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Ribamar Oliveira: Ideia é devolver imposto sobre cesta básica

Transferência de renda é mais eficiente que subsídio

As duas propostas de reforma tributária que já estão no Congresso - a relatada pelo ex-deputado Luiz Carlos Hauly e a elaborada pelo economista Bernard Appy - preveem mudança no tratamento tributário dispensado à cesta básica, que hoje é isenta de impostos. A ideia que consta nas duas propostas é trocar a atual desoneração tributária pela devolução do imposto pago pelos mais pobres na compra dos 16 produtos que constam da cesta, sendo 13 deles alimentos.

O Ministério da Economia ainda não fechou a sua proposta de reforma tributária. Mas há um entendimento na área econômica de que a atual desoneração da cesta é uma das distorções, entre muitas outras no âmbito dos subsídios concedidos pela União, que precisam ser corrigidas.

Um estudo feito, em novembro de 2018, pela então Secretaria de Acompanhamento Fiscal, Energia e Loteria do Ministério da Fazenda sugeriu a substituição dos subsídios por políticas de transferência direta de renda, como um caminho mais eficiente para reduzir a pobreza e melhorar as condições de vida da população mais pobre. Como fazer isso, no entanto, ainda não está definido. Criar um sistema de devolução do imposto pago, como sugerido pelas outras duas propostas em tramitação no Congresso, ou simplesmente aumentar os valores do programa Bolsa Família?

Nas propostas de Hauly e Appy, lei complementar vai definir os critérios e a forma pela qual será feita a devolução dos tributos aos pobres. Em conversa com o Valor, Appy disse que uma forma de promover a devolução do tributo seria fazer o cruzamento do CPF declarado no momento da aquisição dos produtos com o cadastro único dos programas sociais. Esse cadastro abrange 73 milhões de pessoas, universo maior do que as cerca de 40 milhões beneficiadas pelo programa Bolsa Família. Haveria, é claro, um valor limite para a devolução.

O auditor fiscal da Receita Estadual do Rio Grande do Sul e doutor em economia Giovanni Padilha da Silva, um dos primeiros estudiosos brasileiros a abordar o tema, chamou a atenção para dois aspectos, em conversa com o Valor. Se a devolução for feita por meio de um sistema que obrigue o registro do CPF do consumidor, haverá uma substancial redução da sonegação fiscal, disse. "Haverá um estímulo à formalização." Em segundo lugar, Padilha observou que a devolução não deve ser vista como um complemento ao Bolsa Família. "Na verdade, é a devolução de uma parcela do imposto que o consumidor pobre já pagou. Ou seja, é uma forma de ajustar a carga tributária à sua capacidade contributiva."

Há tempos, os especialistas mostram que a tributação sobre o consumo no Brasil é altamente regressiva. Ou seja, os mais pobres pagam mais tributos indiretos, em proporção da renda. Dito de uma forma direta: os tributos sobre alimentação oneram mais os pobres.

Foi com base nessa constatação que os governos reduziram, ao longo do tempo, a tributação sobre os bens de consumo populares. Os governos estaduais diminuíram o ICMS para algumas mercadorias da cesta básica e governo federal eliminou o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e a Cofins/PIS, desoneração concluída em 2013.

A estimativa mais recente feita pelo governo é de um gasto de cerca de R$ 18 bilhões com a política de desoneração da cesta básica neste ano. Em termos de comparação, o Orçamento de 2019 prevê uma despesa de R$ 29,5 bilhões com o pagamento dos benefícios do Bolsa Família. A questão é saber se a desoneração da cesta está cumprindo o seu objetivo. O estudo do governo indica que não.

Em 2017, o então Ministério da Fazenda realizou uma análise comparativa da eficiência da desoneração da cesta básica vis-a-vis ao Bolsa Família. Constatou-se que, para um gasto orçamentário de R$ 28 bilhões em 2016, as despesas com o programa resultaram em redução de 1,7% da desigualdade de renda.

Em contrapartida, a Fazenda estimou que o gasto de R$ 18 bilhões com a desoneração da cesta básica reduziu apenas 0,1% na desigualdade de renda. A conclusão foi de que o Bolsa Família é, aproximadamente, 12 vezes mais eficiente do que a desoneração da cesta básica para reduzir a desigualdade.

Há duas razões principais para isso, de acordo com o estudo. A primeira é que o repasse da desoneração tributária ao preço, ainda que parcial, "beneficia os produtores via aumento da margem de lucro, os quais, em geral, estão nas parcelas de mais alta renda da sociedade". Depois, as pessoas de renda mais alta também consomem os mesmos produtos que foram desonerados.

A legislação prevê desoneração dos tributos federais (IPI e PIS/Cofins) que incidem sobre carnes bovina, suína, ovina, caprina, de aves e peixes em geral. Não importa que a pessoa esteja comprando um quilo de picanha ou de acém. Não importa que esteja adquirindo um quilo de salmão ou de sardinha. A isenção é a mesma. A mesma sistemática é aplicada a manteiga, leite, óleo, café, feijão, arroz, açúcar, farinha de trigo ou massa, pão, batata, legumes, frutas, papel higiênico, pasta de dente e sabonete.

Em resumo, a desoneração da cesta básica, como está estabelecida atualmente, reduz a carga tributária incidente sobre a população de baixa renda, mas também diminui a carga tributária dos estratos de renda mais alta da população. O efeito na redução desigualdade é, portanto, muito pequeno.

Há, também, estudos internacionais sobre essa questão. Analisando os subsídios e os programas de transferências de renda em países do Oriente Médio e norte da África, o Fundo Monetário Internacional (FMI) constatou que somente 35% dos gastos com subsídios atingem os 40% da população de renda mais baixa.

Um dos equívocos da política de desoneração da cesta básica é que ela não diferencia subjetivamente os consumidores, como explicou Giovanni Padilha. O importante, segundo ele, é melhorar a focalização da política, beneficiando efetivamente as populações mais pobres. Para ele, isso agora é possível com a criação do cadastro único de beneficiários de programas sociais e o uso do CPF.


Rosângela Bittar: Até o amargo fim

Sem chance para impeachment ou intervenção militar

Jair Bolsonaro caminhou rapidamente, em apenas seis meses, para a beira do precipício e, lá chegando, fez o previsível para pessoas do seu tipo: se atirou. Não satisfeito, começou a cavar sofregamente mais fundo, para continuar a deliciosa vertigem rumo ao nada.

Seu desempenho está mil vezes pior do que quando era um deputado apenas fanfarrão. Ali ninguém era obrigado a ficar ouvindo. Agora é o presidente da República em um país onde o governo invadiu de forma direta e inexorável a vida cotidiana do cidadão. Não dá para ignorar. São declarações absurdas, uma após a outra, e se escora na ala terrível de seu eleitorado, a escória que defende a tortura, dispensando conselhos de outros grupos de apoiadores, gente séria que também integra seu eleitorado. A preferência é do caráter.

As suas intervenções sobre qualquer assunto de qualquer área vão esvaziando sua autoridade. São propostas equivocadas, conceitos estapafúrdios, opiniões draconianas ditas de forma agressiva. É possível ter um presidente impopular em alguns momentos, mas cheio de razão e legitimidade, exercendo com dignidade sua função. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso viveu períodos assim. É difícil, porém, exercer o cargo quando se tem popularidade mas é olhado com desprezo. Quando o presidente passa a ficar no cargo porque não tem outro jeito, já perdeu a autoridade. Assim está o Brasil, com um presidente sem condições políticas, psicológicas, sociais e morais de governar e liderar sequer seu público votante, quanto mais exercer o governo de todos, como a praxe exige. Qual a solução para o vácuo de poder, de credibilidade e equilibrio necessários a manter os cidadãos livres e bem de saúde mental?

A pergunta é insistentemente feita no Executivo, Legislativo e Judiciário, três Poderes perplexos: não seria o caso de impeachment por falta de decoro? E a resposta é também consensual: não.

Se essa for a única saída dos cidadãos para abreviar a agonia de um desgoverno num país das dimensões deste, prepararem-se para navegar em tormenta até 2022. E, se a economia reagir ao efeito do gás paralisante que inalou, melhor contar com solução só em 2026, depois do segundo mandato. Presidente popular não perde disputa de reeleição, mesmo que tenha feito pacto com o diabo.

Se lá na frente vai surgir ou não uma alternativa que não existe agora nem existiu em 2018 é uma incógnita. Enquanto isso pode-se alimentar expectativa para fugir da solução rápida, porém inviável.

O impeachment está descartado, nas condições do momento atual, como solução para o fim do pesadelo vivido pela sociedade brasileira. Começa por não ter quem colocar no lugar de Jair Bolsonaro. Quando Michel Temer reagiu ao governo Dilma Rousseff, já estava preparado: contava com o apoio do Centrão, tinha um plano de trabalho, a adesão de vários ministros do governo a ser deposto e a condição constitucional de ser o vice-presidente eleito.

Hoje não há nada disso. O general Hamilton Mourão, vice-presidente eleito, tem apenas essa condição legal. É pouco. Diante da atuação e do comportamento presidencial, o Congresso, com Centrão à frente e mais direita ou esquerda, recolheu-se à sua própria agenda, mais útil ao país do que ficar respondendo a insultos e divagações presidenciais. Os ministros agarram-se aos galhos, alguns podres, da árvore do governo para não cair, e em maioria agem à semelhança do chefe, dele dependendo para sobreviver na política. Quando uma celebridade da ética como Sergio Moro amarra seu destino ao de Jair Bolsonaro e dele passa a depender para livrar-se de problemas, se o mundo da política não acabou, está acabando.

Mourão está contido pela intimidação e não tem apoio de ministros, nem mesmo dos generais do Planalto, divididos entre si. Os militares que povoam o governo não vão evitar mas também não vão precipitar um desfecho. Estão, como Mourão, fracos, distanciados do presidente e com muitas razões para não tentar consertar o que está torto. Bolsonaro os trata muito mal, não são eles que tutelam o presidente mas são por ele tutelados. Bolsonaro os demite, quanto mais laureados, melhor, saboreando o prazer indescritível que deve ser um capitão dominar um general. Bolsonaro disputa com eles a liderança das tropas: não perde uma formatura, um dia do paraquedista, da infantaria, da cavalaria, da engenharia, do aviador, do fuzileiro, uma só das milhares de solenidades que dão movimento aos quartéis.

Os militares, também, não podem sair do governo. Para fazer o quê? Além do atestado de fracasso e do erro da aposta, ainda seriam responsáveis por deixar o governo vagando sem equipe. E, para o presidente, qualquer um é alvo. Não tem Santos Cruz, com seu currículo internacional. Tem um capitão ressentido indo à desforra. O general Villas Bôas está mudo, recolhido. O general Augusto Heleno, outrora poderoso, está precisando gritar para se fazer notar.

O sentimento de disciplina impede a revolta, fora o fato de que temem duas armas realmente letais de Bolsonaro: os filhos, boquirrotos como o pai, que dizem qualquer coisa e fazem qualquer coisa, e o nicho mais violento de seus apoiadores na Internet, que não observam limites de nenhuma espécie.

Se o Congresso está tocando seu próprio plano, o vice-presidente sem condições de liderança e os militares falsamente abúlicos para não tomar uma iniciativa que represente solução, a marcha segue no ritmo da insensatez atual.

Se a economia, ainda que pareça pálida, vagarosa e insuficiente, começar a fazer o movimento inverso daquele de Bolsonaro e procurar a superfície, será possível encontrar um lenitivo. Ainda que mínimo. Podem surgir novas razões para crença de que será mantido, para o segundo mandato, o eleitorado sem alternativa do primeiro. Também uma massa social menos insegura e um Congresso menos perplexo como efeito do bem estar econômico. A solução por essa via, porém, é incerta e demorada. Pode ser facilmente contaminada, no governo, pelo método, ideologia e conceitos peculiares do presidente.


Claudia Safatle: Imposto sobre Transações vai pagar a Previdência

Tem cheiro e cor de CPMF, mas é bem maior do que ela

O governo avança na proposta de reforma tributária para enviá-la ao Congresso tão logo termine o recesso branco. A criação do Imposto sobre Transações (IT), nos moldes da velha Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), é a principal novidade do projeto. Mais ampla do que a CPMF, a concepção do Imposto sobre Transações (que incidiria sobre pagamentos e recebimentos em geral), a uma alíquota de 0,5% ou 0,6%, se justificaria pela busca de uma base tributária sólida e confiável para financiar a Previdência Social em substituição às contribuições previdenciárias cobradas sobre a folha de salários das empresas.

O entendimento da equipe econômica do governo é que parte relevante do desemprego, que atinge mais de 13 milhões de brasileiros, é estrutural. Diante das rápidas transformações do mercado de trabalho, considera-se que a base das contribuições previdenciárias que incidem sobre a folha de salários, além dos seus defeitos, está fundada em terreno movediço.

Diante de tais argumentos, os técnicos oficiais avaliam que "são grandes as chances de esse novo tributo vingar". Inspirado na CPMF, cuja experiência nos 12 anos em que vigorou no país foi "exitosa", segundo fontes do governo, e se mostrou um tributo de "base sólida, baixíssima sonegação, baixo contencioso e custo quase nulo de administração tributária", o Imposto sobre Transações seria ideal para substituir as contribuições sobre a folha.

"Ele não é uma nova CPMF, que era o 59º imposto da nossa constelação tributária e não foi criada para substituir nada. A proposta do Imposto sobre Transações - cujo nome oficial ainda não foi escolhido - vem para desonerar a folha de salários das empresas", advogam assessores do Ministério da Economia que estão participando das discussões.

"Nosso projeto não entra em confronto com as demais alternativas de reforma, que se concentram na instituição do Imposto sobre Valor Agregado (IVA)," salientou um assessor do ministro da Economia, Paulo Guedes. "A ampla base do IT é o que nos dá confiança de que vamos arrecadar mais sem aumentar a carga tributária", completou.

O Congresso retoma os trabalhos na semana do dia 5 de agosto. Câmara e Senado já escolheram os projetos de emenda constitucional em tramitação para a construção de um novo regime tributário.

A PEC 45, do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), é patrocinada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Elaborada pelo economista Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal, a proposta acaba com três tributos federais (IPI, PIS e Cofins), extingue o ICMS, que é estadual, e o ISS, municipal. Esses são tributos que incidem sobre o consumo e seriam substituídos pelo Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS), um IVA cobrado no destino cuja receita seria compartilhada entre a União, os Estados e os municípios.

Trata-se de mais uma tentativa de acabar com a "guerra fiscal" e com a extrema complexidade do sistema tributário do país, com suas 27 legislações de ICMS, além da profusão da regulação federal.

Aprovada na Câmara e em tramitação no Senado, a reforma sugerida pelo ex-deputado Luis Carlos Hauly extingue dez impostos - IPI, IOF, CSLL, PIS/Pasep, Cofins, Salário-Educação, Cide, ICMS e ISS. Todos também seriam substituídos pelo IVA, de competência estadual, chamado de Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS), e pelo Imposto Seletivo sobre bens e serviços específicos, de competência federal.

Os empresários do Instituto Brasil 200 optaram por uma proposta de reforma tributária que cria o Imposto Único (uma mega CPMF), em substituição a todos os demais impostos, inclusive IPTU e IPVA.

Preparada pelos secretários de Fazenda dos Estados, a proposta que conta com o apoio dos governadores retira da União a gestão do tributo único criado com a reforma. Além disso, prevê que, caso o governo consiga emplacar o Imposto Único Federal, os Estados encaminhem uma proposta ao Legislativo, criando o Imposto sobre Valor Agregado dual. A proposta prevê mecanismos de compensação de perdas e de redução de desequilíbrios regionais, com a criação de um fundo.

O presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), anunciou que apresentará uma emenda substitutiva à PEC 45, criando o Imposto Único Federal, na linha do que defende o secretário da Receita, Marcos Cintra.

São cinco alternativas que, de certa forma, convergem com as ideias do governo, que se concentra na unificação de tributos federais, na criação do Imposto sobre Transações e na reforma do Imposto de Renda, com redução da alíquota das empresas e das pessoas físicas. Como se vê, não é por falta de alternativas que o Brasil vive em um verdadeiro "manicômio" tributário, como disse certa vez a esta coluna o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga.

Foi o aumento ininterrupto do gasto público que nos levou ao atual e indecifrável emaranhado de impostos, taxas e contribuições. Estas últimas tornaram-se o recurso do governo federal para aumentar suas receitas sem repartir com Estados e municípios. E prosperaram Simples, MEIs e brechas para aliviar a carga de alguns.

Difícil é imaginar que 27 governadores e 5,5 mil prefeitos estarão de acordo com qualquer das propostas citadas sem que haja confiáveis sistemas de compensação para quem perder receitas. O ministro da Economia pretende que a adesão dos entes da federação ao IVA no destino seja facultativa.

Há cerca de três décadas que o Brasil discute uma reforma tributária. A carga de impostos, que era de 28,5% do PIB em 1990, hoje está em torno de 33% do PIB, e esse aumento foi insuficiente para equilibrar as contas públicas.

Jovens jornalistas que começaram a acompanhar o assunto no início de suas carreiras hoje são avós de cabelos brancos e, a cada vez que o tema da reforma reaparece, eles se entreolham com total descrença na evolução para um desfecho de sucesso e pensam: "É mais fácil um boi voar!"

Jornalistas, às vezes, são seres incrédulos por força do ofício.


Malu Delgado: A coalizão do 'cabra' marcado por Bolsonaro

Nordeste quer ser contraponto na política e economia

A foto ao lado do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi postada no Twitter uma semana antes do desembarque na carceragem da Polícia Federal, em Curitiba, para visitar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso desde abril de 2018. O calendário permaneceu agitado com a informação pública sobre o encontro com seu maior adversário político, outro ex-presidente da República, José Sarney. Em apenas um mês, o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB) teve conversas com três políticos que governaram o país em fases históricas bem distintas e com matizes ideológicos que oscilam da esquerda à direita. Mas coube ao atual, Jair Bolsonaro, fazer o marketing do que o maranhense costura há meses nos bastidores: a formulação de uma alternativa de poder ao centro em 2022.

Anos antes de virar assunto nacional por conta do áudio que escapou por descuido dos microfones palacianos na atual gestão, Flávio Dino - um dos governadores "paraíba", segundo o presidente, e o "cara" que não merece ganhar nada do governo federal - já dava demonstrações de como age e o que pensa da política.

Juiz federal por 12 anos e professor de direito, Dino elegeu-se governador em 2014 numa luta histórica de décadas contra a oligarquia Sarney. Esteve bem perto de disputar o segundo turno em 2010, mas levou uma rasteira de Lula digna de constar nos anais dos ressentimentos políticos que merecem recordação. Na ocasião, o PT nacional, fechado com o então PMDB de Sarney, ignorou o aliado histórico, PCdoB. Lula gravou um depoimento para Roseana Sarney exibir na propaganda eleitoral na TV, ajuda necessária para derrotar Dino no primeiro turno com 50,08% dos votos válidos. Roseana temia a derrota no segundo turno.

Em 2018, a coligação que reelegeu Dino reuniu 16 partidos, um arranjo nordestino com gente comunista e petista, para ficar na linguagem palaciana atual, e o DEM, partido de direita que integra o governo Bolsonaro estranhamente sem admitir ser da base de apoio do presidente.

Somente a insensatez explicaria, na visão de Dino, acreditar que os movimentos de agora vão repercutir em 2022. O governador não se sente confortável para falar da eleição presidencial tão precocemente, mas crê que razões de ordem política explicariam o fato de seu nome despertar tamanha repulsa a Bolsonaro. Faz parte do ethos do presidente, diz, escolher alvos políticos para atacar. Ele foi só o "comunista" da vez.

O que o governador do Maranhão exibe em sua conta no Twitter é o antípoda de práticas sectárias da extrema direita e da esquerda. "Ter amplitude e flexibilidade é virtude. O importante é o clima de convergência e diálogo para haver alternativa lá na frente. Vou manter essa atuação. Quero distensionar", justifica.

Há inúmeras especulações sobre Dino deixar o PCdoB, que não atingiu a cláusula de barreira no pleito de 2018, e ingressar num partido que o credenciaria como opção presidencial ao centro, como o PSB. "Não dedico um minuto do meu tempo pensando nisso", responde. Se disputar, acrescenta, só vai tomar a decisão possivelmente no final de 2021 ou no início de 2022. Mas há diagnósticos que Dino antecipa: será improvável a reedição de 2018, com a aglutinação inesperada ao bolsonarismo, ancorada pela Lava-Jato. A outra aposta diz respeito ao seu próprio quintal: haverá, em 2022, convergência da centro-esquerda.

Os métodos de Bolsonaro provocaram o envelhecimento precoce de um governo que mal começou e ampliam a falta de expectativas na política e na economia. É esse imenso vazio que vai unificar forças importantes, na visão de Dino.

A reunião dos governadores do Nordeste, marcada para segunda-feira, será contraponto ao governo Bolsonaro não apenas na seara política, mas na econômica. O Nordeste atacado pelo presidente investe em um novo arranjo, de consórcio, como fazem os governadores do Sul e Sudeste. Será apresentado um plano de trabalho para os próximos 12 meses.

Os governadores nomearam um secretário-executivo para o consórcio, o ex-ministro da Previdência Social Carlos Eduardo Gabas, do PT. A ideia é conciliar boas práticas administrativas com uma agenda popular. Numa leitura imediata, os governadores do Nordeste vão investir em parcerias que gerem emprego e renda. A vocação turística da região é a chave para entender as primeiras ações conjuntas. Para Dino, trata-se de um arranjo econômico e político "poderoso" para o futuro. Os resultados não serão produzidos "para amanhã", mas parcerias administrativas podem gestar políticas públicas concretas. "A vantagem operacional do Nordeste é que há hoje afinidade política e confiança mútua entre todos os governadores. Prefiro me dedicar a isso do que ficar sonhando", diz o maranhense.

Prisão de hackers
As prisões temporárias de quatro suspeitos de hackear cerca de mil pessoas, incluindo o presidente Jair Bolsonaro, ministros do Executivo, do STF e do STJ, e os presidentes da Câmara e do Senado, prometem capítulos emocionantes no Congresso.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, deu garantias a autoridades que tiveram a vida devassada que todo o material obtido pela Polícia Federal será "descartado". Como chefe da PF, Moro antecipou uma decisão que cabe ao Judiciário.

Foi dada a largada à disputa sobre os métodos e os conteúdos, como se viu no vazamento dos grampos do BNDES, em novembro de 1998. Na época, as investigações da PF duraram três meses, mas os efeitos foram nefastos para Fernando Henrique Cardoso. Os grampos revelaram bastidores da privatização da Telebras e atuação do governo para favorecer um dos consórcios. Aos aliados de Moro interessa lembrar que o site "The Intercept Brasil" divulgou mensagens obtidas por criminosos. O outro lado quer enfatizar o conteúdo dos diálogos vazados.

A destruição do material inviabilizaria a perícia, sugerida pelo próprio Moro, para se checar a veracidade.


José de Souza Martins: "Coxinhas" de ontem estão a caminho de se tornar os "mortadelas" de amanhã

Será muito difícil compreender o jogo de manipulações políticas de que somos vítimas sem compreender quem são, de fato, os sujeitos do processo político brasileiro

As simplificações na definição das desigualdades sociais da população expõem a confusa pobreza do nosso entendimento das diferenças sociais que nos afligem. Será muito difícil compreender o jogo de manipulações políticas de que somos vítimas sem compreender quem são, de fato, os sujeitos do processo político brasileiro. Sem compreender que identidade têm e o que nela personificam socialmente, isto é, como manifestam e expressam sua diversidade e diferenças.

Os nomes classificatórios que damos, sem nenhum cuidado, tanto aos ricos quanto aos pobres, não expressam senão o viés ideológico que amortece nossa consciência social. Somos bons para inventar nomes para os outros e péssimos para reconhecer e compreender a condição social que expressa os interesses que demarcam seu agir e seu horizonte, seu ser propriamente social.

Em 2018, nos embates de rua, o vocabulário pobre de nossa política expôs nossa consciência: o Brasil está socialmente dividido entre "coxinhas" e "mortadelas". Os "mortadelas" não se deram conta de que muitos "coxinhas" daquele ontem eram "mortadelas" de anteontem. Do mesmo modo que os "coxinhas" de ontem já estão a caminho de se tornar os "mortadelas" de amanhã.

Nossa carência de consciência crítica nos faz supor que fazemos política porque somos contra os rótulos que colamos nos adversários. O que não nos faz a favor de uma sociedade nova e democrática, baseada no direito à diferença e no reconhecimento da legitimidade da pluralidade social.

As eleições de 2018 mostraram que nossos critérios de reconhecimento das identidades diferenciais da sociedade brasileira não correspondem às subjetividades respectivas. Nem correspondem ao que são as pessoas distribuídas por diferentes categorias sociais. Não temos clareza quanto a quem é o eleitor-protagonista, nem esse eleitor tem clareza quanto a quem elege.

Os técnicos do classificacionismo social têm uma concepção rentista da pobreza, baseada em bens e dinheiro. Há numerosas pessoas, sobretudo no Brasil rural, cuja condição social não é definida pelo ganho monetário, mas pelo modo de vida, até pela produção direta dos meios de vida. Falar em fome é necessário e urgente, mas a fome não decorre sempre nem apenas da insuficiência de dinheiro para sobreviver. Há os que não têm dinheiro, mas têm o que comer. E há quem tem dinheiro, mas passa fome.

Nem todo trabalhador é pobre. Nem todo rico não trabalha. Aliás, em nossas classificações estatísticas, nem todo rico é propriamente rico. A classe média entra de cambulhada tanto na categoria dos ricos quanto na dos pobres. Depende das conveniências de quem fala. Muitas vezes depende de quem quer lesá-la politicamente.

A polarização pobre e rico nunca deu conta da diferenciação da sociedade brasileira. Do mesmo modo, que nunca foi verdadeiro que os pobres votam na esquerda e os ricos votam na direita. O Partido dos Trabalhadores cresceu e chegou ao poder com o apoio decisivo dos ricos. Perdeu o poder porque seus adversários tiveram o apoio decisivo dos trabalhadores. Isso ficou claro nos resultados eleitorais da região do ABC, suposto reduto do PT. A sociedade muda e a política roda.

Somos uma sociedade caracterizada por uma diversidade de padrões de classificação social. O que os economistas dizem que são classes sociais não o são. São apenas estratos de rendimentos. O que muitos sociólogos dizem que são classes sociais nem sempre são. São agrupamentos de coincidências sociais.

Classe social envolve cultura de classe e destino. O que os diferentes grupos da população dizem o que eles próprios são é completamente desencontrado com a classificação que se lhes pode atribuir com base em critérios objetivos. Não levamos em conta, no esforço de entender a nossa diversidade social, que as pessoas nunca sabem exatamente o que são quanto à estrutura de classes sociais. Acham que são uma coisa quando na verdade são outra.

É impossível compreender esta sociedade de desigualdades tão peculiares sem compreender que elas são o rótulo das diferenças sociais e que uma sociedade como esta não pode existir senão pela mediação da falsa consciência que a desfigura e a viabiliza ao mesmo tempo. As categorias sociais vivem desnorteadas pelo desencontro entre o falso e o verdadeiro.

O PT jactou-se, em seus últimos anos de poder, de ter transformado o Brasil pobre num país de classe média. Muita gente acreditou nisso. É claro que, quando se assume essas rotulações sociais, supõe-se orientações no modo de falar, de vestir, de comer, de viver e de votar. Mas, em 2018, a população votou como classe média. Em 2002, votara como classe trabalhadora, o que de modo algum quer dizer classe operária.

*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de ‘Moleque de Fábrica’ (Ateliê Editorial).


Ribamar Oliveira: Governo depende do TCU para sair do sufoco

O risco é leilão da cessão onerosa ser adiado novamente

Todo o sufoco vivido atualmente pelos ministérios - alguns deles não têm dinheiro para chegar a dezembro - poderia ser evitado se o Tribunal de Contas da União (TCU) concluísse a sua análise sobre o megaleilão dos excedentes de petróleo da cessão onerosa e sobre a revisão do contrato feito entre a União e a Petrobras.

Uma montanha de dinheiro está prevista para ingressar nos cofres do Tesouro até o fim deste ano, mas o governo não pode incluir os recursos em sua previsão de receita orçamentária por não saber quais serão as decisões do TCU. Já há dúvidas no alto escalão do governo se, efetivamente, o leilão será realizado em novembro, como programou a Agência Nacional do Petróleo (ANP), ou se será novamente adiado.

A área técnica do Ministério da Economia se queixa das perguntas intermináveis do TCU e algumas delas sobre questões que se achava já terem sido resolvidas em 2018. Para ter uma ideia, ontem, em consulta feita nos processos que tratam do assunto, o Valor verificou que houve novos pedidos de informações registrados no dia anterior.

A instrução normativa 81 do tribunal estabelece um prazo de 75 dias para a área técnica encaminhar sua proposta de mérito sobre o assunto analisado ao ministro relator do processo.

O problema é que o prazo só começa a contar depois que todos os documentos solicitados são recebidos. A questão é que os pedidos de informação feitos pela área técnica do TCU ao governo sobre a cessão onerosa e o leilão do excedente do petróleo não param.

Ontem, por exemplo, em decisão do plenário dos ministros, o tribunal passou a exigir que o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) apresente justificativa técnica detalhada sobre as áreas que entrarem ou ficarem de fora dos leilões de partilha de produção. A nova regra já valerá para o megaleilão do excedente da cessão onerosa.

Para os técnicos do TCU, há "obscuridade" na forma de classificação das áreas que entram nos leilões de partilha, segundo reportagem do jornalista Rafael Bitencourt, publicada ontem à noite no Valor PRO. O problema maior, segundo os técnicos, ocorre quando uma área com forte potencial econômico é leiloada no regime de concessão, o que reduziria consideravelmente os ganhos da União.

Se pudesse incluir os recursos do megaleilão em sua programação orçamentária e financeira deste ano, o governo reverteria o contingenciamento de R$ 30 bilhões realizado nas dotações orçamentárias e cumpriria com folga a meta fiscal deste ano. O maior gasto da União neste resto de ano iria ajudar a estimular a atividade econômica, junto com as outras medidas que o ministro da Economia, Paulo Guedes, promete anunciar nos próximos dias.

O megaleilão do excedente de petróleo dos campos que foram cedidos de forma onerosa à Petrobras está marcado para o dia 6 de novembro. Pelo cronograma, as empresas vencedoras devem fazer o pagamento do bônus de assinatura no dia 27 de dezembro, segundo informou a ANP. Não há dúvidas no mercado sobre o sucesso deste leilão, pois as grandes companhias internacionais que atuam no setor já manifestaram interesse.

A exploração do petróleo excedente da cessão onerosa será feita sob regime de partilha de produção. As empresas vencedoras pagarão um bônus por ocasião da assinatura de cada contrato. Serão vencedoras do leilão aquelas que oferecerem uma maior participação à União no óleo extraído. O valor total do bônus de assinatura foi fixado em R$ 106,5 bilhões. Mas nem todo esse dinheiro entrará nos cofres do Tesouro.

A União aceitou pagar uma compensação à Petrobras no valor de US$ 9,058 bilhões, na revisão do contrato da cessão onerosa para exploração de 5 mil barris de petróleo no pré-sal, firmado em 2010. Ao câmbio de ontem, a compensação correspondia a R$ 34,06 bilhões. Isto significa que, depois de pagar a Petrobras, o Tesouro ficaria com R$ 72,4 bilhões.

Em abril deste ano, o deputado Paulo Pereira da Silva (Solidariedade-SP) ingressou com uma representação junto ao TCU solicitando que a União seja impedida de pagar a compensação à Petrobras, no âmbito da revisão do contrato da cessão onerosa, com o argumento de que não há prévia autorização orçamentária para a realização da despesa e que o pagamento fere o teto de gastos, instituído pela emenda constitucional 95/2016.

O pedido do deputado ainda não foi apreciado, pois, segundo explicações do TCU ao Valor, o governo federal se comprometeu a esperar uma solução legislativa para a questão, que veio por meio da proposta de emenda constitucional (PEC) 98/2019, já aprovada pela Câmara. Por esta PEC, a compensação paga à Petrobras pela União, no âmbito da revisão do acordo da cessão onerosa, fica excluída do teto de gastos. A proposta será agora votada pelo Senado.

A PEC 98/2019 determina também que 15% do valor arrecadado com o leilão do excedente, depois de deduzida a compensação à Petrobras, seja transferido aos Estados, e outros 15%, aos municípios. Assim, em termos líquidos, o Tesouro ficaria com R$ 50,7 bilhões, dinheiro mais do que suficiente para tirar os ministérios do atual sufoco.

A ANP abriu consulta pública sobre o leilão e a previsão é de que até o dia 6 de setembro o edital definitivo seja publicado. Se o TCU concluir a sua análise até essa data, uma autoridade do governo disse ao Valor que os recursos do megaleilão poderão ser incluídos na previsão de receita orçamentária. No dia 22 de setembro, o governo terá que enviar ao Congresso o relatório de avaliação de receitas e despesas relativo ao quarto bimestre do ano. A inclusão dos recursos do megaleilão seria feita no relatório.

O temor do governo é incluir os recursos do megaleilão na sua previsão de receita, reverter o contingenciamento, e, caso o leilão seja adiado por alguma questão levantada pelo TCU, correr o risco de não cumprir a meta de resultado primário deste ano, o que é considerado crime de responsabilidade.


Cristiano Romero: Gasto é mais eficaz para reduzir iniquidades

Além da reforma, políticas sociais serão sempre necessárias

O Brasil, como se sabe, está entre as nações que mais concentram renda no planeta. Números do IBGE, referentes a 2017, mostram que o rendimento per capita médio mensal, que considera renda do trabalho e da aposentadoria, além de itens como pensão, aluguel e transferência direta de renda de programas sociais como o Bolsa Família, foi de R$ 6.629 para os 10% mais ricos da população. Na parcela dos 40% mais pobres, restringiu-se a R$ 376 por mês. A diferença entre as duas faixas revela, portanto, que os mais ricos recebem 17,6 vezes mais que os mais pobres e isso nos define como sociedade. A distância, vexaminosa, tem aumentado. Apesar dos avanços civilizadores dos últimos 30 anos, nosso "pacto social" é claramente insuficiente.

As razões para a concentração de renda têm variadas explicações, desde o modelo de colonização, baseado na concessão de "capitanias hereditárias" pela coroa portuguesa, até o domínio do orçamento público por grupos de interesses específicos (das multinacionais que fabricam automóveis à burocracia estatal autóctone), passando pela ignomínia da escravidão, com a qual convivemos durante quase quatro séculos e, sob disfarces, mantemos como característica imutável do nosso caráter. Um país que há décadas vê 50 milhões de seus habitantes (público-alvo do Bolsa Família), o equivalente a quase 25% de sua população, vivendo em condições de miséria e sem condição alguma de emancipação é uma nação derrotada.

No Brasil de tanta iniquidade, todas, isso mesmo, todas as políticas públicas deveriam ter caráter distributivo. E toda e qualquer iniciativa que demande gasto público deveria ser avaliada uma vez por ano, por entidades independentes, para verificar se estão servindo ao propósito prometido. O Bolsa Família, por exemplo, é reconhecido internacionalmente como um programa social meritório. Ajudou a diminuir a miséria, mas não emancipou as famílias - o número de beneficiários atualmente é praticamente o mesmo de 2004, quando a iniciativa foi lançada.

No momento em que o Congresso Nacional começa a debater a reforma tributária, o tema da regressividade da carga de impostos que os brasileiros pagam volta ser discutida. Presidente da comissão especial que analisou e deu o texto final à reforma da Previdência aprovada em primeiro turno na Câmara, o deputado Marcelo Ramos (PL-AM) adianta que é forte a ideia de usar as mudanças do sistema tributário como uma oportunidade para enfrentar as desigualdades do país. A preocupação é válida.

Especialistas, como Everardo Maciel, secretário da Receita Federal nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, identificam no regime tributário nacional elementos que, de fato, contribuem para agravar a desigualdade de renda. Ainda assim, defendem que o problema da concentração seja enfrentado pela redefinição dos gastos.

Esta coluna relacionou temas que, muito provavelmente, serão tratados durante a tramitação da reforma tributária. Seriam os seguintes:

1. Pobre paga mais imposto que os ricos porque o sistema taxa mais o consumo do que a renda. Isso corre por existe uma miríade tributos incidindo sobre o consumo e o faturamento e os mais pobres gastam a maior parte de sua renda com consumo.

2. A tabela é progressiva nas alíquotas, mas se torna regressiva no geral porque permite dedução da base de cálculo dos gastos com educação (com limite) e saúde (sem limite);

3. A alíquota efetiva do Imposto de Renda no Brasil é baixa - de 23,3%, podendo ainda ser bem menor após deduções -, quando comparada à das nações de economia avançada;

4. O IR não precisa ser tema da reforma porque mudanças podem ser feitas por legislação ordinária. Everardo Maciel fez a reforma do IR em seus oito anos à frente da Receita Federal;

5. O Brasil criou um IVA, o ICMS, em 1967, com alíquota única para todos os Estados. O problema é que, em 1969, emenda à Constituição permitiu que Estados mexessem em alíquotas e base de cálculo, via Confaz;

6. Não se resolve o problema da concentração de renda via reforma tributária, mas, sim, por meio do gasto. Decisões de governos eleitos pelo povo é que têm o poder de distribuir renda. Governantes são eleitos para isso: decidir onde alocar os sempre escassos recursos pagos pelos contribuintes. Cabe ao eleitor escolher quem considera melhor para essa tarefa. O eleitor define se quer um governante que invista mais em educação e saúde do que em áreas onde a presença do Estado não é ou nunca foi crucial;

7. Como a Constituição de 1988 criou atribuições para a União, mas não lhe deu as devidas receitas, o governo federal criou contribuições sociais, como a Cofins, cuja a receita não precisa ser distribuída a Estados e municípios. Os Estados, por sua vez, majoraram ao longo do tempo as alíquotas do ICMS e promoveram guerra entre si para atrair investimentos.

Novos atores
Marcelo Ramos é um destacado integrante da elite de parlamentares que começa a emergir no Congresso. O Parlamento não é dominado por um ou mesmo por dois ou três partidos políticos. Estes já foram mais expressivos em número de representantes.

A fragmentação partidária intensificou-se durante a prevalência do chamado "presidencialismo de coalizão", marca do pragmatismo dos presidentes Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Lula (2003-2010), mas sempre existiu. O fenômeno acaba por aumentar a importância de parlamentares como Ramos, que, isoladamente, influencia com sua liderança os votos de dezenas de deputados.

No momento em que o Congresso assume protagonismo inédito - e, diga-se, positivo - na condução das reformas institucionais, Ramos desponta como liderança a ser acompanhada. Comunista na juventude, não teve receio de liderar comissão que tratou de tema considerado "impopular".


Andrea Jubé: A era dos extremos

Clima de polarização tensiona debate das reformas

O clima político em Brasília é de "risca de faca no chão": cada ator saca o facão do alforje e delimita o espaço de poder, mas com impulsos expansionistas. A metáfora é de um integrante da cúpula dos poderes ao tentar descrever para a coluna o ambiente de tensão e radicalismo que contaminou a política brasileira.

Os ânimos estão à flor da pele, sem que desponte no horizonte uma alternativa, ainda que tímida, ao centro. O acirramento remonta aos protestos de 2013, culminando nas eleições de 2014, quando o PSDB contestou a vitória de Dilma Rousseff e pediu recontagem de votos. De lá para cá, a polarização intensificou-se, a Operação Lava-Jato explodiu na mesma intensidade que o descrédito na política, Dilma foi deposta, Michel Temer investigado, Jair Bolsonaro elegeu-se presidente e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi preso.

No clímax desse tensionamento, Bolsonaro riscou o chão: "Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria", disse aos petistas a uma semana do segundo turno. "Essa pátria é nossa, não é dessa gangue", delimitou.

Um ex-integrante do governo diz que um defeito da gestão Bolsonaro é o pensamento binário: "você está com eles, ou não está. Não tem meio termo", explicou. Por isso, nessa conjuntura de extremos, é surpreendente que a reforma da Previdência tenha sido aprovada, mesmo com o empenho de alguns atores, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e da liberação de emendas.

Até mesmo parlamentares que votaram conscientes da responsabilidade com a recuperação econômica e o ajuste fiscal, sofrem ataques dos bolsonaristas nas redes sociais e nas ruas, sob a acusação de desidratarem a proposta. Um contrassenso na medida em que a concessão aos policiais foi um pedido expresso do próprio Bolsonaro.

O ambiente de radicalismo obriga parlamentares não comprometidos com um dos lados a cultivarem nervos de aço. Convicto de sua coerência como representante de centro-esquerda, o líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), é chamado de "lavajateiro" pela esquerda, e de "traidor", "esquerdista" e "comunista" pela direita.

Há uma semana, foi atacado verbalmente na fila do cinema. "O senhor tem de parar de defender a Lava-Jato", ouviu da pessoa à sua frente. Horas depois, recebeu uma mensagem do ofensor pedindo desculpas, e identificando-o com ideais da esquerda.

Randolfe sempre defendeu a Lava-Jato e chegou a se aproximar do então procurador-geral Rodrigo Janot e de representantes do Ministério Público Federal (MPF). Recentemente, no entanto, apontou excessos na conduta do ministro da Justiça, Sergio Moro, quando era juiz de processos da Lava-Jato, e do procurador Deltan Dallagnol, a partir da divulgação de diálogos entre eles pelo site "The Intercept Brasil".

O senador recebeu mensagens de pessoas ligadas ao MPF criticando sua iniciativa de convidar Glenn Greenwald, fundador do Intercept, para falar sobre as denúncias a Moro e Dallagnol na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), bem como de acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) com medidas de proteção ao jornalista.

O senador reafirma a defesa da Lava-Jato em si, mas questiona possível ofensa ao princípio da imparcialidade do julgador. Argumenta que o "combate à corrupção não é patrimônio individual de ninguém, é obra da sociedade brasileira e tem que ser tarefa da sociedade e obrigação de homens públicos".

O caminho para a aprovação da reforma da Previdência no ambiente de radicalismo, entretanto, consumou-se ao centro. "É o Centrão, essa coisa que ninguém sabe o que é, mas é do mal, que está fazendo a reforma da Previdência", disse o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), cobrando reconhecimento aos aliados que se declaram "moderados".

Um dos expoentes desse bloco de centro, o presidente da comissão especial da reforma da Previdência, Marcelo Ramos (PL-AM) é um entusiasta da adoção de um caminho intermediário na economia. Ele defende que se preservem as premissas fundamentais do liberalismo, mas com concessões pontuais às práticas keynesianas.

"É um liberalismo moderno", diz Ramos, que evoca as ideias do ex-secretário do Tesouro americano Laurence Summers e de um manifesto publicado pela "The Economist", segundo o qual o liberalismo está sob ataque e precisa ser renovado.

Ramos observa que a proposta de reforma tributária em discussão na Câmara acaba com a guerra fiscal entre as unidades federativas, mas não soluciona o impasse de Estados acima de Goiás e abaixo do Paraná que dependem de estímulos fiscais para atrair investimentos. "Ou teremos a concentração da indústria e dos empregos em são Paulo e no Rio de Janeiro".

Representante do Amazonas, Ramos é um liberal convicto, mas defende que países de dimensões continentais como o Brasil mantenham - com a ação do Estado - estímulos fiscais em locais com alta taxa de desocupação para estimular o emprego.

A polarização entre esquerda e direita (que não é exclusiva do Brasil), entre petistas e bolsonaristas, entre neoliberais e keynesianos evoca a leitura de "A era dos extremos", em que Eric Hobsbawm (1917-2012) registrou a história do século XX, a partir da Primeira Guerra Mundial (1914) até a dissolução do bloco socialista (1991).

Segundo Hobsbawm, a "intolerância" é o preço que se paga por viver num século de guerras, inclusive guerras religiosas, caracterizadas pelo radicalismo. Uma "intolerância" que avançou pelo milênio seguinte.

Para o historiador, com a Revolução Russa, fomos acostumados a pensar na moderna economia industrial em termos de opostos binários, "capitalismo" e "socialismo" como alternativas mutuamente excludentes.

Mas Hobsbawm chama a atenção para uma ironia, envolvendo a inesperada aliança entre comunistas e capitalistas no fim da Segunda Guerra. Alerta que a democracia e o capitalismo foram salvos graças à vitória do Exército Vermelho, que se juntou aos Aliados, contra a Alemanha de Hitler.


Luiz Carlos Mendonça de Barros: Agora é a vez da economia

Recuperação depende de uma gestão correta de curto prazo de variáveis como taxa de juros e oferta de crédito

A aprovação da reforma da previdência em primeiro turno, com uma votação muito acima da esperada por todos, abre espaço para que a economia brasileira busque finalmente a tão esperada recuperação cíclica e o fim da recessão que vivemos há mais de cinco anos. Entende-se aqui como recuperação cíclica de uma economia de mercado a volta natural do crescimento depois de um ajuste para baixo da atividade causada por uma recessão de forte intensidade.

No caso brasileiro de hoje, vivemos a conjugação de uma recessão provocada por erros de gestão da economia entre 2010 e 2014 e uma crise política grave criada pelo processo de impeachment de Dilma Rousseff. Adicionalmente, as revelações da Operação Lava-Jato levaram ao colapso do sistema político que prevaleceu por mais de 30 anos, sem que uma alternativa tenha sido colocada em seu lugar. O resultado foi uma quase depressão econômica que trouxe a queda expressiva na arrecadação de impostos e um salto perigoso no déficit fiscal primário do governo central e dos estados.

Após a troca do comando do governo, com a posse de Michel Temer e a mudança radical na condução da política econômica, tivemos dois momentos em que a recuperação cíclica deu sinais de aparecer no horizonte para, logo em seguida, ser fragilizada por fatores externos à economia. A primeira, logo no início de seu mandato, foi abortada pelo escândalo político que se seguiu às gravações do empresário Joesley Batista. A segunda chance veio com a redução da crise política envolvendo o presidente da República depois da rejeição pelo Congresso de seu afastamento, mas que teve curta duração por conta da greve dos caminhoneiros.

Com a eleição de Jair Bolsonaro e a entrega do comando da economia a uma equipe de corte liberal - e com grande credibilidade junto às forças de mercado - uma nova janela para a recuperação cíclica abriu-se para a sociedade brasileira. Mas neste momento a crise fiscal herdada pelo novo governo e agravada pela deterioração adicional das contas da Previdência Social, gerou uma crise de credibilidade na solvência do estado brasileiro o que obrigou o governo a priorizar uma mudança constitucional profunda para obter um ajuste fiscal estrutural de longo prazo.

A decisão de concentrar toda a energia do governo, em um primeiro momento, na aprovação da PEC da previdência teve um parceiro fundamental para seu sucesso com a participação ativa de parcela da elite parlamentar na Câmara e no Senado. No final, a luta pela reforma da previdência transformou-se - como havia acontecido no Plano Real - em uma batalha pela sobrevivência da maioria da população brasileira, como mostram as pesquisas mais recentes e o número de votos obtidos em plenário.

Como dito no início desta coluna, a aprovação da chamada PEC da Previdência, nas condições que ocorreu, cria uma oportunidade única para que uma recuperação cíclica forte ocorra agora no Brasil. Os indicadores recentes dos mercados de títulos públicos e do chamado CDS da nossa dívida externa falam por si só. Somente um país com solvência fiscal de longo prazo reconhecida pelos agentes econômicos pode ter os preços de títulos públicos que são operados hoje no Brasil e no exterior.

Portanto podemos - e devemos - deixar de lado a paralisia que tomou conta de áreas importantes do governo nestes últimos meses sob a alegação de que a falta de credibilidade na economia por parte dos agentes econômicos internos e principalmente externos poderia levar-nos a uma crise grave de solvência.

Mas a recuperação econômica, em situações como as que existem no Brasil hoje, depende de uma gestão correta de curto prazo de variáveis como taxa de juros e oferta de crédito principalmente. Com o hiato do produto que existe hoje na economia, a volta do investimento produtivo só vai ocorrer se a recuperação da economia ganhar tração ao longo do tempo. Por esta razão é preciso entender que será principalmente via o consumo das famílias que nosso PIB vai voltar a crescer. Em outras palavras, temos que fortalecer o lado da demanda de consumo via os instrumentos tradicionais e medidas extraordinárias como devolução de poupança popular - FGTS e PIS/Pasep - e aumento da alavancagem do sistema bancário, seja ele público ou privado, via redução de compulsórios bancários. Adicionalmente podemos incorporar ao crescimento da demanda dos consumidores um programa abrangente de investimentos privados via privatização de projetos de infraestrutura econômica.

Ao mesmo tempo o governo tem mostrado corretamente que para fortalecer e perenizar a recuperação cíclica temos que modernizar nosso ambiente de negócios via reformas microeconômicas que criem um ambiente mais propício a ganhos de eficiência em vários mercados. Neste sentido temos reformas de maior fôlego a serem implantadas - como a dos impostos e tributos - ao lado de mudanças menos ambiciosas como a recente MP da liberdade econômica e a transformação de mercados oligopolizados como o da distribuição do gás natural. Outras tantas iniciativas fazem parte de um programa do governo que deve ser anunciado no segundo semestre do ano pela equipe do ministro Paulo Guedes.

Caso a recuperação cíclica se perenize como espero, o crescimento da economia a taxas próximas de 2,5% a 3% ao ano vai trazer uma consolidação fiscal vigorosa e dar tempo para que as medidas de mais longo prazo que o governo se dispõem a tomar suportem um crescimento de mais longo prazo.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.


César Felício: Sinais trocados

Maia quer reforma dura; Bolsonaro mais concessões

Quem representa o governo na negociação da reforma da Previdência? A pergunta é legítima. Os acontecimentos dos últimos dois dias sugerem que o governo federal é uma coisa e o presidente Jair Bolsonaro é outra. O presidente é o coordenador mais importante do grupo de pressão que tenta arrancar concessões para a classe policial. Está no Palácio do Planalto, mas parece não se misturar com a equipe que faz o meio de campo entre o Ministério da Economia e o Congresso. Da maneira como comentou no começo da tarde de ontem o secretário especial da Previdência, Rogério Marinho, ao falar com jornalistas sobre a aprovação do texto-base da reforma da Previdência na Comissão Especial, o presidente parece estar em uma outra dimensão. "O presidente tem nos ajudado e tem o direito de ter sua opinião", afirmou, segundo registrou o Valor PRO. É uma frase que precisa ser lida mais de uma vez, uma frase simbólica. O presidente tem ajudado. Ele tem o direito de ter sua opinião, que não necessariamente coincide com a da equipe econômica. Está no direito dele.

Os privilégios aos policiais foram derrubados ontem na Comissão Especial, com a derrota do destaque apresentado pelo PSD, mas uma perda de substância da reforma ainda poderá vir, nos próximos dias. O presidente passou a Rodrigo Maia o recado de que quer concessões para a classe policial. É bom lembrar que o presidente da Câmara tem comentado a aliados, conforme registrou ontem o Valor PRO, que conta com o apoio de 340 parlamentares para a reforma se concessões não forem feitas a categorias de forma isolada. E uma concessão de forma isolada é exatamente o que pediu Bolsonaro. Em outras palavras, enquanto o presidente da Câmara trabalha pela aprovação da reforma mais dura, o presidente da República quer afrouxá-la. Uma situação inédita, que levou a uma nova altercação entre Maia e o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo, segundo relatos.

Retirado oficialmente da coordenação política do governo, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, apareceu na Câmara, logo após a votação, para garantir que "o governo venceu todas", que será possível votar a reforma em plenário antes do recesso e que, a partir de segunda-feira, a negociação será retomada para se tentar uma emenda aglutinativa a favor de regras mais brandas para policiais federais e rodoviários. Ou seja, chamou para si a conversa. Irá contar com a ajuda do novo coordenador, aquele que foi chamado para tirar poder de Onyx, o ministro da Secretaria de Governo Luiz Eduardo Ramos, que já pediu para não ser chamado de general.

É confuso, e como em toda confusão no governo Bolsonaro, há método na loucura. O presidente terá saldo favorável, independentemente de a reforma ser aprovada com ou sem esta concessão na próxima semana.

Candidaturas
Entre 2013 e 2017 a Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), uma ONG que faz capacitação de interessados em participar do processo eleitoral, recebeu por ano, em média, a inscrição de mil interessados. Este ano, em que se abre a inscrição para os pretendentes a concorrer nas eleição de 2020, nada menos que 4.235 preencheram ficha.

No Renova, outro movimento que também atua no impulsionamento de carreiras políticas, surgiram 31.359 interessados em concorrer no próximo ano, em 2.099 cidades em todos os Estados. No ano passado, foram 4 mil inscritos. O filtro será rigoroso e poucas centenas devem ser selecionados por estas ONGs, mas a tendência de crescimento do interesse em participar da eleição está clara.

Para a diretora-executiva do Raps, Mônica Sodré, o aumento da demanda está diretamente relacionado a um processo essencialmente benigno, que é o de maior engajamento da sociedade em causas públicas. Para o fundador do Renova, o empresário Eduardo Mufarej, é uma reação da sociedade de repúdio à atual classe política, um movimento que avança pelo desejo de renovação.

Há fundamento tanto em uma posição quanto em outra, mas o modelo institucional que está proposto para a eleição do próximo ano também estimula o aumento da concorrência.

A eleição de 2020, se as regras não forem alteradas pelo Congresso, como já se articula, será a primeira sem a possibilidade de coligações proporcionais desde 1982. As alianças majoritárias continuam permitidas, mas não haverá estímulo para elas, já que megacoligações para se eleger prefeitos não poderá ser replicada na formação de um "chapão" para a Câmara dos Vereadores.

Cada partido terá que ter sua nominata completa, se são 70 vagas para vereador em São Paulo, serão pelo menos 70 candidatos para cada uma das dezenas de siglas habilitadas a concorrer. Os candidatos que entrarem pelas mãos da Raps, Renova ou organizações da mesma natureza terão que disputar espaço com laranjas que estarão lá só para constar, celebridades de internet ou outras modalidades de caráter sinistro de recrutamento.

"Campeão de voto em proporcional vai valer ouro, diamante, todo mundo vai querer grudar nele", comentou Murilo Hidalgo, dono do Paraná Pesquisas, que monitora o panorama eleitoral em diversos Estados.

Em Curitiba, oito partidos lançaram candidatos a prefeito, 19 elegeram vereadores. Para 2020, o mais razoável é pensar no inverso. Haverá mais partidos lançando candidato a prefeito, para que o postulante na eleição majoritária carreie voto de legenda para a eleição proporcional. Haverá menos partidos elegendo vereadores. Em Cuiabá, nas eleições de 2008, 2012 e 2016, nenhum partido conseguiu formar quociente de forma isolada. "Os vereadores atuais tendem a se nuclear em uma sigla só, repartindo o voto para região para diminuir a competição. Os partidos que não tiverem candidato a prefeito forte e quiserem eleger na proporcional vão ficar muito prejudicados", comentou.

Como o fim das coligações está conjugado ao reforço da cláusula de barreira, depois da pulverização na eleição de 2020 haverá uma concentração na eleição seguinte. Em 2022 menos partidos estarão habilitados a concorrer na primeira eleição sem coligações em nível estadual. O quadro irá se enxugando naturalmente.

*César Felício é editor de Política.


Ribamar Oliveira: "Vou resolver o caso de vocês, viu"?

Policiais querem benefícios que foram extintos em 2003

O presidente da República é capitão do Exército. O líder do governo na Câmara é major. O líder do PSL na Câmara é delegado. O líder do PSL no Senado é major. Todos eles fizeram suas campanhas eleitorais defendendo as respectivas categorias e a bandeira da segurança pública. Agora, nada mais lógico que essas categorias esperem ser atendidas em seus interesses. Elas querem regras previdenciárias muito favorecidas em relação aos demais servidores e trabalhadores. O Congresso vai aceitar? A resposta a esta questão poderá ter desdobramentos importantes a frente.

O que querem os policiais? O direito a se aposentar com 100% da última remuneração do cargo efetivo que ocupam - benefício chamado de integralidade. E que os inativos tenham os mesmos aumentos salariais concedidos aos policiais da ativa - benefício conhecido como paridade.

A integralidade e a paridade, como regras de aposentadorias, foram extintas em dezembro de 2003 pela emenda constitucional 41, de iniciativa do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A partir de então, o cálculo do valor da aposentadoria passou a considerar a média das remunerações utilizadas para a contribuição ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS). Os aumentos das aposentadorias e pensões dos servidores passaram a ser definidos em lei específica e, agora, têm que ser iguais aos concedidos no Regime Geral da Previdência Social (RGPS).

A emenda 41 garantiu, no entanto, a integralidade e a paridade aos servidores que já haviam preenchidos os requisitos para se aposentar e para aqueles que ingressaram no serviço público até a data de publicação da mudança constitucional. Mas, para estes últimos, o servidor deveria cumprir 35 anos de contribuição e 60 anos de idade, se homem, e 30 anos de contribuição e 55 anos de idade, se mulher.

O que os policiais querem agora, portanto, é voltar à realidade anterior à emenda constitucional 41, ou seja, para a situação que existia em 2003. Mas eles querem o pacote completo que existia naquela época: não querem também ter idade mínima, mesmo que seja especial, para requerer a aposentadoria. Ou seja, querem benefícios que foram negados a todos os servidores que ingressaram no serviço público depois de dezembro de 2003.

Um dos principais objetivos da reforma da Previdência proposta pelo governo Bolsonaro é acabar com privilégios, igualando as regras previdenciárias aplicadas a servidores e aos trabalhadores da iniciativa privada. As reivindicações dos policiais destoam desse propósito. Eles querem um tratamento mais do que privilegiado.

Os riscos de morte e de agressões a que os policiais estão submetidos em seu dia a dia devem ser considerados, sem dúvida, quando se estabelecem regras de aposentadoria e de pensão. Mas eles terão direito a tratamento especial se a complementação de voto do relator da reforma, deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), apresentada na terça-feira passada, for aprovada.

Na complementação de seu voto, Moreira manteve a proposta de aposentadoria aos 55 anos para homens e mulheres, com 30 anos de contribuição. A regra geral para os demais servidores e trabalhadores da iniciativa privada é de 65 anos para homens e 62 anos para mulheres, com contribuição mínima de 25 anos. Para ter direito ao valor máximo do benefício de aposentadoria, o servidor ou trabalhador terá que contribuir por 40 anos.

Samuel propôs ainda que a pensão por morte, devida ao cônjuge do policial, seja vitalícia e correspondente à remuneração do cargo. Mesmo esse tratamento diferenciado não satisfez os policiais que, em manifestação realizada na terça-feira, chegaram a chamar o presidente Jair Bolsonaro de "traidor". Ontem, ao chegar a evento em São Paulo, o presidente apontou para um grupo de policiais militares que estavam em serviço e disse: "Vou resolver o caso de vocês, viu?".

O PSL, partido de Bolsonaro, ameaça não votar a reforma se as reivindicações dos policiais não forem atendidas. O líder do governo na Câmara, deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), chegou a dizer que, se a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal conseguissem tudo o que haviam proposto, o impacto seria menor que R$ 4 bilhões em dez anos. Ele acha que é possível chegar a um meio termo. "Se houver algum tipo de desidratação [da proposta de reforma], vai ser algo de pequena monta", afirmou em entrevista.

O problema é que os policiais querem a mesma coisa que o governo concedeu a militares das Forças Armadas. O projeto de lei encaminhado ao Congresso em março (PL 1.645/2019), que reformula carreiras, concede aumentos salariais e altera as regras de pensão dos militares, prevê que, durante a inatividade, eles continuarão tendo direito à remuneração integral e à paridade.

Além disso, o projeto propõe aumentar de 30 anos para 35 anos o tempo mínimo de atividade. Eles continuarão contribuindo apenas para a pensão, com alíquotas aumentadas, mas não para o período de inatividade. A economia que será obtida com o projeto dos militares também será de "pequena monta" para usar as palavras do líder do governo, de só R$ 10,5 bilhões em dez anos. As regras para policiais militares dos Estados e bombeiros serão as mesmas dos militares das Forças Armadas.

Apesar das pressões, na noite de ontem, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), informou que não houve acordo entre os líderes partidários sobre as reivindicações dos policiais. A questão é saber se o governo Bolsonaro conseguirá manter as vantagens para os militares das Forças Armadas se for negado, agora, o que os polícias reivindicam.

BNDES e o PIS/Pasep
O BNDES continuará recebendo os recursos do PIS/Pasep se a complementação de voto de Samuel Moreira for aprovada pelo Congresso. O relator da reforma desistiu de tirar os atuais 28% dos recursos do PIS/Pasep que o banco estatal recebe atualmente. Mas o voto de Moreira determina que os programas de desenvolvimento econômico financiados com esses recursos serão anualmente avaliados e divulgados em meio de comunicação social eletrônico. Terão que ser também apresentados em reunião da Comissão Mista de Orçamento do Congresso.


Carlos Pereira: Presidente sem asas

Bolsonaro arrisca perder protagonismo; Legislativo está disposto a assumir esse papel?

Seria crível atribuir ao Congresso mérito ou responsabilidade pelo sucesso ou fracasso de políticas de perfil universal, como a reforma da Previdência? Se a inflação ou o desemprego subirem, seria possível que eleitores eximam o presidente dessa responsabilidade e a transfiram para os legisladores?

Em regimes políticos presidencialistas, presidentes são eleitos por uma base eleitoral ampla, distribuída em todo o território nacional. Por outro lado, legisladores são eleitos por uma base eleitoral bastante reduzida, concentrada em poucos municípios em um determinado Estado.

Bases eleitorais diferentes geram preferências distintas de políticas e estratégias diferenciadas de sobrevivência eleitoral. É esperado que presidentes sejam motivados pela implementação de políticas universais. Legisladores, por outro lado, seriam fundamentalmente orientados pela implementação de políticas locais, capazes de alimentar as suas redes de interesse.

Em função da potencial diferença de preferências e estratégias de sobrevivência política entre o Executivo e o Legislativo, existiria um grande potencial de conflito.

Ao delegar uma ampla gama de poderes constitucionais, orçamentários e de agenda para o presidente na Constituição de 1988, os legisladores criaram as bases institucionais para que esses potenciais conflitos fossem dirimidos. Por meio desses poderes, presidentes seriam capazes de sustentar coalizões estáveis em troca de recursos políticos (ministérios, cargos na burocracia pública etc.) e financeiros (execução de emendas individuais e coletivas, por exemplo) para aliados no Legislativo.

Todo processo de delegação se caracteriza por uma transferência de poder para que um “agente” (no caso, o Executivo) utilize esses poderes delegados de forma consistente com as preferências medianas dos “principais” (no caso, os legisladores).

Quando isso acontece, presidente e legisladores e a própria sociedade se beneficiam, pois é esperado maior cooperação a um custo relativamente baixo. Verifica-se uma taxa maior de aprovação de reformas de autoria do Executivo, aumentando assim as chances de reeleição do presidente e dos legisladores de sua coalizão. Uma espécie de democracia retrospectiva virtuosa.

Entretanto, quando o presidente negligencia as preferências dos legisladores, é esperada maior desconfiança. No limite, os custos de governabilidade aumentam e a taxa de sucesso do presidente diminui. Além do mais, iniciativas do Legislativo que visam controlar e diminuir os poderes do presidente tendem a aumentar.

Como o presidente Bolsonaro tem se recusado a governar por meio de uma coalizão majoritária e estável, bem como interpretado o Congresso como uma arena de adversários, expondo continuamente legisladores como representantes de uma suposta velha política, não seria surpresa que parlamentares considerassem o presidente com desconfiança, e não mais agente de suas preferências.

Movimentos recentes do Legislativo no sentido de diminuir a discricionariedade do Executivo (i.e., tornar impositivas as emendas individuais e coletivas ao Orçamento) e a imposição de algumas derrotas ao presidente no Congresso são exemplos de medidas do Legislativo de cortar as asas de um presidente não representativo dos legisladores.

Mas, como as regras do jogo de sobrevivência política e eleitoral tanto do Executivo como do Legislativo não mudaram, não parece ser plausível que um maior protagonismo do Legislativo seja suficiente para que o Congresso seja responsabilizado por fracassos na implementação de políticas universais. O Executivo continuará a ser o centro nevrálgico no presidencialismo multipartidário, mesmo quando enfraquecido.