelo é muito replicável. Mesmo de forma gradual, faremos redução nominal da folha, algo impensável no modelo atual, mesmo com congelamento de salários. O congelamento não pode ser medida descartada. Nos regimes de recuperação fiscal é algo necessário, mas ele não funciona no longo prazo. Por isso é preciso revisão de cargos, salários, de leis, de processos internos de promoção, para que os reajustes sejam racionais, sustentáveis e criteriosos.
Valor: Mas a mudança nos Estados precisa ser antecedida por uma alteração da LRF?
Ana Carla: A alteração é para fazer os Estados reconhecerem a despesa de pessoal. Muitos dizem que essa discussão da LRF pode flexibilizar ainda mais as condições aos Estados. Um caminho alternativo é esse movimento dos TCEs, motivado pelo Tesouro Nacional, de criar padronização sobre as despesas de pessoal. Isso pode ter o mesmo impacto da revisão da LRF.
Valor: Mas esse movimento dos TCEs não é tão uniforme, certo?
Ana Carla: Eu sou otimista no sentido de finalmente haver autocrítica e pelo menos os absurdos desaparecerem, como retirar do cálculo da despesa de pessoal o Imposto de Renda sobre folha, os pensionistas e até aposentados. E a discussão da LRF ficaria para um momento mais oportuno. No momento em que se coloca IR, aposentados e pensionistas na conta, ninguém vai ficar com 75% porque criou-se o subterfúgio de dar auxílios sob forma de aumento e isso não estaria capturado, mas pelo menos se corrigiria na direção correta. Os Estados não podem fugir das discussões das leis locais de carreira porque os instrumentos de correção só existem com a mudanças nessas regras. É uma briga que está nas mãos dos governadores nas suas Assembleias Legislativas. Não depende da União ou do STF. O que o governo federal precisa fazer é a coordenação técnica. Não podemos deixar os Estados soltos. Quando o assunto chegar na Assembleia de cada Estado, se não houver uma onda acontecendo junto, com outros governadores indo na mesma direção, a briga fica muito mais difícil e a chance de fracasso é muito maior.
Valor: E os novos governadores estão propensos a essas mudanças?
Ana Carla: Há um grupo muito propenso, o da coalizão dos novos governadores, que são Eduardo Leite, Caiado, Zema, Doria e Barbalho. Eles se uniram numa coalizão para defender pautas de responsabilidade fiscal porque querem ter capacidade de governar. Nos Estados como Rio Grande do Sul, Minas e Goiás temos governadores assumindo esses mandatos pela primeira vez, com quatro anos pela frente e em condições de total ingovernabilidade. São forças políticas dependendo de pautas positivas para entregar um Estado com avanços daqui a quatro anos. Quando olhamos para trás, tínhamos poucos governadores nesse caminho em todo o mandato, como Renan Filho e Hartung. Agora há uma coalizão mais representativa, com maior poder de multiplicação. No mandato anterior eram vozes isoladas.
Valor: A aproximação do governador Renan Filho a essa coalizão, ao menos em algumas agendas, é importante politicamente?
Ana Carla: Sem dúvida. Renan Filho é governador reeleito e hoje mostra os resultados de uma gestão anterior responsável. À medida que a coalizão integra representantes de diversas regiões, pelo menos há pautas básicas passíveis de serem adotadas Brasil afora. Não podemos ser ingênuos de imaginar que o Brasil é um só. Não podemos ir a um extremo de todos abraçarem a mesma agenda nem cada um para si ou cada bloco defendendo a sua pauta. Senão chega no Congresso, onde as reformas têm que acontecer, e não saímos do lugar porque não há a necessária maioria ou representatividade. A vinda de Renan Filho ajuda a criar uma agenda básica comum. Ao longo dos últimos quatro anos, vimos uma divisão territorial do Brasil em que pautas importantes não sensibilizavam o Nordeste ou vice-versa. Há o bloco dos Estados exportadores querendo repasses da Lei Kandir, o do Nordeste, que depende muito do Fundo de Participação dos Estados (FPE), o do Centro-Oeste, que defende os incentivos fiscais. E há São Paulo tratado como se estivesse contra o Brasil inteiro. A divisão sempre existirá, mas precisamos chegar a um consenso. Reforma da Previdência, necessidade de racionalizar serviços públicos, reforma tributária, por exemplo.
Valor: Então os Estados estão tentando se reorganizar entre si?
Ana Carla: Sim. Depois desse ciclo em que os governadores que saíram pegaram uma situação difícil e deixaram para o sucessor uma pior ainda, o entendimento dos problemas está mais claro. E começa a perder a característica partidária. O problema é que, com tanta polarização anterior, as agendas viraram vermelhas ou azuis. Agora pelo menos no nível dos Estados percebe-se que, independentemente de partidos, temos um problema sistêmico. Não adianta ficar culpando governador do partido contrário ao meu.
Valor: A sra. acha que Estados que baterem à porta do governo federal em busca de recursos sem buscar ajuste não terão sucesso, então?
Ana Carla: Eu tenho um temor. Temos a pauta que é a mais importante para o Brasil hoje, que é a reforma da Previdência. O medo que tenho é entrar num processo de toma-lá-dá-cá. Aqui temos uma brecha que, se for usada, será ruim. Tenho receio de que, cedendo a essa pressão, mais uma vez erremos ao interpretar que o problema dos Estados é de falta de recursos, quando o problema é de excesso de gastos. E não haverá recursos suficientes para dar conta dessa trajetória de excesso de gastos. Usar a Previdência como moeda de troca mostraria que os governadores não entenderam que a reforma é um imperativo não só para a sobrevivência dos Estado, mas também para que o país tenha alguma chance de voltar a crescer.
Valor: E o governo federal tem força para impedir o uso dessa brecha?
Ana Carla: O governo federal tem dado declarações muito firmes nessa direção, de que a reforma da Previdência é importante para todos, é prioritária e urgente. O que me preocupa não é o governo federal, mas o jogo político no Congresso Nacional.
Valor: Mas esse jogo não depende da postura do governo?
Ana Carla: Sim, e a postura do governo tem sido muito firme. O que Mansueto [Almeida, secretário do Tesouro Nacional], que é o porta-voz do governo federal para a agenda dos Estados, fala é que não há recursos e que o problema dos Estados é de despesa de pessoal e Previdência. A primeira declaração que vi diferente dessa foi do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que disse estar negociando pacote de apoio aos Estados em troca da aprovação da reforma da Previdência. Quando ele fala do governo federal e da gestão da Câmara, o discurso dele é de muita responsabilidade. Para mim, soou estranho abrir espaço para que essa negociação exista. Não se trata de deixar Estados soltos, mas misturar essa duas agendas e dar alívio aos Estados em troca da aprovação da Previdência é resolver um problema e agravar outro que já é muito grande.
Valor: Qual sua perspectiva para a economia e como isso pode afetar os Estados?
Ana Carla: Vejo de forma binária, que felizmente está pendendo mais de um lado do que para outro. O Brasil tem hoje dois caminhos. Um deles é aprovar uma reforma da Previdência decente e isso por si só é muito importante, mas tem, além disso, um impacto de segunda ordem que é abrir espaço na agenda para reformas microeconômicas, estruturantes, que vão dar ganhos de produtividade para a economia brasileira. Nesse conjunto, eu coloco a reforma do Estado. Falar em produtividade sem falar no setor público não é falar em produtividade. Se trilharmos esse caminho, juntamente com privatização e concessões, com ganhos de investimentos em infraestrutura, o Brasil tem pela frente uma perspectiva positiva, de crescimento. Não estou falando de o Brasil crescer, 5%, 7%, 10%, mas sim de retomada de crescimento com uma possibilidade de surpreender positivamente. Isso seria muito favorável para os Estados. Não tira a agenda de reformas estruturais dos Estados da pauta, mas não podemos menosprezar o impacto positivo de ter investimentos, economia crescendo, de sair pelo menos três palmos da linha d'água, já que estamos submersos. Se não tivermos reforma da Previdência, será um desastre. O Brasil terá um agravamento adicional de uma situação que já é muito grave e os Estados serão a bomba da vez. Será uma situação de colapso generalizado e entramos num processo que não quero viver. Mas estou otimista porque o primeiro caminho se mostra mais provável.
Cristiano Romero: Falta urgência na reforma da Previdência
Déficit do INSS chegará a 3% do PIB 16 anos antes
O Brasil viveu, de 2014 a 2016, a recessão mais longa de sua história. Naquele triênio, perdemos quase 8% de tudo o que produzíamos até então, a renda per capita encolheu cerca de 10% em termos reais (descontada a inflação do período), o número de desempregados superou a trágica marca de 14 milhões de pessoas e outros milhões foram devolvidos ao estado de pobreza. A crise foi tão forte que, pela primeira vez, a recuperação da economia tem sido excessivamente lenta. A rigor, há cinco anos o país não sabe o que é crescer, o que só faz agravar as tensões sociais, numa sociedade em que quase um quarto da população (uma Argentina!) é miserável, sobrevive de esmola do Bolsa Família (o mais barato dos programas sociais) e não vê no horizonte a mínima chance de emancipar-se.
O diagnóstico da tragédia - o estouro irresponsável e criminoso dos gastos públicos entre 2008 e 2015 - que se abateu sobre a 6ª maior economia do planeta é disputado hoje apenas por políticos e economistas que a provocaram. Ora, se no período mencionado o gasto federal cresceu 50% acima da variação da inflação e a arrecadação avançou apenas 17%, não há o que dizer, a não ser "Brasília, nós temos um problema".
O descompasso entre a evolução de receitas e despesas fez a dívida pública aumentar 20 pontos percentuais do PIB em dez anos - de 56% do PIB em 2008 para 76,7% do PIB no ano passado. O governo Temer, uma gestão de transição e, por causa do caos encontrado, revestido de caráter emergencial, começou a pôr a casa em ordem, propôs medidas duras e iniciou o desmonte de uma das principais fontes da irresponsabilidade fiscal que prevaleceu nos quase seis anos da presidente Dilma Rousseff - a concessão de subsídios pelo BNDES, principalmente a grandes empresas, a partir de elevação, da ordem de 10% do PIB, da dívida pública.
A estratégia do governo anterior para enfrentar o problema consistiu em três pontos: obrigar o BNDES a antecipar o pagamento do que deve ao Tesouro, uma vez que o banco estava abarrotado de dinheiro em caixa e só quitaria a dívida em 2065 (!), o tipo de compromisso daquela piada de mau gosto - "no futuro, estaremos todos mortos" -; convencer o Congresso Nacional a aprovar emenda constitucional instituindo um teto para os gastos, impedindo que a despesa tenha crescimento real (acima da inflação) em 20 anos; e apresentar projeto de emenda constitucional para mudar as regras de aposentadoria vigentes no país, uma vez que os gastos previdenciários já respondem por quase 60% do total desembolsado pela União.
Dois terços da estratégia foram bem-sucedidos - o corte de uma parte relevante dos subsídios, com o BNDES antecipando uma parte do que deve ao Tesouro e o teto de gastos está em vigor desde 2017. O bom andamento dessas providências fez o mercado acreditar que o problema fiscal estava sendo enfrentado, finalmente, com boa chance de sucesso. Isso fez com que as condições financeiras - bolsa de valores e taxas de juros e câmbio - melhorassem de forma significativa desde então.
Trata-se, porém, de uma aposta, de uma expectativa, porque falta a cereja do bolo: o fim dos déficits primários nas contas públicas, condição sine qua non para o reequilíbrio das finanças e a contenção e posteriormente redução da dívida pública. A reforma da Previdência - terceiro ponto da estratégia do governo anterior - passou pelas devidas comissões na Câmara dos Deputados e estava prestes a ser votada em plenário quando o então presidente Michel Temer perdeu, em maio de 2017, as condições políticas para aprovar medidas importantes no Congresso.
Todas as medidas fiscais anunciadas, entre as já aprovadas e as que o parlamento ainda não votou, como as mudanças nas regras de aposentadoria, resolverão o grave problema fiscal? Sabe-se que não. Se o buraco não será coberto, como as condições financeiras continuam boas, sendo que as contas públicas tendem a seguir no vermelho e isso é incompatível com crescimento da economia?
A razão está no fato de o mercado acreditar que o novo governo terá vontade política e força para aprovar a reforma previdenciária neste ano. Se isso não ocorrer, os juros subirão, a taxa de câmbio sofrerá forte desvalorização, a bolsa de valores terá fortes perdas e a economia, consequentemente, continuará patinando depois de já ter vivido sua meia década perdida. O mercado transformará fé em desconfiança e todos sofreremos.
Segundo trabalho de Manoel Pires, pesquisador associado do FGV Ibre e ex-secretário de Política Econômica do antigo Ministério da Fazenda, nos últimos cinco anos as projeções oficiais do déficit da Previdência do Regime Geral de Previdência Social, o regime do setor privado, pioraram em 16 anos. "Em outras palavras, o nível deficitário de 3% do PIB, que pelas contas do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2015 só seria atingido em 2037, agora está previsto para ocorrer - pelo último PLDO, de 2019 - em 2021", revela o presidente do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV), Luiz Guilherme Schymura.
"Esses números ilustram o grande agravamento da questão previdenciária no Brasil nos últimos anos. É útil recordar que, durante a campanha presidencial de 2014, embora a reforma da Previdência fosse tema tabu entre os candidatos, suas assessorias econômicas já tinham plena consciência de que ela seria necessária", acrescenta Schymura, mostrando a falta de urgência da sociedade (não é só da classe política) em enfrentar seus mais graves problemas.
Sob a ótica fiscal, ao longo dos últimos anos houve forte deterioração das contas da Previdência. A piora vai muito além do simples acúmulo do problema não resolvido, diz Schymura, que trata do assunto na Carta de Conjuntura do Ibre. A diferença de quase dois pontos percentuais do PIB entre as projeções de déficit para 2021 realizadas em 2014 e 2018 revela que, simplesmente, trabalhou-se há cinco anos com hipóteses equivocadas e excessivamente otimistas para equacionar o problema - que, aliás, já parecia de extrema gravidade desde 2014.
O que, afinal, fugiu tanto do figurino projetado em 2014 para tornar o problema previdenciário brasileiro ainda mais colossal do que se imaginava? Sem dúvida nenhuma, observa o presidente do Ibre, a intensidade da queda do PIB de 2014 a 2016 não estava no radar dos analistas no fim do primeiro mandato de Dilma.
Claudia Safatle: Plano B de Guedes pode virar um Plano A
O Congresso, que vive de "migalhas", tem função nobre
O "Plano B" do ministro da Economia, Paulo Guedes - que é desvincular e desindexar todo o orçamento da União - pode vir a se transformar em "Plano A". Desde que lançou, no discurso de posse, a ideia do "Plano B" na hipótese do Congresso não votar a Previdência, Guedes tem sido incentivado a prosseguir nesse debate mesmo se a reforma for aprovada, pois ele revolucionaria as leis orçamentárias e, com elas, os costumes na política.
Prefeitos, governadores, ministros do Tribunal de Contas da União (TCU), do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), quando se informam da extensão e dos impactos de uma medida dessa natureza, se entusiasmam. "Essa é uma forma de criar um novo modo de se fazer política no Brasil", disse o ministro no discurso de posse.
Vários dos seus interlocutores o tem aconselhado a levar adiante a discussão mesmo depois de aprovada a nova Previdência.
O plano alternativo de Guedes significa atribuir ao Congresso Nacional sua real função: controlar o Orçamento e estabelecer prioridades na alocação dos recursos públicos. As receitas dos impostos extraídos da população devem voltar para ela sob a forma de prestação de serviços públicos eficientes que sirvam para reduzir as desigualdades crônicas do país.
Hoje, como se sabe, cerca de 96% do Orçamento da União é carimbado, tem as receitas vinculadas legalmente ou constitucionalmente a despesas pré-determinadas.
Uma parte vai para a saúde (cujo orçamento é indexado à receita), outra para a educação (que indexou à inflação), além de gastos com abono salarial, seguro-desemprego, subsídios, pagamento de salários do funcionalismo e das aposentadorias do INSS (trabalhadores do setor privado), do RPPS (servidores públicos) e dos militares. Essas são as grandes contas.
A história conta que o embrião da lei orçamentária surgiu na Inglaterra quando o rei João Sem Terra teve que, no ano de 1215, assinar a Carta Magna, pressionado pelos barões feudais para limitar o poder do rei de criar impostos. Os barões que integravam o "Conselho Comum" colocaram no início do artigo 12 da Carta o seguinte texto: "Nenhum tributo ou auxílio será instituído no reino, senão pelo Conselho Comum (...)". As exceções ficaram por conta de algumas despesas palacianas.
É claro que essa imposição gerou conflitos, mas fincou-se alí o princípio de que impostos só podem ser criados com o consentimento do Parlamento. A prática espalhou-se por outras nações e foi aperfeiçoada. O orçamento passou a ser importante peça da política econômica dos países. A questão orçamentária está, portanto, ligada umbilicalmente ao nascimento do Parlamento.
No Brasil, porém, subverteu-se os procedimentos.
De um Orçamento anual da ordem de R$ 1,5 trilhão, deputados e senadores têm direito de decidir sobre não mais do que R$ 10 bilhões. O Congresso Nacional cuida das migalhas.
Em recente encontro com prefeitos, depois de explicar o "Plano B", Guedes ouviu de vários a pergunta: "Onde é que eu assino isso aí?".
Dirigentes da Frente Nacional dos Prefeitos que estiveram com o ministro relataram o que acontece, na vida real, com o dinheiro carimbado que recebem para aplicação compulsória em saúde e educação. Um deles contou que na cidade que comanda a população envelheceu e precisa com urgência de mais ambulâncias, mas o dinheiro que sobrou é o da educação.
Se ele usar esse recurso na saúde, o Tribunal de Contas do Estado (TCE) vai puni-lo, embora não haja um caso em que o tribunal puniu o governador que quebrou seu Estado.
É tão absurda a situação que o déficit no ano passado poderia ser maior do que os R$ 130 bilhões registrados. Isso ocorreu porque uma parte do dinheiro ficou 'empoçada'.
Na linguagem dos técnicos isso significa que a verba foi liberada pelo Tesouro Nacional mas os ministérios não conseguiram gastá-la. Os dados oficiais, divulgados pelo Tesouro, apontam um "empoçamento" de R$ 7,3 bilhões no encerramento do exercício de 2018, explicado pela "rigidez alocativa" do Orçamento.
É totalmente legítimo, correto, defender a destinação prioritária de recursos para educação e saúde no Brasil. O que não é certo é estabelecer na Constituição de 1988 uma vinculação draconiana do uso do dinheiro público, a ponto de uma cidade precisar de mais recursos para a saúde, mas a verba disponível na gaveta do prefeito tem que ser aplicada na educação ou vice-versa.
Não são raros os casos em que os prefeitos pintam as escolas no início do ano e dão outra mão de tinta no fim do ano, para cumprir integralmente o orçamento destinado à educação. Guedes defende um novo pacto federativo, que inverta a concentração de recursos na União - é no município que se exerce a democracia -e libere os governos locais de amarras tresloucadas.
Com mais um ano de engessamento de 96% do Orçamento da União não será possível cumprir a lei do teto, tem alertado o ministro. Só o déficit da Previdência, que é a maior despesa, cresce quase R$ 50 bilhões por ano.
"Estamos indo em uma velocidade vertiginosa em direção ao caos. Sem a reforma da Previdência, vou me declarar incapaz de ajudar", disse ele em recente jantar com empresários e jornalistas, patrocinado pelo site Poder 360.
O caos será, na sua descrição, assistir o colapso da política fiscal com a explosão do teto da despesa, da inflação e um "calote" na dívida interna, caso não se aprove a nova Previdência.
Estimulado por políticos e por autoridades do Poder Judiciário, o ministro pediu a técnicos que rascunhem uma proposta de emenda constitucional (PEC) para desvincular, desindexar e descentralizar o Orçamento da União.
Na hipótese de conseguir do Congresso tanto a aprovação da reforma da Previdência quanto da PEC do "Plano B", o Brasil vai crescer 5% a 6% ao ano. Com seu jeito eloquente, ele exagera: "Vamos dormir no Brasil e acordaremos na Alemanha!".
César Felício: À espera do condutor
Cenário para reforma é favorável, mas não é possível errar
O mundo político tende a aguardar o restabelecimento pleno do presidente Jair Bolsonaro para dar início à batalha pela reforma da Previdência. Não há possibilidade de delegar responsabilidades neste momento dada a baixíssima tolerância ao erro que existe em relação a este tema no Congresso e no mercado.
Bolsonaro governa nas circunstâncias históricas mais propícias nos tempos recentes para realizar uma reforma da Previdência substantiva. É uma constatação mesmo de fontes que não têm motivos para apoiar o ajuste. A pista livre e seca, contudo, não impede que o condutor lance o carro no barranco. Ninguém pode arbitrar a negociação a não ser o presidente da República, que precisa curar-se de uma pneumonia antes de decidir sobre a idade mínima.
Um atraso de alguns dias na alta de Bolsonaro, por si só, não tem muito efeito na reforma. Como alerta o cientista político Cristiano Noronha, vice-presidente da consultoria Arko Advice, antes da instalação da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, a emenda da Previdência não tem como tramitar. Ressalvada a possibilidade do quadro de saúde do presidente se deteriorar, o que parece causar algum ruído entretanto são possíveis erros de comunicação sobre a recuperação presidencial da cirurgia de reversão da colostomia. Quem já passou pelo procedimento considerou exageradamente otimista as previsões iniciais de que a cirurgia duraria apenas três horas, e de fato ela durou mais, bem como avaliou que a previsão inicial de alta em apenas uma semana pouco conservadora. Talvez fosse mais prudente não ter alimentado este tipo de expectativa. Mas quem defende uma reforma profunda tem motivos para estar razoavelmente otimista.
Bolsonaro retoma a meada que Temer interrompeu depois do vendaval da JBS, com a legitimidade do voto e o mérito de ter tratado do tema durante a campanha. Não prometeu manter direitos "nem que a vaca tussa" como a sua antecessora Dilma. O agravamento da crise fiscal empurra governadores e prefeitos para se envolverem na reforma da Previdência, de um modo que não se observou no governo de Lula. A mudança nas regras atuais conta com apoio quase consensual da mídia e o ministro da Economia, Paulo Guedes, conta com um grau de credibilidade que compensa fartamente a sua inexperiência na máquina pública.
Por último, Bolsonaro tem contra si uma oposição no meio sindical, enfraquecida, não apenas pela reforma trabalhista de 2016, mas também pela derrocada petista, o que não era o caso de Fernando Henrique Cardoso nos anos 90. "O governo tem todas as condições para aprovar a reforma", resumiu o cientista político Antonio Queiroz, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Está portanto nas mãos do presidente a aprovação da proposta.
Cabe a Bolsonaro não errar. Nada menos que 23 dos novos deputados atendem pela alcunha de capitão, sargento, major, cabo, delegado ou general. Destes, 14 são do PSL, ou quase um quarto da bancada da sigla. Os deputados com patente, um deles inclusive com o hábito de andar fardado pelo Congresso, representam pouco mais de um terço dos 61 integrantes da "bancada da bala", segundo cálculo do Diap. Bolsonaro não conseguirá fazer uma reforma da Previdência ampla sem pactuar com cuidado a situação de policiais e militares.
Reduzida a 77 deputados, de acordo com o Diap, a bancada ruralista tende a pressionar por condições diferenciadas para o trabalhador rural. Esta também deve ser uma demanda da bancada nordestina, de forma um pouco generalizada. São representantes de Estados em que o eleitorado rural ainda representa um contingente importante. Por outro lado, a proposta de capitalização da previdência tende a mobilizar os deputados de alguma forma vinculados ao sistema financeiro.
Definidas as linhas gerais do texto e azeitada a articulação, Bolsonaro precisa calibrar o calendário. Uma reforma da Previdência ambiciosa, por meio de uma emenda constitucional nova, não se aprova em poucas semanas, como quer fazer crer o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Há que se pensar, com muito otimismo, em aprovação na Câmara em julho e no Senado entre setembro ou outubro, se tudo der certo, na avaliação de Queiroz. Ele lembra que a reforma mais rápida foi aprovada por Lula em 2003, e tramitou por nove meses no Congresso. Ainda assim, foi votada depois de um acordo para que o Senado sugerisse alterações em uma PEC paralela.
Reforma trabalhista
O fenômeno não é brasileiro, é global: a automação da indústria, que começa a se estender para o setor de serviços, destrói empregos e induz a um movimento de redução de custos do trabalho. A liberalização do comércio mundial, e, em alguns casos, da imigração reforçam a tendência de desvalorização da mão de obra local.
Se a realidade por si só é amarga, a mistificação não precisaria ser feita. Soa cínico o discurso oficial de que o trabalhador jovem poderá optar no futuro entre ter uma carteira de trabalho azul, a porta da esquerda, com todos os direitos e poucas ofertas, ou outra verde-amarela, porta da direita, produto da livre negociação entre empregado e empregador.
Jovem que entra no mercado de trabalho não tem outro ativo para oferecer a não ser a disposição para topar qualquer empreitada. Não está na posição de escolher coisa alguma. Está claro que quem terá a opção é o empregador, a quem caberá estabelecer todas as cláusulas contratuais. A relação é obviamente assimétrica.
Na construção do discurso antitrabalhista oficial ganha destaque a identificação da CLT com a Carta del Lavoro, de Mussolini. Confundem, deliberadamente, ideologia com história. É fato que Getúlio inspirou-se no ditador italiano, mas Mussolini não era um demiurgo. Os acontecimentos históricos nas primeiras décadas do século 20, em especial a Revolução Russa e a catástrofe de 1929, levaram ao poder governos que procuraram intervir nas relações sociais para mantê-las sob controle. Foram criadas válvulas de escape, na Itália fascista, nos Estados Unidos de Roosevelt, no Reino Unido durante os governos trabalhistas, na Argentina de Perón, no México de Cárdenas. É por um imperativo histórico, e não ideológico, que no mundo inteiro estes mecanismos de proteção estão sob ameaça ou sendo revertidos.
Elena Landau: Boletos de janeiro
O que mais me tira do sério é o boleto do Conselho Regional de Economia
Dizem os poetas que abril é o mês mais cruel e as águas são de março. E eu acrescento: janeiro é o mês dos boletos. É nessa época do ano que as contas resolvem chegar todas de uma vez. Não sou daquelas que acham que imposto é roubo, nem que a sonegação se justifica porque o Estado falha na prestação de serviços. Mas não consigo evitar a irritação ao pagar IPTU e IPVA. Como contribuinte só me resta pagar e exigir uma melhor atuação do poder público.
Não vejo nenhum sinal de contrapartida desses impostos, pelo menos não na cidade onde moro – a Maravilhosa. A cidade do Rio nunca esteve tão abandonada, suja e insegura. Da língua negra na praia de Ipanema ao esgoto a céu aberto na periferia, o retrato é de abandono. Como diria o saudoso Bussunda, “se na zona sul está assim, imagina na Jamaica”.
A vida dos donos de veículos não é fácil. As ruas esburacadas e mal sinalizadas são um perigo constante para os motoristas, pedestres e para os carros, que às vezes são engolidos pelas crateras no meio das pistas de Cordovil. O número de consertos de buracos caiu pela metade desde 2015, enquanto as reclamações em aberto triplicaram.
O caso da taxa do Detran, cobrada com o IPVA, é surreal. O governador Witzel acabou com a exigência de vistorias anuais, mas manteve a cobrança. Óbvio que iria parar na Justiça.
É verdade que sem a reforma da Previdência, sobra pouco do Orçamento para investimentos públicos, mas o descuido que se vê pelo Rio vai muito além da falta de recursos. Parece um caso de desamor mesmo.
Agora, o boleto que realmente me tira do sério é o do Conselho Regional de Economia (Corecon). Não há nada que justifique a sua existência quanto mais a dupla contribuição obrigatória: na pessoa física e na pessoa jurídica, mesmo quando os sócios já pagam a taxa.
A Lei 1.411, de 1951, em seu art. 6.º cria o Conselho Federal e os Regionais de Economia e estabelece que eles possuem poder delegado da União para orientar, disciplinar e fiscalizar a profissão de economista. É assinada por Getúlio Vargas, claro.
O seu art. 7.º é inacreditável. Ele traz as atribuições dos conselhos. Dois incisos saltam aos olhos: a) contribuir para a formação de sadia mentalidade econômica através da disseminação da técnica econômica nos diversos setores de economia nacional; e g) promover estudos e campanhas em prol da racionalização econômica do País.
Parece piada, mas não é. Mentalidade sadia é o que menos se vê no panfleto intitulado Jornal dos Economistas, uma publicação conjunta do Corecon-RJ e Sindecon- RJ, o sindicato de economistas. O número deste mês é dedicado à avaliação da economia sob Bolsonaro. Traz o artigo “Acima de tudo e de todos, a tirania do mercado” e a imperdível avaliação da política econômica de Bolsonaro assinada por Roberto Requião.
É evidente que não se trata de um órgão de fiscalização, mas de divulgação de opiniões muito pouco saudáveis. O Corecon é mais um dos inúmeros cartórios dispensáveis neste País. Casos como a tragédia de Brumadinho, ou o do dr. Bumbum, que andam por aí, justificam a existência de Conselhos de Engenharia ou Medicina, mas um mau economista não põe em risco a vida de ninguém. Pode acontecer de jogar 14 milhões no desemprego e derrubar o PIB em 10%, em apenas dois anos. O jornalzinho do conselho, no entanto, vinha recheado de elogios à irracional política econômica de então.
A proximidade com sindicatos da classe explica porque o Corecon-RJ se recusou a auxiliar economistas que denunciaram a cobrança sindical indevida após a reforma trabalhista. Também explica que em seu site se faça campanha contra a Reforma da Previdência. Eu me recuso a ser disciplinada por um órgão que desconhece os conceitos básicos de economia. Mas fazer o quê? Se eu não pagar a anuidade, talvez fosse impedida pela fiscalização de assinar essa coluna como economista.
Pouca atenção se dá aos muitos cartórios inúteis neste País, tanto no conceito, ou seja, sem razão para existir, como na atuação fiscalizadora. Já acabamos com a contribuição sindical obrigatória e esse governo está reavaliando o Sistema S e seu financiamento, que tal rever, caso a caso, a necessidade de existência desses conselhos de classe também? O de Economia tenho certeza que é totalmente desnecessário, a cobrança de anuidades é apenas um achaque.
Espero que a renovação no Congresso com chegada de um grupo de verdadeiros liberais nos livre de mais está herança getulista.
*Economista e advogada
César Felício: No Legislativo, a tradição que se renova
Rodrigo Maia pode virar o negociador central da reforma
O resultado da eleição para o Congresso Nacional no ano passado, com o extermínio de lideranças parlamentares consagradas, prometia uma revolução nos usos e costumes das duas Casas. Nada indica que será assim nas eleições para as presidências das mesas diretoras da Câmara e do Senado, que começam hoje e podem se estender até sábado.
Entre os deputados, Rodrigo Maia caminha para uma reeleição tranquila. No Senado o quadro é mais nebuloso, com algum favoritismo de Renan Calheiros, o que significaria o prolongamento da hegemonia do MDB. Seus adversários a mais curta distância são Tasso Jereissati, Simone Tebet e Davi Alcolumbre. Salvo na hipótese de vitória deste último, a combinação de resultados na Câmara e no Senado indica um Legislativo que pode convergir com o Palácio do Planalto, mas não será dócil a ele. O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, pode ficar muito fragilizado e perder relevância na negociação da reforma da Previdência.
Um articulador da candidatura de Maia relatou como o deputado resistiu ao vento renovador e construiu sua frente. O atual presidente da Câmara entrou em contato com todos os novos parlamentares, inclusive com os recém-chegados na atividade política, antes mesmo de começar a receber o aval das cúpulas.
O primeiro momento delicado envolveu o PSL. Uma briga interna no partido deixou evidente, em grupo de WhatsApp, que o filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, operava contra Maia.
Para que o PSL fosse enquadrado, acionou-se o ministro da Economia, Paulo Guedes, com quem Maia tem antiga relação. O ministro foi à luta, encontrou-se com a bancada do PSL e teria tratado do assunto também com o presidente. A mensagem foi a seguinte: para se aprovar a reforma da Previdência, era preciso reeleger Rodrigo Maia. Se a ideologia prevalecesse na escolha do novo presidente da Câmara, os obstáculos seriam muito mais relevantes.
Na condição de fiador da reforma da Previdência, será o deputado do DEM o negociador principal do texto que irá a voto na Casa. Onyx ficará escanteado na negociação como ficou no processo eleitoral do Legislativo, no que depender de Maia.
Para manter a rédea firme no processo, é provável que Rodrigo Maia trabalhe para que a relatoria da reforma da Previdência continue nas mãos de Arthur Maia, que é do DEM e que exerce a mesma função em relação à reforma encaminhada pelo ex-presidente Michel Temer.
O segundo obstáculo sério no caminho de Rodrigo Maia foi o PP. O partido reagiu mal quando se tornou pública a guinada do PSL em direção ao atual presidente da Câmara e em razão disso a candidatura de Arthur Lira (AL) ganhou impulso. Segundo o articulador de Rodrigo Maia, o PP é muito mais perigoso do que o PSL, por ser muito mais orgânico na Câmara. É um partido conhecedor dos meandros que poderiam forjar uma aliança letal com a esquerda.
No PSL há uma grande incidência de influenciadores digitais, mas para a alegria dos veteranos, seu peso político é muito relativo. Os 'youtubers", como é usual entre as subcelebridades, querem cada um brilhar por conta própria, não formam correntes entre si. Salvo os integrantes de movimentos suprapartidários, como o MBL, atuam de modo isolado. Com os deputados eleitos sem vida política ou partidária anterior, Rodrigo Maia jogou na retranca: os encontros foram amenos, sem uma barganha clara de favores por votos.
No Senado, Renan tenta se impor dentro de um paradoxo: é o candidato com mais aceitação e mais rejeição simultaneamente. Suas pretensões ganharam força conforme a evolução das desventuras do senador eleito Flávio Bolsonaro. O filho do presidente pode vir a necessitar de blindagem no Conselho de Ética para sobreviver como parlamentar, e ninguém poderá oferecê-la com mais desenvoltura do que Renan. O senador alagoano conta com três capacitações em seu currículo: é um especialista em sobreviver, em salvar aliados, como José Sarney na década passada, e em afundar aliados, como Collor, na década retrasada, e Dilma, há apenas três anos. Nestes campos, Tasso e Simone Tebet não se comparam a ele.
Embora o próprio Flávio Bolsonaro tenha acenado com neutralidade, o presidente e seu entorno foram longe demais nas articulações contra Renan, sobretudo Onyx Lorenzoni. No Senado, a preferência oficial foi para um dos candidatos, Davi Alcolumbre, que encontra dificuldades em se firmar como a alternativa anti-Renan. O alagoano ofereceu a paz ao Planalto, mas pode se eleger com o sangue nos olhos, a depender do que acontecer hoje no Senado.
Resta claro, portanto, que a partir de fevereiro existe o risco de as duas casas do Congresso desencadearem uma ofensiva para derrubar o ministro da Casa Civil, com o endosso do ministro da Economia. A salvaguarda de Onyx é a de ser um bolsonarista de primeira hora, ao contrário da elite parlamentar. Chegou no entorno do presidente antes de Guedes, e a lealdade sempre é um ativo valorizado por presidentes sem uma base política muito ampla.
Para a reforma da Previdência trafegar com mais facilidade, o avanço de uma agenda conservadora no Congresso pode não ser suficiente. Haverá pressão para a distribuição de cargos nos Estados. A cúpula engoliu em seco não ter mais o comando dos ministérios, mas os cargos de menor escalão são vitais para a base. Vocalizar esta pressão de alguma maneira poderá ser a primeira missão que caberá a Rodrigo Maia desempenhar.