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Malu Delgado: Campos políticos aguardam ‘tamanho’ de Lula

Ex-presidente buscará tradicionais aliados, mas espera-se que ele amplie diálogo com lideranças

Todas as correntes políticas brasileiras passaram os últimos dois dias observando os discursos iniciais do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A forma como Lula, solto na última sexta-feira, vai se reinserir no jogo político não está clara nem para seu próprio campo. Está evidente que num primeiro momento Lula apela para a junção mais fácil e segura, do PT com o PCdoB e o Psol, mas ele deixou claro a aliados que seu movimento será bem mais amplo. Foram esses os três partidos de esquerda citados por Lula tanto no discurso que fez no acampamento ao lado da sede da Polícia Federal de Curitiba quanto no Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo. Mas a expectativa, sobretudo de alas mais moderadas da esquerda, é que Lula de fato esteja disposto a dialogar com lideranças de centro que não foram atraídas para o polo de poder do presidente Jair Bolsonaro.

A movimentação de Lula, na avaliação de políticos que lhe conhecem bem, vai se dar muito nos bastidores, até porque o petista tem ciência da desarticulação do campo da centro-esquerda e a noção exata de onde a base petista foi corroída. “A maior qualidade do Lula é ser um extraordinário operador político. Ele sabe que não dá para tomar um avião no saguão de Congonhas, mas dá para tomar no saguão do aeroporto de Recife. Sabe perfeitamente onde sua base estreitou e vai reconstruir o PT, sua base, e a liderança na esquerda tradicional”, aponta um político que conviveu de perto com o ex-presidente. Essa leitura ressalta a dificuldade de diálogo que Lula terá com Ciro Gomes (PDT). Para os centristas, Lula vai sufocar Ciro. Para políticos da centro-esquerda, os dois serão obrigados a se entender em algum momento, pois não há espaço para Ciro se mover neste grupo do centro progressista, que tem no ex-presidente Fernando Henrique Cardoso um mentor.

Segundo um aliado do petista, quem apostar no Lula sectário vai errar: “Creio que ele vai tentar liderar uma articulação que dispute um pouco o centro”. Esse diálogo “mais ao centro”, na avaliação da esquerda, será possível não necessariamente no campo partidário institucional, mas via lideranças políticas descontentes com Bolsonaro e que só não se desgarram do atual governo por absoluta falta de opção. “Tem um monte de gente solta neste meio, que foi polarizado pelo lulismo no apogeu, depois polarizado pelo bolsonarismo, e hoje estão todos vagando por aí, meio zumbis. São os políticos que se descolaram do bolsonarismo e ainda não encontraram uma alternativa”, diz um integrante da centro-esquerda. Esses zumbis seriam lideranças do MDB, do PP, do PR, do PSD, entre outros, que integraram a base de governos petistas.

“Lula tem uma dimensão política única. Ele nunca foi um radical e sempre gostou de conversar com quem pensa diferente dele. Uma coisa é entender o que ele diz porque está se posicionado, outra coisa é defini-lo como um ser sectário”, opinou um dirigente petista. De acordo com fontes do PT, é provável que o ex-presidente passe as próximas duas semanas ainda em São Paulo, organizando seu cronograma de viagens pelo país. Lula poderá usar ou a sede nacional do PT na capital ou da Fundação Perseu Abramo para fazer seus primeiros contatos políticos. Nem a agenda de viagens está definida e nem a forma como o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, vai se aliar ao cronograma de Lula. Um outro sinal dos primeiros discursos de Lula é que ele quer Haddad a reboque, até porque trabalha, simultaneamente, fortalecendo o seu próprio nome e sua imagem, mas também a de Haddad, caso se configure intransponível a inelegibilidade por questões jurídicas. “Haddad ainda terá uma conversa com Lula nos próximos dias para detalhar tudo isso”, adiantou um petista.

A intenção já manifestada por Lula a petistas é elaborar, de fato, um projeto de desenvolvimento do país. O ex-presidente deu pistas nos seus primeiros discursos de que quer privilegiar quatro temas: economia, com foco direcionado para emprego e desigualdade, educação, cultura e, por fim, o aspecto da soberania nacional. Em uma das primeiras conversas que teve depois de ser libertado, Lula disse a petistas que há um aspecto que lhe intriga muito e que ele quer entender: a posição dos militares no governo Bolsonaro, e qual é a postura das Forças Armadas em relação à soberania nacional.

O campo político mais ao centro, que tenta se articular em torno de uma terceira via que se afaste dos radicalismos tanto da esquerda quanto da direita, minimiza a leitura de que a entrada de Lula em campo fortalece a polarização e tira do centro a competitividade em 2022. O ex-presidente Fernando Henrique publicou ontem um tuíte para agregar o pensamento deste grupo, mas reconheceu que Lula atiça os extremos: “A polarização aumenta. Sem alternativas populares e progressistas continuaremos no jogo político/pessoal. Em meu tempo a questão central era a inflação; hoje é crescimento e emprego. Sem corrupção. No começo era o verbo. Novamente, com gestos e ações os caminhos abrem-se. A eles!”.

O apresentador Luciano Huck, que é apontado como essa possível novidade de centro, retuitou um comentário feito pelo presidente nacional do Cidadania, o ex-deputado federal Roberto Freire. “Penso que cada dia que passa nesse nosso Brasil do “nós x eles”, o Luciano Huck cresce como alternativa democrática. Os bolsonaristas e os lulopetistas, eufóricos com Lula solto, não o esquecem”, disse Freire.

Os políticos do centro insistem na tese de que o país não tem dois caminhos, tem três. E que a polarização, muito mais latente nas redes sociais do que nas ruas, vai oferecer uma “avenida de oportunidades” ao centro.

“Nenhum dos dois lados segurou o voto útil de 2018, nem o PT e nem Bolsonaro. Os dois lados se movimentam hoje em bases muito menores do que eles conseguiram na última eleição”, alega um defensor do centro. Lula é maior na sociedade atual? Seu apoio ainda se concentra em torno de 30%? Todos os campos aguardam as próximas pesquisas de opinião para agir. Um político experiente afirma que a vida não está fácil “para quem tem carimbo de corrupção na testa, e não tem vida fácil para quem não está conseguindo entregar emprego e renda, como é o caso do atual governo”.

Já a centro-esquerda se anima e assegura que o caminho do novo centro, que até agora elegeu Luciano Huck como uma possibilidade, “é anódino, sem sal e não representa o tamanho do Brasil”, nas palavras de um lulista. Por enquanto, as estratégias de todos os lados só serão melhor calibradas após a publicação da primeira pesquisa de intenção de votos. Aparentemente, com Lula na urna.


Ribamar Oliveira: Governo muda teto para acionar gatilhos

Medida corrige erro cometido pela equipe de Michel Temer

A proposta de emenda constitucional (PEC) que estabelece um novo modelo fiscal para o Brasil, enviada pelo governo na terça-feira ao Congresso, altera o chamado teto de gastos da União. O texto da PEC prevê que, se a despesa obrigatória de um determinado Poder ou órgão ultrapassar 95% da despesa primária total, as duras medidas de ajuste previstas na emenda constitucional 95, de 2016, terão que ser acionadas.

Com essa alteração, a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, pretende corrigir um erro cometido pela equipe econômica do ex-presidente Michel Temer, quando foi elaborado o mecanismo do teto de gastos. Pelas regras do teto que foram aprovadas em dezembro de 2016, somente se o limite individual de gasto for descumprido o Poder ou órgão terá que adotar as medidas de ajuste.

Descobriu-se, no início deste ano, que o gatilho que aciona as medidas jamais será disparado, pois o Poder ou órgão pode ir reduzindo progressivamente suas despesas discricionárias (investimentos e custeio da máquina) para acomodar o aumento das despesas obrigatórias. Poderá reduzir esses gastos até zero, ou seja, até eliminar o espaço para os investimentos e o custeio, o que resultaria na paralisação da atividade do Poder ou do órgão. Ou seja, haveria o que os economistas chamam de “shutdown”.

Os gatilhos do teto de gastos criados pela equipe do ex-presidente Michel Temer - que acionariam as medidas de ajuste - simplesmente não dispararam, o que levou o governo a reduzir cada vez mais os investimentos públicos e as verbas de custeio. Para acomodar o aumento continuado das despesas obrigatórias de 2017 até agora, o governo foi obrigado a reduzir fortemente os gastos discricionários. As despesas discricionárias atingiram R$ 118,6 bilhões no período de 12 meses encerrado em setembro deste ano, o mesmo nível de setembro de 2009, em termos reais, de acordo com dados do Tesouro Nacional.

Na proposta orçamentária para 2020, as despesas discricionárias atingiram o menor nível da história, ficando em R$ 89,1 bilhões, sendo R$ 19,9 bilhões para os investimentos, o menor nível já registrado. A esse montante devem ser acrescentados R$ 16,1 bilhões programados para as emendas parlamentares individuais e de bancada. Em documento divulgado na terça-feira, durante a coletiva para o anúncio do Plano Mais Brasil, o Ministério da Economia informa que “o investimento público tende a zero” se nada for feito.

Com a PEC apresentada pelo governo, o critério para acionar os gatilhos não será mais o descumprimento dos limites individuais de gastos. Agora, o Poder ou órgão terá que acionar as medidas de ajuste se as despesas obrigatórias superarem 95% das despesas primárias totais (que exclui o pagamento de juros das dívidas). É interessante observar que, no mesmo documento divulgado ontem, o Ministério da Economia informa que as despesas obrigatórias já absorvem 93% dos gastos primários da União. Ou seja, o gatilho para acionar as medidas já está bastante próximo.

O governo tomou o cuidado de estabelecer, no texto da PEC, que as medidas de ajuste serão adotadas durante a elaboração da proposta orçamentária anual. Ou seja, o Orçamento será enviado ao Congresso com os ajustes já adotados pelo Poder ou órgão que tiver sua despesa obrigatória superior a 95% do gasto primário. O dispositivo evita o que ocorreu com a proposta orçamentária de 2020, quando o governo foi obrigado a programar um montante muito baixo para os investimentos e agora procura adotar medidas destinadas a abrir espaço orçamentário para aumentar as despesas discricionárias.

Entre as medidas de ajuste que terão que ser adotadas, consta a proibição de concessão, a qualquer título, de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração de membros de Poder ou de órgão, de servidores e empregados públicos e militares, exceto dos derivados de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal decorrente de atos anteriores à entrada em vigor da emenda 95.

Direitos sociais
Ao aprovarem a Constituição de 1988, os constituintes definiram que são direitos sociais “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a Previdência Social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”, na forma do texto constitucional. Este é o artigo 6º, que abre o capítulo dos “Direitos Sociais” da Constituição.

Na PEC que trata do novo regime fiscal, o ministro Paulo Guedes e sua equipe propuseram um parágrafo único ao artigo 6º, estabelecendo que, na promoção dos direitos sociais, “será observado o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”. Caso a PEC seja aprovada, o governo poderá alegar que o atendimento a determinado pleito social colocará em risco o equilíbrio fiscal e, com base nesse argumento, negar o atendimento ao pedido.

A preocupação da equipe econômica, de acordo com fonte credenciada do governo, é com a tese, que começa a ganhar corpo entre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) do “princípio de vedação do retrocesso social”. De acordo com esse princípio, os direitos sociais e econômicos, uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo. O princípio limita a reversibilidade dos direitos adquiridos. De acordo com esta tese, seria inconstitucional, por exemplo, uma lei que extinga o direito ao seguro-desemprego.

O “princípio de vedação do retrocesso social” foi utilizado quando o Supremo julgou uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) contra a mudança que o governo fez na vinculação do gasto com saúde. O objetivo da alteração do artigo 6º proposto pela equipe econômica é fazer com que a Justiça brasileira comece a entender que, para assegurar direitos sociais, é preciso olhar a questão do financiamento da política pública, explicou a fonte.

Nesse sentido, a PEC do novo regime fiscal determina, por exemplo, que decisão judicial que aumente a despesa pública somente será cumprida quando houver a respectiva e suficiente dotação orçamentária.


José Eli da Veiga: O trevo da distopia

A vida inteligente está ameaçada, mas principalmente pela possibilidade de que venham a ser usados os arsenais atômicos

Está em ascensão a crença em irrevogável autoextermínio da humanidade. A tal ponto que nem caberia, nesta página, a lista de recentes bons livros e artigos que robustecem tal distopia. A justificativa é quase sempre ambiental, com maior realce ao imbróglio climático, muitas vezes acompanhada de prognósticos dos mais sombrios sobre o uso de novas tecnologias, com destaque à inteligência artificial. Com tal combinação, muito em breve só sobrariam vivos, na Terra, os tardígrados.

Costuma estar fora desta onda qualquer preocupação com a incerteza mais garantidora de tão lúgubre desfecho: a volta da ameaça de um “inverno nuclear”, fato que mereceu destaque aqui no Valor do último 13 de setembro (p. 14-15 do caderno EU& Fim de Semana). É esquisito que o pior agouro - o de guerra nuclear - fique debaixo do tapete em algaravia sobre aquecimento global e más condutas tecnológicas, os menos prementes dos três perigos.

Uma boa especulação psíquica evocaria os mais fortes arquétipos sobre a natureza. Alguns tendem a achar que ela é caprichosa, delicada, frágil, precária e efêmera. Outros, que ela é bem robusta, estável e previsível. Para os primeiros, só restaria aos humanos o dever de agir como se estivessem pisando em ovos, sem qualquer pretensão de gerenciamento ambiental. Ao contrário dos que apostam na ciência para um manejo que contrabalance os males impostos pelo processo civilizador.

Se fossem mais seguras as evidências científicas sobre o trevo das incertezas ditas existenciais - a nuclear, a ambiental e a tecnológica - o mais provável é que algum consenso sobre o futuro das sociedades começasse a ser formado. Porém, os resultados obtidos nas últimas décadas pela ‘Ciência do Sistema Terra’ estão longe de impedir o predomínio das inclinações subjetivas sobre a relação dos humanos com a natureza, além de subestimação do vetor nuclear.

Tais circunstâncias obrigaram o filósofo francês Jean-Pierre Dupuy, professor de ciência política em Stanford, a condenar o uso de seus argumentos pelos autointitulados “colapsólogos”. Autor do best-seller “Pour un Catastrophisme Éclairé”, de 2002 (traduzido, dez anos depois, pela Editora É Realizações, com o título “O Tempo das Catástrofes”), ele chama a atenção para o mais grave erro conceitual dessa tribo, em texto recém-publicado no website AOC media: (https://aoc.media/): o estranho pressuposto de que todos os sistemas complexos seriam mais frágeis.

É equivocada a afirmação de que um colapso será inevitável em futuro próximo porque estruturas cada vez mais globalizadas, interconectadas e travadas tornam a biosfera muito mais vulnerável a perturbações internas ou externas, engendrando uma dinâmica de derrocada sistêmica. Os mais resilientes ecossistemas naturais são justamente os com redes mais complexas e mais interconectadas. Diferente das redes artificiais, que arbitrária e abusivamente também vêm sendo chamadas de “ecossistemas”. Estas, sim, podem se tornar mais vulneráveis com a elevação da complexidade.

Então, em vez de condenada ao autoextermínio por razões ambientais e/ou tecnológicas, a vida inteligente do gênero humano está, sim, ameaçadíssima, mas principalmente pela possibilidade de que venham a ser usados os atuais arsenais atômicos. E, se isto for evitado, as perguntas mais pertinentes incidem sobre os tipos de influência que terão as outras duas folhas do trevo sobre o desenvolvimento socioeconômico e político.

Tragédias climáticas provocarão guerra nuclear? Outros danos ambientais e extravios digitais causarão sérias degradações da qualidade da vida? Restrições sobre os recursos naturais (água, ar, solos, etc) culminarão em modos autoritários de gestão, após violentas lutas de apropriação? Ou será que suscitarão soluções inovadoras, abrindo caminho para um futuro melhor?

Combinando tais perguntas a várias outras sobre emancipação individual ou mutações nas atividades do cotidiano, pode-se perceber qual é a atual encruzilhada. Sociedades futuras moldadas por normatizações sociais não consentidas, necessárias às incontornáveis transformações ecológicas e econômicas? Ou sociedades futuras estruturadas por um movimento fortemente individualista, contrário às institucionalizações?

Embora concorrentes, os polos desta contradição não são antagônicos. Nutrem-se um do outro e se completam enquanto se opõem. Tudo indica que, em vez de ou/ou, trata-se de mais uma das muitas conjunções de simultâneos e/e. O que resulta em, no mínimo, quatro cenários - também não incompatíveis - cuidadosamente descritos em estimulante relatório da associação Futuribles International: sociedade sob vigilância, sociedade algorítmica, sociedade do ‘eu’ e sociedade de arquipélagos.

Tão estimulante exercício de antecipação - este sim antagônico à distopia - está agora disponível em português, no número 2 da excelente revista Futuribles, publicada pela organização Plataforma Democrática, uma parceria da Fundação FHC com o carioca Centro Edelstein.

*José Eli da Veiga, professor sênior da USP


Ribamar Oliveira: Meta fiscal da LDO já não reflete a realidade

Não haverá cortes no Orçamento no próximo ano

O megaleilão dos excedentes de petróleo da cessão onerosa, que será realizado no próximo dia 6 de novembro, terá um impacto significativo nas contas públicas neste e no próximo ano. A União terá, em termos líquidos, uma receita de R$ 24 bilhões que não constava na programação orçamentária de 2019 e o mesmo valor será acrescido à estimativa da receita prevista na proposta orçamentária para 2020.

Os recursos extras serão utilizados para reduzir o déficit primário do governo central (Tesouro, Previdência e Banco Central). Com isso, as metas de resultado primário definidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) não servem mais como sinalizador da trajetória da política fiscal brasileira.

A meta fiscal para o governo central, definida na LDO, é de déficit primário de R$ 139 bilhões neste ano. Com o dinheiro que será obtido no leilão da cessão onerosa e nos leilões da 16ª rodada de concessão, já realizado, e da 6ª rodada de partilha de produção, que ocorrerá também em novembro, o déficit primário poderá ficar abaixo de R$ 90 bilhões.

O governo poderia utilizar parte dos recursos para executar as programações orçamentárias deste ano, que estão contingenciadas, mas não o fará. O Ministério da Economia entende que o chamado Orçamento impositivo, criado pelas emendas constitucionais 100 e 102, só valerá a partir de 2020.

Para o próximo ano, a meta fixada na LDO é de déficit primário de R$ 124,1 bilhões para o governo central. A proposta orçamentária de 2020, encaminhada pelo governo ao Congresso no fim de agosto, projeta uma receita suficiente para cumprir a meta da LDO. Os R$ 24 bilhões do leilão da cessão onerosa serão, portanto, um adicional, que será incorporado à proposta orçamentária em novembro, por meio de mensagem modificativa.

Como as despesas da proposta orçamentária do próximo ano já estão no teto de gastos, os R$ 24 bilhões adicionais serão utilizados para reduzir o déficit primário do próximo ano, ou seja, a dívida pública. Se a receita extra do petróleo já é conhecida desde agora, pressupondo que o bônus de assinatura do leilão da cessão onerosa será pago em duas parcelas, seria mais transparente se o governo propusesse uma mudança da meta fiscal, reduzindo o déficit primário do governo central.

Uma fonte credenciada do governo considera, no entanto, “mais prudente” deixar a meta fiscal onde está para o próximo ano. O argumento é que, no caso de perda de arrecadação tributária, que está muito incerta, os R$ 24 bilhões adicionais do petróleo protegeriam o governo de um contingenciamento do Orçamento, que já está muito apertado.

Além disso, há quem defenda no governo a alternativa de tirar da proposta orçamentária de 2020 a receita de R$ 16,2 bilhões que será obtida com os novos contratos de concessão das usinas hidrelétricas da Eletrobras, no âmbito da privatização da estatal. O projeto de lei da privatização da Eletrobras ainda não foi encaminhado ao Congresso. A opção da equipe econômica, portanto, será pela segurança.
De qualquer forma, quando encaminhar a mensagem modificativa da proposta orçamentária de 2020, o governo terá que explicitar que trabalha com um déficit primário menor para o próximo ano.

O pós-reforma
O governo tem dois desafios no pós-reforma da Previdência. O primeiro é reduzir despesas obrigatórias na proposta orçamentária de 2020 para elevar os investimentos, que foram muito reduzidos. O segundo é sair de duas armadilhas em que está metido: a chamada “regra de ouro” das finanças públicas e o gatilho emperrado do teto de gastos.

A sustentação do teto de gastos, indispensável neste momento para o equilíbrio das contas pública, depende da capacidade do governo de reduzir o ritmo de crescimento das despesas obrigatórias. Ao mesmo tempo, a realização de operações de créditos em valor superior às despesas de capital (investimentos e amortizações da dívida), proibida pela “regra de ouro”, ocorre por causa do aumento acelerado dos gastos obrigatórios.

Há indicações de que o governo enfrentará o primeiro desafio por meio de projetos de lei e de medidas provisórias. Uma das MPs, já anunciada oficialmente, vai acabar com a multa adicional de 10% que a empresa paga ao FGTS em caso de demissão sem justa causa. O dinheiro não é do trabalhador, mas do Fundo, embora seja contabilizado como receita do Tesouro e, posteriormente, como despesa obrigatória, quando é transferido para o FGTS. Com o fim da multa, o governo abrirá espaço de R$ 6,1 bilhões no Orçamento de 2020.

Outro espaço será aberto com a decisão do governo de transferir para as empresas o pagamento do auxílio-doença, devido aos trabalhadores afastado do emprego por motivos de saúde, hoje feito pelo INSS. A mudança seria incluída no substitutivo da MP 891/2019. O governo pretende também reduzir os gastos com benefícios tributários, incluindo as atuais deduções com saúde e educação do Imposto de Renda.

Resolver os problemas da “regra de ouro” e do gatilho travado do teto de gastos é mais complicado, pois exige proposta de emenda constitucional (PEC). As medidas discutidas pela área econômica passam pela redução da jornada de trabalho dos servidores, com a correspondente diminuição salarial, por congelar progressões e promoções dos servidores, e por não conceder reajuste pela inflação para os benefícios previdenciários acima de um salário mínimo.

O receituário, embora considerado necessário, é politicamente indigesto e a aprovação pelo Congresso, duvidosa, principalmente diante do empenho do governo em aprovar o projeto de lei 1645/19, que trata do sistema de proteção dos militares. O projeto mantém a paridade e a integralidade para os militares inativos, assim como para os policiais militares e bombeiros, benefício que foi negado aos demais servidores.

No caso da União, a despesa adicional é de R$ 4,7 bilhões somente no próximo ano. “É difícil explicar o projeto para a sociedade, no momento em que se discute a proposta de ajuste fiscal”, disse o deputado Pedro Paulo (DEM-RJ), autor de uma PEC que propõe mecanismos de ajuste para a “regra de ouro”.


Malu Delgado: O cárcere do PT

Ainda que Lula seja libertado, PT continuará prisioneiro do ex-presidente

Ficar a reboque de Lula é vantagem ou desvantagem? Enquanto aguardava o resultado do julgamento do Supremo Tribunal Federal, que poderia tirar o ex-presidente da República da prisão, um integrante do PT refletia sobre os efeitos de outro cárcere: o do próprio partido em torno da figura de Luiz Inácio Lula da Silva. Mesmo os petistas que admitem, em privado, incômodo com a paralisia do partido e a dependência cega dos comandos de Lula, há uma constatação realista de que o ex-presidente é, de fato, o melhor candidato à Presidência da República para o PT (isso no quesito competitividade) em qualquer cenário.

Os mais pragmáticos e realistas propõem, porém, outra reflexão: mesmo solto, Lula é inelegível e não é factível pensar em sua candidatura para 2022. Sendo assim, o ex-presidente retornaria às ruas e viajaria pelo país num cenário de continuidade da extrema polarização e sem condições de disputar, por restrições impostas pela Lei da Ficha Limpa. “Vamos ficar esperando o Lula até quando?” é uma pergunta não impensável de se ouvir em debates do PT, ainda que tal lucidez esteja longe de refletir o sentimento da maioria do partido, controlado pela corrente do ex-presidente.

E como imaginar que o homem que está detido há mais de um ano, se considera preso político e se julga vítima de um julgamento parcial e contaminado, agirá politicamente em favor de composições que extrapolem a cantilena da hegemonia petista? A lógica de Lula, encarcerado, é a de um ator político sectário, endossa um petista. Solto, não seria absurdo imaginar que Lula agiria como a jararaca viva e justiceira. Em 2016, quando foi levado em condução coercitiva pela Lava-Jato para prestar depoimento, o ex-presidente avisou: “Se quiseram matar a jararaca, não bateram na cabeça, bateram no rabo. A jararaca está viva”. Vivíssima.

Malabarismos jurisdicionais brasileiros abririam brechas para se pensar na criação de condições para Lula concorrer em 2022, e ainda há um HC (habeas corpus) no caminho que pode livrar o petista da condenação se o Supremo considerar que houve parcialidade da turma do ex-juiz Sergio Moro.

Um bom exercício para o PT seria projetar uma disputa com Lula hoje. Se essa sondagem é feita com um petista racional, admite-se que possivelmente o partido, isolado, perderia para a direita ou a extrema-direita, porque não aconteceu nenhuma magia em dez meses que tenha apagado a forte rejeição da maioria do eleitorado ao petismo. Ou alguém acredita na conversão repentina do PSDB ao centro se o nome em questão, contra Jair Bolsonaro, for o de Lula? Seguindo o mesmo raciocínio, seria crível imaginar a abnegação de Lula em nome de uma aliança ampla em que ele não seja o líder?

Lula, livre, não é a redenção do PT, e basta olhar para o que pode ser a disputa pela Prefeitura de São Paulo para entender parte do imbróglio político em que se meteu a esquerda brasileira. Com Fernando Haddad fora da disputa municipal, por decisão dele próprio, o PT não tem nenhum nome competitivo na capital. Como Lula, além de vivo, tem sagacidade política ímpar, o ex-presidente já semeou um armistício com Marta Suplicy, que pode ser um nome do PDT. Lula, segundo os entendidos em lulês, não chamou Marta de volta ao PT. “Ele jogou a tarrafa, provocou ebulição nos bastidores e pavimentou o caminho para uma aliança lá na frente se a Marta estiver no segundo turno e o PT não”, traduziu um petista.

O mindset do PT ainda não permite que o partido considere ficar fora da disputa em São Paulo em prol de uma aliança competitiva capaz de abalar a direita. Desde 1988 o PT está no jogo na maior capital do país, vitorioso ou no segundo turno. Só que das oito disputas, o partido só venceu três: Luíza Erundina (1988), Marta Suplicy (2000) e Fernando Haddad (2012). Em 2016 a tradição se quebrou, com a eleição de João Doria (PSDB) logo primeiro turno, numa derrota esmagadora sobre Haddad.

O PT vai começar a definir as alianças eleitorais para 2020 agora. Antes, precisa montar sua Executiva Nacional, um processo delicado e em curso. Havia a ideia de colocar o senador Jaques Wagner (BA) na direção do partido exatamente para facilitar as pontes com outros grupos de centro-esquerda. Ponderado, o baiano assumiria, nos bastidores, o diálogo que institucionalmente caberia à presidente da sigla, reeleita, a deputada Gleisi Hoffmann. Mas até essa saída negociada para ampliar o campo da esquerda está sub judice, na visão de alguns. O senador não é de nenhuma corrente do PT e cada espaço na direção nacional é “milimetricamente disputado”, define um experiente petista. A palavra final será de Lula. Eis o PT, em sua prisão perpétua.
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Há entrelinhas na questão de ordem levantada pelo mais longevo ministro do Supremo, Celso de Mello, antes que os demais colegas começassem a proclamar seus votos sobre a prisão após condenação em segunda instância. O magistrado pediu a palavra para registrar os dez anos da “investidura” de Dias Toffoli como ministro do STF.

Em uma década, Toffoli chegou à presidência da Corte. Celso de Mello quis balizar o julgamento e deixar pronto o discurso do Supremo em reação ao impiedoso ataque que os ministros sofrem nas redes sociais. A esse exército, que o ministro classificou como “delinquentes que vivem na atmosfera sombria e covarde do mundo digital”, Celso de Mello mandou um recado: o Supremo é “imune a pressões ilegítimas”.

Os colegas do decano não parecem estar tão certos dessa imunidade nos dias atuais, mas ainda assim o magistrado continuou: “Parece essencial reafirmar aos cidadãos de nosso País que esta Corte (...) não transigirá nem renunciará ao desempenho isento e impessoal da jurisdição, fazendo sempre prevalecer os valores fundantes da ordem democrática e prestando incondicional reverência ao primado da Constituição”.

Ao se dirigir a Toffoli, o decano pontuou o papel do STF num momento em que se assiste a “surtos autoritários, inconformismos incompatíveis com os fundamentos legitimadores do Estado de direito”. Ponderações ao presidente da instituição que, para oposicionistas de Bolsonaro, criou muitas interfaces com o Planalto.


Fernando Exman: A erupção do PSL

Líderes se antecipam ao fim das coligações proporcionais

A erupção do PSL escancarou a disputa que ocorreu, no subterrâneo e sob elevadas pressões, entre as duas alas antagônicas existentes no partido do presidente da República. Aliados de Jair Bolsonaro esperam que a tomada de poder na liderança da sigla na Câmara resulte, à semelhança do que ocorre depois das erupções vulcânicas, na produção de material sólido como rocha e um solo fértil a ser explorado nas próximas eleições.

Liderados pelo deputado Luciano Bivar (PE), presidente nacional do PSL, os adversários de Bolsonaro na legenda apontam que o episódio revela a meta do presidente de controlar um partido para construir plataformas políticas de médio e longo prazos. Esse objetivo gestado dentro do Palácio do Planalto, alertam, é influenciar a agenda do Congresso no próximo ano, a sucessão do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), e as articulações para as eleições gerais de 2022. Ninguém esquece que é o presidente da Câmara quem decide o destino de qualquer pedido de impeachment - a gaveta ou acolhimento - e todo presidente precisa de previsibilidade para governar.

Ainda sob a ótica de seus adversários, Bolsonaro e companhia querem a chave do cofre e um controle remoto capaz de ditar os rumos da legenda em todos os Estados a partir do sofá do Palácio da Alvorada. Não apenas por apetite pelo poder, mas por questões práticas, diante das perspectivas de redução do número de partidos num futuro próximo.

Nas eleições municipais do ano que vem, as coligações proporcionais estarão proibidas. Os partidos precisarão lançar o maior número possível de candidatos a prefeito, como forma de impulsionar os candidatos a vereador. Inevitavelmente, os partidos que não se saírem bem serão compelidos a se unir a outras siglas de baixo desempenho por meio de fusões ou incorporações.

Essa reconfiguração será vista novamente nas eleições de 2022, quando aí sim, na visão de dirigentes partidários, o ecossistema político brasileiro começará a ganhar novos contornos. Haverá menos partidos e, portanto, menos postos-chave nas instâncias partidárias à disposição para rateios e acertos políticos. Em outras palavras, menos postos de confiança, verbas e poder de influência. Todos querem estar bem posicionados para as tratativas que virão.

Essa é a visão de quem hoje ainda tem o controle da direção nacional do PSL e, também, dos interlocutores do presidente da República em outros partidos independentes.

Uma eventual aliança ou até uma fusão com o PSL bolsonarista são articulações hoje vistas como potencialmente tóxicas, aos olhos de parlamentares de centro. “O presidente sozinho arruma problemas dentro de qualquer legenda, Bolsonaro com seus filhos representam um problema maior, enquanto Bolsonaro seus filhos e meia bancada do PSL produzem um tsunami de problemas”, ironiza um influente congressista.

Do ponto de vista de Bolsonaro e seus aliados, contudo, o movimento deve ser lido de forma bem distinta. Afinal, o partido do presidente da República precisa servir de exemplo. Por essa mesma razão a transparência nas contas do PSL se tornou um ponto inegociável para Bolsonaro. Aliados do presidente ponderam que ele deve estar à frente de uma sigla capaz de responder aos anseios populares por novas práticas na política. Esse partido pode, inclusive, conter e respeitar várias alas ou tendências. Desde que a liderança de Bolsonaro e o compromisso de transparência sejam respeitados.
Dia após dia, a lava expelida pelo PSL continua a ser derramada e expõe a briga dentro do partido do presidente. É um aspecto aparente de um movimento mais amplo, este ainda silencioso, das placas tectônicas do sistema partidário.

Protestos e distúrbios
Muito antes de o general Eduardo Villas Bôas repetir nas redes sociais seu alerta sobre os riscos à paz social, militares e integrantes do sistema brasileiro de inteligência já vinham monitorando a ocorrência de diversos distúrbios no exterior. Eles não têm relação alguma, como pode-se supor, com as decisões do Supremo Tribunal Federal e o destino político do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O primeiro sinal veio da Ásia. Mais precisamente de Hong Kong, onde manifestantes mascarados desafiaram seguidamente o governo chinês.

Rússia, Iraque, Líbano, Espanha, Haiti, Porto Rico, Venezuela e Chile entraram no radar logo na sequência. Entre as motivações, dependendo da localidade, estão a falta de liberdade política, a corrupção, o desemprego, o aumento de impostos, o fim de subsídios e a alta do preço de combustíveis ou a elevação de tarifas do transporte público.

No Brasil, as manifestações contra a atuação do governo na educação demonstraram força e capilaridade no começo do ano, mas depois rarearam.

Atos em defesa do governo foram organizados, mas não se tornaram frequentes e não acabaram em confusão.

Hoje, o STF retoma o julgamento sobre a prisão após condenação em segunda instância.

A perspectiva de o ex-presidente Lula retornar aos palanques dá calafrios aos adversários e anima seus aliados de diversos partidos e Estados.

No entanto, há outras preocupações de curtíssimo prazo no horizonte de autoridades do Executivo e do Congresso, além de uma eventual reação violenta de setores mais radicais contra a possível mudança no entendimento do STF. Uma delas é a já esperada resposta de corporações do funcionalismo à reforma administrativa, outra é a rejeição das camadas mais pobres a medidas que adiem o crescimento do emprego e da renda. Outra questão latente é a falta de solução em relação à tabela do frete e à situação dos caminhoneiros, esta sim uma categoria capaz de parar o Brasil.


Cristiano Romero: Juros baixos. Chegou a vez dos bancos

A concentração bancária é um dos itens relevantes dos spreads

O cidadão lê nos jornais que a taxa básica de juros (Selic) está hoje em 5,5% ao ano, o menor nível da história, e que pode terminar 2019 abaixo de 5%. E indaga: “Por que os juros que eu pago no cartão de crédito, no cheque especial e no crédito especial (ex-CDC), e mesmo no consignado, são bem mais altos e não caem na mesma velocidade?”. Alguns leitores chegam a se irritar quando nós, jornalistas, damos muito destaque à Selic e nem tanto assim às taxas cobradas pelos bancos no cotidiano. Os leitores estão certos.

A taxa Selic, que serve de referência para toda a economia, é o instrumento usado pelo Banco Central (BC) para levar a inflação à meta definida pelo governo. Se a inflação medida pelo IPCA obe e contamina outros preços, o Comitê de Política Monetária (Copom) do BC, a depender das causas que aumentaram o custo de vida, eleva os juros. No regime de metas, o Copom acompanha de maneira minuciosa a atividade, mas olha principalmente para as expectativas dos agentes econômicos, colhidas semanalmente com mais de cem instituições.

A Selic reflete também o custo do financiamento do Tesouro Nacional, cuja dívida (a nossa dívida) beira o equivalente a 80% do Produto Interno Bruto (PIB). Logo, se a taxa Selic sobe muito porque o Copom necessita de mais aperto monetário para combater a inflação, a despesa do setor público (União, Estados e municípios) com o pagamento de juros explode. Em meados de 2002, para não quebrar o Tesouro, o BC teve que negligenciar temporariamente o controle da inflação. Os economistas chamam isso de “dominância fiscal”.

Quando a Selic cai, como nos últimos três anos, os juros cobrados de empresas e consumidores também recuam. Isso ocorreu em boa medida nesse período, mas as taxas continuam em patamares nada civilizados. Em agosto, o juro médio do capital giro, sem o qual as empresas não saem de lugar, estava em 18,5% ao ano. No chamado “crédito livre” para pessoa jurídica, a taxa média estava em 18,9%.

No caso dos cidadãos, em agosto, a taxa média de juros do crédito consignado (garantido por dedução mensal de parcela do salário) estava em 35% ao ano. Já o consignado dos funcionários públicos custava 20,3% ao ano - prova de que, na Ilha de Vera Cruz, há duas categorias de cidadão: a especial e a ordinária.

E temos, ainda, os juros pornográficos impostos às pessoas físicas: os bancos cobram juro médio hoje de 116,16% ao ano no crédito pessoal, de 319,6% no cartão de crédito e de 306,9% no cheque especial. Certa vez, quando a Selic frequentava a estratosfera (algo em torno de 45% ao ano!), o cartunista Cláudio Paiva, do velho “Jornal do Brasil”, fez uma charge sobre o tema “juros nas alturas”. Na piada, o pessoal da Nasa perde contato com o veículo lunar. Ato contínuo, o chefe da missão na Terra ordena: “Tentem os juros!”.

A diferença entre a Selic e os juros na ponta se chama “spread”, que tem diminuído, mas num ritmo nada comparável ao da Selic. Há um sem-número de razões que explicam a distância amazônica entre os juros de captação dos bancos das taxas cobradas de pessoas físicas e jurídicas. A composição dos “spreads” é um tema tratado desde a gestão de Armínio Fraga à frente do BC, há 20 anos. Houve avanços, mas o fato é que, com Selic alta, inflação saliente e volatilidade do produto, é difícil tocar agenda que reduza o custo do crédito e amplie de forma significativa a sua oferta. Sem crédito a um custo razoável, a economia não crescerá.

A concentração bancária é um dos itens relevantes dos spreads. O Brasil tem cinco “bancões”: Itaú, Bradesco, Banco do Brasil, Santander e Caixa. As instituições alegam que não é bem assim, sustentam que existe competição etc. Os bancos têm razão em alguns aspectos desse debate, que é bastante complexo, mas é inegável a existência de concentração, que aumentou muito desde o lançamento do Plano Real. Uma alegação dos banqueiros privados é verdadeira: BB e Caixa (esta, 100% estatal e, portanto, sempre sujeita a interferência política) são dois bancos públicos que concentram metade dos depósitos do sistema.

No segundo trimestre deste ano, Itaú, Bradesco, BB e Santander tiveram lucro somado de R$ 21, 6 bilhões. Isso é dinheiro em qualquer lugar do planetinha. Cabe a indagação: depois de três anos parada no hangar, a economia brasileira é um avião que taxia, taxia, mas não decola; sendo assim, de onde vem esse lucro se a economia não se move, companhias e cidadãos não tomam empréstimo, se há 13 milhões de desempregados e a indústria não sabe o que é crescer desde meados de 2010?

Um banco tradicional tem cinco pilares que servem como barreira de entrada de outros concorrentes - não se trata de crítica, esta é a realidade:

1) rede de agências, com capilaridade;

2) estrutura fechada: o banco vende dentro do próprio banco seus produtos, como seguros, fundos de investimento etc; esta é uma velha forma de capturar os clientes;

3) sistema de pagamentos, que também faz o cliente honrar suas contas no próprio banco. Trata-se de mais um sistema de captura à revelia da eficiência do banco;

4) estrutura de capital: os bancos têm uma coisa chamada “mature transformation”, que lhes permite multiplicar o capital por meio de prazos distintos das operações;

5) monopólio de dados: os bancos não fornecem aos concorrentes dados dos seus clientes.

O Ministério da Economia e o Banco Central estão trabalhando em medidas para mitigar cada uma dessas barreiras e, assim, ampliar o acesso da população e das pequenas e médias empresas a financiamentos. Não são medidas para prejudicar os bancos, mas, sim, para permitir a entrada de concorrentes no mercado bancário e, especialmente, viabilizar o ingresso das fintechs, que têm surgido a uma velocidade estonteante, explorando justamente as falhas dos bancos no atendimento do público.

Um produto regulamentado no início do ano pelo BC é o “home equity”, muito usado nos EUA. Dados do IBGE mostram que os imóveis residenciais das capitais brasileiras valem hoje R$ 12 trilhões, sendo que o mercado imobiliário movimenta apenas R$ 500 bilhões. O valor dos imóveis é o declarado no Imposto de Renda, logo, a soma é bem maior. Isso revela que 96% de todo o estoque de imóveis está pago. É um sistema muito pouco alavancado, logo, a ideia é usar os imóveis em garantia de empréstimos com juros baixos.


Pedro Cafardo: Concessões dos liberais e o sofrimento de voar

Economia deu discreto sinal de vida, mas ainda faltam estímulos

O governo Bolsonaro já não é tão ultraliberal na economia quanto no seu início. O discurso da equipe econômica não admitia ressalvas à política de austeridade e à sua obcecada disposição de promover antes de tudo a reforma da Previdência, para poupar gastos de R$ 1 trilhão em dez anos.

O Senado titubeia na aprovação final da reforma, em razão de ingerências políticas de governadores. Mesmo assim, o Banco Central avançou em sua política de redução dos juros e baixou a Selic para 5% ao ano, a menor taxa da história. Caixa e Banco do Brasil também reduziram seus juros, numa tentativa de puxar para baixo as taxas de todo o sistema financeiro. Algo parecido foi feito no governo Dilma Rousseff, com resultados negativos.

A Caixa abandonou a ideia de privatização defendida no início do governo e voltou a assumir seu tradicional papel na aplicação de políticas públicas, o que seria uma heresia dez meses atrás. Decidiu cortar os juros do cheque especial de 15% ao mês para 3% ao mês. Liberou, por decisão presidencial, cerca de R$ 42 bilhões do FGTS e do PIS/Pasep para estimular o consumo.

Medidas como essas não combinam muito com ideias ultraliberais. Representam um estímulo à demanda, num reconhecimento tácito de que o pavor da volta da inflação não faz mais sentido e de que o aumento do consumo fará bem à atividade econômica e criará empregos.

Embora essas doses de adrenalina ainda sejam “homeopáticas”, a economia já deu discretos sinais de vida. Índices de atividade do terceiro trimestre revelam que o risco de queda do PIB neste ano está afastado. A confiança de empresas e consumidores melhorou um pouco e a geração de empregos formais aumentou, assim como as concessões de crédito à pessoa física. O PIB do segundo trimestre cresceu 0,4% em relação aos três meses anteriores e outro resultado próximo desse é esperado para o terceiro trimestre.

Por que a economia teve essa ligeira melhora? Será por causa da confiança injetada a partir das reformas, inclusive a trabalhista, no governo Michel Temer? Ou será em razão dos estímulos ao consumo, ainda que tenham sido modestos?

As duas coisas certamente têm algum efeito. No início da atual gestão, o governo jogou todas as fichas na reforma da Previdência, na esperança de que ela salvaria a economia brasileira. A ideia era que a reforma e outras contenções de gastos acabariam com a incerteza sobre a solidez das contas públicas. A redução da incerteza permitiria a queda dos juros e o aumento do crédito na economia. Assim, seria criado um círculo virtuoso com mais demanda, mais emprego, mais investimento e mais crescimento.

Parte desse efeito se deu, porque o governo conseguiu vender à sociedade a ideia de que era urgente a reforma que, mesmo sem sua aprovação final, espalhou raios positivos. Mas está claro que ela não é suficiente para recolocar a economia em crescimento. Perdeu-se muito tempo apostando nessa ideia. Ambos os impulsos - reforma e adrenalina - poderiam ter sido dados ao mesmo tempo. Além das responsabilidades fiscais, governantes têm as sociais.

A volta ao crescimento não é certa. Mais estímulos são necessários, como transferir ao consumidor e às empresas o benefício da queda dos juros e retomar o crédito público. Fundamental seria recolocar o BNDES em seu papel de financiador do desenvolvimento, com primazia à infraestrutura. E um impulso importante poderia vir do aumento real do salário mínimo, junto com uma fórmula para poupar os cofres da Previdência. Por que não?

Pior que nos anos 70
Vamos voar para outro tema. Há dias, a jornalista Daniela Chiaretti escreveu uma excelente coluna sobre “vergonha de voar”. Falava de uma nova tendência, ditada pela Suécia, um movimento que encoraja a pessoa a deixar de viajar de avião para reduzir as emissões de gases-estufa.

É uma nobre proposta, mas pretende-se tratar aqui do “sofrimento de voar”. Viajar de avião, principalmente no Brasil, virou uma sofrida experiência. A despeito dos avanços tecnológicos, voar hoje é muito mais desagradável que há 40/50 anos. As companhias aéreas têm inúmeras explicações para essa piora. A mais importante se refere a custos. Mas nada justifica que as condições de hoje sejam piores que nos anos 1970.

Há 50 anos, em viagens nacionais, as empresas aéreas já pediam aos passageiros que chegassem ao aeroporto duas horas antes do horário do voo. Exatamente como agora, mesmo com o check-in antecipado, pela internet. Isso, naturalmente, agiliza o embarque, certo? Errado. Falta despachar a mala e isso muda tudo. O ilustre passageiro vai esperar mais uns 40 minutos para se livrar dela.

As companhias inventaram a fila única para o despacho das bagagens, também para acelerar o processo. Mas a fila virou um tormento cômico. O passageiro que vai embarcar duas horas mais tarde pode estar à frente daquele que decolará em uma hora. Então, um funcionário estridente se esforça para pinçá-lo da fila gritando o nome dele. Ou ele é surdo, ou ainda não chegou à fila única ou está lutando no check-in eletrônico. E não aparece. O funcionário chama então pelo voo: “Passageiros para Manaus!”. “Aqui, aqui!”, grita um senhor de gravata, que logo é retirado da fila e passa direto para o despacho.

O capítulo das malas não termina aí. As novas normas que limitam o peso das bagagens complicaram ainda mais a operação. Quando o limite de peso era maior, a maioria das pessoas despachava quase tudo na mala e ia para o avião com uma mochila ou uma bolsa. Agora, não. Com o despacho limitado a uma mala de 23 quilos, muita coisa foi transferida para a bagagem de mão, quase sempre maletas de até 55 cm de altura por 20 cm de profundidade. Como os bagageiros da cabine são pequenos para tantas maletas, instala-se a confusão quando os passageiros chegam a seus lugares e, antes de se sentar, tentam colocar os volume nos disputados e altos bagageiros. Quem chega por último não encontra lugar.

Enfim, sentado comodamente em sua poltrona, o passageiro espera a decolagem. Comodamente? Poltrona? Quase nunca é assim. Se o cidadão é um pouco mais alto do que a média do brasileiro, vai sofrer. Eventualmente, como os demais, vai passar fome. É o progresso.


Luiz Carlos Mendonça de Barros: Por que acredito na recuperação cíclica

Recuperação do emprego e expansão vigorosa do crédito bancário serão fatores de aceleração da economia em 2020

Vou usar como imagem na coluna deste mês um filme menor da obra de Federico Fellini, “E La Nave Va”. Seu argumento é o enterro, no mar Adriático, ao largo de uma pequena ilha em que nasceu, de uma famosa diva da ópera italiana às vésperas do início da Primeira Guerra Mundial. É uma obra cômica que conta a vida, a bordo de um navio luxuoso, de uma trupe de artistas seguindo para um destino que já estava traçado em função de acontecimentos fora de seu controle.

O objetivo de Fellini foi o de mostrar como a vida se desenrola normalmente mesmo quando um acontecimento dramático - mas previsto - se aproxima de seu clímax.

A narrativa de “E La Nave Va” é uma imagem perfeita do drama vivido por nós brasileiros desde o momento em que Dilma Rousseff, na busca desesperada de sua reeleição em 2014, ordenou a sua equipe econômica que agisse para manter por mais tempo os bons ventos da economia brasileira. Indo na contramão do que pedia o ciclo econômico à época, provocou rompimento de uma bolha de crédito e gasto público que havia se formado ao final do mandato de Lula.

A partir deste erro primário, a dinâmica natural da economia - como no filme “E la Nave Va” - tomou as rédeas dos acontecimentos gerando um processo político complexo e que levou a presidente ao impeachment e o governo do PT à lona com a recessão terrível que se seguiu.

Vivemos agora uma outra dinâmica na economia e que também se assemelha ao destino dos passageiros da romântica nave criada por Fellini. Sob os efeitos da mudança em nosso ciclo econômico, após quatro anos de correções em mercados importantes do tecido econômico e de uma gestão macro adequada a partir de 2016 - com Meirelles e agora com Paulo Guedes - as forças do metabolismo econômico estão criando as condições naturais para uma recuperação cíclica. Certamente este mecanismo automático de volta do crescimento está sendo possível pelo encaminhamento da reforma da Previdência que evitou uma catástrofe fiscal com força suficiente para matar a recuperação cíclica ainda incipiente.

Mas este entendimento, de que a recuperação cíclica em andamento tem hoje força suficiente para vencer limitações fortíssimas que existem ainda na economia, é minoritário. Entre estas restrições, a maior delas é o orçamento sufocado por uma estrutura de despesas criada pela Constituição de 1988 - e pelas leis ordinárias que se seguiram - que não permite uma gestão eficiente por parte do governo federal e de Estados e municípios, além de pressioná-los por um endividamento crescente.

Além da questão orçamentária, um mercado de trabalho muito fraco com alto desemprego e informalidade, e uma indústria sufocada por uma capacidade ociosa elevadíssima - o que faz com que o crescimento do investimento seja muito difícil de realizar no curto prazo - são citados como empecilhos insuperáveis para que a recuperação cíclica se consolide. Finalmente, o sentimento de que a agenda de reformas necessárias para a construção de uma economia mais eficiente está paralisada no Congresso pela falta de liderança do presidente da República compõem o quadro de pessimismo em relação ao futuro próximo.

Talvez tomados por estes problemas, que são reais e limitadores da força da recuperação cíclica, os mais pessimistas não têm dado importância a outras mudanças que estão ocorrendo a partir de 2017. A primeira foi a reforma trabalhista que já vem produzindo frutos importantes na forma como funciona a Justiça do Trabalho e na força coercitiva dos sindicatos, reduzindo os riscos e custos dos empresários. Além disto, nunca estivemos tão próximos da aprovação pelo Congresso da criação de um Banco Central independente, sonho de consumo de várias gerações de economistas.

Um segundo efeito importante tem sido o fato de que são mais de quatro anos de uma gestão orçamentária competente e sem maiores desvios em relação ao plano de voo traçado. Por exemplo, não me lembro de um secretário do Tesouro como o atual, tão seguro de seus diagnósticos e da forma como devem ser enfrentadas as questões orçamentárias. Neste mesmo sentido deixamos para trás mais de uma década de predomínio de um Estado dominante na economia e um certo sentimento contrário à inciativa privada em áreas importantes da vida do cidadão.

Prova desta mudança é a proximidade da aprovação pelo Congresso das alterações da legislação dos serviços de saneamento, abrindo espaço para a atividade privada. Aliás, o índice de serviços de água e principalmente saneamento básico é uma das maiores vergonhas nacionais.

Finalmente, outras mudanças recentes na dinâmica da inflação mostram a oportunidade que temos hoje para trazer a estrutura a termo dos juros para um paradigma de primeiro mundo emergente. Também aqui uma menção sobre a eficiência como o Banco Central, através do Copom, aproveitou as condições criadas pela combinação da recessão com um safra agrícola recorde nos últimos três anos para consolidar esta nova situação e criar uma força poderosa para o fortalecimento da recuperação cíclica.

Os números recentes do Caged para setembro mostram que a recuperação ainda frágil já chegou ao mercado de trabalho. E esta é uma revelação importante, pois junto com a expansão vigorosa do crédito bancário às pessoas físicas nos últimos meses ela será o fator de aceleração em 2020.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros é engenheiro, economista e presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.


Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli Cardoso: Crescimento é (quase) tudo

É preciso conciliar a redução da desigualdade com a aceleração do crescimento

Neste momento em que a distribuição de renda se tornou o principal tema do debate político na maioria dos países, é preciso uma reflexão racional sobre as alternativas para se enfrentar o problema, sob risco de se prejudicar justamente os mais pobres.

A qualidade de vida no mundo hoje é muito superior do que há 40 anos, bem como em qualquer período da história. Indicadores de pobreza, saúde e educação estão muito acima dos observados no passado. Isso se deve ao crescimento econômico experimentado há décadas por vários países, sobretudo alguns muito populosos e antes muito pobres, como China e Índia. Quando se almeja reduzir sustentavelmente a pobreza, não há substituto melhor para o crescimento.

Em 1990 havia 1,9 bilhão de pessoas no mundo vivendo na extrema pobreza - 34% da população mundial. Hoje esse número caiu para 650 milhões - 10% da população. Em 1820, mais de 90% da humanidade vivia na pobreza, hoje o número está em 15%. No começo dos anos 1980, 80% dos chineses eram pobres; hoje 10%, e menos de 1% vivem na extrema pobreza. Em países como Indonésia, Índia, Gana e Etiópia, a pobreza extrema caiu à metade no mesmo período. A expectativa de vida ao nascer mundial é hoje de 72 anos, contra 46 anos em 1950. Isto se deve sobretudo à queda da mortalidade infantil, ao acesso a melhores tratamentos de saúde e à redução da taxa de natalidade.

Em quatro décadas, o produto per capita chinês aumentou dez vezes, o indiano três, e nos demais países citados, entre duas e três vezes. Madagascar e Guiné-Bissau, que em 1990 tinham PIB per capita próximo do chinês, não cresceram nos últimos 30 anos, sendo seu produto per capita hoje de um décimo do chinês. Não surpreende que a proporção de pobres nesses países não tenha variado no período. Exemplos semelhantes mostram ser o crescimento o principal redutor da pobreza.

Isto não significa que não haja problemas. O crescimento chinês veio com aumento da desigualdade. Em 1980, as parcelas da renda nacional apropriadas pelos 10% mais ricos e os 50% mais pobres eram basicamente iguais: 25%. Hoje o primeiro grupo se apropria de 40% da renda nacional e os 50% mais pobres de 15%. Esse padrão se repete em muitos países de crescimento rápido. Nas economias desenvolvidas, o fenômeno não foi uniforme, tendo sido observado nos EUA, Reino Unido, Austrália, mas não no Japão e Europa.

O aumento da desigualdade durante períodos de rápido crescimento é um fenômeno comum a muitos países, decorrente da mudança no perfil de profissional demandado pelas empresas. Nos países pobres, a maioria da população tem baixa escolarização e trabalha na agricultura, enquanto uma minoria de trabalhadores qualificados encontra-se na indústria e nos serviços especializados. Uma vez iniciada a primeira fase de crescimento acelerado, a expansão da indústria eleva a demanda por trabalhadores qualificados, sem que no curto prazo a oferta possa crescer ao mesmo ritmo. O resultado é uma ampliação da diferença salarial entre os trabalhadores qualificados e os de baixa escolarização.

A população que migra do campo para as cidades passa a receber salários superiores. Embora a redução da oferta de trabalho na agricultura tenda a elevar os salários, isto se dá em menor intensidade do que nos setores mais modernos. O crescimento provoca o aumento da remuneração de (quase) todas as parcelas da população, mas de forma desigual. Fenômeno análogo ocorre numa segunda fase do processo de crescimento, quando os serviços especializados ganham predominância sobre a indústria. Políticas de transferência de renda para os grupos desfavorecidos podem minorar a desigualdade, mas esta só cai estruturalmente com a ampliação da educação, o que requer tempo e políticas bem focadas.

No caso do Brasil, o país cresceu aceleradamente até 1980, mas caiu na armadilha da renda média a partir de então. A Constituição de 1988 fez uma clara opção pela redução da desigualdade em detrimento do crescimento, ao exigir uma alta carga tributária para custear programas sociais. O PIB per capita brasileiro cresceu somente 36% de 1990 até hoje. Mas, devido ao fim da inflação, políticas redistributivas e ampliação da educação, a extrema pobreza caiu de 21,6% da população em 1990 para 3,4% em 2017. Esta é a metade cheia do copo. Se o país tivesse crescido a taxas razoáveis desde 1980, haveria hoje muito menos pobreza e todos os indicadores sociais estariam ainda melhores.

O Brasil continua a ser um dos países mais desiguais do mundo, mas a pobreza - o que mais interessa para o bem-estar - caiu significativamente nas últimas décadas. A partir de agora, é preciso conciliar a redução da desigualdade com a aceleração do crescimento. Não há qualquer incompatibilidade entre os dois.

Sobretudo num país onde o Estado promove a desigualdade ao pagar salários muito superiores aos praticados no setor privado, ao conceder isenções tributárias para setores escolhidos, ao prover ensino superior gratuito a quem pode pagar, para citar apenas alguns exemplos. Há muito o que pode ser feito para se reduzir desigualdades, sem sacrifício do crescimento.

Deve-se intensificar políticas redistributivas bem focadas, como o Bolsa Família. Entretanto, políticas populistas que estão em voga entre a esquerda europeia e americana, com algum eco por aqui - tributação confiscatória sobre renda do capital ou qualquer renda mais alta, e impostos sobre ativos, por exemplo - são contraproducentes, pois inibem a poupança, o investimento e o trabalho, prejudicando o crescimento. Troca-se um ganho de curto prazo por uma perda permanente de longo prazo. Indo nessa direção o país se tornaria menos desigual, porém mais pobre. Seria a opção pela Coreia do Norte ao invés da China.

*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento

**Renato Fragelli Cardoso é professor da EPGE-FGV


Ribamar Oliveira: A euforia do governo com os juros baixos

Custo da dívida pública será fortemente reduzido

Os integrantes da equipe econômica do governo estão eufóricos com o atual ciclo de queda de juros no Brasil. “Se, há três anos, alguém tivesse me dito que hoje o Tesouro estaria vendendo títulos com juros reais de 2,5% ao ano, eu teria falado que ele estava delirando”, observou um graduado assessor do ministro da Economia, Paulo Guedes, em conversa com o Valor. “Em dois ou três anos, com esse cenário benigno de juros, o perfil da dívida pública vai mudar muito”, disse.

Em outubro de 2016, a taxa básica de juros (Selic) estava em 14% ao ano. Hoje, está em 5,5% ao ano, com todo o mercado acreditando que ela cairá para 4,5% até o fim deste ano e podendo chegar a 4% em 2020. Na mesma data, o Tesouro emitia títulos corrigidos pelo IPCA (NTNB principal) com prazo de quatro anos e taxa de juro real de 5,95% ao ano. Em janeiro daquele ano, os juros reais do mesmo papel chegaram a 7,27% ao ano. Ontem, a NTNB com prazo de cinco anos estava pagando juros reais de 2,41%.

Os últimos dados do Tesouro mostram que 53,2% da dívida pública mobiliária federal vence nos próximos três anos. São aqueles papéis emitidos, em grande medida, durante o auge da crise econômica brasileira (2015/2016), com taxas de juros elevadíssimas. Eles serão substituídos por papéis que terão taxas de juros reais bem mais baixas e, possivelmente, com prazo médio de vencimento maior.

O atual movimento de queda dos juros deve alterar consideravelmente a dinâmica do endividamento público, permitindo que o esforço fiscal necessário para estabilizar a relação da dívida bruta com o Produto Interno Bruto (PIB) seja menor. Claro que, para isso, é preciso que o governo continue reduzindo as suas despesas para obter um resultado primário positivo.

As questões que estão sendo discutidas no governo e no mercado, neste momento, são: até que patamar o juro real vai cair? Por quanto tempo ficará tão baixo? E, quando fechar o hiato do produto (diferença entre o PIB potencial e o observado), qual será o juro real neutro, ou seja, a taxa que mantém um ritmo de crescimento que não gera inflação? Alguns bancos trabalham com uma Selic de 4% no fim do próximo ano e com inflação de 3,7%. Ou seja, com juro real de 0,3%, muito próximo de zero.

Como explicar essa queda contínua da taxa real de juros em um cenário fiscal dramático, com elevados déficits primários sendo registrados nas contas públicas desde 2014? A avaliação de um integrante da área econômica é que o juro real está caindo no Brasil por uma péssima razão. Por causa da forte recessão registrada no país e por uma recuperação anêmica da economia, que estão mantendo por um prazo muito longo um alto índice de desemprego e de capacidade ociosa da indústria. Essa anemia produtiva explica a baixa inflação que, neste ano, ficará muito próxima do piso da meta perseguida pelo BC.

Há também uma razão externa. A economia mundial dá sinais preocupantes de desaquecimento, em meio a uma guerra comercial entre os Estados Unidos e a China. Em consequência, as taxas de juros reais estão baixas em todos os lugares, sendo que, em alguns países desenvolvidos, estão negativas. “Neste momento, há mais de US$ 15 trilhões em busca de alguma rentabilidade”, observou a fonte.

Já há uma discussão sobre a possibilidade de juros negativos no Brasil. Se a taxa real ficar muito baixa, a equipe econômica não vê dificuldade para a rolagem da dívida pública, com o argumento de que a queda de retorno nas aplicações será generalizada, atingindo também os títulos privados. Desta forma, o investidor terá que correr mais riscos ou se contentar com uma menor rentabilidade de suas aplicações, pois não haverá alternativa.

O cenário de juro real muito baixo pode durar, projeta a fonte, cerca de dois anos - prazo que parece ser uma unanimidade no mercado. Com um crescimento mais dinâmico da economia, a capacidade ociosa da indústria será reduzida, assim como o desemprego. O aquecimento econômico fará a inflação subir e, em algum momento, o Banco Central voltará a aumentar a Selic. A questão é saber qual será a taxa real neutra que resultará desse movimento. Parece haver um consenso de que ela não voltará ao nível anterior ao atual ciclo de queda.

Em conversa com a jornalista Claudia Safatle, do Valor Econômico, o ministro Paulo Guedes disse que trabalha com uma taxa de juro real neutra abaixo de 2% ao ano. A Instituição Fiscal Independente (IFI), entidade do Senado, estima que ela ficará em torno de 3,5% ao ano. A resposta a esta questão é fundamental para estimar a dinâmica da dívida pública daqui para frente.

Como está ficando claro que, com a queda acentuada dos juros reais, caiu o superávit primário necessário para estabilizar a dívida/PIB, a questão passou a ser definir o ritmo de redução da dívida/PIB. A atual equipe econômica considera que o nível de endividamento de 80% do PIB, como está neste momento, é demasiado elevado.

Para o governo, o endividamento público brasileiro é muito alto na comparação com os outros países em desenvolvimento. O ideal, para a equipe econômica, seria reduzi-lo para algo em torno de 50% ou 60% do PIB, pois, nesse patamar, o governo poderia, em futura crise econômica, executar uma política fiscal expansionista.

Contingenciamento
Surgiu uma dúvida sobre o que a equipe econômica fez no relatório extemporâneo de avaliação de receitas e despesas de outubro, divulgado na segunda-feira. Ela incluiu na programação financeira do Tesouro uma receita de R$ 52,5 bilhões a ser obtida no megaleilão do excedente de petróleo da cessão onerosa, marcado para o próximo dia 6 de novembro, mas não liberou todas as dotações do Executivo que estão contingenciadas. Ainda estão bloqueados cerca de R$ 18 bilhões em despesas do Orçamento deste ano.

Se há receita, se há espaço no teto de gastos e se gastar mais não afetará a meta fiscal, qual é a razão de não executar a programação orçamentária? Principalmente diante da determinação da emenda constitucional 100, que diz que “a administração tem o dever de executar as programações orçamentárias”.