valor
Cristiano Romero: Generais no poder
General Ramos chega a Brasília como novo protagonista político
Na edição de sexta-feira, dia 21, a primeira página do Valor destacou histórias em que os protagonistas são quatro generais, um fato inusitado desde o início da Nova República, em 1985, quando, depois de 21 anos, os militares deixaram o poder. Com a ascensão do presidente Jair Bolsonaro, capitão da reserva, muitos fizeram o caminho de volta, mas, desta vez, pelas mãos da democracia - a maioria dos oficiais é da reserva, alguns foram nomeados ministros e sua missão é idêntica à dos quadros civis de qualquer administração. Falar, portanto, em militarização de um governo eleito não faz sentido.
Os militares reservistas ocupam cargos de natureza política. Não estão ali em missão das Forças Armadas. Dos quatro generais, apenas um - Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira, atual comandante do Comando Militar do Sudeste - não é da reserva. No dia 4 de julho, ele assumirá, sem farda, posição estratégica no núcleo do poder: ministro da Secretaria de Governo, responsável pela articulação política com o Congresso Nacional.
O general Ramos substituirá Carlos Alberto dos Santos Cruz, demitido no dia 13 pelo presidente, que não teria dado nenhuma explicação para a dispensa abrupta. Um dos militares mais populares do país, o general Santos Cruz foi capa da revista "Época", que às sextas-feiras circula encartada no Valor e em "O Globo". Alvo de ataques ferozes do filósofo Olavo de Carvalho, bolsonarista sem cargo mas muito influente na capital da República, e de três filhos políticos do presidente, Santos Cruz desceu a rampa do palácio afogado em mágoas.
Na seção "À Mesa com o Valor ", igualmente na edição de sexta-feira, o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e até este momento o militar mais próximo de Bolsonaro, mostrou-se muito à vontade no papel de líder do grupo de militares que gravita no núcleo do poder. Estar no "olho do furacão" é sua sina, disse ele sobre sua posição estratégica - entre muitas outras funções, era ajudante de ordens em 1977 do então ministro do Exército, general Sylvio Frota, que planejou reverter a abertura política que o então presidente Ernesto Geisel começava a pôr em prática, ainda que devagarinho; em 1985, assistiu de perto, como auxiliar de outro ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, a conspiração, abortada por seu chefe, para impedir a posse de José Sarney na Presidência da República.
Com a chegada do general Ramos, a vida do poderoso general Heleno deve mudar. Ex-assessor parlamentar do Exército, Ramos transita bem pelos corredores do Congresso. Amigo do presidente Bolsonaro desde o início da década de 1970, quando suas mulheres se frequentavam e os filhos eram próximos, o futuro ministro concentrará a articulação política em sua Pasta, em vez de dividi-la com a Casa Civil, como funcionou durante a breve gestão de Santos Cruz.
A Secretaria de Governo cresceu, portanto, para receber o general Ramos. É um sinal importante no castelo de cartas da capital federal - o reconhecimento do governo de que, sem um ministro forte, dotado de poder real (caneta para fazer nomeações e poder de liberar verbas orçamentárias), lidar com partidos e congressistas para aprovar ou derrubar leis é tarefa inglória. Até poucos dias atrás, Ramos usava farda e era pouco conhecido em Brasília. No dia 4, desembarca na capital como um novo protagonista. Na corte, quem tem ou cobiça o poder quererá conhecê-lo rapidamente.
Na sexta-feira pródiga em informações sobre militares ocupando cargos com poderes civis, o general concedeu sua primeira entrevista à repórter especial Maria Cristina Fernandes, do Valor. Cris arrancou do general Ramos informações valiosas para quem ambiciona decifrar o governo Bolsonaro, uma novidade tão surpreendente na política nacional quanto a ultrajante derrota do Brasil para a Alemanha, por 7 a 1, na Copa do Mundo de 2014. Editora de Política deste jornal por 15 anos, a jornalista obteve de Ramos, também, "a frase das frases" nesta quadra da vida na Ilha de Vera Cruz: "O presidente não é tutelável".
Trata-se de mensagem de quem está chegando com prestígio e a confiança do chefe. Jair Bolsonaro era um político subestimado na Câmara dos Deputados, onde cumpriu sete mandatos consecutivos. Ninguém o levava a sério. Seu jeitão elefante-em-loja-de-cristal quando fala de costumes, sempre muito conservador, reforça a ideia de que o presidente não é sério. Mas Bolsonaro venceu a eleição presidencial, desalojando do poder os dois partidos que vinham se revezando no comando do país desde 1994. Não importa: ele continua sendo subestimado.
Se até agora coube ao general Heleno, assessorado pelo general Villas-Bôas, exercer ascendência sobre Bolsonaro, mantendo-o sob razoável controle - para controlar crises que surgem do nada em consequência de arroubos do presidente -, e proteger áreas importantes do governo, como a agenda liberal e reformista da equipe econômica, além da autonomia informal do Banco Central, a configuração do núcleo do poder passará por mudanças com a chegada de um general da confiança estrita do chefe da República.
Heleno e seu grupo de generais comandam a artilharia anti-mísseis contra Olavo de Carvalho, os filhos de Bolsonaro e bolsonaristas em geral, que vivem em permanente litígio com todos os que se aproximarem do presidente e tiverem alguma ascendência sobre ele. Com Ramos, o poder central será redimensionado. Se Santos Cruz foi abatido pelos bolsonaristas, isso mostra que o grupo militar palaciano já começou a enfraquecer. Qual é o risco envolvido? Heleno e seu grupo são fiadores, mais do que Bolsonaro, da agenda econômica que o ministro Paulo Guedes tenta implantar para tirar o país de seis anos de crise.
Na democracia brasileira, os partidos políticos são fracos, o que obriga presidentes eleitos a montar coalizões, geralmente com mais de uma dezena de partidos, para governar. As maiores bancadas na Câmara são as do PT e do PSL, ambas com 54 deputados, apenas 10,5% do total de parlamentares daquela Casa. Governar com espectro político tão amplo fez com que os presidentes Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff, líderes de centro-esquerda, governassem na companhia de uma miríade de partidos de direita e de centro-direita. Reúnem-se nas falsas coalizões interesses inconciliáveis. E, aí, sucedem anomalias, como o impeachment de Dilma ter se dado por obra de um aliado - Eduardo Cunha, presidente da Câmara.
Claudia Safatle: Economia é um avião com turbinas desligadas
Relator da reforma quer vender a prataria para pagar o almoço
O debate na economia está centrado na eventual estratégia do governo para estimular o investimento e, com ele, o crescimento.
Há um diagnóstico claro, feito pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos, e compartilhado por alguns outros economistas, que trata da grande complementaridade entre os investimentos público e privado. Campos compara a economia a um avião com uma turbina que é o mundo público, e a outra, o mundo privado. Ao desligar a primeira e, com credibilidade, ligar a segunda, haveria a transferência de energia capaz de manter o avião na mesma velocidade.
Ao derrubar o investimento público federal de R$ 100,6 bilhões em 2014 para quase a metade, R$ 53,9 bilhões, em 2018, imaginou-se que o setor privado ocuparia esse espaço e garantiria o crescimento, o que ainda não ocorreu.
Estão ambas as turbinas desligadas. E, segundo Campos, só a credibilidade (do governo) e a confiança (de consumidores e empresas) vão reverter o quadro.
Há quem avalie que a reforma da Previdência, com a economia em torno de R$ 900 bilhões em dez anos, será capaz de injetar confiança nos mercados, animar os investidores privados a desengavetar seus planos. E há os que consideram a reforma necessária, mas não suficiente para estimular a expansão dos investimentos e, consequentemente, retomar o crescimento. Para estes, há muito mais a consertar, inclusive para se ter uma trajetória fiscal sustentável, antes que isso ocorra. É preciso sanar, também, o ambiente de insegurança jurídica que atrapalha, e muito, os planos de investimentos.
Surge, em meio a ansiedade para se fazer algo que evite o país cair de novo em recessão, proposta para redução adicional da taxa Selic (de 6,5% ao ano), cada dia com mais seguidores, como combustível para ligar a turbina do mundo privado; e de uso de um pedaço das reservas cambiais para fazer política fiscal anticíclica, dentre outras.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciou, que vai liberar mais uma parte das contas inativas e ativas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e do PIS/Pasep para que esse dinheiro, algo em torno de R$ 22 bilhões, aqueça o consumo. Essa é uma medida de fôlego curto para a expansão da demanda, mas, diante da situação, não se recusa nada. Ademais, o FGTS é uma poupança forçada e muito mal remunerada do trabalhador.
O Tesouro Nacional vai ter, no fim do ano, uma receita líquida extraordinária de cerca de R$ 50 bilhões, como resultado da repactuação da cessão onerosa de petróleo. Como se trata de uma receita primária e não se pode aumentar o gasto pela lei do teto, esse recurso seria usado para abater o déficit primário. Sendo uma receita extraordinária, ela reduziria o rombo deste ano, mas não afetaria o déficit do próximo. Talvez fosse melhor usar parte desses recursos para investimentos, mas sempre há o limite do teto, a não ser que se tenha um arranjo legal para não ferir a lei do teto do gasto. Afinal, o país ainda tem umas 7 mil obras começadas e não concluídas.
Reforma da Previdência
No parecer da reforma da Previdência, divulgado ontem, o relator, deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), extingue a transferência de 40% dos recursos do PIS/Pasep ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), prevista no artigo nº 239 da Constituição. Ele destina esses recursos, até então usados para financiar investimentos, ao pagamento dos gastos correntes da Previdência Social.
Essa é uma medida equivalente à família que vende a última prataria da casa para pagar o almoço.
Até agora o ministro da Economia, Paulo Guedes, não disse o que quer do BNDES. Sobre o banco, ele fala apenas que espera para este ano a devolução de cerca de R$ 126 bilhões dos recursos emprestados pelo Tesouro Nacional no governo do PT. Na proposta original da reforma da Previdência o próprio governo sugeriu a redução de 40% para 20% da receita do PIS/Pasep que vai para o banco.
O relator, porém, resolveu acabar de uma só vez com esse "funding". Fica, portanto, cada dia mais difícil para o BNDES fazer devolução antecipada de recursos.
A instituição de fomento tinha como principal "funding" a receita de 40% do PIS/Pasep, destinada ao Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT). O fundo, que repassava em média R$ 16 bilhões ao ano para o banco, hoje é deficitário e pede a devolução de cerca de R$ 20 bilhões nos próximos meses. Mas essa parecia ser uma situação temporária, fruto da queda das receitas com impostos e contribuições pela inércia da economia.
A iniciativa de retirar, de uma penada, o único dinheiro público que o BNDES recebe reforça a preocupação da diretoria da instituição em preservar pelo menos o capital correspondente a 25% da carteira de empréstimos. Esse é o padrão de capitalização das instituições multilaterais, como o Banco Mundial.
Foi do então deputado José Serra (PSDB-SP) - tucano tal como o relator - a autoria do artigo da Constituição que destacou 40% da receita do PIS/Pasep para o BNDES.
Falta uma definição do governo sobre o que ele quer do BNDES, de que tamanho ele deve ser e que função vai desempenhar. Não basta o ministro da Economia dizer que quer um banco "magrinho".
Cristiano Romero: O sistema de castas da Previdência no Brasil
Déficit atuarial do regime dos servidores e militares é de R$ 1,3 tri
A julgar pelos regimes de aposentadoria mantidos pela União, o Brasil possui três castas: a dos funcionários públicos federais, a dos militares e a dos trabalhadores do setor privado. Já se sabe que os cidadãos dos dois primeiros grupos possuem vantagens inomináveis, como aposentadoria integral e paridade (seus benefícios são corrigidos pelo mesmo percentual concedido aos funcionários da ativa). A turma do terceiro grupo se aposenta pelo Regime Geral de Previdência Social (RGPS), sujeitando-se a um teto que, hoje, está em R$ 5.839,45.
É sabido, também, que os privilégios do regime previdenciário dos servidores civis e militares e a uma série de despesas de caráter assistencial, criados pela Constituição de 1988 com viés civilizador, somados ao fato de que não se exige neste país idade mínima para o cidadão se aposentar, insanidade que permite a funcionários públicos se aposentarem aos 50 anos, geram há mais de uma década um rombo explosivo nas finanças públicas da União.
No ano passado, o déficit do RGPS atingiu R$ 194,3 bilhões. Agregando-se ao resultado outros três déficits previdenciários - dos servidores civis (R$ 46,4 bilhões), dos militares (R$ 43,9 bilhões) e do Fundo Constitucional do Distrito Federal (R$ 4,8 bilhões) -, a conta chegou a R$ 290,3 bilhões em 2018. Agravado por três anos de recessão (2014-2016) e outros três de expansão medíocre do Produto Interno Bruto (2017-2019), o buraco cresceu de forma acelerada (ver gráfico) e, agora, já consome cerca de 60% das receitas do governo federal. Trata-se de uma contradição: uma nação de população ainda jovem - onde há mais cidadãos em idade ativa do que aposentados - gasta mais com os idosos do que com as crianças, portanto, mais com o passado do que com o futuro.
A diferença entre os regimes previdenciários escancara a forma como o Estado brasileiro trata "iguais" de forma desigual. Enquanto o déficit por beneficiário do sistema dos militares ficou em R$ 115 mil em 2018, o do RGPS foi de R$ 6,4 mil e o do RPPS (Regime Próprio de Previdência Social), do funcionalismo federal, somou R$ 63 mil. Os números constam do Relatório Contábil do Tesouro Nacional (RCTN) de 2018, documento que faz radiografia das contas da União, revelando seu balanço patrimonial - neste momento, negativo em R$ 2,4 trilhões - e que será divulgado nesta quarta-feira, em Brasília.
Sindicalistas do serviço público alegam que a comparação entre os sistemas é inadequada porque os funcionários pagam a contribuição previdenciária sobre o salário bruto, enquanto no INSS o trabalhador paga 8% sobre salário-contribuição limitado ao teto de R$ 5.839,45. O argumento é cínico, afinal, a defesa da aposentadoria integral contraria a aritmética: não há cálculo atuarial que assegure uma conta como essa. Os sindicatos dizem ainda que, no cálculo do déficit do RPPS, o governo não contabiliza as contribuições dos servidores. Isso é falso, uma mistificação.
O relatório do Tesouro mostra que a provisão previdenciária do regime dos servidores civis e militares, também conhecida como passivo atuarial, já é de R$ 1,3 trilhão (dados de dezembro de 2018). Este montante representa o valor presente do total dos recursos necessários ao pagamento dos compromissos dos planos de benefícios, deduzidos dos recebimentos futuros, calculados atuarialmente, isto é, em determinada data. Os passivos atuariais reconhecidos no balanço patrimonial da União referem-se ao RPPS dos servidores civis e, desde 2017, às pensões dos militares.
O pessoal da casta do INSS ainda leva a culpa pela maior parte do rombo previdenciário. "Como o número de beneficiários do RGPS é bem maior que os dos outros dois sistemas, seu rombo em relação ao PIB é de forma disparada o pior: 2,85%, ante 0,68% dos servidores civis (RPPS) e 0,64% dos militares", diz o documento.
O RCTN confirma que o Estado brasileiro quebrou. Só funciona ainda porque o Tesouro Nacional se endivida junto ao mercado (leia-se, à sociedade) por meio da emissão incessante de títulos públicos - em abril, a dívida bruta do governo geral, que compreende o governo federal, o INSS e os governos estaduais e municipais -, escalou para o equivalente a 78,8% do PIB, quase o dobro da média dos países emergentes.
O RCTN detalha o detalhamento da Receita Corrente Líquida (RCL) a cada ano desde 2009. No ano passado, a RCL atingiu 11,8% do PIB. As renúncias de receitas tributárias, em contrapartida, foram estimadas em R$ 283,45 bilhões no ano passado, ou 4,15% do PIB. Conforme o gráfico 45 do RCTN, esse percentual cresceu de 2,65% em 2011 para o pico de 4,71% em 2015.
O estudo mostra o peso crescente da Previdência social, cujos gastos aumentaram 134% em termos nominais desde 2009 e atingiram 37,58% do total das despesas da União. Juros e encargos da dívida avançaram 124% no mês período e ocupam o segundo lugar entre as despesas, com 15% do total. Em terceiro lugar vêm as transferências constitucionais e legais, com uma fatia de 14,32% das despesas e um avanço nominal de 97% desde 2009.
Claudia Safatle: A estratégia e o plano econômico de Guedes
Divulgação só vai ocorrer depois de aprovada a reforma
Na economia, o governo tem vários projetos e uma estratégia. Segundo fontes qualificadas, o plano do ministro Paulo Guedes comporta uma série de propostas que somente serão conhecidas depois de aprovada a reforma da Previdência.
A precaução tem lá os seus motivos. Trata-se de um plano com um amplo leque de projetos de mudanças que vão ferir interesses de grupos específicos com representação no Congresso Nacional. Ao conhecê-lo de antemão, parlamentares com interesses contrariados poderão se voltar contra a aprovação da reforma da Previdência, que é crucial para dar um horizonte de sustentabilidade para as contas públicas e garantia de solvência do Estado.
Só nas duas últimas semanas foram criadas três novas frentes no Congresso, em oposição a algumas das ideias consideradas pela equipe econômica. São elas: a Frente Parlamentar Contra a Privatização dos Correios; a Frente Parlamentar Contra a Privatização de Bancos Públicos Federais; e, ainda, a Frente Parlamentar Contra a Privatização da Petrobras.
A estratégia, portanto, é a de ser bastante comedido nas informações sobre o programa econômico do governo, porque haverá medidas "capazes de produzir terremotos na escala Richter de 7,5", ou seja, com grande capacidade de desagradar grupos específicos, explicou uma graduada fonte oficial; e outras com impactos menores, mas também não desprezíveis, sobretudo para uma complicada base de sustentação política, completou.
O que orienta a comunicação oficial, nesse caso, é a necessidade de escolher quais as batalhas a se enfrentar primeiro e não tumultuar o ambiente já bastante volátil.
Vez por outra o governo lança uma ideia para testar quais são as forças políticas contrárias. Foi assim, por exemplo, com a notícia recente, confirmada pelo ministro da Economia, sobre a intenção de liberar cerca de R$ 22 bilhões de contas inativas e ativas do FGTS e do PIS após o avanço da reforma da Previdência.
A reação contrária surgiu da bancada de apoio do programa Minha Casa, Minha Vida, que não quer perder o acesso a essa poupança forçada e mal remunerada do trabalhador para financiar a construção de moradias populares. O governo considerou a manifestação e o poder de fogo dessa bancada como algo administrável.
Outras medidas estão em discussão para serem anunciadas após aprovação da nova Previdência. Não está claro se a aprovação da reforma na comissão especial é suficiente para o governo começar a abrir o jogo ou se ele aguardará a votação no plenário da Câmara.
Dentre as medidas do plano de Paulo Guedes, constam o cronograma e a extensão das privatizações, que precisam ser submetidos ao Conselho do Programa de Parceria de Investimentos (PPI), e o destino das empresas estatais federais dependentes do Tesouro Nacional.
Essas são 18 companhias que geram um gasto de R$ 21,6 bilhões, conforme orçamento deste ano já adicionado de créditos suplementares. Elas empregam mais de 73 mil funcionários e não sobrevivem sem a dotação de verbas da União para bancar as suas despesas.
Na lista das estatais dependentes está a Embrapa, considerada estratégica para o desenvolvimento de pesquisas genéticas na agricultura e na pecuária, cujo gasto anual da União é de R$ 3,67 bilhões. Mas são os serviços de saúde os que mais demandam recursos dos contribuintes. A Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) dispõe de um orçamento para 2019 de R$ 5,11 bilhões Outro R$ 1,26 bilhão é destinado ao Hospital das Clínicas de Porto Alegre e mais R$ 1,51 bilhão para o Hospital Nossa Senhora da Conceição.
A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) tem um orçamento para este ano de R$ 2,69 bilhões. Outras três empresas com gastos superiores a R$ 1 bilhão são a CBTU, de transportes urbanos, a Codevasf, de desenvolvimento do Vale do São Francisco, e a INB, de indústrias nucleares.
Essas empresas estão sob um detalhado escrutínio da área econômica do governo, sobretudo da Secretaria de Desestatização e de Desinvestimentos. Algumas deixarão de ser empresas e devem se transformar em autarquias, em que os salários são menores, obedecem a uma política de reajuste e não há a existência de conselhos de administração ou fiscal.
Outras permanecerão como empresas, mas estão passando por um trabalho de ganho de eficiência e de emagrecimento. Para reduzir o prejuízo anual com a sustentação dessas companhias, o governo quer vender parte dos ativos que elas têm, como fazendas e imóveis urbanos.
Há toda uma concepção que levou a área econômica a definir a estratégia de comunicação do programa econômico. No Brasil, segundo a ótica do governo, há muitos grupos com forte poder de articulação e influência política. São empresários, sindicalistas e funcionários públicos, dentre outros, capazes de criar muito barulho e contaminar o ambiente para a aprovação da reforma da Previdência.
Acredita-se que, depois de aprovada a reforma, haverá um novo ambiente, "de céu azul após a tempestade". Fontes oficiais argumentam que a nova Previdência será um divisor de águas e um momento importante para o presidente Jair Bolsonaro. "E no 'day after' teremos um pipeline de planos", salientam, ao elencar da reforma tributária às privatizações, da abertura da economia a um novo pacto federativo, da conversibilidade da moeda e permissão para a abertura de contas em dólar no país a uma série de outras medidas que vão amplificar o impacto da nova Previdência. "A reforma é, portanto, o início de um processo de mudanças que vamos fazer", assegurou uma categorizada fonte da área econômica.
É esse conjunto ainda desconhecido de medidas que poderá sustentar uma recuperação mais dinâmica da atividade econômica. Essa é, pelo menos, a aposta do núcleo da equipe que assessora Guedes.
César Felício: Diminui o vendaval?
No mercado, aposta-se em menos lavajatismo
Entre os executivos de banco de uma forma ou de outra atentos à Lava-Jato, há um moderado otimismo. Acredita-se que tanto no plano dos grandes interesses nacionais quanto no que se refere ao próprio pescoço de cada um, o pior já passou. Na visão destes atores do sistema financeiro, o resultado concreto das investigações que afetam a mais de dez bancos implicará em pagamentos acertados em termos de ajustamento de conduta. As irregularidades a serem desvendadas seriam enquadradas como falhas de controle, e não casos de corrupção. É uma agenda com seu custo para o mercado financeiro, mas suportável. Não tem cadeia. Não tem instituição sendo fechada.
Um núcleo jacobino persistiria no Rio de Janeiro, em torno da 7ª Vara Federal, comandada por Marcelo Bretas, mas a onda teria se dissipado em Curitiba, na PGR e no Supremo. A equação política, na visão de um espectador, mudou. "O lavajatismo e o bolsonarismo formaram uma aliança de ocasião que está se desfazendo com o tempo", acredita.
Na opinião desse senhor, o Brasil viveu um momento de grande perigo entre o fim do ano passado e o começo do governo atual. Era o risco do lavajatismo, com Sergio Moro à frente do governo, servir de combustível para uma escalada autoritária.
Esta marcha poderia ter o seguinte encadeamento: instalava-se a chamada CPI Lava-Toga, o que abriria caminho para pedidos de impeachment dentro do Supremo. Sob pressão, a casa aceitaria aprofundar as investigações contra detentores de foro a tal ponto que o que restasse da classe política seria destruída. Neste processo, a elite empresarial ficaria muito fragilizada e o grande líder populista poderia reunir os sobreviventes dos outrora poderosos em uma mesa e estabelecer novos termos: para a Presidência da República, tudo seria possível. Aos demais restaria a submissão.
Deste risco o Brasil estaria livre. Seja porque o bolsonarismo não demonstrou ter blindagem absoluta ao que as investigações podem trazer, seja porque a imperícia fez morada no Palácio da Alvorada. Perdeu-se apoio para isso entre os militares, no Congresso, na mídia, em parte dos eleitores, e por fim, da cúpula do Judiciário, com a troca de guarda entre Cármen Lúcia e Dias Toffoli. Passaram a viver das redes sociais.
Não que Cármen Lúcia coonestasse alguma aventura autoritária do presidente, pelo contrário. Mas a ministra havia revestido sua presidência de uma aura messiânica que deixava sem controle o radicalismo da primeira instância. Toffoli jamais será um herói. Para ninguém.
A agenda econômica de Paulo Guedes de forma indireta também ajuda a desanuviar o ambiente. A tensão entre entorno de Bolsonaro e o de Rodrigo Maia, nesta visão, é um pouco de disputa por protagonismo. Existe uma tendência natural para se aprovar alguma reforma da Previdência, como porta de entrada para outras reformas de uma agência "market friendly". Na visão do mercado, a votação de uma agenda reformista não é uma panaceia, mas tira o país das cordas de uma recessão profunda. Falta de crescimento e radicalização política andam de mãos dadas. Moderação está mais associada com algum desenvolvimento econômico.
Para este executivo, Guedes não coloca trava em ninguém. "Em relação à democracia, não dá para confiar nele. Ele não se importa se o regime é democracia ou ditadura, contanto que dê espaço para as ideias dele. Ele não vai ser o cara que vai colocar algum obstáculo". A agenda do ministro da Economia, portanto, favorece a estabilidade das instituições de uma maneira indireta. Ressalve-se que, em público, quando questionado, Guedes afirmou mais de uma vez que jamais compactuaria com um regime autoritário.
14 de junho
O termômetro da Previdência, um monitor de votos na Câmara em relação à reforma desenvolvido pela empresa de consultoria Atlas Político, publicado desde março pelo Valor , anda se movendo de forma contundente. Parece cada vez mais palpável a aprovação da reforma, desde que o governo federal começou a negociar mudanças no texto.
Pela primeira vez o contingente de indecisos deixou de ser o mais numeroso da Câmara. No dia 18 de março 220 deputados estavam no muro, agora são 137 nesta condição. O total de votos contrários, 144 até ontem, está virtualmente inalterado desde o início do levantamento. Os que defendem a aprovação do texto com alterações passou de 79 em 8 de abril para 127 agora. Os apoiadores incondicionais da reforma, por dois meses entre 90 e 100, passaram a 105.
Ainda está longe dos 308 votos necessários para aprovar a reforma - a soma dos que são de alguma maneira favorável dá 232 - mas uma onda está se formando. É difícil pensar que a greve geral convocada no dia 14 vá alterar esta realidade.
A paralisação da próxima semana tende a ser um circuito fechado. Se ganhar a adesão do setor de transportes pode-se dizer que deve ser bem sucedida, induzir a interrupções em cadeia das jornadas de trabalho. É provável que as ruas sejam tomadas nas principais cidades. Mas é jogo jogado: estamos falando de sindicalistas, militância organizada em partidos e movimentos sociais. Fortalece quem já tem posição formada. É diferente dos protestos relacionados à educação, sobretudo do primeiro, que mostrou a reação social diante de um fato novo, qual seja os cortes na área decididos pelo governo e a maneira como foram apresentados.
O protesto de 15 de maio pegou de surpresa um grupo político capaz de politizar qualquer tema, até as polêmicas envolvendo Neymar. Ao que tudo indica, foi menosprezado o risco de reações negativas ao posicionamento do ministro da Educação.
O 14 de Junho parte de um ambiente totalmente diferente. É contra a reforma da Previdência, um tema em relação ao qual o governo investiu muito para construir uma imagem positiva. No mínimo, a reforma hoje não é tão impopular quanto foi no passado. A oposição anda perdendo terreno na batalha pela comunicação do tema.
*César Felício é editor de Política.
Claudia Safatle: País vive a recessão do investimento
Governo, STF e Congresso não podem perder tempo
A queda de 0,2% no Produto Interno Bruto (PIB) no primeiro trimestre do ano frente ao último trimestre de 2018, não condena o país à volta da recessão neste ano, definida por dois trimestres de contração da atividade econômica. Mas os dados do IBGE, divulgados ontem, reiteram a triste performance do investimento, que teve queda de 1,7% em igual período. O panorama, hoje, é de "estagnação do PIB e recessão do investimento", sintetiza Sílvia Matos, especialista em contas nacionais e coordenadora técnica do Boletim Macro Ibre/FGV.
Mesmo assim, ela ainda mantém um cenário básico de crescimento de 1,2% para o ano, com igual desempenho do investimento. Parte dos analistas do setor privado já trabalha com resultado abaixo de 1% de expansão do produto interno..
Uma das características deste ano, portanto, deve ser a de ter piores indicadores de investimento do que em 2018. Essa é uma questão importante diante da expectativa de que ocorresse exatamente o contrário, em função da mudança de governo e de todas as esperanças que uma nova administração traz.
Sílvia Matos explica que o crescimento de 4,1% do investimento no ano passado está superestimado porque foram contabilizadas importações antigas de plataformas de petróleo. Sem essas importações, feitas no passado mas só consideradas em 2018, a expansão do investimento foi de apenas metade do registrado. Para este ano, os cálculos sem as plataformas apontam para alta de 1,2% no investimento.
Hoje deve ser divulgado o Indicador de Incerteza da Economia, pelo Ibre, que, após registrar forte aumento no período posterior às eleições de outubro, começou a cair em março, continuou em abril e deverá ter nova piora em maio.
Incertezas são mortais para as decisões de investimentos. Elas se espalham pelas avaliações prospectivas do nível de atividade, em uma economia já bastante fragilizada. Esta é uma situação que o governo de Jair Bolsonaro não conseguiu reverter nos seus cinco meses de gestão.
Há componentes estruturais emperrando a retomada do crescimento, concorda a economista do Ibre. A produtividade do capital tem sido negativa há vários anos. Essa é uma consequência de investimentos malfeitos antes da crise que jogou o país em três anos de recessão (que começou no segundo trimestre de 2014 e durou até o fim de 2016).
A retração dos investimentos, porém, teve início no segundo trimestre de 2013 - um ano antes da recessão -, sinal de que aquele modelo estava esgotado. "O último ciclo de investimentos foi um desastre", comenta Sílvia Matos. Os recursos destinados ao crédito subsidiado do BNDES foram mal alocados, os investimentos da Petrobras foram ruins e essa situação é de difícil reversão em um curto espaço de tempo.
A produtividade do trabalho não é melhor do que a do capital. Os empregos que enfeitam os indicadores do mercado de trabalho são em sua grande maioria informais.
Na análise do Goldman Sachs para os seus clientes, o economista Alberto Ramos também se refere a possível existência de "um dano estrutural" nos principais motores de crescimento nos últimos anos. Ele sugere que a recuperação tem sido limitada pela redução no estoque de capital, diante do severo declínio do investimento, e pela "histerese" do mercado de trabalho, reflexo da perda de competências devido a um período prolongado de alta taxa de desemprego.
O capital, sem crescimento, vai se perdendo. Sem investimentos na infraestrutura, o estoque vai se depreciando e se deteriorando. Está ficando comum na cena brasileira viadutos despencarem e estação de energia simplesmente explodir, como ocorreu na quarta feira com uma estação da Companhia Energética de Brasília (CEB), no centro da capital federal.
Sílvia Matos aposta na reversão do PIB, que passaria a ser positivo a partir do segundo trimestre do ano, até pela base de comparação com igual período do ano passado quando houve o impacto da greve dos caminhoneiros na atividade econômica. O problema é que mesmo a recuperação cíclica da economia está muitíssimo lenta e efeitos estatísticos não são uma solução.
A economista acredita, também, que a divulgação de dados ruins chacoalha o governo. "Estamos levando gols, e a turma está parada no campo", diz ela. Há boas ideias, reconhece, mas falta um plano detalhado com uma sequência de ações definidas e consistentes. "Isso é que dá segurança de que há um capitão comandando o barco no meio da tempestade", completa.
Ontem mesmo o ministro da Economia, Paulo Guedes, ao comentar os decepcionantes dados divulgados pelo IBGE que não lhe causaram surpresa, anunciou que pretende liberar uma parte das contas ativas e inativas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e do PIS/Pasep, como forma de irrigar o consumo das famílias, tal como fez o então presidente Michel Temer em 2017. Mas fará isso após a aprovação da reforma da Previdência.
Guedes começou, também, a delinear uma sequência de medidas que devem ser anunciadas como sucessoras da reforma da Previdência, tais como a reforma tributária, um choque de energia barata e a revisão do pacto federativo para colocar de pé as finanças estaduais e municipais.
O ministro ponderou que o governo tem apenas quatro meses (na verdade, são cinco), que está trabalhando freneticamente e que pela primeira vez ocorre no país a aliança política de centro-direita e que é natural, portanto, que essas articulações tomem algum tempo.
Sobre a possibilidade de cortar mais os juros básicos para estimular a economia, o ele disse que isso só faz sentido se e quando o país tiver um regime fiscal que se sustente. Ele praticamente avalizou os argumentos do presidente do Banco Central, Roberto Campos.
O governo Bolsonaro não criou a recessão nem a estagnação da economia, mas tudo que ele, o STF e o Congresso não têm é tempo a perder para reverter esse quadro de acelerado empobrecimento do país.
César Felício: Muita lenha para queimar
Oposição não sabe o tamanho da cela, mas está encarcerada
As manifestações de ontem, a julgar pelas informações preliminares, devem mostrar à oposição ao governo Bolsonaro seus limites. Tanto o lado azul quanto o vermelho mostraram capacidade de ocupar ruas, mas claro está que não se vive um clima de Primavera Árabe, ou de Junho de 2013. Os atos estão na equação política, mas não ganharam e nem devem ganhar no futuro próximo centralidade.
No de ontem, até o início da noite, houve manifestações em 131 cidades em 26 Estados e no Distrito Federal. Boa parte no Nordeste, como as registradas na Bahia (12 cidades), Paraíba (9), Pernambuco (6) e Ceará (6), mas em São Paulo os atos foram de Birigui a Ubatuba, em 17 municípios. Foram atos relevantes, que incomodam o governo, mas não criam uma dinâmica desestabilizadora. Até certo ponto favorecem a estratégia de Bolsonaro, a quem interessa manter um clima de radicalização pré-eleitoral.
Para um governo sem base no Congresso e ideias concretas para reativar uma economia em ponto morto, contar com uma oposição no estado em que está a brasileira não deixa de ser um conforto. Alguém duvida que os maiores desafios a serem ultrapassados por Bolsonaro estão entre os seus companheiros de trincheira, e não do outro lado?
Não se sabe ainda o tamanho da cela, mas a oposição está encarcerada. Sua maior esperança é por uma espécie de autofalência bolsonarista, seja por total inépcia administrativa do presidente, ou em caso de uma tentativa desastrada de golpe, como a feita por Jânio Quadros, em 1961.
A oposição alimenta-se da narrativa do golpe e da conspiração internacional e é só torcida: aguarda-se que o preço a ser cobrado pelo Centrão para aprovar as reformas seja insuportável; que Bolsonaro continue empurrando os estudantes para as ruas com o arrocho na educação; que o Ministério Público do Rio de Janeiro comprometa ainda mais a família presidencial com antigos e atuais milicianos, e por aí vai.
Como Blanche Du Bois, a personagem da peça "Um bonde chamado desejo", depende da bondade de estranhos. Para explicar a analogia, Blanche é uma senhora que vive fechada em suas ilusões de grandeza passada e refinamento, e é destruída mental e fisicamente ao entrar em atrito com o cunhado sociopata.
É evidente o cansaço da população do PT, como fica patente em pesquisas de opinião que apontam Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Haddad como campeões de rejeição, mas bem ou mal são os petistas que estão na rua, são eles que tem um candidato pronto, em viagem pelo país e com recall para apresentar em 2022, que contam com capilaridade nacional e com governos estaduais de razoável porte nas mãos. É muito cedo para se projetar o quadro eleitoral de 2022, mas é certo que lá estará, entre os postulantes, o do PT.
O PDT, o PSB, o PCdoB, o Psol, podem divagar sobre projetos de união, mas não conseguem contornar o fato de que o PT é que tem a hegemonia deste campo e ao PT não interessa nada que signifique abrir mão desta hegemonia, mesmo que o preço para isso seja uma permanência de longo curso do bolsonarismo no poder.
Esta semana, um governador oposicionista sorriu amarelo ao ser perguntado sobre a estratégia de 2022 e, em um gracejo, concordou que era melhor começar a falar na eleição de 2026. A próxima é melhor pular. A rejeição ao PT não se dissolverá, Ciro Gomes não consegue agregar o campo oposicionista, Marina Silva é passado e esperar por Joaquim Barbosa é contar com Dom Sebastião, reaparecendo em algum dia de muita névoa.
Este governador oposicionista vê com apreensão a eleição do próximo ano. Se fosse agora, mostraria um fortalecimento do bolsonarismo nas capitais, em que pese o desgaste do governo e a força das ruas. Ele não se ilude com a queda da popularidade do presidente. "Nas pesquisas qualitativas que realizamos, as pessoas atribuem os problemas pelos quais passam hoje, como a insegurança ou o desemprego, ao PT. Não atribuem ao Bolsonaro", sentenciou. O presidente ainda tem muita lenha para queimar.
Histrionismo
O Brasil já teve ministro acusado de homicídio. Titulares do primeiro escalão que sustentaram que cadelas são seres humanos. Houve uma miríade de ministros fulminados por escândalos de toda natureza. Mas nunca houve nada parecido com Abraham Weintraub. Cumprem a ministros, em geral, um papel discreto, que não ofusque o presidente. Não é o caso, entretanto, do titular do MEC. Weintraub é um showman.
O ministro da Educação já provocara espanto ao aparecer nas redes sociais mostrando o torso nu, para evocar cicatrizes da adolescência que interferiram em seu desempenho universitário. Procurou explicar contingenciamento de verbas com chocolatinhos. E ontem, em um dia de protesto em sua área, eis que surge ao som de "singing in the rain", rodopiando um guarda-chuva, apenas para desmentir que tenha cortado recursos para a reconstrução do Museu Nacional.
O assombroso vídeo foi curtido pelo presidente Bolsonaro no Twitter, o que mostra que a excentricidade está dentro de um método. O ministro da Educação teve o endosso do governo para gastar o tempo necessário na concepção e produção do vídeo em que mescla arrogância e deboche contra "os veículos de comunicação, das pessoas que estão de mal com a vida".
Desde que assumiu o cargo, Weintraub se esforça em tratar os temas de sua pasta como caso de polícia e as críticas que recebe como perseguições odiosas. Cortes orçamentários de rotina foram caracterizados como reação a atividades impróprias cometidas em ambiente escolar, as já famosas "balbúrdias". Seu histrionismo contrasta com o baixo perfil que cultivou durante a campanha eleitoral e sugere que o ministro cumpre um papel político ao fazer o que faz. Trata-se de uma pessoa sem nenhum receio do ridículo, o que é raro. O país ainda aguarda a apresentação de uma estratégia para a educação.
Claudia Safatle: Manifestação é decisão insensata
"A conjuntura piora em uma velocidade enorme", diz Delfim
Domingo, dia 26, data marcada para manifestações de apoio ao presidente Jair Bolsonaro e às reformas, será um ponto de inflexão nos rumos do governo e, consequentemente, do país. Se a convocação for muito bem-sucedida, com comparecimento maciço, Bolsonaro tenderá a achar que as forças da rua poderão viabilizar restrições à democracia ou até mesmo o fechamento do Congresso ou do Supremo Tribunal Federal (STF). Se ele der qualquer passo nessa direção, produzirá uma crise institucional que provavelmente desaguará em um processo de "impeachment" e o país terá uma nova eleição. Se, ao contrário, for fraca, ele virará a rainha da Inglaterra. Ficará isolado e haverá uma reorganização interna do governo.
"Foi uma decisão insensata", avalia o ex-ministro e ex-deputado Delfim Netto, ao considerar as duas hipóteses acima. "Já vimos duas dessas provocações darem com os burros n'água. A do Jânio Quadros e a do Collor." Delfim diz que sua intuição é de que a manifestação será "murcha".
Nesse caso, Bolsonaro terá que se render à ideia de que fazer uma política republicana de divisão do poder com os partidos não significa participar da corrupção.
Quando o partido do mandatário não tem maioria, o entendimento, em qualquer república democrática, é de que um conjunto de partidos vai se unir e dividir o poder. O Centrão, grupo informal de partidos composto por DEM, PRB, PP, PR, PTB, MDB e SD, nesse sentido, está exercendo o legítimo direito de participar do governo se o governo assim o quiser, considera o ex-ministro.
Na Alemanha, Angela Merkel, da União Democrática Cristã (CDU) fez acordo com o Partido Social-Democrata (SPD), da oposição, para quem destinou uma cota relevante de ministérios. Não se tem notícia de que isso implicou tolerância com a corrupção, cita.
A opção de Bolsonaro, no entanto, tem sido pelo confronto. Há dúvida se isso decorre de ignorância ou se são movimentos táticos que obedecem a uma estratégia. O ex-presidente José Sarney disse, em entrevista ao "Correio Braziliense", no domingo, que "Bolsonaro está colocando todas as suas cartas na ameaça do caos". Delfim acredita que "é um misto das duas coisas, fruto da incompreensão de como funciona o exercício da política na democracia". Ele alerta: "Se alguém tiver a ilusão de que vai poder violar os dispositivos da Constituição de 1988, terá uma grande surpresa".
Um dos grandes erros do presidente e dos seus seguidores, segundo o ex-ministro, "é pensar que a voz do povo é a voz de Deus. Não é! A voz do povo é a voz do diabo, que está se divertindo. O povo não tem lealdade. Ele flutua, é influenciável".
Outro erro é imaginar que as manifestações do último dia 15, contra o contingenciamento de verbas das universidades públicas, foram organizadas pela esquerda. "Esse é um grave engano, porque a esquerda não coopta mais ninguém depois do tumor de fixação que se criou no PT!", ressalta Delfim. Para ele, quem participou das passeatas de protesto naquele dia foram os alunos e os pais bolsonaristas, "que constituem a maioria".
Há 50 anos os governos fazem o contingenciamento do orçamento, seja durante o regime militar, seja na democracia, e "nunca houve manifestações ou passeatas contra; a notícia saía na oitava página dos jornais". As universidades, diz Delfim, sempre souberam disso. O Ministério da Fazenda contingencia as despesas à espera das receitas. O que houve de diferente, desta vez, "foi a imbecilidade de dois ministros da Educação, em um prazo de apenas cem dias, que ele [Bolsonaro] empurrou à população", acrescenta. Este foi mais um dos erros cometidos pelo governo.
"Temos, nesses cinco meses, a maior densidade de lambança por unidade de tempo já vista no país", diz o ex-ministro, não em tom de blague como seria de se esperar, mas de perplexidade.
Curioso é que todas as controvérsias e fagulhas que ameaçam espalhar o fogo são produzidas pelo próprio governo. "É como aquele cara que joga a casca de banana na outra rua e, depois, atravessa a rua para escorregar na casca de banana", comenta.
No mais recente confronto, o presidente quis demitir o ministro da Secretaria de Governo, general Santos Cruz, por considerar que ele havia feito comentários desabonadores sobre o seu governo. "Ele desmoralizou os militares que estão do lado dele!", salienta Delfim, sem disfarçar o espanto.
O mesmo povo que elegeu Bolsonaro elegeu, também, 513 deputados e 54 senadores. Se a manifestação de domingo for muito bem-sucedida, a mensagem será de que o povo decidiu acabar com a democracia. Mas a democracia é uma cláusula pétrea da Constituição. O STF, como o garante da Constituição, em uma situação como essa, pediria ao Congresso o "impeachment" do presidente, o que levaria o país a uma nova eleição.
"Imagine onde jogaremos o Brasil! E quem for eleito receberá os cacos do que um dia foi a economia brasileira, que colapsará instantaneamente", prevê.
A outra hipótese é a do isolamento do presidente, se o resultado da manifestação ficar aquém do esperado. Nesse caso, o governo se reorganizaria internamente para administrar o país até as próximas eleições. Delfim deixa claro que não se trataria, aí, de um governo sob o comando dos militares. Argumenta que é um erro pensar que os generais que estão em cargos importantes no governo representam as Forças Armadas. "Aposentados, eles são civis", reforça. Quando fala na eventualidade de uma reorganização interna, o ex-ministro diz que se refere à parte sensata do governo.
Delfim e Affonso Celso Pastore conversaram na terça-feira. "Estamos plenamente de acordo: caminhamos para uma depressão econômica", diz o ex-ministro, conforme indica um estudo recente da consultoria de Pastore, divulgado no fim de semana pelo jornal "Folha de S.Paulo".
"Estamos na boca de um buraco negro que está atraindo tudo lá para dentro. A conjuntura está piorando em uma velocidade enorme", lamenta.
Andrea Jubé: Tempo quente, guerra fria
O "nós contra eles" de Bolsonaro opõe o povo ao Congresso
O presidente Jair Bolsonaro está cansado. A revelação é do deputado Marco Feliciano (Pode-SP), um de seus aliados mais próximos, que encomendou uma corrente de orações pela proteção do mandatário e do governo aos seus mais de 4 milhões de seguidores.
"Notei no seu semblante, em sua fala ainda que descontraída, um cansaço", disse Feliciano, em vídeo divulgado no sábado nas redes sociais. Segundo o parlamentar, que acompanhou Bolsonaro na viagem a Dallas, o presidente enfrenta uma "guerra fria" porque as forças que não o elegeram se uniram para paralisá-lo: "O que não conseguiram fazer com aquela facada na barriga estão tentando com punhaladas nas costas".
Bolsonaro tem falado em exaustão de forma recorrente, embora ainda tenha pela frente 44 meses de mandato. Ao receber um senador em seu gabinete recentemente, apontou a cadeira presidencial e decretou: "Aquilo é uma desgraça". Ao apresentador Sílvio Santos, disse que a Presidência só traz problemas. Há um mês e meio, desabafou: "Não nasci para ser presidente, nasci para ser militar".
Caciques políticos interessados no avanço das reformas preocupam-se com dois fatores: o aparente esgotamento nervoso de Bolsonaro, e sua indisposição para ajustar a relação com o parlamento. A avaliação interna na cúpula do Congresso é que Bolsonaro tem comportamento ambíguo, porque admite a exaustão a interlocutores, ao mesmo tempo em que demonstra fôlego para o confronto.
Na semana passada, quando uma multidão foi às ruas em mais de uma centena de cidades protestar contra os cortes na área de educação, e o governo sofreu derrotas relevantes no Congresso, a maioria dos líderes acreditava que Bolsonaro faria gestos de conciliação ao Congresso.
Mas o que se viu neste começo de semana decisiva para o governo foi uma declaração de guerra. "O que eu tenho para oferecer é a humildade, a coragem de enfrentar grupos corporativistas", disse o presidente ontem na Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan). O combate às corporações remete ao polêmico texto que ele compartilhou com aliados no fim de semana, segundo o qual o país seria "ingovernável" se ele continuasse resistindo a fazer "conchavos" com as "corporações".
Bolsonaro alega cansaço, mas demonstra disposição para a briga. Afirma que "o que mais quer é conversar", mas tenta apagar o fogo com gasolina. Ontem ele também reiterou os ataques aos políticos, dificultando ainda mais qualquer canal de diálogo com o Congresso, e via de consequência, a votação das reformas. "É um país maravilhoso que tem tudo para dar certo, mas o grande problema é a nossa classe política", acrescentou, no mesmo discurso na Firjan.
Incomodado com a dimensão das manifestações contra o governo no dia 15, o presidente estimula a reação de seus apoiadores com os protestos convocados para o dia 26. Indiferentes às denúncias envolvendo o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, defensores do governo marcharão em defesa da reforma da Previdência e do pacote anticrime do ministro Sergio Moro. Mas também contra os deputados do Centrão, que acusam de achaque ao governo, e contra o Supremo Tribunal Federal.
Paralelamente, haverá a tréplica dos estudantes já programada para o fim do mês, com o mote #dia30vaisermaior. A batalha das ruas é uma reedição da conturbada campanha eleitoral, quando grupos de brasileiros duelaram nos protestos #elenão - a maior concentração popular liderada por mulheres na história brasileira - e #elesim, em defesa do então candidato.
Parlamentares influentes lamentam a persistência de Bolsonaro no embate com a classe política. Há uma leitura de que o presidente tenta reeditar a fórmula praticada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que colocava o povo ao seu lado contra as chamadas "elites". Segundo Lula, não era desejo desse segmento que a população de baixa renda comesse filé mignon ou viajasse de avião. Lula agia para garantir o apoio popular, mas não jogava o povo contra os políticos.
O problema, na visão desse grupo de parlamentares, é que a versão do "nós contra eles" de Bolsonaro instiga o povo contra os congressistas. Justamente os deputados e senadores que deverão votar as propostas de interesse do governo, como as reformas da Previdência e tributária, além do projeto de reestruturação da carreira dos militares - prioritário para o presidente.
Os atritos com os parlamentares impõem sucessivas derrotas ao governo no Congresso. A medida provisória que permitiu 100% de capital estrangeiro nas companhias aéreas prescreve amanhã. Justamente a norma que levou o ministro Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura, a comemorar a chegada ao Brasil da AirEuropa, que geraria empregos, equilibraria a oferta de voos e reduziria os preços dos bilhetes, diante do colapso da Avianca. Agora o futuro da AirEuropa é incerto.
Apesar do azedume entre Congresso e Planalto, ainda há disposição dos líderes de aprovar um substitutivo para a MP que atualiza o marco legal do saneamento básico no país, e até mesmo a reestruturação do primeiro escalão. Mas o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) não deve retornar ao Ministério da Justiça.
Nesse campo de batalha, a cúpula da Câmara decidiu não se omitir diante da inércia presidencial em ajustar a articulação política e assumiu as rédeas da agenda econômica. Assim o Centrão dita o ritmo da reforma da Previdência, com o PR no comando da comissão especial. E o estreante João Roma (BA), do PRB, vai relatar um projeto de reforma tributária do Legislativo.
Em suma, Bolsonaro está pintado para a guerra e comanda um contingente expressivo, mas enfrenta defecções na brigada. A líder do governo, Joice Hasselmann (PSL-SP) ontem pediu paz. "É preciso baixar a guarda, chega de clima beligerante; não se consegue aliados atacando pessoas", ensinou.
Bruno Carazza: O novo presidencialismo
Bolsonaro destrói pontes ao apostar na polarização
Filibuster. No final de 2018 foi ao ar a entrevista de Barack Obama no podcast de David Axelrod, seu ex-conselheiro político e agora diretor do Instituto de Política da Universidade de Chicago. Em certa altura da conversa, o ex-presidente americano é convidado a analisar retrospectivamente seu relacionamento com o Congresso. E ele cita o filibuster, a tática de obstrução em que o partido adversário tenta barrar as discussões, como o principal culpado por não ter conseguido implementar sua ampla agenda de reformas, frustrando muitos de seus quase 70 milhões de eleitores.
De acordo com Obama, em apenas 4 meses dos seus 8 anos de mandato seu partido teve 60% das cadeiras do Senado, percentual regimental que impediria a obstrução dos republicanos. Em praticamente todo o período em que ocupou a Casa Branca, portanto, Obama precisava convencer pelo menos um membro do partido adversário a mudar de lado e votar a favor do governo.
Para complicar as coisas, a política vem se tornando cada vez mais polarizada. Na mesma entrevista Obama aponta o fato de que, do fim da Segunda Guerra até pelo menos os anos 1980, mesmo com a alternância no poder entre democratas e republicanos, os presidentes americanos conseguiam obter apoio nos partidos rivais para os grandes projetos nacionais. Havia parlamentares democratas com visão econômica um pouco mais conservadora, assim como republicanos mais moderados. Isso foi fundamental para o incrível desenvolvimento americano no pós-guerra.
Na visão de Obama, nas últimas décadas esse quadro tem mudado radicalmente com a polarização política da sociedade. Ele sentiu na pele esse efeito, assim como Trump está tendo o mesmo problema com as obstruções dos democratas.
Corta para o Brasil. Desde a década de 1990 consolidou-se na academia brasileira a interpretação de que nosso presidencialismo de coalizão funcionava, a despeito de todos os incentivos contraditórios advindos da combinação de sistema presidencialista com uma Câmara eleita de forma proporcional e em lista aberta, dezenas de partidos e um Senado representando uma federação extremamente desigual.
Apesar dessa receita para o caos, os presidentes conseguiam levar adiante suas agendas de reforma valendo-se dos superpoderes que a Constituição lhes confere: distribuição de cargos para aliados, liberação de verbas orçamentárias e poder de legislar por meio de medidas provisórias. Para facilitar, os líderes partidários no Congresso também detêm prerrogativas para garantir a fidelidade de seus comandados - cabe a eles indicar parlamentares para as comissões, designar relatores e até controlar quem fala no palanque para aparecer na TV e na Voz do Brasil. Assim, bastava ao Presidente da República se acertar com os líderes do Congresso que a mágica acontecia, o caos era evitado e o governo fluía.
Os números dão razão à teoria: em média, no âmbito de cada partido a disciplina se mantém acima de 80% desde os tempos de FHC, garantindo ao governo um apoio de mais de 70% nas votações nominais - suficiente para passar mudanças na Constituição. Mas a vida é real e de viés, como diria o poeta de Santo Amaro. Por trás da teoria e dos números, porém, uma nova ordem surgiu.
As dificuldades enfrentadas por Bolsonaro no Congresso não se devem exclusivamente à sua inacreditável falta de habilidade política. Do outro lado da Praça dos Três Poderes, deputados e senadores têm se fortalecido ao longo do tempo frente ao Poder Executivo. Um importante passo nesse sentido foi a Emenda Constitucional nº 32/2001, que estabeleceu limites à edição de medidas provisórias pelo Presidente da República. Apesar da mudança, contudo, FHC e Lula continuaram abusando desse instituto, conseguindo taxas de sucesso superiores a 80% de aprovação. Com Dilma o percentual caiu para 75% e Temer, com toda sua experiência de liderança no Congresso, só conseguiu 57,8% de conversão de MPs em lei. Bolsonaro ainda não conseguiu passar, nem ao menos na Câmara, nenhuma das 13 medidas provisórias que propôs - e elas começam a expirar em duas semanas.
Em 2015 o Congresso impôs outra restrição ao Executivo. Com a Emenda Constitucional nº 86, emendas orçamentárias de parlamentares passaram a ter execução obrigatória até o limite de 1,2% da receita corrente líquida. Numa das mais acachapantes derrotas de Bolsonaro até agora, a PEC nº 34/2019 está prestes a ampliar o limite em mais 1%, desta vez abarcando as emendas coletivas.
Ao restringir a margem de manobra para o Presidente legislar e ao garantir a execução de suas emendas parlamentares mesmo num quadro de grave crise fiscal, os parlamentares minaram duas das principais fontes de poder do Poder Executivo. Com um Congresso cada vez mais fragmentado, o preço do apoio subiu. E foi aí que o presidencialismo de coalizão se converteu em cooptação; primeiro com o mensalão, depois com o petrolão e um comércio desenfreado de emendas beneficiando grandes doadores de campanha.
Jair Bolsonaro foi eleito acreditando que seria fácil subverter essa ordem. Mas sem ter apresentado um projeto de governo consistente e recusando-se a compartilhar o poder, o capitão mostra-se sem estratégia e perde o comando da tropa. Do outro lado da trincheira, um Congresso cada vez mais poderoso toma as rédeas e lhe impõe seguidas derrotas.
Bolsonaro e seus filhos acreditam que superarão os tsunamis da política intensificando ainda mais a polarização. Agindo assim, eles destroem pontes com setores da sociedade que poderiam oferecer apoio, ainda que eventual, às suas propostas. O mercado já parece estar abandonando o barco. E, sem soluções concretas para os inúmeros problemas brasileiros, boa parte dos 57.797.847 de seus eleitores poderão fazê-lo em breve. O grande desafio é saber quando (e como) vamos parar de afundar.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de "Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro".
Cristiano Romero: Aceno populista ignora crise fiscal
Perda de receita com isenção tributária vai a R$ 306 bi neste ano
Ao determinar que o Ministério da Economia corrija pela inflação os valores da tabela do Imposto de Renda (IR) das pessoas físicas, o presidente Jair Bolsonaro demonstrou ignorar, mais uma vez, a gravidade das contas públicas. Para piorar, admitiu a possibilidade de elevar os limites de abatimento, da base de cálculo do mesmo imposto, os gastos das famílias com educação e saúde.
Nos dois casos, as mudanças resultarão em queda da arrecadação de tributos federais, no momento em que o governo tenta convencer a sociedade de que precisa tirar de seu bolso, ao longo de dez anos, R$ 1,1 trilhão para tentar salvar a Previdência Social e o regime de aposentadoria dos funcionários públicos federais. O aceno, de caráter populista, ignora o fato de que, desde 2014, o setor público (União, Estados e municípios) acumula déficits primários em suas contas, isto é, não consegue arrecadar o suficiente para cobrir as despesas correntes, excluídos os gastos com o serviço (juros) da dívida.
Não é coincidência o fato de que, desde 2014, a economia brasileira vive um pesadelo. Encolheu quase 8% no triênio 2014-2016 e cresceu apenas 1,1% tanto em 2017 quanto em 2018. Considerando-se que a população brasileira cresce, em mésio, pouco mais de 1% ao ano, a renda per capita teve queda real de quase 10% durante os três anos de recessão e, nos últimos dois anos, ficou estagnada.
Quando se esperava que o novo governo usasse o capital político conquistado na eleição de 2018 para, rapidamente, aprovar no Congresso a reforma da Previdência, medida fundamental para motivar o empresariado a tirar o pé do freio e colocar a economia para andar, o que se viu, até o momento, foi um presidente sem convicção da agenda econômica que o elegeu e sem força ou interesse para arbitrar disputas internas que têm provocado desgaste na relação com a sua própria base de apoio, no Poder Legislativo.
Por que a geração permanente de déficits primários pelo setor público impede a recuperação da atividade? Porque, se os gastos públicos crescem acima da arrecadação tributária, o governo é obrigado a endividar-se no mercado, por meio de emissão de títulos públicos, para levantar os recursos necessários. Obviamente, se não dispõe de dinheiro sequer para bancar a despesa primária, não o tem também para honrar o gasto com os juros da dívida pública. A consequência é o crescimento da dívida.
Como não há superávit primário há cinco anos, isto é, uma sobra de recursos depois de pagar as despesas, a dívida bruta do setor público não para de crescer, aproximando-se neste momento do equivalente a 80% do PIB, o dobro da média dos países emergentes, classe de economias à qual o Brasil pertence.
Essa situação cria enorme incerteza sobre horizontes cada vez mais curtos. Por quê? Porque, se nada for feito, a dívida atingirá níveis que farão os detentores de títulos públicos duvidar da capacidade do governo de honrar o pagamento desses papéis. O resultado será a elevação da taxa de juros a patamares cada vez mais altos. Isso ocorre porque, para continuar comprando os títulos e portanto seguir financiando o Tesouro Nacional, os investidores incorrerão em risco crescente, o que os levará a exigir prêmios mais elevados, ou seja, juros maiores.
É nesse contexto que entra a necessidade inequívoca de se reformar a Previdência. Se aprovadas, as mudanças não resolverão o problema fiscal de curto prazo. No entanto, alterações aprovadas agora indicariam que, no futuro próximo, o rombo da Previdência, que no ano passado somou quase R$ 300 bilhões, incluindo na conta os rombos provocados pelas aposentadorias dos trabalhadores do setor privado e do setor público, desapareceria.
Alguém pode fazer o seguinte questionamento: por que, então, apesar da penúria das finanças públicas, as condições financeiras (juros, bolsa de valores e taxa de câmbio) ainda não se deterioraram? Isso não ocorreu até o momento porque, desde a queda da presidente Dilma Rousseff, em maio de 2016, governo e mercado fecharam acordo tácito, segundo o qual, a reforma da Previdência será aprovada. Como sempre faz o mercado, os feitos futuros da reforma foram "antecipados" nos preços dos ativos. Até quando? Não se sabe, mas em breve todos saberemos com a aprovação ou não da reforma.
Diante desse quadro, abrir mão de receitas tributárias agora não faz o menor sentido. Conceder mais benefícios fiscais a setores da sociedade é suicídio. Os governos no Brasil gastam mais com quem menos precisa. Aumentar esse desequilíbrio é uma afronta aos mais pobres. A Constituição de 1988 universalizou o direito dos brasileiros aos serviços públicos de saúde e educação. Sendo assim, não deveria ser permitida a transferência de recursos públicos do Estado para entes privados nessas áreas.
As perdas de receita com gastos (benefícios) tributários, por exemplo, chegaram aR$ 270,4 bilhões em 2017 - mais que o dobro dos R$ 124,3 bilhões de déficit primário do governo central naquele ano - e a R$ 283,4 bilhões em 2018. Neste ano, a conta crescerá novamente (ver gráfico). Do total, R$ 20 bilhões serão abatidos dos gastos da classe média com saúde e educação particulares, montante que faz bastante falta ao orçamento da saúde e da educação.
Andrea Jubé: Moro pode levar mais "caneladas"
Abuso de autoridade pode voltar à pauta do Congresso
Na esteira das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, caciques do Congresso farejaram um vento favorável à retomada da votação dos projetos de lei que regulamentam o abuso de autoridade - uma pauta indigesta à Lava-Jato, e que dormita nos escaninhos das duas Casas há dois anos. Se a movimentação se concretizar, será mais uma "canelada" no ministro da Justiça, Sergio Moro - para usar um termo caro ao presidente Jair Bolsonaro.
Desde que entrou para o jogo político, Moro vem levando cotoveladas e "carrinhos por trás". Na última semana, os parlamentares retiraram o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) da Justiça para alojá-lo na Economia. Há dois meses, o ministro teve de recuar da nomeação de Ilona Szabó, mestre em estudos de conflito e paz e especialista em segurança, para uma vaga de suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
O possível avanço dessa pauta seria também um chute na canela do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que relatou o projeto das "10 medidas contra a corrupção", no qual foi aprovado o destaque estabelecendo o crime de abuso de autoridade. O alvo já era a Lava-Jato e os protagonistas da operação, em particular os procuradores da República que faziam parte da força-tarefa.
Esse clima propício à retomada da discussão sobre o abuso de autoridade, na visão desse grupo de parlamentares, vem da inflexão do Supremo em pautas consideradas éticas. Na última quinta-feira, sete ministros do STF decidiram ratificar o decreto de indulto natalino editado pelo ex-presidente Michel Temer em 2017, e que havia sido suspenso pelo ministro Luís Roberto Barroso. O decreto reduziu para um quinto o tempo de cumprimento das penas de condenados por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, beneficiando inclusive condenados por corrupção.
Em outro julgamento o Supremo decidiu que as assembleias legislativas têm poderes para revogar prisões ou medidas cautelares impostas a deputados estaduais. Por seis votos a cinco, foram mantidos trechos das constituições do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Norte e de Mato Grosso que conferiam essa prerrogativa aos parlamentares estaduais.
É a reboque dessas decisões, e do azedume com o Planalto, que ganhou corpo nos últimos dias o movimento de parlamentares influentes para convencer o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ou o do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), a pautarem a medida em uma das Casas.
A Câmara pode votar o projeto que os senadores aprovaram em abril de 2017, autorizando a punição dos agentes públicos que praticarem abusos, desde servidores de prefeituras, concursados ou terceirizados, a integrantes do Ministério Público, juízes, deputados e senadores. Relatado pelo então senador Roberto Requião, o texto exige a comprovação da intenção da autoridade de prejudicar ou beneficiar a si próprio, por capricho ou satisfação pessoal, para que fique caracterizado o crime de abuso.
Na ocasião, Sergio Moro - ainda como juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba - divulgou nota afirmando que receios mais graves foram afastados, mas ele advertiu que o texto ainda merecia "críticas pontuais". O juiz e seus aliados haviam articulado para evitar a votação da proposta - foi a primeira derrota do magistrado no Legislativo.
No Senado, aguarda análise o projeto que foi relatado pelo então deputado Onyx Lorenzoni. Ele foi derrotado pela aprovação acachapante do destaque do então líder do PDT, deputado Weverton Rocha (MA) - respaldado por 313 votos, quando bastava a maioria simples - que estabeleceu que magistrados e integrantes do Ministério Público responderiam por crime de abuso de autoridade quando praticassem conduta incompatível com o cargo.
Enigmas presidenciais
Bolsonaro flertou com a tragédia grega nos últimos dias quando desafiou o país a decifrar enigmas. A charada mais hermética foi o cataclismo vaticinado para estes dias. "Talvez tenhamos um tsunami na semana que vem, mas a gente vence o obstáculo com toda a certeza".
O presidente completou a frase voltando a falar em "erros". "Somos humanos, todos erram. Alguns erros são perdoáveis, outros não". Há 15 dias, ele teve de se retificar pela tentativa de ingerência na queda dos juros. "Tenho que ser sublime, senão dá tudo errado", afirmou.
O tsunami seria uma alusão ao filho Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). Ontem foi revelado pelo jornal "O Globo" que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro autorizou no mês passado a quebra do sigilo bancário de Flávio e do ex-policial Fabrício Queiroz, de seus familiares e de 88 funcionários do gabinete - uma ampla devassa fiscal. Em nota divulgada à imprensa Flávio nega qualquer erro: "Nada fiz de errado".
Em outra declaração misteriosa, o presidente conciliou répteis e anfíbios. "O pessoal fala muito em engolir sapo. Eu engulo sapo pela fosseta lacrimal [sic] e estou quieto aqui, ok?" A fosseta loreal é um órgão sensorial das serpentes.
O presidente poderia falar somente em "engolir sapos", ou seja, lidar com aborrecimentos e contrariedades inerentes ao exercício do cargo. Mas cogitar a ingestão de um batráquio por um orifício minúsculo evidencia a dimensão das aflições que o perseguem, e que vão além dos despachos presidenciais.
Como um personagem do teatro grego, Bolsonaro vê-se acuado por conflitos entre amigos, familiares e o exercício do poder. Sofre pressão do guru Olavo de Carvalho, dos filhos - principalmente de Carlos Bolsonaro, com quem estaria sem falar há semanas - e dos militares. A cúpula militar exige uma resposta mais firme de Bolsonaro contra os ataques aos generais, mas ele tergiversa.
Em "Édipo Rei", de Sófocles, a esfinge desafiava os homens de Tebas a decifrar seus enigmas para não devorá-los. Quando Édipo desvendou a adivinhação, a esfinge jogou-se em um abismo. O presidente precisa manter o suspense enquanto não encontra uma solução para os conflitos que atravancam o governo.