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Fernando Exman: Fórmulas partidárias para romper o dipolo
Construção de alternativas eleitorais é desafio
Partidos de esquerda, de centro e de direita intensificaram os movimentos para tentar romper o dipolo no qual se transformou a política brasileira - um sistema constituído por dois polos semelhantes, mas de sinais opostos, separados por pequena distância.
A atual dinâmica interessa apenas ao presidente Jair Bolsonaro e ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E por eles tem sido incentivada, de forma a reduzir as chances eleitorais de outros concorrentes.
Mas o tempo foi passando e as eleições municipais, aproximando-se. Com isso, partidos de diversas orientações ideológicas que haviam demorado a perceber o quão exíguo estava ficando o espaço de ação resolveram reagir. A soltura de Lula e o início do processo de criação do novo partido do presidente Bolsonaro fizeram com que apertassem o passo. Afinal, a letargia dos adversários só interessava aos dois, que com modos e estilos cada vez mais parecidos, trabalham para consolidar seus respectivos exclusivismos em cada uma das pontas do espectro ideológico.
Ao centro e à direita, a ação hoje se concentra mais no Congresso. Maioria, esses partidos decidiram aceitar de vez o que antes lhes parecia pejorativo: assumiram a figura de um grupo relativamente coeso, influente nos temas econômicos e determinante para o destino de qualquer projeto em tramitação. Com viés mais liberal na economia e conservador nos costumes, essas siglas representam um bloco que faz jus a um apelido grafado no aumentativo pelo seu tamanho e capilaridade nos Estados.
Elas perderam a vergonha, enfim, de se apresentar e atuar de facto como um “Centrão”. E vão criar as condições para manejar o Orçamento, com o objetivo de se fortalecerem em suas bases eleitorais.
“É hora de erguer os dois cotovelos até a altura dos ombros. Forçar para abrir espaço, até a gente conseguir erguer novamente a cabeça”, ilustra um líder desse bloco. “Vamos evitar que sejamos prensados pelos dois lados.”
O Centrão quer deixar para trás uma imagem amorfa para consolidar-se como o principal fiador da estabilidade política, econômica e social do país.
Um exemplo dessa faceta vem sendo a imposição de freios a determinados projetos do governo. Não à reforma da Previdência, a qual não teria sido aprovada sem seu apoio e até entusiasmo. Mas sim ao adiamento da reforma administrativa, prontamente criticada por ser vista como uma nova mordida na estrutura remuneratória do funcionalismo, uma fonte potencial para protestos e passeatas em frente ao Parlamento.
Alvos dos que criticam a política e também da Operação Lava-Jato, também decidiram reduzir o que consideram exagerado no pacote elaborado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro. Tampouco pretendem se sensibilizar com quem quer ver, de imediato, mudanças na legislação para permitir a prisão após condenação em segunda instância.
Muitas siglas já recorreram a mudanças tópicas. Excluíram a palavra “partido” de seus nomes oficiais, embora tenham mantido suas práticas internas intactas. Agora, preparam-se para a reorganização do sistema a ser produzida pela proibição das coligações em eleições proporcionais, na expectativa de que quem estiver mais bem organizado terá mais capacidade de aglutinar as legendas que morrerão pelo caminho.
À esquerda, Psol e PCdoB demonstram a disposição de se manterem alinhados ao PT. Muito provavelmente em razão da expectativa de ver Lula e demais petistas apoiando seus candidatos a prefeito no ano que vem, ilusão que outros partidos que já caminharam com o PT não nutrem mais.
PDT e PSB, por exemplo, estão fazendo questão de marcar posição distinta, na busca de uma trilha própria a seguir nas eleições de 2020 e 2022. E pretendem abrir diálogo com alas do Rede e do PV.
A já histórica exclamação “O Lula está preso, babaca!” foi uma pequena - mas eloquente - parte de uma intervenção feita pelo senador Cid Gomes (PDT-CE) num tumultuado evento em favor de Fernando Haddad, há cerca de um ano, no segundo turno das eleições presidenciais. No entanto, já se transformou em um bordão usado com frequência por antipetistas. É de difícil digestão entre militantes do PT, tanto que a libertação do ex-presidente foi logo acompanhada pela disseminação, nas redes sociais, de imagens com os dizeres “O Lula está livre, babaca!”.
Ambos os episódios evidenciam o abismo existente, hoje, entre alguns líderes do PDT e do PT. Com o PSB, por outro lado, as conversas avançam, inclusive, na direção de uma união que não se limite às eleições municipais do ano que vem.
E o PSB vai além. Nesta semana, a sigla destrava um processo de “autorreforma”. O partido vai reformular seu programa, de 1947. Reafirmará os seus valores históricos, ao mesmo tempo em que buscará diferenciar-se entre as inúmeras letrinhas que hoje formam o sistema partidário brasileiro, principalmente entre outras siglas de esquerda.
O PSB, por exemplo, fará questão de se reafirmar como um “partido” e manter essa designação em seu nome oficial. Não abre mão da bandeira do socialismo, de uma mensagem da defesa da igualdade com liberdade.
A legenda faz questão de destacar que rompeu com o Foro de São Paulo e quer distância do governo de Nicolás Maduro, da Venezuela. Busca identificar-se com as esquerdas que atuam em Portugal, no Uruguai, na Espanha e no Chile. E reconhece que a corrupção é um problema real no Brasil. Pretende colocar-se como instrumento de pautas que atendam os interesses dos cidadãos em vez de agendas empresariais. Esse processo não visa apenas mudanças cosméticas.
Nessa movimentação em curso, há quem busque os caminhos de sempre. Outros veem a atual conjuntura como uma guerra não-convencional. Estes argumentam que buscar as mesmas respostas para atacar os problemas de sempre só piorará a situação. Em ambos os casos, a solução tem passado pelo fortalecimento dos partidos como instituições e da Política com “pê” maiúsculo.
Andrea Jubé: Graciliano, Bolsonaro e o comunismo
O comunismo na ficção e na eleição em 85 anos
O lançamento do Aliança pelo Brasil (APB) reflete a atualidade de um dos romances seminais da literatura brasileira, “S. Bernardo”. A trajetória do homem simples que se tornou um rico produtor rural, egocêntrico e autoritário, completou 85 anos.
A afinidade entre o partido do presidente Jair Bolsonaro e a trama de Graciliano Ramos (1892-1953) converge na imaginária ameaça comunista, no cenário de grave crise econômica, instituições fragilizadas e exaltação da fé religiosa.
O Aliança pratica a defesa do “livre mercado, da propriedade privada e do trabalho, e repudia o socialismo e o comunismo”, anunciou a advogada Karina Kufa no ato de fundação da sigla há cinco dias. Instantaneamente, ressoaram as palavras de ordem do bolsonarismo: “A nossa bandeira jamais será vermelha”.
Impressiona que os preceitos de um partido do século XXI - quando a China comunista se tornou referência capitalista no mundo - remontem ao Brasil do início do século XX. Na revolução de 1930, uma aliança com os militares, e não com os comunistas, alçou Getúlio Vargas (1882-1954) ao poder.
As premissas do Aliança convidam a uma angustiante viagem ao passado. É lamentável que a economia recessiva, na esteira da crise de 1929, dialogue com o cenário econômico atual. No início dos anos 30, o país amargava os efeitos da falência da cafeicultura, no ocaso da política do café-com-leite, enquanto o ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, renegociava a dívida externa e o câmbio despencava.
Passados 90 anos, a economia também resfolega, sofrendo as consequências de uma instabilidade política que remonta às eleições de 2014, agravada pelo impeachment de 2016 e o aprofundamento de uma polarização que não dá sinais de esgotamento.
Assim como em 1930, o desânimo e a insatisfação contaminam os brasileiros. O contraste é que se no Brasil dos anos 30 os focos revolucionários culminaram na insurreição paulista de 32, hoje os brasileiros parecem conformados.
“S. Bernardo” foi publicado em 1934, mas Graciliano Ramos começou a esboçá-lo dois anos antes, em plena revolução constitucionalista, quando Getúlio ainda não havia se consolidado no cargo. Ambientado na área rural de Alagoas, terra natal do autor, os personagens receiam que o agravamento da turbulência abra caminho para o comunismo.
Esse temor é tratado no livro com fina ironia, já que o velho Graça era comunista e o sistema nunca chegou perto de ser implantado no país. O escritor só viria a se filiar ao PCB em 1945, mas viu-se perseguido e preso pela política getulista um ano antes do golpe de 1937.
Com a razão comprometida pelo ciúme obsessivo, o fazendeiro Paulo Honório, proprietário de S. Bernardo - um dos personagens mais irascíveis e cruéis da literatura brasileira - enxerga a ameaça comunista ao seu lado na cama.
“Sim, senhor, conluiada com o [professor] Padilha e tentando afastar os empregados sérios do bom caminho. Sim, senhor, comunista! Eu construindo, ela desmanchando!”, praguejou sobre a esposa Madalena.
Numa passagem do romance, ele se queixa de ter gastado uma pequena fortuna com a compra de material escolar para os alunos da escola que inaugurou visando a obter benesses do Estado. “O governador se contentaria se a escola produzisse alguns indivíduos capazes de tirar o título de eleitor”, calculou.
Mas a esposa o pressionava para reformar o prédio, comprar um globo terrestre, cadernos para os alunos - “despesa supérflua” - e a melhorar a qualidade de vida do professor, Luís Padilha. Quando é demitido por conspiração, Padilha culpa Madalena. “Seu Paulo embirra com o socialismo. É melhor a senhora [Madalena] deixar de novidade, essas conversas [sobre justiça social] não servem”, lamentou.
Outra premissa do Aliança pelo Brasil é de que o partido “não pratica a exclusão de Deus da vida” e “prega a moral judaico cristã”. A relação estreita entre política e religião marca a legenda e é pano de fundo do romance.
Um dos personagens principais é o padre Silvério, influente na cidade e com nuances socialistas, mas que refreia seus instintos políticos.
Durante um jantar na casa de Paulo Honório e Madalena, o padre Silvestre defendeu a necessidade de “reformas”, mas não o comunismo, porque este gera “miséria, a desorganização da sociedade, a fome”.
O vigário enfatiza que o comunismo no Brasil seria “lorota” e não pegaria porque o povo brasileiro “tem religião, é católico”. Convicto de que estaria sendo traído - o que nunca ocorreu - o fazendeiro vocifera contra a esposa, mais afeita à literatura, às artes em geral e à política que à leitura da Bíblia: “comunista, sem religião”, vociferou em outro trecho.
O repúdio ao comunismo e ao socialismo - “ideologias nefastas”, conforme o documento do Aliança - é relativizado na prática se o fundador do Aliança ocupa a presidência da República.
Há um mês, Bolsonaro foi recepcionado pelas três principais lideranças da China em plena comemoração dos 70 anos da Revolução Comunista.
A China governada pelo Partido Comunista é o principal parceiro comercial do Brasil: o superávit brasileiro é de US$ 29 bilhões. O Brasil é o quarto principal destino dos investimentos chineses no mundo. São 45 anos de relação bilateral, inauguradas em 1974 pelo presidente Ernesto Geisel, em pleno regime militar brasileiro. Ainda durante a campanha, Bolsonaro se indispôs com os chineses, mas o pragmatismo prevaleceu depois da posse. A retórica ideológica, no entanto, persiste no plano eleitoral.
Na China
Por falar em “comunismo”, ontem a governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra, do PT, desembarcou em Pequim a convite do Bank of China para abrir o seminário “Um Cinturão, Uma Rota”, direcionado aos países de língua portuguesa. Ela é a única governadora brasileira no evento. Em outubro, ela selou contrato de exportação de melão potiguar para a China - os primeiros contêineres saem em fevereiro do ano que vem. O acerto deve gerar 10 mil novas vagas no setor em três anos.
Andrea Jubé: Agenda social aproxima Maia do ‘centro progressista’
Presidente da Câmara encampa pacote elaborado por parlamentares ligados a movimentos
Fiador da agenda de reformas e do ajuste fiscal, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), investe agora em uma pauta frequentemente associada à esquerda - o combate à pobreza e à desigualdade social. O recente lançamento da agenda social de desenvolvimento, na prática, o aproxima do centro, ao mesmo tempo em que faz aceno relevante aos parlamentares estreantes, egressos dos movimentos de renovação política.
O pacote de propostas para a área social também afina o diálogo de Maia com o apresentador Luciano Huck, com quem o integrante do DEM se encontrou algumas vezes, e que tem sustentado em palestras pelo país que o ajuste fiscal, necessário ao desenvolvimento econômico, não pode vir dissociado do combate à desigualdade social.
“Cresceu entre congressistas a compreensão muito evidente de que só fazer reformas de cunho fiscal não resolve o problema do Brasil”, disse o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) ao Valor. Ele reconhece que o pacote é a primeira iniciativa legislativa de expressão, com efetivo potencial de aprovação no plenário, do grupo de parlamentares eleitos a partir dos movimentos de renovação política, apoiados por Luciano Huck.
O movimento de Maia rumo a um “centro progressista” ocorre a um ano das eleições e na metade do segundo mandato de presidente da Casa, com chances remotas de reeleição. A agenda social tem apelo eleitoral maior que a agenda econômica, baseada principalmente nas reformas da Previdência e do sistema tributário.
Há uma preocupação da cúpula do DEM com a expansão eleitoral da sigla, que perderá protagonismo quando encerrarem os mandatos de Maia e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), no início de 2021. Não há ambiente político para eventual emenda constitucional autorizando a reeleição dos dirigentes das Casas no meio da legislatura.
Sem o comando da Câmara, Maia tem planos de continuar viajando pelo país para viabilizar uma candidatura presidencial - com a qual ele flertou em 2018 - ou uma vaga de vice. Projeto amparado em sua interlocução com o mercado e no eventual legado da agenda social. Até lá, Maia tem mantido um canal de diálogo aberto com o PSDB do governador João Doria, com o PDT do presidenciável Ciro Gomes e até mesmo com o PSL de Luciano Bivar.
Em abril, a deputada Tabata Amaral (PDT-SP) alertou Maia que o governo do presidente Jair Bolsonaro era omisso na área social e, diante dessa lacuna, caberia ao Congresso protagonizar o debate sobre o combate à desigualdade social numa realidade de 15 milhões de novos pobres e miseráveis a partir de 2014 - número equivalente a três Dinamarcas -, 12,5 milhões de desempregados e a estratégia do governo de taxar os desempregados para gerar novas vagas de trabalho.
Então Maia encomendou a Tabata propostas para a área social. O presidente da Câmara liberou consultores de seu gabinete para atuar junto com os assessores do gabinete compartilhado dos parlamentares do movimento Acredito, grupo formado por Tabata, pelo senador Alessandro Vieira e pelo deputado Felipe Rigoni (PSB-ES).
Após quase oito meses de trabalho, o resultado é um pacote de projetos formado por uma proposta de emenda constitucional (PEC) que transforma o programa Bolsa Família em política de Estado e pelo menos sete projetos de lei. O primeiro PL, protocolado na semana passada, inclui 3,2 milhões de crianças na primeira infância ao Bolsa Família - é o único com impacto fiscal, estimado em R$ 9 bilhões.
A pauta tem sintonia fina com o discurso político de Huck e de seu conselheiro econômico, o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga. Ambos sustentam que não existe conflito entre crescimento econômico, distribuição de renda e proteção social.
Na incursão por Brasília há duas semanas, antes da finalização dos projetos, Huck se reuniu, separadamente, com Rodrigo Maia, e também com os parlamentares do Acredito: Tabata, Rigoni e Vieira.
Questionado se Huck colaborou no projeto, Alessandro Vieira diz que foram discutidas apenas “superficialmente” com o apresentador, que desponta como presidenciável em 2022.
Por meio de sua assessoria, Huck disse que vê “com excelentes olhos o Congresso se movimentando no sentido de entender que não adianta fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”. “Ou ele cresce alimentando a todos ou teremos a perpetuação da pobreza. E o Brasil irá mergulhar definitivamente no abismo social que nos divide”, disse o apresentador ao Valor. “De nada adianta um Estado eficiente se ele não for afetivo. Está claro que se não cuidarmos das nossas contas, não cuidaremos das nossas pessoas. A nossa responsabilidade é do tamanho dos nossos privilégios”, acrescentou.
Alessandro Vieira relata que antes do lançamento da agenda social, o trio fez reuniões com lideranças do PP, DEM, PSC, MDB, que se mostraram receptivos à ideia. Cada projeto será discutido em uma comissão especial a ser criada por Rodrigo Maia, e a meta é aprovar a maioria das propostas no primeiro trimestre de 2020.
Nesta semana será protocolado o segundo lote de projetos da agenda social. Um deles contempla alterações na Lei do Jovem Aprendiz: o tempo que o aluno passa dentro da empresa, trabalhando, passaria a contar como crédito no ensino médio; e o limite de dois anos no contrato do jovem aprendiz deixaria de existir.
Um dos projetos em gestação, dentro do pilar de políticas para boa governança, propõe uma Lei de Responsabilidade Social, inspirada na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) de 2000, um dos marcos da gestão de Fernando Henrique Cardoso. A LRF impôs o controle dos gastos da União, Estados, Distrito Federal e municípios, condicionando-os às respectivas capacidades de arrecadação fiscal.
Ribamar Oliveira: Receita atípica bate recorde neste ano
Os leilões de petróleo salvaram o governo mais uma vez
A União vai registrar, neste ano, um novo recorde. A receita atípica ou não recorrente (aquela que não se repete nos anos seguintes) será a maior da história e ficará próxima de R$ 100 bilhões. A arrecadação obtida com os leilões de petróleo, principalmente, salvou o governo mais uma vez, compensando com sobras a queda da receita com tributos em relação ao que estava previsto no Orçamento.
Mesmo com toda a arrecadação extra, o governo central (Tesouro, Previdência e Banco Central) deverá fechar um ano com déficit primário pouco abaixo de R$ 80 bilhões, de acordo com previsão do ministro da Economia, Paulo Guedes. Isso corresponde a mais de 1% do Produto Interno Bruto (PIB), o que é um “buraco” considerável, mostrando que um superávit primário, mesmo que pequeno, ainda está longe de ser obtido.
A receita atípica recorde ajudou o governo não só a melhorar o resultado primário deste ano, como também permitiu descontingenciamento das dotações orçamentárias, que estava sufocando os ministérios. Neste ano, o corte de verbas foi provocado pela frustração das receitas tributárias, e não pelo teto de gastos. Assim, as receitas não recorrentes ajudaram o governo a sair do aperto.
Somente a receita que será obtida pela União com as concessões atingirá R$ 92,6 bilhões neste ano, de acordo com o relatório extemporâneo de avaliação de receitas e despesas de novembro, divulgado na semana passada. Deste total, R$ 83,9 bilhões foram obtidos com os leilões do excedente de petróleo dos campos da cessão onerosa, com a 16ª rodada de concessões e com a 6ª rodada de partilha de produção. Mesmo com a frustração que houve com o leilão da cessão onerosa.
É importante observar que este será o maior valor anual obtido com a concessão de serviço público já registrado pelo Tesouro Nacional. Em 2014, por exemplo, a receita com este item foi de apenas R$ 7,9 bilhões. No ano passado, ela ficou em R$ 21,9 bilhões. Se o valor de R$ 92,6 bilhões previsto para este ano se confirmar, será um pouco mais de quatro vezes a cifra obtida em 2018.
O resultado primário só não será melhor porque o governo federal vai usar parte do que arrecadou com o leilão do excedente de petróleo da cessão onerosa para compensar a Petrobras, no âmbito do acordo que fez com a empresa em 2010. Além disso, decidiu destinar 33% do valor líquido obtido (depois de descontado o pagamento à Petrobras) para Estados e municípios. A União ficará com R$ 23,7 bilhões.
Houve receita atípica expressiva também nos tributos federais. De janeiro a setembro (o dado de outubro será divulgado nos próximos dias), a Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB) registrou pagamentos atípicos de Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) de R$ 13 bilhões.
Em fevereiro, os recolhimentos extraordinários por diversas empresas totalizaram R$ 4,6 bilhões, de acordo com dados da SRFB. Em julho, o valor foi de R$ 3,2 bilhões e de R$ 5,2 bilhões em agosto. A SRF não revelou as razões desses pagamentos atípicos.
O fato é que, sem a receita atípica do IRPJ/CSLL, provavelmente não haveria crescimento real da arrecadação dos tributos administrados pela Receita Federal neste ano ou ele seria muito pequeno. Considerando a receita dos programas de regularização tributária e os parcelamentos de dívida, a receita não recorrente neste ano foi R$ 4 bilhões superior à registrada em 2018 até agora.
No montante das receitas não recorrentes, não foi considerada a arrecadação com dividendos das empresas estatais federais repassados ao Tesouro. Neste ano, o governo mudou a política de dividendos dos bancos estatais (Caixa e BNDES), aumentando o percentual do lucro a ser distribuído e a periodicidade. Com isso, a previsão da receita com dividendos passou de R$ 7,5 bilhões na lei orçamentária para R$ 16 bilhões no relatório de avaliação de receita e despesas do quarto bimestre. Em 2018, a receita foi de R$ 7,7 bilhões.
O governo conseguiu, até agora, segurar o crescimento das despesas da União. De janeiro a setembro (último dado disponível), a despesa primária total (não considera o pagamento dos juros das dívidas) caiu 1,1%, em termos reais, na comparação com o mesmo período de 2018, mesmo com o aumento real dos gastos com benefícios previdenciários, com benefícios de prestação continuada e com pessoal. Infelizmente, os investimentos continuaram sendo cortados.
Por causa do elevado montante da receita atípica, o resultado primário deste ano não é um bom indicador para avaliar a situação fiscal da União.
Orçamento 2020
A discussão no Congresso Nacional em torno do Orçamento de 2020 está paralisada à espera do envio, pelo governo, de uma mensagem modificativa da proposta inicial. O Ministério da Economia chegou a informar que ela seria divulgada na segunda-feira, mas o anúncio foi cancelado sem maiores explicações. “Sem a mensagem, não consigo fazer o meu parecer”, disse ao Valor o relator da proposta, deputado Domingos Neto (PSD-CE). Não há prazo para o envio e o Congresso deverá encerrar os seus trabalhos até o dia 20 de dezembro.
Maria Cristina Fernandes: Instinto de sobrevivência
Suscitado pelos instintos mais primitivos, o extremismo bolsonarista só poderá ser moderado pela chance de sobrevivência na política
Em agosto, depois das críticas do ex-presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Ricardo Galvão, aos dados preliminares de que as queimadas na Amazônia haviam aumentado, o presidente da República demitiu o cientista, culpou organizações não- governamentais pelo fogo na mata e acusou governadores de conivência com o incêndio das florestas.
Três meses depois, Jair Bolsonaro, ao ser questionado pelos dados do mesmo Inpe que indicam desmatamento apontou o dedo para a gestão da ex-ministra Marina Silva no Meio Ambiente, quando se registrou um dado um terço superior ao desmatamento atual, disse que se trata de uma questão “cultural” e sugeriu que identificação da titularidade das propriedades nas florestas facilitará a responsabilização de seus autores. Ainda não está claro como, além de beneficiar grileiros, a medida pode vir a proteger o meio ambiente, mas o gesto traz menos danos à imagem do Brasil no exterior do que a demissão do presidente do Inpe.
O dinheiro e a política baixaram a bola e o tom do discurso e da ação governamental. Não é um Bolsonaro paz e amor que parece estar em curso, mas uma segmentação do seu comportamento para plateias e fins específicos e uma calibragem maquiada das políticas de governo - e não apenas ambientais - guiada pelo instinto de sobrevivência.
Entre uma e outra reação do presidente, o Brasil foi passado para trás na fila de ingresso no clube dos ricos (OCDE), o leilão do pré-sal frustrou a atração de investidores, o dólar chegou a R$ 4,20 e a fuga cambial bateu o recorde registrado 20 anos atrás. Nem todas essas más notícias têm relação direta com o discurso miliciano do presidente (não apenas) na área ambiental. Tem empresa preferindo pagar dívida em dólar para tomar dinheiro num Brasil de juro mais baixo e investidor revertendo posições em Real tomadas na expectativa de que o leilão o apreciaria. Nenhuma dessas más notícias, porém, poderá ser revertida se a corda do extremismo for ainda mais esticada.
A ordem de moderação chegou até o ministro do Meio Ambiente. Depois de demitir Galvão do Inpe, Ricardo Salles fez uma rodada de viagens pela Europa, onde, em encontros com ministros alemães e ingleses, o comitê empresarial da OCDE, e jornalistas, custou a emplacar suas preleções. Ao longo desse tempo também cresceram seus conflitos com a ministra da Agricultura, Teresa Cristina. Pela primeira vez, o embate entre as duas pastas teve sinais trocados, entre a vista grossa do Meio Ambiente para a motosserra e a preocupação da Agricultura com os contratos de seus exportadores em mercados vigilantes na questão ambiental.
Foi nesta conjuntura que Salles tomou a decisão de se deslocar até São José dos Campos para o anúncio das más notícias sobre o desmatamento. Se as medidas a serem tomadas pelo governo não refletirem mudanças reais na política ambiental, terá gasto gasolina à toa, mas, na simbologia do poder, Salles deu a cara a bater e prestigiou o instituto que havia colocado em xeque.
Os sinais de inflexão não vêm apenas da retórica ambiental. O mesmo presidente que chegou a declarar alinhamento automático com os Estados Unidos, enumerou, para o aval de seus pares, as prioridades elencadas pelo Brasil como resumo de sua gestão à frente dos Brics e das metas futuras: fortalecimento da arquitetura econômico-financeira internacional, reforma do sistema multilateral, resolução de crises por meios diplomáticos e fortalecimento da cooperação entre os integrantes do bloco.
O surto de moderação presidencial se estendeu ao sumiço do vereador Carlos Bolsonaro das redes sociais e à decisão de remeter ao laranjal da Pasta do Turismo, e não ao pomar de aberrações ideológicas do ministro da Educação, Abraham Weintraub, as atribuições do ex-ministério da Cultura abrigadas, até então, sob o guarda chuva de Osmar Terra (Cidadania).
Bolsonaro também tem se revelado cauteloso em relação ao fôlego curto dos primeiros sinais de reativação da economia. Sinal disso foi o freio em relação à reforma administrativa, proposta que confronta um segmento cujo poder de fogo ainda está por ser testado. Fora os professores, categoria que foi para a rua de braços dados com aqueles da iniciativa privada, os funcionários públicos ainda não demonstraram, neste governo, disposição de ir para o confronto.
Além disso, o risco do continente em chamas reduz o ímpeto reformista. A classe média chilena empurrada para a rua foi empobrecida por custos crescentes de educação e saúde e benefícios previdenciários arrochados, num ambiente em que, a despeito do crescimento da economia, é de desigualdade cristalizada. Os efeitos, ainda incertos, de um dólar valorizado no Brasil acrescem, à doença chilena, uma pitada de moderação.
É claro que a presidência-bipolar não autoriza que se tracem tendências, mas a moderação, além de imperativos imediatos relacionados às expectativas da economia, e afetada por aqueles de mais longo prazo vinculados ao maior rival de Bolsonaro na política. Reconfigurado para registrar o retorno do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o GPS presidencial tenta distanciar Bolsonaro da extremidade direita para evitar que o rival ocupe espaços.
Tanto Lula quanto Bolsonaro buscarão ocupar este grande deserto de homens e ideias que hoje está no centro da política. Tentarão fazê-lo sem deixar a descoberto os pólos dos quais hoje são titulares. A rota de Lula começará a ser conhecida no congresso petista que se inicia amanhã em São Paulo. A do presidente da República, por errática, segmentada e, em grande parte, submersa, escapa a uma tradução ligeira.
Por mais moderado que o discurso presidencial possa parecer, o extremismo pode ser terceirizado para a estratégia digital de seu governo e, principalmente, do seu novo partido. Resta ainda o ímpeto bolsonarista suscitado pelos instintos mais primitivos. Só o da sobrevivência na política será capaz de moderá-lo.
Fernando Exman: Bolsos e corações da juventude em disputa
Governo beneficia jovens, enquanto mina entidades
A juventude se transformou em objeto de cobiça dos dois principais grupos da polarizada política nacional.
O presidente Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva disputam bolsos, corações e, claro, os votos dos mais jovens. O mesmo embate já havia ocorrido na última campanha eleitoral. Vinha ganhando nova forma após Bolsonaro assumir a Presidência da República, e agora tem novo impulso com o retorno do ex-presidente aos palanques.
A convocação de Lula não poderia ter sido mais clara. No último dia 9, durante discurso em São Bernardo do Campo, foi pedindo que aliados resistissem ao que considera retrocessos feitos pelo governo, até que fez uma provocação específica: “A juventude ou briga agora ou o futuro será um pesadelo”.
Lula voltou ao assunto no fim de semana, durante discurso no Recife, quando novamente cobrou que a juventude permanecesse nas ruas. O petista aposta na ligação histórica entre a esquerda e o movimento estudantil, que se beneficiou da ascensão política do PT e agora, na mira do novo governo, deveria contribuir na sua jornada contra a Lava-Jato e a administração Bolsonaro.
Durante as gestões do PT, os líderes das entidades estudantis não só passaram a figurar na lista de convidados ilustres das solenidades realizadas no Palácio do Planalto como também foram chamados para participar do governo. Ajudaram a criar canais diretos de diálogo entre a base dos estudantes e a máquina federal.
O Conselho Nacional da Juventude e a Secretaria Nacional da Juventude ganharam peso nessa época. Tudo isso, contudo, passa hoje por transformações. A seu modo, o governo Bolsonaro faz acenos em direção aos jovens de forma constante e consistente.
O presidente rapidamente mudou o perfil da Secretaria Nacional da Juventude. Nomeou uma equipe com a missão de viajar pelo Brasil e fomentar o empreendedorismo, sob a supervisão da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Também envolveu outras pastas nesse esforço, como os ministérios da Educação, da Cidadania e da Economia.
Numa ação coordenada, o Executivo vem anunciando medidas voltadas especificamente para os jovens, sobretudo aos mais pobres e desalentados. Um exemplo recente foi o programa que incentiva a geração de emprego formal e a qualificação desse segmento da população.
Outras iniciativas afetam diretamente os interesses do movimento estudantil. Com a subscrição do ministro da Educação, Abraham Weintraub, o presidente da República editou em setembro uma medida provisória para alterar as regras de concessão das carteirinhas que garantem o pagamento de meia-entrada em eventos esportivos e culturais. Trata-se de um instrumento de apelo popular entre os beneficiários e de apego financeiro entre as entidades do movimento estudantil.
A MP permite a emissão de carteiras digitais pelo Ministério da Educação. Para o governo, o atual sistema é burocratizado, gera custos para os estudantes e não elimina o risco de fraudes. Um mecanismo confiável para a concessão do benefício também tende a reduzir distorções do mercado. Quem frequenta espetáculos culturais ou estádios sabe que frequentemente os preços dos ingressos são elevados pelos promotores desses eventos, em razão da expectativa de que muitos dos descontos de meia-entrada serão na realidade concedidos para falsos “estudantes”.
Além disso, a MP autoriza o Ministério da Educação a criar o Cadastro do Sistema Educacional Brasileiro. A ideia é registrar dados pessoais de alunos e professores, matrículas, frequências e históricos escolares. A partir da implementação do cadastro, que está prevista para janeiro de 2021, as entidades estudantis só poderão emitir carteiras dos estudantes que constarem do sistema.
As entidades veem a edição da medida provisória, que ainda não tem relator e expira em fevereiro se não for aprovada pelo Congresso, como mais uma das retaliações do governo a instituições não-alinhadas ao Palácio do Planalto. Os representantes dos estudantes alertam que a iniciativa fere a confidencialidade de dados pessoais, o que o governo nega.
O Conselho Nacional da Juventude também passa por reformulações. Em outubro, Bolsonaro revogou um decreto editado por Michel Temer e estabeleceu novas regras tanto para a sua composição quanto para a dinâmica de trabalho dos seus integrantes.
O decreto reduziu à metade os representantes da sociedade, que serão 20 e enfrentarão um processo seletivo. Entre um texto e outro publicado no “Diário Oficial da União”, saíram de cena as expressões “respeito à organização autônoma da sociedade civil” e “caráter público das discussões, dos processos e das resoluções”. Entrou, por outro lado, vedação à “divulgação das discussões em curso sem a prévia anuência do titular da Secretaria Nacional da Juventude do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos”.
O conselho coordenará a Quarta Conferência Nacional de Juventude, a ser promovida pelo governo Bolsonaro em dezembro.
Nas eleições de outubro, havia 403.681 eleitores com 16 anos de idade e 996.932 com 17. As faixas de 18 a 20 anos e de 21 a 24 anos somavam 8,2 milhões e 12,6 milhões de eleitores, respectivamente. Ou seja, um total de 22,2 milhões num universo de 147,3 milhões títulos eleitorais.
Antes do segundo turno, as pesquisas de intenção de voto mostravam uma vantagem de aproximadamente dez pontos percentuais para Bolsonaro em relação ao candidato do PT, Fernando Haddad, na maior parte das faixas etárias. A exceção era entre os jovens. Registrava-se um empate técnico justamente entre os entrevistados com 16 a 24 anos de idade. Ainda hoje, a popularidade de Bolsonaro não é das melhores nesse grupo.
Tudo indica que a juventude permanecerá no epicentro do embate entre Lula e Bolsonaro. A depender da linguagem adotada, será necessário tirar os mais novos da sala e ativar o controle parental da internet acessada pelas crianças.
Luiz Carlos Mendonça de Barros: O primeiro ano do governo Bolsonaro
Em 2020, o governo deve encontrar cenário bem mais favorável, o que poderá facilitar o ataque à questão fiscal
O primeiro ano do governo Bolsonaro se aproxima do fim com sinais de que poderá ser mais exitoso do que muitos previam no início de seu mandato. Depois de 30 anos em que nos acostumamos a um padrão de cooperação entre o Executivo e o Legislativo para levar adiante o plano de governo, a forma de governar de Bolsonaro foi um choque para a grande maioria dos analistas.
A relação quase conflituosa do Planalto com o Legislativo foi lida muito cedo como um caminho direto para crises constantes e uma paralisia das ações do governo em um momento de crise econômica grave e da necessidade de reformas importantes. A falta de uma base política estruturada para aprová-las seria o caminho natural para tal situação.
Além disto, o jeito tosco e truculento do presidente ao comunicar para a sociedade alguns de seus valores ideológicos criou um mal-estar na elite do país e na mídia. Citaria ainda como origem deste desconforto inicial, certo radicalismo do todo poderoso ministro Paulo Guedes na defesa de seus planos para a economia. Dizia ele que estava tudo errado e que seria preciso uma verdadeira revolução liberal na busca de um estado mínimo na relação com a sociedade. Alguns símbolos importantes da ação social do Estado brasileiro, como a Zona Franca de Manaus, teriam que ser sacrificados ao longo do caminho de uma reforma fiscal radical.
Mas o que vimos ao longo deste ano foi uma adaptação pragmática progressiva de vários atores a esta nova forma de governar, com o Legislativo ampliando seu espaço de ação política para buscar não um conflito sistêmico com o Executivo, mas um trabalho conjunto para construção de uma agenda comum para o país. O melhor exemplo desta nova forma de governar foi o desenho a quatro mãos da PEC da reforma da Previdência e, posteriormente, sua aprovação, em dois turnos, nos plenários da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Neste processo despontou Rodrigo Maia como uma liderança política do Legislativo capaz de articular junto a seus pares as ações do Executivo, tornando funcional esta nova forma de governar do presidente Bolsonaro. E com o tempo, e principalmente com os conflitos que viveu, Paulo Guedes aprendeu os limites de seu poder e a necessidade da negociação política com os representantes eleitos pelo povo para viabilizar sua agenda liberal.
Neste choque de realidade, sua própria vontade revolucionária foi domada, como indica sua foto em Manaus declarando enterrado o projeto de acabar com a Zona Franca. A crise social no Chile - e a convocação de uma Assembleia para modificar a Constituição outorgada pela ditadura Pinochet - também veio a tempo para moderar os anseios do ministro da Economia nas suas negociações com o Congresso, facilitando o processo de aprovação das reformas liberais necessárias para o Brasil.
Uma fotografia interessante da avaliação do governo Bolsonaro neste final de primeiro ano pode ser encontrada na pesquisa de opinião mensal do Ipesp e da corretora de valores XP relativa a novembro. Apesar de ser realizada por telefone, a sua repetição mensal nos dá um quadro evolutivo a ser visto com confiança pelo analista. Hoje para 39% dos entrevistados o governo Bolsonaro é ruim ou péssimo. Por outro lado, 32 % o avaliam como ótimo ou bom e 25% como regular, somando 57% dos entrevistados que, segundo o critério europeu de avaliação de mandatários no poder, apoiam o governo do presidente.
A mesma pesquisa mostra que Bolsonaro poderá ter em 2022, no final de seu mandato, 45% de ótimo e bom e 16% de regular, somando 61% de apoio. Os que acreditam que seu governo será ruim ou péssimo chegam a 32% dos entrevistados. Esta é uma medida, ainda que precária, do resultado das eleições de 2022.
No segundo ano de seu governo o presidente Bolsonaro deve encontrar um cenário bem mais favorável na economia, o que poderá facilitar o enfrentamento da questão fiscal. Um grande número de analistas de mercado já trabalha com uma previsão de crescimento do PIB da ordem de 2,5% em 2020. Neste cenário, o aumento da arrecadação de impostos, que acontecerá naturalmente, e um controle estrito do orçamento como vem sendo feito, deve reduzir bastante o déficit primário e gerar, mais à frente, o tão esperado superávit. Por outro lado, a nova estrutura a termo dos juros vai permitir inverter a curva de crescimento da dívida pública federal bruta, como mostra o gráfico anexo produzido pela STN.
Se este cenário realmente ocorrer o governo terá um tempo maior para aprovar no Congresso as PECs que devem tratar da questão das despesas obrigatórias estabelecidas na Constituição. Estas medidas são necessárias para permitir que ocorra, com possibilidade de sucesso, a discussão de uma reforma tributária que realmente abra espaço para uma mudança em nossa estrutura de impostos e a tão necessária redução da carga tributária que onera hoje as empresas brasileiras.
O cenário descrito mostra uma oportunidade que não pode ser perdida pela sociedade brasileira depois de tantos anos de crise e sofrimentos.
*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.
Ribamar Oliveira: O estranho Conselho Fiscal da República
Atribuições parecem ferir a autonomia dos Estados
Uma das grandes novidades da Proposta de Emenda Constitucional 188/2019, também conhecida como PEC do Pacto Federativo, é a criação do Conselho Fiscal da República, que será integrado pelos presidentes dos três Poderes, do presidente do Tribunal de Contas da União, de três governadores e três prefeitos. As atribuições dadas ao conselho, no entanto, parecem ferir a autonomia de Estados, municípios e dos Poderes da República.
A PEC diz que o conselho será “o órgão superior de coordenação da política fiscal” e terá por objetivo “a preservação da sustentabilidade financeira da federação”. Em seguida, diz que compete ao conselho, entre outras atribuições, “monitorar regularmente os orçamentos federais, estaduais e distrital, inclusive quanto à respectiva execução”.
Para monitorar a execução orçamentária de 26 Estados, do Distrito Federal e da própria União, será necessário, evidentemente, criar uma formidável estrutura técnica destinada a fornecer informações e análises aos membros do conselho, cada um deles já ocupado com as atribuições próprias de seus respectivos cargos. A primeira disputa ocorreria na definição da composição do quadro técnico.
O cerne da questão, no entanto, está relacionado à autonomia que a Constituição concede aos Estados e ao Distrito Federal. Com a aprovação da PEC, os governadores passarão a ser “monitorados” regularmente por um conselho, que estará acima das respectivas Assembleias Legislativas e dos tribunais de contas, a quem compete atualmente a responsabilidade de acompanhar e fiscalizar a execução orçamentária das administrações estaduais e distrital.
Os três Poderes da República também têm autonomia para elaborar e executar os seus respectivos orçamentos. Com a aprovação da PEC, eles passarão a ser “monitorados” regularmente pelo conselho, inclusive quanto à respectiva execução orçamentária anual.
A PEC atribui também ao conselho o poder de “verificar o cumprimento das exigências constitucionais e legais referentes à disciplina orçamentária e fiscal”. Os membros do conselho teriam que verificar se um governador está cumprindo as exigências constitucionais e legais, ao gerir os recursos do Estado. De novo, esta atribuição parece invadir a esfera de competência das Assembleias Legislativas e dos tribunais de contas estaduais e do próprio Congresso Nacional, no que toca à União.
O dispositivo parece invadir também a competência do próprio Supremo Tribunal Federal, a quem cabe verificar se o ato administrativo de um determinado governador está ou não cumprindo exigências constitucionais. Uma decisão do conselho, que terá a participação do presidente do STF, impedirá um recurso do governador que se sentir prejudicado ao Supremo?
Uma outra atribuição do conselho é “expedir recomendações, fixar diretrizes e difundir boas práticas para o setor público”. Aqui, a competência que parece estar sendo invadida é a do Congresso, a quem cabe aprovar regras para o setor público, como fez, por exemplo, ao aprovar a lei complementar 101/2000, mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
É bom que se diga que a LRF prevê a criação de um Conselho de Gestão Fiscal, que teria a atribuição de acompanhar e avaliar a política e a operacionalidade da gestão fiscal. Este conselho teria representantes de todos os Poderes e esferas de governo, do Ministério Público e de entidades técnicas representativas da sociedade.
O conselho previsto na LRF visaria harmonizar as interpretações sobre as regras fiscais e adotar normas de consolidação de contas públicas. Foram justamente as interpretações divergentes adotadas pelos tribunais de contas estaduais que abriram caminho, em grande medida, para a situação de descalabro financeiro em que se encontram vários Estados. Menos ambicioso do que o Conselho Fiscal da República, o conselho previsto na LRF nunca foi criado ou regulamentado.
A PEC e o emprego
Se as regras da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186/2019, também conhecida como PEC Emergencial, estivessem em vigor, o presidente Jair Bolsonaro não poderia ter editado a Medida Provisória 905/2019, que institui o Programa Verde Amarelo. O programa prevê uma nova modalidade de benefício tributário, que a PEC proíbe pelo prazo de dois anos.
O texto da PEC Emergencial, apresentado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, proíbe a concessão ou a ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária quando a chamada “regra de ouro” das finanças públicas não estiver sendo cumprida. A regra determina que o endividamento da União só pode aumentar para custear despesas de capital (investimentos e amortizações da dívida).
Esta é a situação em que se encontram as finanças da União desde o ano passado, quando o governo foi obrigado a pedir autorização ao Congresso Nacional para realizar operações de créditos destinadas a cobrir gastos correntes, principalmente benefícios previdenciários. Assim, aprovada a PEC 186, o governo poderá acionar, de imediato, as medidas de ajuste fiscal.
A PEC 188/2019, também apresentada por Guedes, vai mais longe. Determina que, a partir de 2026, ficarão proibidas a criação, a ampliação ou a renovação de benefício ou incentivo de natureza tributária pela União se o montante anual correspondente aos benefícios ou incentivos de natureza tributária superar dois pontos percentuais do Produto Interno Bruto (PIB). Atualmente, eles superam 4% do PIB.
A MP 905/2019, editada por Bolsonaro na segunda-feira passada, concede benefícios tributários aos empregadores, que contratem, principalmente, jovens de 18 a 29 anos que buscam o primeiro emprego. Eles não precisarão pagar os 20% sobre a folha de pagamento de contribuição patronal ao INSS nem as alíquotas do Sistema S e do salário-educação, entre outras vantagens. O custo desta nova modalidade de benefício é estimado em R$ 10 bilhões em cinco anos.
Valor: Eros Grau, ex-ministro do Supremo, lança livro sobre o militante Armênio Guedes
Para ex-ministro do STF Eros Grau, que organiza livro sobre o militante Armênio Guedes, há risco de retorno aos tempos da ditadura
Por Roldão Arruda – Eu & Fim de Semana
Desde que deixou o Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010, o jurista Eros Grau divide o tempo entre seus escritórios em São Paulo e Paris e sua residência em Tiradentes, interior de Minas. Aos 79 anos, dedica-se sobretudo a produzir pareceres jurídicos. Também escreve para jornais - mantém uma coluna quinzenal no “Diário de Santa Maria”, a cidade gaúcha onde nasceu - e produz obras de ficção. É um duplo, como gosta de se definir: “Um cara que faz literatura e também faz direito”. Entre um escrito e outro, ele acaba de organizar o livro de artigos “Nosso Armênio” (Globo), sobre o jornalista e militante político Armênio Guedes (1918-2015).
O volume reúne 33 artigos escritos por amigos e admiradores de Armênio. Entre eles estão os jornalistas Elio Gaspari, Juca Kfouri e Ricardo Lessa, o cientista político Marco Aurélio Nogueira, os políticos Aloysio Nunes, Almino Afonso e Milton Temer e o cineasta Zelito Viana. Trata-se sobretudo de uma homenagem a Armênio, que militou no Partido Comunista Brasileira, o “Partidão”, durante 48 anos e que mesmo antes de se desligar da legenda, em 1983, já se destacava de seus pares no debate político e empolgava militantes mais jovens por sua defesa intransigente da liberdade e da democracia.
Armênio tinha quase a mesma idade do pai de Eros Grau, mas era visto pelo jurista como uma espécie de irmão mais velho. Na entrevista a seguir, concedida em seu escritório em São Paulo, onde mantém à direita de sua mesa uma foto do pai e da mãe e, à esquerda, uma foto de um jovem e elegante Karl Marx (1818-1883), o ex-ministro fala dessa amizade e também da conjuntura política.
Valor: Como o senhor conheceu Armênio Guedes? Foi no tempo em que o senhor também militava no “Partidão”, nos anos 60 e 70?
Eros Grau: Não. Na época em que eu tinha ligação com o partido, ouvi falar do Armênio, sabia quem era, mas nunca tive contato com ele. Nosso primeiro encontro aconteceu em 1980, após a Lei da Anistia, quando ele retornou do exílio em Paris e o Roberto Miller, então diretor da “Gazeta Mercantil”, chamou-o para trabalhar com ele. Na época eu era colaborador daquele jornal, e foi lá que nos aproximamos, o que foi uma grande vantagem para mim.
Valor: Por quê?
Grau: O Armênio me orientava, dava dicas de como escrever, que assuntos abordar, que formas de abordar. Posso dizer que fui iluminado por ele. Na biblioteca da minha casa em Tiradentes, tenho na parede uma bela foto dele, que tirei num de nossos vários encontros naquela casa. Eu a mantenho lá porque me faz pensar que, embora não esteja mais por aqui, ele ainda me ilumina. Isso faz bem para a alma.
Valor: Foi por causa de sua ligação com o “Partidão” que o senhor foi preso em 1972?
Grau: Sim. Na época eu trabalhava no gabinete do Dilson Funaro [1933-1989], que era secretário do Planejamento do Estado de São Paulo. Certo dia, precisando de alguma coisa minha, ele perguntou: “Cadê o Eros? Por que ele não está aparecendo por aqui? Mande chamá-lo”. Nessa hora, um de seus assessores mais próximos criou coragem e contou que eu havia sido preso uma semana antes e estava detido no Doi-Codi de São Paulo. Depois de ouvir aquilo, o Dilson foi até o gabinete do governador, que era o Roberto Abreu Sodré [1917-1999], e disse: “Olha aqui, eu tenho um assessor, meu amigo, que foi preso. Se ele não for solto hoje, até a meia-noite, amanhã cedo eu me demito e chamo a imprensa para dizer que não posso seguir em frente com uma situação dessas”. Não sei o que o governador fez, mas sei que fui liberado naquele dia. Se eu não tivesse saído, poderia ter morrido ou ido para o exílio.
Valor: Sua prisão foi relembrada quando, em 2008, o Conselho Federal da OAB ingressou com uma ação no Supremo solicitando a revisão da aplicação da Lei da Anistia, com a anulação do perdão dado aos agentes do Estado que torturaram presos políticos. Sua indicação como relator do caso levou muita gente a pensar que, como havia sido torturado, seria favorável à revisão. Mas o senhor negou o pedido, e a ação foi rejeitada. O que o levou a essa atitude?
Grau: Desde quando cheguei ao STF em 2004, conduzido pelas mãos do Márcio Thomaz Bastos [1935-2014], todo mundo imaginou que um comunista estava chegando àquela corte e que eu seria capaz de descumprir a Constituição. Mas depois todo mundo se surpreendeu porque fui, graças a Deus, um fiel cumpridor da Constituição. Fiz o que um juiz deve fazer: aplicar a Constituição e as leis, mesmo quando não gosta. O que diz a Lei da Anistia? Diz que foi ampla, geral e irrestrita, o que significa que atingiu os dois lados. Perdi amigos e ganhei uma coleção de inimigos por causa daquele voto, mas não me importo com isso. O que importa e me dá orgulho até hoje é ter sido fiel à Constituição e às leis. Eu cumpri a lei.
Valor: Armênio Guedes, que sofreu na ditadura e teve um irmão morto sob tortura, foi ouvido pelo senhor? Ele o ajudou a tomar a decisão?
Grau: Muito. O pensamento dele está retratado no meu voto. Ele era um homem muito culto, sereno e prudente, e nós dois sempre nos colocamos um diante do outro como irmãos. Acho isso engraçado porque, embora fosse apenas um ano mais novo que meu pai, nós dois conversávamos sempre como se tivéssemos a mesma idade. Ele era meu irmão.
Valor: O que o senhor acha que Armênio diria da atual conjuntura política do país?
Grau: Eu acho que diria: raciocine com prudência, cada coisa a seu tempo. O tempo que estamos vivendo exige certa serenidade. Tenho conversado muito sobre isso com meus amigos nos encontros em minha casa em Tiradentes.
Valor: Como viu o debate sobre prisão em segunda instância? Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal decidiu que réus condenados só poderão ser presos após o trânsito em julgado, isto é, depois de esgotados todos os recursos.
Grau: A questão está definida na Constituição, no artigo 5º, inciso 57, que diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória”. O STF decidiu com prudência, nos limites do quanto estabelece o artigo 2º da nossa Constituição, nos termos do qual o Legislativo faz as leis e a Constituição, o Executivo governa dentro da lei e da Constituição e o Judiciário examina se tudo está de acordo com a Constituição e as leis. Um poder não pode usurpar atividades do outro. Pode ser até que, pessoalmente, eu acredite que a prisão deveria ocorrer após a decisão de primeira instância, mas como juiz tenho que cumprir a lei e a Constituição. Sempre me orientei por isso em tudo que decidi. Fico imensamente feliz pelo fato de o STF ter confirmado o quanto afirmei em 2009, como relator do habeas corpus 84.078-7.
(Neste ponto da entrevista, Eros Grau pede ao repórter para pegar um livro na estante e ler o título. Trata-se de “Por Que Tenho Medo dos Juízes”, obra em que fala de magistrados que, alegando questões de princípios, acabam julgando de acordo com leis próprias. Conta que o assunto o interessa há muito tempo e que o livro já foi traduzido para o francês e o alemão e que brevemente será publicado em inglês.)
Valor: O senhor deu esse título para o livro em 2009. Acha que ele continua atual?
Grau: Mais do que atual.
Valor: Uma das características de Armênio Guedes mais destacadas nos artigos do livro é o apreço pela democracia. Neste momento da vida política, no qual se fala até em retomada do AI-5, o senhor acha que a democracia corre algum risco?
Grau: Sim. Observo uma tensão muito grande, com o risco de retorno aos tempos da ditadura.
Valor: Um livro sobre o Armênio pode ser útil nesta conjuntura?
Grau: Ele foi sempre um exemplo de prudência e serenidade. Foi um homem que, embora nunca tenha deixado de lado essas duas virtudes, jamais aceitou as injustiças. É um exemplo.
Valor: Quais seriam suas sugestões para se atravessar este período de tensões ao qual se referiu?
Grau: Há um grande poeta gaúcho, já um pouco esquecido, chamado Alvaro Moreyra [1888-1964], que tem um poema de dois versos que é uma maravilha. Ele diz: “A vida está toda errada/ vamos passá-la a limpo?”. É isso. Tem que passar a limpo tudo isso, o Poder Executivo tem que ser um fiel cumpridor das leis e da Constituição, o Judiciário tem que ser o controlador dos atos que se praticam e o Legislativo pode eventualmente pensar em reformular as leis.
Maria Clara R. M. do Prado: Pacote de Guedes, erros e acertos
Ignorância, indigência, falta de esgoto, saúde precária e violência nunca foram estímulos para o desenvolvimento
O pacote de três PECs - proposta de emenda constitucional - encaminhado pelo governo na semana passada ao Congresso suscitou reações antagônicas entre os economistas brasileiros. Festejadas pelos analistas do mercado financeiro, as propostas foram recebidas com ressalvas, e até mesmo com algumas sérias críticas, por economistas do meio acadêmico ou vinculados a instituições de pesquisa.
O ponto de discórdia não está no objetivo maior de promover o ajuste nas contas do setor público, pois, quanto a isto, estão todos de acordo, mas no método de passar uma régua de forma linear nas despesas, independentemente do caráter que tenham e das consequências para o país no médio e longo prazos. Ou seja, questiona-se a visão do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que a função do governo é a de equilibrar receitas com despesas, sem considerar a qualidade das despesas sacrificadas.
Cortar gastos com pessoal de uma administração direta inchada e custosa não é o mesmo que comprometer despesas com serviços fundamentais para o desenvolvimento do país como educação, saúde e segurança. A finalidade maior dos recursos captados na forma de impostos não se restringe à sustentação da máquina do setor público pura e simplesmente. Afinal, o governo não existe para proveito próprio.
Nessa linha, fazem sentido as medidas contidas nas PECs destinadas a abater o tamanho do governo, como a redução de 25% da jornada de trabalho dos servidores públicos, com a concomitante queda equivalente de salário, sempre que as despesas ultrapassarem 95% das receitas, situação caracterizada como de emergência.
Também são defensáveis as intenções de acabar com o aval da União nos empréstimos tomados por Estados e municípios, além da extinção dos municípios com menos de cinco mil habitantes, cuja arrecadação própria não alcance 10% das despesas.
Não se sabe se as propostas serão exequíveis. O corte de 25% do salário do servidor público em consonância com a redução da jornada de trabalho tem potencial para se transformar em uma ruidosa mobilização do funcionalismo contra o governo. Não é um ponto de fácil tramitação no Congresso, ainda mais no escopo de uma mudança constitucional.
A extinção de municípios também é tema sujeito a pressões políticas, sem falar no desaparecimento do aval da União para Estados e municípios. Quanto a este último, seria preciso que viesse acompanhado de uma profunda reforma federativa e tributária. Sem isso, não se vislumbra como funcionaria na prática, em especial na esfera estadual, cujo principal imposto, o ICMS, está intimamente atrelado ao comportamento da atividade econômica. Uma alternativa seria ampliar a “autonomia” dos Estados para que criem livremente seus próprios impostos, mas certamente isso não agradaria à União.
Há aspectos que ainda não estão claros, como a revisão da isenção de impostos a determinados segmentos. Em tese, pode englobar desde títulos privados de renda fixa negociados no mercado financeiro como o imposto de renda sobre a aposentadoria de doentes terminais com câncer, Aids, Parkinson, entre outras. Também não se sabe ainda que fundos o governo vai extinguir para alocar os recursos na dedução da dívida pública.
A mais polêmica de todas é a proposta que flexibiliza os gastos com educação e saúde para a União e para os Estados, de modo a que os recursos sejam distribuídos mais livremente. Os Estados poderiam aplicar naqueles dois setores, a seu critério, os 25% e os 12% do orçamento hoje obrigatoriamente destinados à educação e à saúde, respectivamente. Isso abre uma grande brecha para que a educação pública brasileira, que já é ruim, fique ainda pior.
Todos sabem que o ministro Guedes é um neoliberal autêntico, convicto de que os pobres consomem todos os recursos que recebem por não saberem poupar. No entanto, se tivesse tempo para ler o estudo “Síntese de Indicadores Sociais - uma análise das condições de vida da população brasileira - 2019”, divulgado este ano pelo IBGE, órgão subordinado ao seu ministério, o ministro depararia com uma realidade incontestável.
Em 2018, 25,3% da população brasileira vivia com rendimentos inferiores a US$ 5,50 PPC (paridade do poder de compra), aproximadamente R$ 420 mensais, ou cerca de 44% do salário mínimo então vigente. Abrange um universo de cerca de 53 milhões de pessoas, um potencial enorme de gente para a ampliação do mercado e da renda no país. O IBGE também apurou que 6,5% da população recebeu no ano passado rendimento inferior à linha de US$ 1,90 PPC por dia, usada como corte para a definição de pobreza. Equivale a 13,5 milhões de pessoas, superior à população da Bélgica, Grécia e Portugal.
Apesar de ainda ser visto com preconceito, além de sujeito a opiniões sectárias de quem insiste em confundir alhos com bugalhos, o tema da distribuição de renda há muito deixou de limitar-se aos discursos das esquerdas e das igrejas para ganhar os bancos acadêmicos. É apontado hoje como um dos principais motivos do atraso econômico pelo fato objetivo de inviabilizar o aumento da produtividade no país, como destacou Edmar Bacha na conferência da Academia Brasileira de Letras sobre “O que falta ao Brasil?”, em agosto deste ano.
Também o economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, tem se dedicado à análise da questão. “O combate à desigualdade é mais do que um imperativo moral - é condição necessária para a construção e execução de uma agenda de crescimento sustentável e inclusivo”, diz ele no paper “Estado, desigualdade e crescimento”, rechaçando os erros de 1960 e 1970, quando se defendia crescer primeiro para depois distribuir. Para enfatizar a importância da distribuição de renda, Armínio destaca no texto que há 60 anos o PIB per capita brasileiro não cresce em comparação com o dos Estados Unidos, “tendo caído nos últimos 40 anos”. Para ele, uma resposta eficaz ao quadro de estagnação desigual “passa obrigatoriamente por aumento dos investimentos públicos nas grandes áreas sociais: educação, saúde, infraestrutura, saneamento, transportes, segurança e meio ambiente”.
Ignorância, indigência, falta de esgoto, saúde precária e violência nunca foram estímulos para o desenvolvimento, em nenhuma parte do mundo.
Andrea Jubé: Uma nova carta aos brasileiros
Lula fará discurso com proposta para o país no dia 22
As primeiras manifestações, na sexta-feira e no sábado, foram “falas de afeto e desabafo”. É a definição de um aliado do entorno mais próximo de Lula sobre os dois discursos proferidos pelo ex-presidente até agora. Uma prestação de contas à militância e um improviso carregado de emoção, de quem acredita que teve o direito de ir e vir violado injustamente, sem provas de que teria incorrido em ilícito penal.
No sábado, em São Bernardo do Campo, seu berço político, Lula ajustou a mira e apontou a metralhadora giratória contra o presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, o ministro da Justiça, Sergio Moro, o que chamou de “banda podre” da Polícia Federal e do Ministério Público Federal e a imprensa.
Ao fim, entretanto, prometeu uma terceira fala, que ao contrário das anteriores não será marcada pelo improviso. “Quero fazer um pronunciamento ao povo brasileiro dentro de uns 20 dias. Quero pensar, vou escrever, rabiscar. Não queria fazer hoje [sábado] porque qualquer coisa que eu falar mais dura, vão dizer que eu estou com raiva, com ódio”.
Segundo a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), essa terceira manifestação ocorrerá antes desse prazo. Deverá ser a fala de abertura do Congresso Nacional do PT, programado para o dia 22 de novembro, em São Paulo, quando Gleisi será reconduzida para um novo mandato na direção do partido.
Enquanto não recomeça as caravanas pelo país e mergulha nas costuras dos palanques para 2020, Lula integra as articulações para a formação da nova Executiva do PT. O líder petista participará da última reunião da direção atual que será realizada em Salvador na quinta-feira. O senador Jaques Wagner (BA), um dos principais aliados de Lula, estava cotado para assumir uma das vice-presidências da sigla.
As duas primeiras falas públicas de Lula foram passionais, uma explosão de sentimentos de liberdade, indignação, alívio e até mesmo de raiva que ele despejou sobre os apoiadores. O objetivo desse tom mais emotivo é reunir, organizar e motivar a militância num momento em que a marca da oposição ao governo Bolsonaro é a apatia e a fragmentação.
A redação do terceiro discurso, entretanto, remonta aos bastidores da Carta ao Povo Brasileiro, um texto estratégico, calculado e repensado que marcou a campanha de 2002. Num momento decisivo, em que Lula buscava se consolidar como potencial vencedor daquele pleito, a dupla de coordenadores da campanha que fazia a interlocução com o mercado - Antonio Palocci e Luiz Gushiken - mediram as palavras para que Lula assumisse compromissos com a responsabilidade fiscal, a redução dos juros, a retomada da economia, mas também com justiça social.
Agora segundo um aliado que acompanha a redação do discurso, trata-se de uma nova “carta de intenções”. A diferença é que Lula não é candidato a assumir o governo. Mas o texto será programático, racional, e adotará um “tom de estadista”, de ex-chefe de governo e liderança popular disposto a capitanear a oposição. Ele apresentará um projeto de reconstrução do país, com propostas factíveis de combate à pobreza, ao desemprego e retomada do crescimento.
Num momento em que se receia um maior acirramento dos ânimos e a retomada das vias de fato nas ruas, com o confronto direto entre Lula e Bolsonaro, Gleisi ressalta que o líder petista “vai radicalizar a defesa dos direitos do povo e da dignidade de vida dos mais pobres”. Espera-se mais um confronto direto com Paulo Guedes do que com Bolsonaro.
O pronunciamento terá três pilares: a necessidade de reinclusão dos pobres na sociedade, o combate ao que o PT chama de dilapidação do patrimônio brasileiro, mediante o programa de desestatização, e a defesa enfática dos valores democráticos, contra a ameaça de censura e a escalada do fascismo.
Gleisi diz que Lula não se conforma com os dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua) de que metade da população, cerca de 100 milhões de brasileiros, vive com R$ 413 por mês. No discurso do sábado, Lula ressaltou que segundo a revista Forbes, 200 pessoas têm mais dinheiro do que 100 milhões.
Ele vai remarcar que os direitos trabalhistas estão sendo destruídos, enquanto o governo deveria estar preocupado em dar emprego e renda para os brasileiros e fortalecer a rede de proteção do Estado.
O teste de fogo será a capacidade de mobilização de Lula como líder da oposição. Em julho, lideranças petistas admitiam a frustração com o vazio das ruas porque nem os sindicatos que ainda guardaram algum fôlego ativista, como o dos petroleiros, organizaram protestos contra a venda da BR Distribuidora.
Um silêncio ensurdecedor marcou a venda da estatal. O governo manteve 37,5% de participação acionária na subsidiária da Petrobras e arrecadou R$ 9,6 bilhões com a desestatização. Uma lista das próximas estatais a serem privatizadas contempla os Correios, a Telebras, o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e a Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp).
No mesmo pronunciamento, Lula deverá reafirmar a sua inocência. O ex-presidente mantém a expectativa com o julgamento no Supremo Tribunal Federal, ainda sem data fixada, que poderia anular o processo do tríplex do Guarujá ao argumento de que o então juiz Sergio Moro agiu com parcialidade ao condená-lo.
Seja com eloquência ou racionalidade, Lula avisou que soltará a língua. “Eu fiquei 580 dias preso sem ter com quem falar. Agora eu quero falar, me deixem falar”, exigiu.
Impaciente com as falhas dos microfones que lhe entregaram no palanque armado em São Bernardo do Campo, Lula mostrou que um ano e sete meses de confinamento não lhe roubaram a verve que empolga a multidão: “quando me dão dois microfones, já sei que um não vai funcionar”. Depois de cobrar a recuperação do poder de compra dos mais pobres, com troco para o churrasco e a cerveja, arrematou: “E nem estou pedindo para todo mundo virar corintiano.”
César Felício: Foi dada a largada para a eleição de 2022
Lula assumiu, na prática, o comando da oposição a Bolsonaro
A eleição de 2022 começou. Na realidade, já tinha começado quando o presidente Jair Bolsonaro, no terceiro mês de seu governo, se colocou como candidato à reeleição. Mas foi no sábado, com o discurso do recém saído da cadeia, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que a eleição presidencial ganhou seu contorno.
Não está claro se o ex-presidente pretende repetir o recuo tático que Cristina Kirchner fez na Argentina, ao indicar um preposto para concorrer em seu lugar logo no começo da corrida eleitoral, agregando forças que haviam se afastado dela nos últimos anos. A outra possibilidade é Lula confiar que a pressão das circunstâncias políticas levarão a uma revisão da norma da Lei da Ficha Limpa que hoje o torna inelegível. O que é certo é que Lula já assumiu, na prática, o comando da oposição a Bolsonaro. E deste posto de controle ele não abrirá mão.
O ex-presidente bateu em Bolsonaro do início ao fim. “Este país tem 210 milhões de habitantes não podemos deixar que os milicianos acabam com ele”, disse. Reconheceu a legitimidade do mandato de Bolsonaro, afastando da plateia qualquer veleidade de se lançar às ruas pelo impeachment. Lula quer brigar nas urnas. Associou o ministro da Economia, Paulo Guedes, à crise social que abala o Chile, ao citar que os fundamentos da política econômica do atual ministro são inspirados em linhas de ação desenvolvidas na ditadura de Pinochet. Acenou à classe média, ao lembrar que a taxa de juros cai, mas a do cheque especial e do cartão de crédito, não. Não é preciso usar palavrão para se referir a Bolsonaro, porque ele já é um palavrão.
Lula não se esqueceu de fazer uma referência sutil a um potencial adversário, o apresentador e empresário Luciano Huck. Sem citar seu nome, fez uma menção ao elitismo da gestação dessa suposta candidatura. “Os mais ricos querem criar uma nova classe dirigente. Não temos nada contra essa gente, mas queremos gente que seja formada nas dificuldades que passa o povo brasileiro.”
Lula busca se credenciar, portanto, como o concentrador do antibolsonarismo. Os 580 dias serviram como campanha antecipada e o Lula Livre virou o Volta Lula, como mencionou o ex-ministro Aloizio Mercadante na sexta-feira, em um evento em Buenos Aires. Nesta polarização que evoca para si, não há mais espaço para alternativas da centro-esquerda, como Ciro Gomes. Ciro apostou tudo em ser o pós-Lula. Seu irmão, o senador Cid Gomes, criou bordão ao dizer, dias antes do segundo turno, o famoso “Lula está preso, babaca”. As perspectivas de Ciro no cenário nacional tornam-se bem modestas.
A força de Lula dispensa maiores comentários: estrutura político-partidária, recall, a nostalgia de um tempo de crescimento alto e programas sociais inclusivos. O ponto fraco é que os problemas de Lula na justiça não se resumem a Sergio Moro. Após a sentença sobre o tríplex uma série de outras revelações comprometeram o ex-presidente, sendo certo que as delações premiadas de Antonio Palocci e Leo Pinheiro são as mais fortes. A liberdade de Lula foi a senha para o Congresso avançar na discussão para mudar a Constituição e rever a segunda instância. Uma parte das lideranças políticas e da sociedade estabeleceu como meta encarcerar de novo o ex-presidente. É uma possibilidade real e torna-se difícil imaginar que governabilidade ele irá construir, seja como candidato ou como grande eleitor.
Bolsonaro em um primeiro momento se fortalece. À catalização do antibolsonarismo corresponde o reforço do antipetismo, um sentimento que é muito maior que o bolsonarismo. O presidente tem a força da caneta nas mãos, mas o fantasma das suas relações com milicianos é uma sombra, que pode prejudica-lo nas eleições.
Terceiras vias podem prosperar caso o eleitorado fique exausto da polarização esquerda/direita. Por este caminho Huck ainda pode entrar, tendo como único ativo apoio na elite empresarial e grande popularidade na mesma faixa de eleitorado de Lula. O fato é que esta é uma rota muito mais arriscada do que seria a de competir para comandar a oposição ao atual governo. As chances de Huck dependem de acontecimentos excepcionais que sangrem os dois eixos do debate atual. Ficou mais difícil o caminho do centro.