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César Felício: No limite, lá "nos finalmentes"

Bolsonaro e Congresso conversam, com o revólver à mesa

O mais ilustre admirador de Olavo de Carvalho gosta do fio da navalha. Ao assinar o decreto que permite o rearmamento da sociedade, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que foi "no limite da lei". "Não inventamos nada e nem passamos por cima da lei. O que a lei abriu de oportunidade para nós, fomos lá no limite. Lá nos finalmentes".

Em ocasião muito anterior, Bolsonaro afirmou que, no que depender dele, oferecerá aos trabalhadores regras que "beiram a informalidade". É um presidente na fronteira, no limiar da irresponsabilidade. Mas que não cruza a linha divisória.

Ao longo dos seus 28 anos como deputado, que lhes deixaram o cheiro impregnado no paletó, como disse na cerimônia de anteontem, Bolsonaro se acostumou a nunca compor. Também nunca rompeu: a quebra da institucionalidade foi um arroubo da juventude, quando chegou a ser acusado, em matéria da revista "Veja" de 1987, de ter desenhado croquis para a instalação de bombas na adutora do Guandu. Ao ser absolvido pelo Superior Tribunal Militar, no ano seguinte, já estava virtualmente fora do Exército, em campanha bem sucedida para vereador.

Olavo de Carvalho não foi importante para Bolsonaro ganhar a eleição, ao contrário do que o presidente diz. O aiatolá da Virgínia e seus jagunços digitais são importantes agora, para Bolsonaro testar seus limites frente aos que podem tutelá-lo ou àqueles que tem a atribuição constitucional de controlar o Executivo.

Retratar Olavo de Carvalho como o Rasputin dos tempos atuais talvez não seja a melhor analogia. Rasputin era um charlatão que seduziu a família do czar, era visto como um enviado de Deus, e a partir daí passou a exercer influência na corte. A comparação será válida caso o olavismo se volte, com o mesmo 'placet' régio que desfruta hoje, contra determinados personagens a quem não interessa ao presidente desestabilizar, ao menos por enquanto, como Paulo Guedes e Sergio Moro. Há método no modo bolsonarista de agir, e não desnorteio.

O presidente sabe que conduz um governo de minoria parlamentar e usa as redes sociais como quem coloca um revólver sobre a mesa. Não há sinais de que pretenda dispará-lo contra o Legislativo, porque sabe que o outro lado também está armado. A maneira como a elite política aniquilou Dilma Rousseff ainda é uma lembrança viva na mente de todos em Brasília.

Bolsonaro pode colocar o verniz ideológico que desejar em suas atitudes, tentar transformar as escolas e universidades em quartéis ou fiscalizar publicidade do Banco do Brasil durante o resto de seu governo, mas jamais conseguirá suprimir o fato de que comanda uma máquina pública falida, limitada na capacidade de induzir crescimento ou de conter as consequências sociais do ajuste que lhe é imposto fazer.

Para pagar as contas, lacração no Twitter não é suficiente. Ele precisa do Congresso para não naufragar. Como há disposição entre os parlamentares em aprovar alguma reforma da Previdência, há jogo, desde que Bolsonaro aprenda a ceder.

A quinta-feira terminou com os bolsonaristas na Câmara obstruindo a votação da medida provisória da reforma administrativa, naquele que seria o grande teste da base no Congresso. A aliança tática contra Moro entre o Centrão e a oposição na Comissão Especial que analisou o tema sugere a abertura de uma vertente perturbadora para o Executivo. Tudo isto em um dia que começou com um café da manhã de parlamentares com o coração do governo: o próprio presidente e Santos Cruz, Paulo Guedes e Onyx Lorenzoni.

A semana irá virar com a corda esticada, o que aumenta o cacife de Rodrigo Maia como negociador. A julgar pelo retrospecto de Bolsonaro, o mais provável é que o presidente redobre a aposta na crispação. Haverá mais dança sobre o vulcão.

Quanto à guerra entre Olavo, seus seguidores e os generais, há um componente inequívoco de luta por espaço dentro do governo. Não à toa, coincide com o desenrolar da crise a demissão da militante Letícia Catelani de uma diretoria da Apex, por obra do novo comando da agência, nas mãos de um militar.

Era uma queda previsível, desde que o contra-almirante Sergio Segovia foi nomeado para a presidência do órgão, no dia 2 de maio, quinta-feira, em ato tornado público no dia seguinte, em edição extra do "Diário Oficial da União".

Naquele dia, Letícia escreveu em redes sociais que estava sendo alvo de "diversos ataques". O tiroteio de Olavo contra Santos Cruz, tido como o mentor da mudança, começou no sábado. Letícia perdeu o cargo na segunda-feira, dia 6, data em que o ex-comandante militar do Exército, general Eduardo Villas Bôas, saiu em defesa do ministro da Secretaria de Governo.

Enquanto foi diretora de Negócios da Apex, a empresária entrou em atrito com dois presidentes da agência, ambos defenestrados: Alecxandro Carreiro e Mario Vilalva.

Audácia
Sérgio Cabral Filho está condenado oito vezes na primeira instância, com penas que somam 197 anos. Acumula 29 denúncias por corrupção e lavagem de dinheiro. Nos últimos meses, em depoimentos ao juiz Marcelo Bretas, começou a confessar ter sido protagonista de esquemas de propina no Rio de Janeiro desde meados dos anos 90, quando se tornou presidente da Assembleia Legislativa. Buscou comprometer seus antecessores no governo do Rio de Janeiro, os seus sucessores, o cardeal, o prefeito da capital, seu antecessor e um vasto et cetera. Provoca um certo espanto portanto a publicação de um artigo seu no jornal "O Dia", em que se aventura a recomendar ao presidente Jair Bolsonaro a privatização da Petrobras.

"Em busca do tempo perdido, presidente, venda a Petrobras. Os bilhões de barris do Pré-Sal só serão usufruídos pelo povo brasileiro se forem explorados, no máximo, nos próximos dez anos. Há profissionais maravilhosos na Petrobras, de gabarito internacional. Todos serão absorvidos pelas empresas privadas". Ao apenado nunca lhe faltou audácia.


Cristiano Romero: Disputas intestinas de poder marcam governo

Gestão Bolsonaro é caracterizada por contradições

Em Brasília, vistos de perto muitos fatos têm significado distinto ao que sugere o senso comum. Narrativas lineares costumam ser desmoralizadas pelas artimanhas dos atores políticos. Numa democracia, e a brasileira é uma das maiores do planeta, tem enorme vantagem na corrida quem sabe o que está acontecendo e quem, por ser bem informado e conhecer o perfil dos corredores, consegue antecipar com alguma acuidade os resultados.

Na capital federal de um Estado democrático, presume-se que o presidente seja o sujeito mais bem informado. A maioria das informações lhe chega por meio de fontes primárias - banqueiros, grandes empresários, caciques políticos, ministros relevantes (da Economia, da área militar, da Justiça, que controla a Polícia Federal), serviços de inteligência, chefes de Estado de outros países. Presidente desinformado é presidente fraco.

Não é à toa que, na outra face de democracias de massa como a americana e a brasileira - a economia de mercado -, deter informações que só chegam aos concorrentes mais tarde dá a alguns competidores vantagem extraordinária. Nesse caso, informações do mundo político são tão importantes quanto as do negócio propriamente dito. Empresário que não sabe bem o que acontece no centro do poder, especialmente numa democracia jovem como a da Ilha de Vera Cruz, onde a instabilidade é irritantemente periódica, é sério candidato a fracassar.

Gaste um tempinho para observar as personalidades de seu tempo. Feche os olhos e pense nos protagonistas. Sim, sua diligência vai lhe sugerir os personagens dominantes, se você for um observador da cena nacional. Pergunte, por exemplo, a Delfim Netto e a Armínio Fraga a que horas eles concluem a leitura dos principais jornais do país.

Em Brasília, sede de uma democracia representativa, observam-se atentamente os movimentos de dois tipos de político: os que detêm poder real, como o presidente da República, o ministro da Economia e os presidente da Câmara e do Supremo Tribunal Federal; e aqueles que têm expectativa de poder, caso, por exemplo, de quem governa o Estado de São Paulo, dono do segundo orçamento público do país e cuja economia responde sozinha por 33% de tudo o que este imenso país produz.

Afinal, depois de quase cinco meses de mandato, o que é o governo Bolsonaro? Para onde está levando esta nação de quase 210 milhões de habitantes, uma das maiores do planeta, dona da 9ª economia? Por que ninguém sabe responder a uma pergunta, em tese, tão básica?

A resposta não reside no fato de Bolsonaro representar a maior novidade eleitoral em 34 anos de Nova República. Ter chegado ao topo do poder, por meio de eleição direta, é uma supernovidade inclusive para Bolsonaro, que nos 28 anos anteriores de vida pública, exercidos na Câmara dos Deputados em sucessivos mandatos pelo Estado do Rio de Janeiro, foi pouco notado pela chamada opinião pública. Seu papel na política nacional foi no mínimo excêntrico.

O que torna difícil entender a gestão do presidente são as contradições que caracterizam sua ação política. As crises de seu governo não são provocadas pelo embate com a oposição. Esta parece estar adormecida, ainda perplexa com a ascensão de um político de ultradireita que nunca ofereceu risco à alternância de poder entre o PSDB e o PT desde 1994. Mas, no novo governo, disputas intestinas não são travadas apenas nos bastidores, mas ao ar livre, com o uso de retórica forte e, não raras vezes, idênticas às de torcedores fanáticos - e irracionais - de futebol.

Os eleitores "móveis", aqueles que não se identificam necessariamente com um candidato, mas votam nele para derrotar um outro contendor ou evitar a eleição ou reeleição daquele em que já votaram e deram voto de confiança e sofreram decepção, elegeram Bolsonaro para tirar o PT do poder. Não deram bola à pregação ultraconservadora do atual presidente na seara dos costumes nem para o seu passado apagado na política. Apostaram principalmente na agenda liberal de seu superministro da Economia, Paulo Guedes, ignorando o fato, porém, de que o eleito não tem a menor convicção sobre essa agenda. Na primeira curva acentuada da trajetória de seu mandato - a reação dos caminhoneiros à alta do preço do óleo diesel -, Bolsonaro reagiu com populismo, justamente aquilo a que se opôs desde que decidiu disputar a Presidência da República.

Após novos ataques do escritor Olavo de Carvalho a integrantes do governo, o grau da insatisfação dos generais do núcleo do poder com aliados de primeira hora do presidente Jair Bolsonaro tornou-se exponencial. Mas o presidente, publicamente, o presidente segue fingindo que está tudo certo. Os militares que procuram blindá-lo e protegê-lo de ruídos capazes de desestabilizar a democracia não entendem tamanha submissão a Olavo.

"O presidente se sente devedor do Olavo por ter chegado à Presidência", disse uma fonte. Ele admite que os embates provocados pelo guru de Bolsonaro, muitas vezes ampliados pelos filhos do presidente, estão provocando desgaste desnecessário à imagem do governo e dificultando a relação com o Congresso. Há uma difícil e crucial reforma da Previdência para ser aprovada.

"(Olavo) age no sentido de acentuar as divergências nacionais", disse o general Villas-Bôas há dois dias. "Mais uma vez, o senhor Olavo de Carvalho, a partir de seu vazio existencial, derrama seus ataques aos militares e às Forças Armadas demonstrando total falta de princípios básicos de educação, respeito e o mínimo de humildade e modéstia", observou. "A escolha dos militares como alvo é compreensível por sua impotência diante da solidez dessas instituições e a incapacidade de compreender os valores e princípios que as sustentam."

O presidente Jair Bolsonaro demonstra não ter consciência de que vive momento único em sua vida política. A lua de mel com os eleitores "móveis" caminha para o fim de maneira implacável, como o tempo.


César Felício: Bolsonaro, trotskista e gramsciano

Presidente representa o legado de Sylvio Frota

O presidente Jair Bolsonaro, de credenciais inequívocas na direita, de certa forma é trotskista e gramsciano. Acredita na revolução internacional permanente e aposta no estabelecimento de uma hegemonia cultural.

Bolsonaro precisa da derrota mundial da esquerda não para emergir como o líder de uma tendência, algo que jamais será, mas para subsistir. Em suas colocações e entrevistas, é frequente o raciocínio de que a era Lula não teve origem em circunstâncias muito particulares da conjuntura brasileira, mas em uma conjura de agitação e propaganda transnacional em grande parte tocada pelo Foro de São Paulo. O fim do ciclo petista no Brasil, em sua concepção, só se consolida com a repetição do fenômeno além fronteira.

Daí a importância da Venezuela em sua equação. A queda da ditadura venezuelana, se e quando se materializar, permitiria a Bolsonaro investir na radicalização no Brasil, jogando a pecha do autoritarismo na testa de seus adversários, estratégia para a qual o PT contribui de maneira estúpida, ao se solidarizar com o sangrento regime de Maduro.

Daí porque Bolsonaro se sente ameaçado por um eventual retorno de Cristina Kirchner ao poder na Argentina. E esta é a razão para a qual fez um apelo a políticos de direita no Uruguai para que derrotem a Frente Ampla naquele país. O presidente brasileiro porta-se como um cabo eleitoral de Trump, porque prefere nem pensar na hipótese de ter que lidar com alguém como Joe Biden à frente da Casa Branca. Não tanto pelas mudanças de orientação na política externa que um governo democrata faria, mas pelo impacto de uma derrota de Trump no imaginário da revolução mundial 'neocon'.

Trump não é mais uma pessoa, é uma ideia. Na visão do chanceler de Bolsonaro, o líder de uma reação da cristandade ocidental contra o globalismo. Bolsonaro precisa de Trump no poder e Maduro acuado para sustentar a sua narrativa. Assim como Trotski não acreditava na sobrevivência do socialismo em um só país, o bolsonarismo também anseia pela revolução mundial.

A vertente gramsciana do atual grupo no poder está na enorme preocupação com o suposto predomínio da esquerda no pensamento acadêmico, na intelectualidade, nos meios de comunicação. O bolsonarismo pensa a educação pública como uma ferramenta de disseminação de um pensamento político, de exercício de poder. Sem uma estratégia clara de como tomar de assalto estes aparelhos, o bolsonarismo pretende antagonizá-los, e no limite, sufocá-los financeiramente. Pela primeira vez na história brasileira, a educação pública torna-se não uma solução, mas um problema. Um obstáculo a ser transposto.

A visão de que as ameaças ao exercício do poder vêm da cultura e da conjuntura internacional foi exposta por clareza de uma espécie de um líder ancestral de alguns integrantes do governo, o general Sylvio Frota (1910-1996). Era o ministro do Exército que foi demitido por Ernesto Geisel em 1977 quando começava a articular a sua candidatura a presidente nas eleições indiretas. Frota queria aprofundar o movimento de 64, e não desmontá-lo com uma abertura, lenta, gradual e segura.

Para Frota, o marxismo buscava "infiltrar-se em quase todos os setores da vida pública brasileira, chamando de fascistas os que se opõem aos seus desígnios", conforme afirmou em uma ordem do dia de 1975, de acordo com o Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, da Fundação Getulio Vargas. No seu livro de memórias, "Ideais Traídos", cujo nome é bastante sugestivo de sua visão sobre o processo de abertura, Frota argumentou que o governo Geisel era de centro-esquerda. Acreditava que havia 97 comunistas infiltrados dentro do governo federal. A política externa do governo de então, que restabeleceu relações diplomáticas com a China e aproximou-se das recém independentes nações da África, era alvo frequente de suas críticas.

A cruzada de Frota também era contra "a existência de um processo de domínio, pelo Estado, da economia nacional - inclusive de empresas privadas - de modo a condicionar o empresariado brasileiro aos ditames do governo", conforme registrou em sua carta de demissão. O ultraconservador Frota unia assim o anticomunismo à defesa do Estado mínimo.

A demissão sumária do general desarticulou a linha-dura e consolidou o fim do regime militar dentro de um processo negociado com a classe política. Frota tentou reagir, mas a cúpula do Exército não o acompanhou.

Bolsonaro era muito jovem à época desses acontecimentos, mas as figuras que sempre nominou como referências, como o ministro do GSI, Augusto Heleno, ou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, morto em 2015, estavam na órbita do frotismo. O primeiro era ajudante de ordens do ministro, o segundo subchefe de operações do Centro de Inteligência do Exército (Ciex).

As forças que Frota reuniu em torno de si ficaram sem perspectiva de poder pouco mais de sete anos antes do insucesso da ala pragmática do regime em fazer o sucessor de Figueiredo. Não foram elas que perderam em 1985. Como escreveu Frota na sua despedida, "existe uma evidente intenção de alienar as Forças Armadas dos processos decisórios do país, açambarcados por um grupelho, encastelado no governo".

A baixa oficialidade daquele tempo, mera espectadora da briga dos estrelados, vive atualmente uma luta com os seguidores do polemista Olavo de Carvalho para deter a hegemonia do governo do capitão, mas talvez não esteja tão distante de seus contendores nas premissas básicas.


Andrea Jubé: "Imprensa brasileira, tamo junto aí!"

Não tem céu de brigadeiro na guerra da comunicação

Para quem acompanha as vicissitudes do relacionamento de Jair Bolsonaro com a imprensa, surpreendeu o armistício proposto na semana passada, na esteira do debate sobre censura e liberdade de expressão: "Imprensa brasileira, tamo junto aí! Esse namoro, esse braço estendido estará sempre à disposição de vocês, um abraço a todos aí!"

O presidente reconheceu os "percalços" na relação, mas argumentou que governo e jornalistas precisam se entender "para que a chama da democracia não se apague". Ensinou: "Melhor uma imprensa capengando do que sem ter imprensa". Um contraste ante as declarações do candidato recém eleito, que contrariado com uma sequência de matérias investigativas, ameaçou cortar verbas de publicidade de um jornal de grande circulação. "Na propaganda oficial do governo, imprensa que se comportar dessa maneira, mentindo descaradamente, não terá apoio do governo federal", ameaçou.

O pano de fundo da aparente nova postura é a batalha da comunicação, que tem de um lado o grupo alinhado ao filósofo Olavo de Carvalho e ao vereador Carlos Bolsonaro, e do outro, a ala militar que responde institucionalmente por essa área no governo.

Desde o incidente do famigerado vídeo da "golden shower" no Carnaval, a cúpula militar interveio para que o presidente adequasse sua conduta à liturgia do cargo. O cessar-fogo, o tom moderado adotado nas sete "lives" que protagonizou em sua conta no Facebook, resultam das diretrizes de comunicação instituídas pelos generais responsáveis pela área: o ministro da Secretaria de Governo, Santos Cruz, e o porta-voz, Otávio do Rêgo Barros.

Ambos são egressos da "escola de comunicação" do general Eduardo Villas Bôas, que sempre defendeu relações amistosas com a imprensa no posto de comandante do Exército (2015-2019). Villas Bôas hoje despacha no Gabinete de Segurança Institucional, ao lado do ministro, general Augusto Heleno. Ambos são bússolas de Bolsonaro no governo.

Foi por indicação de Villas Bôas que Rêgo Barros tornou-se o porta-voz do governo. Seu bordão remete a São Francisco de Assis: "Paz e bem".

Logo após o episódio da "golden shower", os generais tomaram as rédeas da comunicação. Por isso, é sintomático que a interação ao vivo de Bolsonaro com os eleitores - por meio das "lives" no Facebook - tenha começado dois dias após a postagem desastrosa do vídeo obsceno. E foi significativo que Bolsonaro aparecesse no vídeo entre Augusto Heleno e Rêgo Barros, como avalistas da chamuscada imagem do presidente.

E foi nessa conjuntura de aparente pacificação que eclodiu a nova crise de comunicação, provocada por uma publicação de Carlos Bolsonaro, contrapondo Olavo à ala militar. Um vídeo com novas ofensas do professor aos militares foi postado - e depois apagado - na conta de Bolsonaro no YouTube. O conteúdo foi replicado pelas contas de Carlos.

No vídeo, o guru dos Bolsonaro diz que a última contribuição das escolas militares para o ensino brasileiro foram os livros de Euclides da Cunha. Acusa os "milicos" de entregaram o Brasil aos comunistas, de criarem o PT e não terem coragem de confessar.

Foi o estopim de uma tensão que vinha numa escalada havia semanas, com a subsequente postagem de insultos do filósofo ao vice-presidente Hamilton Mourão e ao ministro Santos Cruz.

Houve duas consequências: a primeira, uma nota oficial de Bolsonaro divulgada ontem respondendo as críticas de Olavo aos militares. "Suas recentes declarações contra integrantes dos poderes da República não contribuem para a unicidade de esforços e consequente atingimento de objetivos propostos em nosso projeto de governo".

A segunda consequência foi o novo anúncio de Carlos - considerado o filho mais influente - de se afastar do controle das redes sociais do pai. A publicação do vídeo de Olavo é atribuída a ele nos bastidores. O aviso foi publicado em tom enigmático na noite de domingo, com uma estocada na cúpula militar. "Começo uma nova fase em minha vida. Longe de todos que de perto nada fazem a não ser para si mesmos. O que me importou jamais foi o poder. Quem sou eu neste monte de gente estrelada?"

O "monte de gente estrelada" é uma possível referência aos generais que, mais do que titulares de ministérios relevantes, consolidaram-se como fiadores do governo.

O controle de Carlos sobre as contas pessoais do pai sempre incomodou a ala militar, pelo conteúdo muitas vezes incompatível com o cargo de presidente. A primeira crise foi quando Carlos chamou o então ministro Gustavo Bebianno de "mentiroso" no Twitter. A conta do presidente replicou a ofensa. A segunda grande polêmica foi a publicação do vídeo pornográfico no Carnaval.

O problema é que no meio dessa guerra, não tem céu de brigadeiro pela frente. A promessa de Carlos de se afastar das redes sociais do pai é reprise de um filme velho: na transição, especulou-se que ele assumiria a Secretaria de Comunicação Social, com status de ministério. Mas sua nomeação configuraria nepotismo. Então ele declarou que não queria cargo, e avisou: "desde ontem não tenho mais, por iniciativa própria, qualquer ascensão [sic] às redes sociais de Jair Bolsonaro". A ameaça nunca se confirmou.

Há duas semanas, Bolsonaro admitiu em entrevista à rádio Jovem Pan que o filho controlava suas contas nas redes sociais. "Ah o pitbull? Tá atrapalhando o quê, não me atrapalhou em nada, acho até que devia ter um cargo de ministro", disse o presidente. "Ele que me botou aqui, foi realmente a mídia dele que me botou aqui, e muita gente quer afastá-lo de mim", lamentou.

Por isso, apesar do anúncio no Twitter, Carlos dificilmente se afastará das redes sociais do pai. Como bom pitbull, ele ladra e morde.

Resta às alas conflagradas no governo seguir a recomendação do presidente em sua última "live", a propósito da Páscoa: "É para refletir, pensar no próximo e perdoar". Ele se despediu com "um grande abraço nos homens e um beijo nas mulheres".


Cristiano Romero: Populismo, volver?

O populismo jogou a Argentina numa penosa decadência

O populismo costuma brotar nos momentos de fraqueza dos governantes, quando as coisas não vão bem ou quando uma política que promete o paraíso na Terra não dá certo. No caso do governo Jair Bolsonaro, emergiu em menos de quatro meses de mandato. Testado pela primeira crise real de sua gestão, o presidente reagiu de forma populista ao ordenar que a Petrobras suspendesse o reajuste do preço do óleo diesel, que não se move há mais de 20 dias, mesmo em meio à forte escalada do petróleo neste ano.

Esse era o risco mais temido pelos eleitores "móveis", aqueles que vão além da base social de qualquer candidato e que, por puro pragmatismo, são capazes de votar em Dilma Rousseff (PT) numa eleição e em Bolsonaro (PSL) na seguinte, dois extremos do espectro político nacional. Se dependesse apenas dos eleitores que se identificam com suas ideias, Bolsonaro não estaria hoje em Brasília, no comando do país cuja economia é a 9ª maior do planeta, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI) - no auge do último "boom" (2004-2010), chegou a ser a 6ª e nós, brasileiros crédulos, confiamos que ultrapassaria a da Inglaterra, tomando-lhe a 5ª posição. Depois de chegar em 2º lugar em três corridas presidenciais, Lula venceu em 2002 porque os eleitores "móveis" decidiram lhe dar um voto de confiança.

Mas, afinal, como se define um político populista? Populista é aquele que promete durante a campanha eleitoral algo que sabe que não poderá cumprir. É o governante que adota políticas que não cabem no orçamento público. Revestidas de forte apelo social, são deliberações feitas para conquistar eleitores a qualquer preço e, assim, sustentar projetos de poder.

O populismo enfraquece a democracia. Seus adeptos iludem os eleitores com a ideia de que suas ações são legítimas porque atendem aos interesses do cidadão comum, dos pobres e desvalidos. Não é à toa que, mesmo sem representação parlamentar, os pobres constam da "exposição de motivos" da grande maioria das políticas aprovadas em Brasília. Apesar disso, o nível de miséria e pobreza da população segue vexaminoso, escancarando o verdadeiro caráter de iniciativas adotadas em nome dos mais necessitados.

É curioso, por exemplo, que ninguém questione o fato de o Bolsa Família atender hoje praticamente o mesmo número de pessoas (cerca de 50 milhões, quase um quarto da população) que atendia quando o programa foi lançado, há 15 anos. O elogiado esquema de transferência de renda, de inspiração liberal, diga-se de passagem, seria mais efetivo se fosse a base para a emancipação de cidadãos que, por falta de acesso à educação e à saúde, têm desde sempre a miséria como destino e não como partida. Os beneficiários estão cadastrados, o poder público conhece suas necessidades, mas nada é feito para tirá-los dessa situação.

Historicamente, diz-se que o político populista alicia as classes sociais de menor poder aquisitivo. É um fato, mas é preciso registrar que isso só é possível graças à opinião favorável das elites culturais, que, convenhamos, não se importam em estar na companhia desse tipo de polítoco, muitas vezes até lhes dando um lustre intelectual, obviamente, imerecido.

O populismo, claro, não é exclusivo dos partidos de esquerda. A história do país é pródiga nesse aspecto. Até na segunda metade da ditadura militar (1964-1985), foram concedidas benesses, principalmente à classe média, para conter o clamor desse segmento da população pelo retorno das liberdades civis. A conta ficou para as gerações seguintes. Veio na forma de explosão da inflação, baixo crescimento do PIB, contração dos investimentos públicos etc.

Alguns indagam: "Se a medida [de caráter populista] é para melhorar a vida dos mais pobres, então, é válida". Como são adotadas sem lastro no orçamento, políticas populistas provocam, ao longo do tempo, severas crises fiscais que, no fim, aumentam a pobreza, penalizando justamente os grupos sociais que justificaram a adoção das medidas.

A América Latina é o continente onde o populismo fez mais estragos ao longo da história. O caso da Argentina, nação que iniciou o século XX entre as mais ricas do planeta, é o exemplo mais acabado do que os populistas são capazes de fazer. Outro triste exemplo é a Venezuela, onde, para supostamente ajudar os pobres, criou-se um Estado insustentável que transgrediu a democracia e colapsou a economia. Dono da maior reserva de petróleo do mundo, a nação vizinha vive as consequências do populismo desbragado: no ano passado, o PIB teve contração de 18% (neste ano, a expectativa é de novo recuo, desta vez, de 25%), a inflação chegou a incomensuráveis 1.560.000% (é isso mesmo, 1,5 milhão; neste ano, estima-se variação de 10.000.000%) e a taxa de desemprego, a 35%. O caos é a antessala de uma tragédia que pode jogar a nação numa guerra civil, evento que todos julgávamos superados, pela América Latina, depois da década de 1980.

Bolsonaro não foi eleito para fazer um governo populista. Na verdade, ao perceber que a ruinosa gestão de Dilma Rousseff disseminou forte sentimento antipetista na sociedade, ele se apresentou como aquele que, instalado no poder, faria tudo diferente. Em sua peregrinação pelo país e usando as redes sociais como veículos de propagação de sua cruzada, o então pré-candidato ainda tomou o cuidado de não se apresentar como o antiLula. Sabia que, mesmo preso em Curitiba, o ex-presidente gozava de amplo apoio popular e que a principal razão para isso foi o sucesso econômico de seus dois mandatos, medido pela elevada popularidade com que deixou o Planalto Central.

O populismo de Dilma foi do tipo que se adota após o fracasso de políticas mal traçadas, inspiradas em experiências comprovadamente equivocadas, erradas em sua essência. Quando a "Nova Matriz Econômica" fez o avião da economia brasileira embicar - em 2013 -, contrariando a política econômica que levou a ex-presidente ao poder sem nunca ter disputado um cargo eletivo anteriormente, Dilma entrou em modo pânico e passou a adotar freneticamente, dali em diante, medidas populistas que, ao fim da jornada, afundaram o país numa crise interminável e da qual ainda não saímos, passados cinco anos do início do pesadelo.


Luiz Carlos Mendonça de Barros: 100 dias de Bolsonaro: uma outra leitura

O conflito entre o novo e o velho está vivo e precisa ser resolvido dentro do sistema democrático que temos

A imprensa foi quase unânime na leitura que fez dos primeiros 100 dias do governo Bolsonaro usando, principalmente, as informações de uma exaustiva pesquisa de opinião pública realizada pela Datafolha. Este instituto adotou uma metodologia, já conhecida por nós, de comparar as informações obtidas na pesquisa de agora com as realizadas com presidentes anteriores ao atingir o centésimo dia de seus mandatos.

Em recente tweet ponderei que no caso do presidente Bolsonaro este tipo de comparação não me parece a mais adequada pelas condições de contorno de sua eleição em 2018 quando comparadas com as anteriores, E o que chamo de "condições de contorno diferentes" que tornariam tais comparações menos adequadas? Poderia citar inicialmente o fato de que Bolsonaro foi - até sua eleição - um político de pouca expressão e cuja experiência restringia-se a mandatos parlamentares no grupo chamado de baixo clero e sem nenhuma vivência de mandato mesmo no executivo municipal, ou estadual. Teria, portanto, mais dificuldades para chegar aos seus primeiros 100 dias de governo.

Se me restringisse a esta característica própria do novo presidente seria questionado quanto à experiência executiva de FHC e Lula antes de serem eleitos. Mas, replicaria eu, que estes dois ex-presidentes, apesar de sua falta de vivência no executivo, pertenciam a partidos com um longo e exitoso protagonismo na cena política brasileira. Por isto sempre estiveram participando de reflexões e mesmo decisões sobre temas nacionais e que fazem parte da agenda de um presidente eleito no Brasil. Características estas que não fazem parte do curriculum vitae de Bolsonaro.

Bolsonaro, mesmo em seu longo período no Congresso como membro do baixo clero, nunca esteve envolvido nas discussões das questões mais relevantes da agenda Brasil. Por outro lado, o partido pelo qual ele ganhou as eleições não tem história nem protagonismo pretérito na vida política brasileira e foi escolhido pelo então candidato justamente por isto. Ele não queria estar vinculado de nenhuma forma à velha política.

Mesmo ampliando com estes argumentos o campo da minha defesa contra a aplicação da metodologia Datafolha na avaliação dos primeiros 100 dias do governo Bolsonaro certamente não ganharia a aprovação da maioria dos leitores do Valor. Por isto lanço mão de um terceiro argumento: os resultados das eleições gerais realizadas no ano passado refletem um período de colapso do sistema político que prevaleceu, por mais de 30 anos, no Brasil. E uso a palavra colapso nos termos mais radicais como sendo: Estado daquilo que está desmoronando, do que está em crise ou prestes a acabar; ruína.

Mas sabemos, pela história de outros países, que o colapso de um sistema político só é inteiramente percebido pela sociedade depois de uma longa e penosa decadência. No caso da chamada Nova República, o início deste processo foi a combinação do desastre econômico criado pelos governos Lula -segundo mandato- e Dilma e a descoberta pela Lava-Jato das entranhas da corrupção que se estabeleceu na sociedade. Os testemunhos de acusados, mas principalmente dos delatores, acompanhados ao vivo e em cores na mídia, revelaram de forma crua a ação de empresários sem escrúpulos e um sistema de financiamento político que ultrapassou os limites tolerados em regimes democráticos.

Em uma sociedade massacrada pela mais longeva e intensa recessão de nossa história, com índices de desemprego e sub- emprego também nunca vistos, criou-se o clima necessário para que o regime político associado a esta situação entrasse em colapso com as denúncias de corrupção. E não poderíamos esperar outra reação dos brasileiros se não o comportamento que tiveram nas eleições com uma grande abstenção e a busca de alguém que não representasse o sistema político anterior.

Mas esta situação arrastou para a marginalidade política a quase totalidade dos partidos e lideranças do antigo regime. Todos pertenceriam ao que o candidato Bolsonaro passou a denunciar como sendo a Velha Política e que se contrapunha, sem maiores esclarecimentos, ao que seria a sua Nova Política. Apenas políticos e partidos anteriormente à margem do sistema existente - com exceção do PT que manteve praticamente intacta sua base histórica de apoio - passaram a ser vistos como merecedores de confiança do eleitor. Neste cenário é que o presidente Bolsonaro foi eleito, menos por suas qualidades e projetos e mais pelos defeitos apontados em outros candidatos, por pouco mais de um terço dos votos e com uma rejeição de quase 40% do eleitorado.

Este movimento dos eleitores trouxe ao poder em Brasília um presidente - e uma equipe de governo - sem a experiência passada para administrar um sistema político em transição e com um discurso radical contra os políticos catalogados como velhos. Mas nestes primeiros cem dias de seu governo ele está percebendo que o parlamento ainda tem uma proporção majoritária de políticos e partidos velhos e que governar sem um acordo com eles é praticamente impossível no Brasil.

Esta para mim é a grande marca desta primeira avaliação do governo: o conflito entre o novo e o velho ainda está vivo e o presidente terá que administrar um período de transição para que este conflito seja resolvido dentro do sistema democrático que temos em nosso país.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.


Ribamar Oliveira: A irrelevância da meta fiscal para 2020

Trajetória depende da aprovação das reformas

Até o próximo dia 15 de abril, o ministro da Economia, Paulo Guedes, terá que encaminhar ao Congresso Nacional o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) para o próximo ano, com a meta fiscal a ser perseguida pelo governo. Com as atuais incertezas, Guedes não tem como fixar uma meta de resultado primário para 2020 que seja minimamente crível ou que possa indicar o tamanho real do esforço fiscal a ser realizado pelo setor público.

As variáveis que ajudariam Guedes a determinar uma trajetória fiscal mais consistente para 2020 ainda dependem da aprovação pelo Congresso de medidas que ele mesmo já propôs, como a reforma da Previdência Social. Outras, como a revisão e redução dos subsídios e desonerações tributárias, também serão submetidas neste ano ao Congresso, de acordo com o ministro.

Todas as medidas, se aprovadas, tenderão a reduzir as despesas e a elevar as receitas da União, ou seja, terão impacto sobre o resultado primário. Mas o PLDO, a ser enviado pelo ministro da Economia em abril, não poderá levar em consideração o efeito fiscal das propostas, simplesmente porque elas ainda não foram aprovadas.

Qual será, por exemplo, a redução de despesas a ser obtida com a reforma dos sistemas previdenciário e assistencial em 2020, se ela for aprovada nos termos da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 6/2019, do Executivo? Guedes ainda não revelou a informação.

Quando apresentou a proposta de reforma, o governo estimou que ela permitiria uma economia de R$ 161 bilhões em quatro anos e de R$ 1,072 trilhão em dez anos, sem considerar os ganhos com o projeto de reforma das regras para os militares. Mas não foram divulgadas projeções sobre a economia a ser obtida em cada ano.

Apenas a mudança no abono salarial, que limita o pagamento do benefício aos trabalhadores que ganham até um salário mínimo, daria uma economia de R$ 15 bilhões aos cofres públicos por ano, de acordo com cálculos da Instituição Fiscal Independente (IFI), entidade do Senado. Hoje, têm direito ao benefício os trabalhadores que ganham até dois salários mínimos.

Qual será a diminuição das despesas com as mudanças nas regras do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) e do Regime Próprio de Previdência dos Servidores (RPPS) da União em 2020? O governo deve apresentar esta estimativa durante os trabalhos da Comissão Especial que analisará a PEC.

A redução de despesas resultante da reforma abrirá espaço para o cumprimento do teto de gastos da União nos próximos anos, embora este não seja, no curto prazo, exatamente um problema. Nos seus dois primeiros anos de vigência, o teto foi cumprido com muita folga, como mostram os dados do Tesouro (veja tabela acima).

É interessante observar que as propostas orçamentárias de 2017 e 2018 foram enviadas pelo governo ao Congresso com as despesas no teto, ou seja, sem margem. Mesmo assim, a execução ficou bem abaixo do limite de despesas, indicando que está ocorrendo um fenômeno nas contas da União ainda não devidamente explicado.

Haverá ganhos também de receita, caso a PEC 6/2019 seja aprovada, pois ela prevê mudanças nas alíquotas de contribuição previdenciária dos servidores públicos, que passariam a ser progressivas, nos moldes do Imposto de Renda da Pessoa Física, com alíquota máxima sendo de 22%.

A proposta do governo para a redução dos subsídios também terá repercussão no próximo ano, caso seja aprovada. Guedes já disse que quer acabar com desonerações e cobrar tributos de quem não paga. Nada disso poderá ser quantificado no PLDO.

O ministro da Economia anunciou ainda um ambicioso plano de privatização de empresas estatais federais e venda de ativos da União, com o objetivo de reduzir o endividamento público. Em quase todos os seus pronunciamentos, Guedes critica o atual montante da dívida pública, lembrando que o setor público brasileiro paga um Plano Marshall por ano em juros, indicando sua intenção de reduzir fortemente essa despesa.

Até agora, no entanto, nenhuma estatal foi vendida nem foi divulgado um cronograma de privatização das 134 empresas pertencentes à União. Há também o interesse do governo em vender imóveis e participações da União em empresas privadas.

Saber o tamanho da redução do endividamento público que o governo pretende realizar é importante para estimar uma meta de resultado nominal para 2020. Este é o critério fiscal com o qual o ministro da Economia parece preferir trabalhar, em substituição ao resultado primário.

A diminuição da dívida é igualmente importante para o cumprimento da chamada "regra de ouro", que continuará sendo um problema para o governo em 2020. A Constituição estabelece que as operações de créditos não podem exceder o montante das despesas de capital (investimentos, inversões e amortizações da dívida).

Todas essas indefinições tornam a meta de resultado primário do próximo ano irrelevante, principalmente diante da existência do teto de gastos. O governo Bolsonaro não pode, no entanto, repetir o que fez o governo Michel Temer, que estabeleceu uma meta de déficit primário de R$ 139 bilhões para o setor público neste ano, quando o déficit de 2018 foi de R$ 108,2 bilhões. Ou seja, a meta de déficit para 2019 é superior ao déficit registrado no ano passado. Qual é o sentido disso?


Julio Wiziack: As regras do jogo

Governo tem dificuldade para articular aprovação da reforma da Previdência

A crise que quase derrubou o ministro da Educação não acabou. Ricardo Vélez foi mantido pelo presidente Jair Bolsonaro para evitar um desgaste político maior. Nos bastidores, no entanto, crescem as apostas em Mendonça Filho.

Mendoncinha, como ele é conhecido, pertence ao DEM, partido do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Pode se tornar uma saída pelo apoio do Congresso na reforma da Previdência, primeiro teste do governo.

Essa possibilidade vem sendo construída pelo próprio Maia e pela deputada Joice Hasselmann (PSL-SP).

Contrariando seu partido, Hasselmann apoiou Maia para a presidência da Câmara. O gesto ajudou Joice a ganhar a confiança de Maia e ela se tornou líder do governo no Congresso. Agora, a deputada costura apoio para ocupar a articulação política do governo no lugar de Onyx Lorenzoni, ministro da Casa Civil.

Uns acham ser uma completa viagem de Joice. A realidade é que até os militares reconhecem nela a capacidade de interlocução com todas as alas políticas no Congresso, algo que falta a Onyx.

Na ausência do chefe da Casa Civil, que viajou para a Antártida, até cargos Joice negociou com deputados, segundo parlamentares que receberam os telefonemas.

Um aliado no Congresso, no entanto, tratou de avisá-la que a manobra não estava funcionando porque os cargos não eram relevantes.

Mesmo assim, o governo acredita que faltam menos de 50 votos para a aprovação da reforma, como profetizou na semana passada o ministro da Economia, Paulo Guedes.

De novo, a realidade se impõe. Sem interlocução formal, os partidos começam a se posicionar contra a reforma. Entre as siglas, somente o DEM ganhou com a nomeação de ministros. Mas o presidente do partido afirmou que nunca fez indicações.

Os parlamentares adoram ouvir Paulo Guedes sobre as vantagens da reforma. Mas, no final do dia, voltam ao velho beabá sem saber quais são as novas regras do jogo.

E, sem regras, não tem jogo.


César Felício: O mercado aposta em Maia e estuda Mourão

Aprovação de alguma reforma é dada como certa

Nada parece mover o inabalável otimismo no mercado financeiro em relação à aprovação de uma reforma da Previdência: nenhum vídeo obsceno postado pelo próprio presidente, nenhuma intriga alimentada por Olavo de Carvalho, nenhum tuíte inexplicável do vereador Carlos Bolsonaro, ou trapalhada do ministro da Educação. Acredita-se que há duas esferas no poder em Brasília: uma é a movida a estrondo e fúria, navegando no mundo da instantaneidade e do espetáculo e tem o próprio presidente como protagonista.

A outra é bifronte e eficaz: são protagonistas o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), visto como o mais credenciado negociador da reforma da Previdência; e o vice-presidente Hamilton Mourão.
A banca não tem absoluta certeza, mas acredita que Mourão vocaliza e opera em nome de todo o grupo militar, visto como mais preparado e dotado de maior estratégia política do que Bolsonaro, sua família e seus aliados mais próximos, em um pacote que inclui o próprio ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni.

O grupo militar seria a verdadeira espada e escudo de interesses que convergem para o mercado, frente ao qual o restante seria espuma. A contenção dos desvarios bolsonaristas em relação a Venezuela e transferência da embaixada para Israel seriam sinais eloquentes neste sentido.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, está fora da equação, e não por ser desimportante, ao contrário. Guedes não é visto ainda como um homem do mundo de Brasília, um dos beligerantes na conflagração por poder. Ele é um universo à parte, que montou uma reforma da Previdência sólida do ponto de vista fiscal, com muita gordura para negociar. Não deve, contudo, ser o condutor do processo de barganha.

A ansiedade do ministro em propor a emenda da desvinculação simultaneamente à reforma da Previdência, depois de a ter apresentado como "plano B", é vista mais como um sinal de sua inexperiência do que de sua visão tática.

Do ponto de vista do curto prazo para o mercado, Rodrigo Maia é a figura-chave. É descrito como o primeiro-ministro do governo, o operador para se garantir a aprovação de algo entre 50% e 80% da meta de Guedes em relação à reforma.
No pacote a ser tocado por Maia no Congresso ainda estão a nova política em relação ao salário mínimo, com evidente impacto fiscal, e o represamento de aumentos para o funcionalismo dos três Poderes.

Quem busca estudar Mourão no mercado está preocupado com o longo prazo. Ele é visto, no mínimo, como um possível presidenciável em 2022, ao lado de outros nomes como o de Bolsonaro, Moro, Doria e do próprio Rodrigo Maia. Em um cenário extremo, como uma alternativa ao atual presidente antes do fim do mandato. Os exemplos da década deixaram o sistema financeiro atento em relação a eventuais pontes para o futuro.

Um dos pontos que chamaram a atenção no vice é a sua transformação, como se Mourão buscasse estabelecer alguma espécie de contraste em relação ao titular do cargo. Durante a campanha eleitoral, sobretudo no período que precedeu a facada de Juiz de Fora, não foi o que se viu: Mourão fez declarações de caráter antidemocrático e que denotavam preconceito racial. Atrapalharam e muito a campanha de Bolsonaro. A questão que cabe no momento é qual o motivo para existir agora um vice que é a voz do bom senso, um comentarista permanente de todos os fatos que tenham relação direta ou remotíssima com o governo.

Supremo
Há um autoritarismo de baixo para cima, um clima de revolução cultural maoísta alimentado pelas redes sociais no Brasil, mas com o sinal trocado. Na China dos anos 60 eram colados em muros pela Guarda Vermelha, os 'dazibaos', onde a elite intelectual e administrativa do País era acusada de traição ao grande timoneiro. A instabilidade era permanente, dado o macartismo às avessas em que qualquer um acusava quem quer que fosse de qualquer coisa, sem blindagem possível.

Em baixa sempre estão a tolerância, o respeito às instituições como mecanismo de solução de controvérsias, a mediação política, a veiculação da informação com responsabilidade.

Por mais mesquinhas que sejam suas motivações, não é possível dissociar deste quadro a iniciativa do presidente do STF, Dias Toffoli de instaurar uma investigação de ofício sobre 'fake news' contra os ministros do Supremo.

À parte tudo isso, é preciso ponderar sobre a gravidade da decisão de ontem da Corte, que tornou crimes comuns passíveis de serem julgados pela Justiça Eleitoral. É claro que abriu-se uma porta para se afrouxar o combate à relação espúria que se estabeleceu entre políticos e o empresariado.

Talvez seja precipitado cravar que a decisão signifique o fim de uma era, como festejam petistas e deploram os protagonistas da Operação, mas o sentido da decisão é incontroverso.

Não há dúvida sobre a colocação de um limite crucial no poder do Ministério Público, a três dias do quinto aniversário do começo da Operação. Travou-se ontem uma disputa de poder, como mencionou Gilmar Mendes.

A indignação das redes sociais contra um STF que poda a Lava-Jato torna-se um catalisador para reações em cadeia. No âmbito do Congresso, a movimentação começou pelo Senado. Conforme registrou Cristiane Agostine e Carolina Freitas no Valor Pro, o líder do PSL na Casa, Major Olímpio, apresentou um projeto de lei para retirar da Justiça Eleitoral o julgamento de crime comum. Outro senador, Alessandro Vieira (PPS-SE), articula uma CPI "Lava Toga". Um terceiro, Lasier Martins (PSD-RS), emprestou o gabinete ontem para o advogado Modesto Carvalhosa protocolar mais um pedido de impeachment contra o ministro Gilmar Mendes.

O Judiciário terá que resistir a uma ofensiva muito mais consistente do que qualquer quartelada que envolva um cabo e um soldado.


César Felício: Bolsonaro se traduz

Miscelânea presidencial forma um conjunto

Paletó bem ajustado, nó da gravata no lugar certo, ladeado pelo ministro do GSI e pelo porta-voz, ambos generais de reserva, o presidente Jair Bolsonaro está trabalhando. Não há espaço em sua 'live' no Facebook para chinelos Ryder, pão com leite condensado e outras informalidades. O presidente está contido. No vídeo de 20 minutos, Bolsonaro promete que toda quinta-feira, às 18h30, será assim.

Ainda administrando os efeitos da divulgação que fez de um ato obsceno no Carnaval, o presidente sugere que a sua estratégia de comunicação ganhou um outro formato. A conferir se a 'live' no Facebook, concentrada em um dia da semana, irá frear a sua atuação no Twitter, ambiente onde vigora a lei da selva na internet.

A conferir também se o Facebook servirá de antídoto para danos colaterais da palavra do próprio presidente. Bolsonaro discursou para militares no Rio de Janeiro, pela manhã, e de tarde estava na rede para dizer que foi mal compreendido, "para variar". A comunicação presidencial adotou uma linha: o presidente solta algo insólito, seja uma concessão na reforma da Previdência ou um elogio a um ditador paraguaio de má fama e em seguida busca ser seu próprio tradutor.

Na aparência, a moderna versão da "Conversa ao Pé do Rádio" é um minestrone, um siri catado, onde pode entrar de tudo. Bolsonaro acena para o mercado, em uma rara intervenção a favor da votação da reforma "que está aí, se bem que o Parlamento é soberano para fazer qualquer possível alteração, só esperamos que ela não seja muito desidratada".

Para o resto, a "boa notícia" é o fim da lombada eletrônica e o aumento da validade da carteira de motorista. O presidente aconselhou até a aprovados em um concurso do Banco do Brasil a entrarem na justiça contra duas exigências do edital, o de cursos de diversidade e de prevenção ao assédio moral e sexual.

Também sugeriu aos pais de menores de 9 a 16 anos que rasguem as últimas páginas das cadernetas de vacinação distribuídas durante a era Dilma. Ele não deixa claro, mas provavelmente se referia ao conteúdo que vai da página 31 até a 44 da cartilha, que trata de assuntos como desenvolvimento da genitália na puberdade e uso de preservativos.

A miscelânea, na aparência caótica, forma um conjunto. Eis aí um presidente atento a tudo, a cada detalhe do cotidiano, que propõe como contraponto ao remédio amargo da economia a diminuição da presença do Estado na mediação de relações sociais, seja no trânsito, no ambiente de trabalho ou na educação dos filhos.

Carnaval
"Do Oiapoque ao Chuí, até o sertão distante/o progresso foi se alastrando neste país gigante/no céu azul de anil, orgulho do Brasil/nossos pássaros de aço deixam o povo feliz/ninguém segura mais este país". É provável que o então adolescente Jair Bolsonaro não tenha tomado conhecimento do samba da Mangueira no carnaval de 1971, que tinha o título "Modernos Bandeirantes" e homenageava a Força Aérea.

Parece seguro, entretanto, afirmar que o garoto Jair compartilhava de um espírito da época que tornava cabível um enredo como aquele. Para a imensa massa da população, 1971 era um tempo de conformismo na Política e expansão forte na Economia. Em um quadro de censura à imprensa e violência extrema contra os oposicionistas, não havia barreiras para o ufanismo exacerbado.

Politização no carnaval sempre houve, e nas escolas de samba são muito mais abundantes os exemplos de exaltação do discurso oficial do que o oposto, como observa o historiador Luiz Antonio Simas, um dos colaboradores do carnavalesco Leandro Vieira, responsável pelo desfile vencedor deste ano, da mesma Mangueira chapa-branca de 1971, com o enredo "história para ninar gente grande".

A Mangueira em 2019 desfilou pela avenida toda uma narrativa histórica que os defensores do projeto "Escola Sem Partido" só podem abominar. Logo no começo, um carro alegórico mostrava o monumento aos bandeirantes, em uma cena demoníaca, com um Anhanguera de chifres, sangue jorrando e caveiras para todo o lado. O símbolo da invasão, genocídio e escravização de negros e índios. No fim do desfile, outro carro, com o cartaz "ditadura assassina", mostrava o padre Anchieta, a princesa Isabel, o Duque de Caxias e o Marechal Floriano como vilões. Os dois últimos pisavam sobre cadáveres. Para finalizar, uma grande bandeira com a efígie da vereadora Marielle Franco, a última mártir da sequência apresentada pela escola.

Para Simas, mudou menos a Mangueira do que as circunstâncias. A crise econômica fez secar um expediente muito usual nas escolas de samba, o de vender o enredo para patrocinadores, seja um fabricante de iogurte (Porto da Pedra, 2012) ou o ditador da Guiné Equatorial (Beija-Flor, 2015). Imersa em disputas internas e acossada pela Justiça e pela concorrência com outros tipos de criminalidade, a contravenção perdeu o controle absoluto que tinha e abriu a brecha para um desfile mais autoral.

Simas não cita este exemplo, mas secou até o dinheiro de esquemas de corrupção entranhados no governo do Rio, que segundo delatores da Operação "Furna da Onça" teriam ajudado a financiar o desfile da Mangueira de 2014, que homenageou os festejos populares.

Neste contexto as escolas de samba buscam se manter, atentas ao vento que sopra fora. O clima na sociedade é de polarização e há fatores para desgaste do governo Bolsonaro particularmente no Rio de Janeiro, mesmo levando em conta a tranquila vitória do atual presidente na Mangueira, espelho do que aconteceu em todas as zonas eleitorais da cidade. O esquerdismo do desfile de agora pode ser sucedido por uma exaltação de valores conservadores em 2020 sem que isso seja motivo para surpresas.

Não se pode dizer o mesmo em relação ao carnaval de rua, em particular no caso do Rio de Janeiro e de Olinda. A juventude das classes médias alinhadas com a esquerda há mais de três décadas usa a folia para mandar seus recados, sobretudo quando a esquerda está na oposição. É uma tradição que surgiu no crepúsculo do regime militar, entre o fim dos anos 70 e o início dos anos 80.

"Este ano teve uma clivagem mais forte. Além da questão político-partidária, houve nos blocos a bandeira de questões de comportamento. Tudo foi 50 tons acima do normal", diz a jornalista Rita Fernandes, presidente da Associação de Blocos de Rua do Rio. Bolsonaro na presidência era um alvo óbvio.
Postado por Gilvan Cavalcanti de Melo


Claudia Safatle: Sem reformas, recessão volta em 2020

Microeconomia só terá vez após aprovar Previdência

A profunda anemia do Produto Interno Bruto (PIB), que cresceu somente 1,1% no ano passado, é reflexo das incertezas que se acumulam em relação ao novo governo. Sem a aprovação da reforma da Previdência, o país entrará em uma nova recessão no segundo semestre de 2020, segundo previsões de técnicos do Ministério da Economia.

Nenhum investidor, portanto, vai expandir os seus negócios no país sem ter a garantia de que uma relevante reforma será votada e aprovada pelo Congresso. Isso é que dará a ele a certeza de que haverá um equilíbrio das contas públicas no horizonte visível e que a trajetória da dívida pública será cadente a partir de 2021, com o retorno da geração de superávits primários, conforme os prognósticos do Ministério da Economia. Nesse ambiente, a taxa de juros poderá ser menor que a de hoje e o país retomará o crescimento econômico.

"Há um claro problema de expectativa", disse o secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida, à coluna.

A economia hoje está marcada por um quadro binário: "Ou se aprova a reforma da Previdência ou não haverá crescimento e teremos mais uma década perdida", alertou ele.

Há coisas a fazer na área microeconômica para melhorar a política de crédito, para incentivar o mercado de capitais e para desanuviar o ambiente de negócios em geral no Brasil. Técnicos da área econômica avaliam a real situação das pequenas e médias empresas para entender o que ocorreu com o patrimônio, com a formação de estoques e com a capacidade de produção depois de cinco anos seguidos de grandes dificuldades. Desemprego, queda nas vendas, quebra do faturamento e crédito caro, com certeza, deixaram cicatrizes em quem conseguiu sobreviver.

O governo vai esperar a aprovação, pelo Congresso, da reforma da Previdência para encaminhar um conjunto de medidas microeconômicas que possam dar algumas condições do setor privado se reerguer, depois de tantos anos de recessão (de 2014 a 2016) e a posterior estagnação da economia (1,1% de crescimento em 2017 e também em 2018).

A recuperação da atividade tem sido fraca por um leque de incertezas de naturezas diversas. Primeiro, havia a preocupação sobre quem seria eleito para a Presidência da República. Agora há dúvidas sobre como o governo, eleito e empossado, vai funcionar.

Os principais cargos da administração federal foram ocupados por pessoas com pouca experiência de governo e isso reduz o ritmo da tomada de decisões. A própria dinâmica de funcionamento do grupo de poder não se mostra ainda bem estabelecida, assim como não há a menor clareza de qual será a base de sustentação política do governo.

Aliás, não é seguro sequer se o presidente da República apoia a proposta de reforma da Previdência que ele próprio foi ao Congresso entregá-la.

Essas são algumas das questões em aberto que induzem os investidores estrangeiros a uma maior cautela. Já os investidores domésticos querem ser mais otimistas com o desempenho desse governo e, por enquanto, animam os mercados de ativos. "Está tudo pronto para a festa, mas se os convidados de fora não aparecerem será uma grande frustração", disse uma fonte.

Aliada às incertezas citadas há, também, um componente estrutural: os investimentos na expansão da infraestrutura, que devem comandar a retomada do crescimento, são por definição mais lentos.

A reforma da Previdência é, portanto, condição necessária, embora não suficiente, para a retomada do crescimento. É preciso mais mudanças, a começar pelo caótico e oneroso sistema tributário, Mas, sem ela, o aumento do gasto com o pagamentos de aposentadoria e benefícios será descontrolado.

Estimativas oficiais indicam um gasto a mais de R$ 1,1 trilhão nos próximos dez anos. Esse acréscimo terá que ser financiado pelo aumento de impostos ou corroído pelo recrudescimento da inflação.

Estudo feito pela equipe de Sachsida aponta um quadro dramático se a reforma da Previdência não for aprovada pelo Congresso.

O desemprego, atualmente de 12%, crescerá para a casa dos 15%, o brasileiro ficará mais pobre, a taxa de juros básica (Selic) subirá para a faixa de 18,5% ao ano e o país perderá, em média, 2,9% de PIB nos próximos cinco anos. A dívida bruta do governo geral aumentará sistematicamente até atingir 102% do PIB em 2023.

O cenário com a reforma parece róseo: o país poderá gerar 8 milhões de novos empregos até 2023, a taxa de juros básica poderá cair para 5,6%, a dívida do governo diminuirá para 76,1% do PIB e cada brasileiro terá R$ 5,8 mil a mais no bolso.

Para que a proposta de emen da constitucional (PEC) da Previdência não saia magrinha do Congresso, é importante que o governo a apoie. Ela não pode ser conhecida como a reforma do liberal Paulo Guedes, ministro da Economia, sob pena de ser totalmente desfigurada durante sua tramitação na Câmara e no Senado.

Nesse sentido, foi péssima a declaração de Jair Bolsonaro, que, em entrevista ontem, já admitiu rever para baixo a idade mínima de 62 anos para mulheres se aposentarem, conforme consta do projeto do governo.

Se nem o presidente da República concorda com a idade mínima de 62 anos para mulheres e 65 anos para os homens se aposentarem, que consta da proposta que ele entregou em mãos, no dia 20, ao presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), não será o Congresso que apoiará tal iniciativa.

Como disse Maia em entrevista ao jornal "O Globo", ontem: "Paulo Guedes tem uma agenda liberal, eu tenho uma agenda liberal. Mas você não tem 308 deputados que chegaram ao Parlamento com uma agenda liberal". Para aprovar emenda constitucional, é preciso maioria qualificada de 308 votos na Câmara, em dois turnos.

Uma dúvida para a qual não há uma resposta clara é sobre se Jair Bolsonaro tem, de fato, compromisso com uma agenda liberal para o seu governo.


César Felício: A reforma será permanente

Se o cenário se complicar, convém estudar Portugal

Qualquer reforma da Previdência que permita uma economia acima de R$ 500 bilhões em dez anos já será bem vinda para muitos agentes do mercado. Os desenredos de Jair Bolsonaro em sua confusa coordenação política impactam pouco as expectativas porque o nível de exigência foi significativamente rebaixado. A experiência vivida no governo Temer trouxe ensinamentos.

O consenso que se pode obter no Congresso para a aprovação da reforma é limitado, incompatível com a sustentabilidade do sistema a longo prazo. Daí porque é considerado estratégico se conseguir a desconstitucionalização geral que está embutida na proposta do governo, com a remissão de diversos itens para a definição por projetos de lei complementar, com quórum significativamente mais baixo, como observou anteontem Ribamar Oliveira em coluna neste jornal.

A reforma da Previdência estará permanentemente na pauta. Será tema todos os anos, para todos os governos e todos os legisladores. A desconstitucionalização pereniza a aposentadoria como tema de debate, independentemente do nível de incerteza que isso trará para todos os segurados. Do ponto de vista político, seria um extraordinário triunfo do poder Executivo, já que não é necessário demonstrar como é mais fácil se obter maioria absoluta do que o quórum constitucional. Em relação ao Congresso, o Legislativo estaria cedendo em uma prerrogativa: a de ter maior controle sobre a modulação do texto da Carta.

Face a isto, qual a importância de uma reforma do sistema previdenciário que pode ficar comprometida quando for introduzida a norma da capitalização, e os benefícios de quem está dentro da repartição perderem sustentação atuarial? Os problemas vão sendo vividos dia a dia. Como na famosa frase atribuída ao ex-vice-presidente Marco Maciel, as consequências vêm depois. O importante é que Bolsonaro concretize o primeiro passo, e ambiente para isso existe.

A estratégia bolsonarista é diferente do que previa a linha de ação da vertente do mercado representada, por exemplo, pelo grupo reunido pelo ex-presidente do Banco Central, Arminio Fraga, que propunha um sistema de repartição mais duro, com menor margem de negociação, bastante centrada em se obter um grande resultado fiscal, convivendo com uma regra de capitalização mitigada, válida para quem nasceu a partir de 2014. Coincidia no propósito de desconstitucionalização do tema, mas estabelecia-se um gradualismo para manter a sustentabilidade.

As dificuldades em relação ao tema começam a tornar divisível o momento em que os brasileiros terão que estudar a fórmula portuguesa. Em janeiro de 2011, ainda no governo do socialista José Sócrates, foi criada uma contribuição extraordinária, incidente em todos os benefícios, que cortava 10% do que excedia € 5 mil mensais, tanto do setor público quanto do setor privado. Não foi suficiente. Cinco meses depois, foi criado um redutor para os pagamentos acima de € 1,5 mil. No ano seguinte, já no governo de Passos Coelho, um conservador, a contribuição extraordinária passou a podar 25% na faixa entre € 5 mil e € 7 mil e 50% acima disso. Em janeiro de 2013 passou a incidir um cobrança para os aposentados que recebiam mais de 1.350, de pelo menos 3,5%. Em agosto, as pensões superiores a € 600 passaram a ser afetadas. De 2014 em diante o torniquete começou a ser afrouxado lentamente, por pressão do Judiciário.

2020
A eleição de 2020 já se desenha no horizonte e a grande dúvida é o tamanho do empuxo da onda de extrema-direita. A magnitude do fenômeno no ano passado estimula candidaturas como a do Delegado Francischini em Curitiba, ou a de Joice Hasselmann em São Paulo. Mesmo no Nordeste o desempenho de Bolsonaro na eleição presidencial mostra que a esquerda se arrisca a perder bastante terreno.

Ele ficou em primeiro lugar no primeiro turno em Natal, Recife, Maceió e Aracaju, por exemplo. Nas capitais da Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas, o resultado se repetiu no segundo turno.

A questão é que a popularidade do presidente inevitavelmente perderá terreno até o fim do próximo ano. Os indicativos neste sentido da pesquisa CNT/MDA divulgada terça são importantes neste sentido. O levantamento apontou um índice de bom/ótimo próximo a 39%, enquanto 29% de pesquisados classificaram a administração como regular. É sugestivo anotar que em uma pesquisa feito pelo Datafolha na virada do ano a expectativa em torno da gestão era boa ou ótimo para 65% dos entrevistados, e de regular para 17%. Em linhas gerais, parece ter havido uma migração do sentimento positivo para uma posição de expectativa neutra, o primeiro estágio para a desaprovação.

Candidatos cujo único capital é a identificação com o presidente tendem a se ressentir, o que não significa que o viés conservador do eleitor se dissipe e que tenhamos em 2020 uma maré vermelha.

Existirá uma avenida para ser percorrida por aqueles que dialogam com este eleitorado assentados em outras bases que não o bolsonarismo explícito. É uma vertente que pode ajudar os atuais prefeitos que podem tentar um novo mandato, mesmo aqueles que sabidamente atravessam um mal momento, como o tucano Bruno Covas ou o prefeito do Rio, Marcelo Crivella. É cedo para descartá-los.

Um possível freio à perda de substância do bolsonarismo está nas mãos do próprio Congresso. O pacote de Sergio Moro, e todas as iniciativas tocadas pelo ministro, que foi bombardeado nas redes sociais pela extrema-direita e obrigado e recuar da nomeação da desarmamentista Ilona Szabó para a suplência de um conselho consultivo, representa o que há de agenda transversal neste governo, que traduz o sentimento da imensa massa de eleitores que se movimentou em direção à candidatura de Bolsonaro na última eleição, sobretudo no ano em que a Lava-Jato chega ao quinto aniversário.