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Bruno Carazza: Happy New Years and Years
A onda é de direita, mas a maré pode virar
A vitória acachapante de Boris Johnson nas eleições britânicas reforçou as referências a “Years and Years”, a distópica coprodução da BBC com a HBO que retrata uma família britânica, os Lyons, em meio às reviravoltas políticas, econômicas e tecnológicas do mundo num futuro próximo - a primeira temporada se passa entre 2024 e 2029.
A conexão com nossa realidade atual se deve principalmente a Vivienne Rook (Emma Thompson), uma mulher de negócios sem papas na língua que, com um discurso radical nacionalista e contrário à política tradicional ascende de forma meteórica de deputada a primeira-ministra. Impossível não associar a carreira meteórica de Rook à onda que levou ao poder de Trump a Bolsonaro, passando pela vitória conservadora no Reino Unido na semana passada. Mas a força de “Years and Years” não está em captar essa mudança política e especular sobre seus efeitos futuros. O que mais me impressionou na série foi a mudança ocorrida nas pessoas.
Os Lyons podem ser vistos como a idealização da família inglesa contemporânea: bem-sucedidos profissionalmente, progressistas nos costumes (com seus relacionamentos homoafetivos e interraciais) e engajados politicamente com causas como a preservação ambiental, a inclusão de deficientes físicos e o acolhimento de refugiados políticos. Não por acaso, os Lyons eram eleitores tradicionais do partido trabalhista inglês. Mas à medida em que as circunstâncias políticas e econômicas vão mudando suas condições financeiras e as crises delas decorrentes vão chegando cada vez mais perto, suas convicções vão sendo revistas, uma a uma.
Entre 10 e 14 de junho, o podcast “The Daily”, do jornal New York Times, apresentou uma série de cinco episódios (“The Battle for Europe”) sobre a onda de nacionalismo que varre a Europa nos últimos anos, culminando com uma votação massiva nos partidos de direita nas últimas eleições para o Parlamento Europeu. Para entender as raízes dessa crise do liberalismo europeu, a chefe do escritório do jornal em Berlim, Katrin Bennhold, realizou uma viagem de dez dias pela França, Itália, Polônia e Alemanha, entrevistando pessoas comuns que decidiram se envolver com a política de diferentes formas.
Manifestantes de coletes amarelos no norte da França, uma jovem da Toscana que se tornou a primeira prefeita do movimento A Liga na Itália, além do caso da mulher de um político que foi assassinado depois de participar de uma parada LGBT e decidiu enfrentar os partidos de direita na Polônia - por meio de um mosaico de visões sobre as crises na Europa, o programa discute as causas da falência do modelo político europeu.
Com a mesma temática, um dos livros mais importantes do ano foi “O Povo contra a Democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la”, do professor Yascha Mounk, professor da Universidade Johns Hopkins, nos EUA. Impressionado com o crescimento do radicalismo de direita na Alemanha, sua terra natal, Mounk apresenta, numa linguagem muito clara, como a perda de ilusões quanto ao futuro e o sentimento de desamparo diante do sistema político têm colocado a democracia liberal em risco no mundo todo.
O esfacelamento da estabilidade financeira e até mesmo emocional dos Lyons na distopia de “Years and Years” casa-se perfeitamente com os relatos reais dos entrevistados do podcast do New York Times sobre sua descrença na política, seus medos quanto à invasão de imigrantes e a queda do seu padrão de vida em relação a seus pais e avós. Na visão de Yascha Mounk, esse caldo que mistura estagnação econômica, crise de identidade nacional e manipulação da opinião pública por tecnologias cada vez mais intrusivas contribuem para a ascensão de políticos e movimentos populistas que pregam uma democracia sem direitos, ou uma nova era de direitos sem democracia.
Sem dar spoilers sobre os desfechos da série, do podcast e do livro, fica claro que o sistema político atual, com seus partidos e políticos preocupados apenas com o jogo do poder, não estão sabendo ouvir a mensagem dada pelos eleitores nas urnas. Vale para a Europa, para os EUA, e também para o Brasil. E não se trata aqui de uma mera questão entre direita e esquerda.
Nenhum político brasileiro foi tão eficaz em captar a mensagem das ruas desde junho de 2013 do que Bolsonaro. A população questionava os partidos e os políticos num grito de “não me representa”, então o deputado de baixo clero com quase 30 anos de mandato se travestiu de outsider “não político”. Enquanto as relações pessoais passaram a ser mediadas pelas redes sociais, foi lá que o ex-capitão concentrou seus esforços de comunicação direta para conquistar eleitores. Havia uma crise de confiança nas instituições, com as entranhas do funcionamento do sistema político sendo expostas pela Lava Jato? Bolsonaro soube como ninguém se apropriar do discurso anticorrupção, e ainda construiu uma campanha barata.
Mas há uma dimensão dos protestos de 2013 que não foi incorporada na estratégia eleitoral de Bolsonaro e que tampouco tem recebido ênfase no seu governo: a dimensão social, da redução das desigualdades e do oferecimento de melhores serviços públicos, principalmente em saúde e educação (“Queremos escolas e hospitais padrão Fifa”, diziam os cartazes). As poucas medidas concretas apresentadas nesses dois ministérios, a ideologização das políticas públicas (principalmente na gestão Weintraub) e a proposta de canibalização de recursos orçamentários entre essas áreas elaborada por Paulo Guedes já colocaram no radar do governo a possibilidade de que a onda de protestos que chacoalha diversos países, inclusive em nossos vizinhos da América Latina, acabe desaguando por aqui em 2020.
Numa sociedade cada vez mais conectada e dispensando intermediários, engana-se quem acredita que basta o discurso populista de direita. No Reino Unido, nos EUA ou no Brasil, o eleitor mudou de lado porque o Estado deixou de lhe oferecer estabilidade e boas perspectivas quanto ao futuro. Se essas demandas não forem atendidas no curto prazo, a maré vai virar novamente. E assim continuará, por anos e anos.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Fernando Exman: Culpa na judicialização das relações políticas
Estudo coloca em xeque críticas de ativismo judicial
O Supremo Tribunal Federal encerra 2019 em lugar de destaque no noticiário e no imaginário popular. Quando o cidadão comum lembra com mais facilidade o nome dos 11 ministros da Corte Suprema do que a escalação de muitos times de futebol, contudo, há que se debruçar sobre as razões desse fenômeno.
Para integrantes da cúpula do STF, o Judiciário exerceu papel fundamental para serenar as crises institucionais que insistiram em rondar a Praça dos Três Poderes. Na opinião de dirigentes partidários, julgamentos e decisões foram muitas vezes, respectivamente, cenários e protagonistas de episódios da conflagrada guerra política com a qual o país convive há anos.
Mas uma tese dificilmente pode ser refutada por lideranças partidárias: são os partidos alguns dos principais responsáveis pelo chamado processo de judicialização da política que tanto criticam. Ainda mais quando as legendas estão na oposição.
Em muitos casos, o Supremo se tornou a única opção de quem é minoria na Câmara e no Senado. Sobretudo diante da constatação de que distintos governos têm transformado o Palácio do Planalto em uma espécie de fábrica de editar medidas provisórias e decretos.
O uso parcimonioso das ações judiciais é legítimo e deve ser visto como um ato do jogo, uma vez que está previsto na Constituição. Mas a judicialização da política acabou virando uma prática do dia a dia de alguns partidos.
Há diversos instrumentos, nos regimentos do Parlamento, para se tentar modificar ou obstruir o avanço das propostas originadas no Planalto. Mesmo assim, não raro os partidos de oposição têm dificuldades de atuar em conjunto.
É mais fácil - e midiático - ir direto ao Supremo e tentar anular muito do que vem pela frente. Legislar dá trabalho e não garante vitória. Judicializar dá trabalho, mas mais ao STF do que às siglas. Também não garante vitória, embora pelo menos seja mais fácil de marcar posição e assegurar um discurso para o eleitor em desalento.
Um estudo feito pela área técnica do STF é elucidativo. O levantamento abrange o chamado controle concentrado de constitucionalidade, que se refere a processos específicos que só podem ser julgados pelo Supremo. Por exemplo: as ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs), as ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs), as ações diretas de inconstitucionalidade por omissão (ADOs) e as arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs).
Segundo o estudo, de um total de 5.734 processos de controle concentrado propostos entre 1995 e 2019, houve atuação partidária em aproximadamente 20%. Ou seja, 1.145 ações. As demandas apresentadas individualmente por deputados e senadores não foram objeto da pesquisa da área técnica do STF. As restantes 4.589 ações foram propostas por confederações sindicais, pelos presidentes da República, do Senado e da Câmara, além de assembleias legislativas, governadores, OAB e PGR.
As ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) são as preferidas dos políticos. Elas são as classes processuais mais utilizadas, totalizando 83% das ações. Têm como alvo leis ou atos normativos federais ou estaduais. Nesses casos, o STF faz uma análise em abstrato da norma impugnada, sem avaliar sua aplicação a um caso concreto.
A partir de 2015, no entanto, aumentou consideravelmente o número de arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs) propostas no Supremo pelos partidos. Em 2014, elas representavam 3%. Já são 26% do total neste ano.
Vinculantes e abstratas, as ADPFs têm alcance amplo. Visam reparar ou evitar dano a algum preceito fundamental da Constituição eventualmente provocado por algum ato do poder público. Podem ter como alvo lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal - incluídos os anteriores à Constituição de 1988. A descrição é o suficiente para entender o motivo do crescente interesse do meio político por esse instrumento.
Das 1.145 ações apresentadas por partidos no período estudado, 77% foram apreciadas pelo Supremo. Destas, 84% foram rejeitadas. Um índice que merece ser analisado com atenção, diante do risco de banalização desse tipo de demanda.
Restam pendentes 266 ações, das quais aproximadamente 60% foram propostas nos últimos cinco anos. Estão prontas para inclusão em pauta 59. Vinte aguardam parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) ou manifestação da Advogacia-Geral da União (AGU), segundo o levantamento do STF. O plenário do STF iniciou o julgamento de 13. Assim, o quantitativo de processos “efetivamente pendentes” totaliza 174, o que representa em torno de 15% das demandas apresentadas pelos partidos políticos entre 1995 e este ano.
Na média, foram apresentadas 46 ações por ano pelos partidos. Os períodos mais intensos foram 2000 e 2001 - ápice do número de ações de controle concentrado de autoria das legendas. Ocorreu uma queda digna de registro de 2011 a 2013, mas elas voltaram crescer novamente a partir de 2014.
Em 2019, os advogados do Rede e do PDT foram os que mais frequentaram o protocolo do STF. O PDT também encabeça o ranking em outros anos, assim como o Psol, o Solidariedade e o PT. Quando oposição, DEM e PSDB fizeram o mesmo.
Neste ano, quando assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Dias Toffoli sinalizou a intenção de ter como referência o mandamento constitucional de trabalhar pelo respeito entre os Poderes, com prudência. Para ele, a Corte deve moderar os conflitos políticos, sociais e econômicos repelindo abusos ou comportamentos excessivos de agentes do Estado. É justamente o que consta da Lei.
Ao fazer seu trabalho e interpretá-la, é natural que o STF e seus integrantes fiquem expostos a críticas e a elogios. O estudo do STF, contudo, dá argumentos para quem tenta afastar do Supremo as imputações de prática de “ativismo judicial”. É cada vez mais necessária uma análise sobre a responsabilidade dos partidos, sobretudo em meio à crescente deterioração da imagem da política e dos políticos.
Andrea Jubé: A vida noturna dos políticos
Texto da Câmara deve prevalecer na reforma tributária
Uma das tiradas famosas de Ulysses Guimarães era de que a verdadeira política se faz à noite, depois que se encerram as votações no Congresso. O palco não é mais o Piantella, mas a regra continua atual: até hoje, depois das sessões de maior quórum no plenário às terças e quartas-feiras, os políticos se dispersam entre concorridos jantares.
Os cenários variam: as residências oficiais dos presidentes da Câmara e do Senado, casas de parlamentares ou empresários. Só o licor de pera de Ulysses é que deixou o cardápio.
Na noite de terça-feira, a estiagem após uma sucessão de temporais favoreceu a comemoração da aprovação da nova Lei de Franquias no Senado e mais uma rodada de articulações da reforma tributária.
O presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), trocou cumprimentos, circulou entre os convidados, e saiu à francesa. “Ainda tenho de passar em mais dois jantares”, justificou.
O atual marco regulatório das franquias é um anacronismo porque uma lei de 25 anos rege um setor marcado pela inovação - pressionado por um comércio digital inimaginável para uma legislação de 1994 -, que hoje responde por 2,7% do PIB e gerou cerca de 1,4 milhão de empregos diretos neste ano. A projeção de faturamento para este ano é de 7% em relação a 2018, enquanto a economia brasileira deve crescer 1,1%.
Longe da atmosfera de polarização que sobrecarrega o ar brasiliense, o ambiente no jantar promovido pela Associação Brasileira de Franchising (ABF), regado a música, vinhos nobres e garçons solícitos, era ameno e propício às articulações bilaterais.
Instado a discursar, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), deixou afoito o canto reservado em que interagia com o senador Dário Berger (MDB-SC). Na fala de improviso, reafirmou o compromisso com o prosseguimento das reformas econômicas, como a tributária.
O clima entre Alcolumbre e a relatora do projeto, a senadora Kátia Abreu (PDT-TO), era de puro entrosamento. Uma cena surpreendente para quem testemunhou o embate entre ambos há dez meses, na eleição para presidente da Casa. Com o dedo em riste, a senadora enfrentou o então candidato e surrupiou a pasta com os documentos que o orientavam na condução da sessão.
No dia seguinte, entretanto, Kátia levou flores para Alcolumbre e refizeram os laços com o tempo. Durante o jantar, em uma roda com jornalistas, Kátia deu aula de articulação: explicou que um dos segredos da boa política é o pragmatismo. “O primeiro passo para o sucesso é não apontar o dedo, é articular sem preconceito nem ideologia”.
Além de Kátia, Alcolumbre e Berger, também compareceram o senador Weverton Rocha (PDT-MA), e a bancada do PP em peso: Ciro Nogueira, a líder Daniella Ribeiro (PB), o senador Esperidião Amin (PP-SC), entre outros.
Com ar de fadiga, o relator da reforma tributária e líder da maioria na Câmara, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), chegou na hora do karaokê. Eram mais de 22h e ele confidenciou que ainda vestia o mesmo terno do café da manhã com lideranças.
Depois que Kátia Abreu arriscou versos de “Evidências”, o clássico de Chitãozinho & Xororó, Aguinaldo assumiu o palco, o banquinho e o violão. Confiou a taça de blend argentino ao interlocutor, dedilhou o instrumento e soltou a voz com o sugestivo “Vamos fugir”, de Gilberto Gil.
Descontraído, prosseguiu com “Morena Tropicana”, de Alceu Valença, e apesar dos apelos, esquivou-se do bis.
Agora investido da tarefa de reformar o imbrincado sistema tributário, o relator abre para poucos a faceta de artista, dos tempos em que tocava em uma banda de rock. Já um político consagrado, ele estampou a capa da revista “Rolling Stone” quando era ministro das Cidades.
Nos bastidores, a tendência é que Aguinaldo consolide-se como relator da única proposta de reforma tributária com chances reais de avançar no Congresso.
Um líder de bancada no Senado disse à coluna que o relatório do senador Roberto Rocha (PSDB-MA) desagradou a maioria dos senadores e não deve sequer ser submetido à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Entre outros pontos, Rocha incluiu dispositivos favorecendo o seu próprio Estado.
Em outra frente, o Ministério da Economia deve encaminhar à Câmara em fevereiro a proposta do governo de criação do IVA federal. Esse projeto deve ser apensado à proposta relatada por Aguinaldo, de autoria do líder do MDB, Baleia Rossi (SP).
Aguinaldo não concluiu o relatório, mas vem recebendo demandas dos empresários. Ele já recebeu os pleitos dos franqueadores e franqueados, que temem uma oneração da carga tributária com a proposta de unificação dos impostos no Imposto sobre Valor Agregado (IVA).
“A reforma tributária é transversal, ajuda a economia como um todo com a simplificação dos tributos e a melhoria no ambiente de negócios, não é uma demanda só do setor de franquias”, remarcou o diretor executivo da ABF e anfitrião do jantar, Marcelo Maia - conterrâneo de Aguinaldo.
Ele observa que o setor de franchising já arca com a cobrança de royalties aos franqueados pela exploração comercial da marca e não suportaria uma sobrecarga fiscal.
“Estamos preocupados que o modelo da reforma não onere a prestação de serviços dentro do nosso setor”, diz Maia, que foi secretário de Comércio e Serviços do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC).
O modelo de negócios das franquias é verticalizado, dividido em seis segmentos: serviços, produto, indústria, e três variações mistas entre eles.
Com 180 mil lojas no país, apesar da crise, o setor é um dos que mais cresce no país. O novo marco regulatório do setor foi aprovado no Senado no último dia 6 de novembro e aguarda a remessa para a sanção presidencial.
A nova lei detalha as obrigações do franqueador na circular de oferta de franquia (COF) e esclarece finalmente que o contrato entre franqueador e franqueado não cria relação de consumo ou vínculo empregatício. A senadora Kátia Abreu diz que agora é o momento de se criar franquias para o agronegócio.
Valor: Economia fraca se deve em parte a insegurança gerada por Bolsonaro, diz Maia
Presidente da Câmara disse ainda que entregará texto da reforma administrativa ‘independente da proposta do governo’
Por Gabriel Vasconcelos , do Valor Econômico
RIO - O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou ter convicção de que o fraco desempenho da economia brasileira neste ano se deve, em parte, à insegurança gerada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Maia criticou o governo mais de uma vez durante gravação do podcast "Ao ponto”, do Jornal O Globo, hoje no Rio de Janeiro.
"Tenho convicção que o crescimento [da economia] projetado no final do ano passado, de 2,5%, caiu para 1% muito em função dessa insegurança que o governo gerou nos primeiros seis, sete ou oito meses de governo", disse Maia.
Segundo o deputado, parte da equipe do governo, inclusive da área econômica, "mistura liberdade com libertinagem" e "trabalha sempre com a tese de tirar o Estado completamente da vida das pessoas".
"A gente sabe que não é isso. O que a sociedade quer é outro Estado, um Estado regulador que fiscalize e garanta serviços de qualidade, mas aí se mistura isso com uma certa libertinagem."
Ele citou o projeto da liberdade econômica enviado pelo governo ao Congresso. "Se fosse aprovar tudo que eles queriam, não ia ter mais fiscalização para nada no Brasil. Nesse extremo também não dá", disse.
A caminho da planície, Maia reforça pregação reformista
Questionado sobre os atritos entre os membros do PSL, antigo partido de Bolsonaro, Maia disse se tratar de uma briga por poder. "É uma briga pelo tempo de TV e pelo fundo partidário. Uma briga que acontece em todos os partidos, mas, como eles são o partido das redes sociais, é uma briga explícita, bem explícita mesmo. Todo mundo nu e se matando."
Sem citar nomes, ele disse que novos eleitos chegam a Brasília com uma expectativa da política sempre muito negativa e equivocada. "A pessoa vai para lá, acha que ninguém trabalha, que ninguém tem preparo, que você passa três dias lá à toa e depois vem pra cá na quinta-feira e fica na praia. Quando chegam lá, veem que não é isso. [A política] é a representação da sociedade. Tem gente boa, gente ruim, mas um ambiente de muito trabalho", afirmou.
Para o deputado, as propostas polêmicas do governo atendem nichos de opiniões mais radicais. Esses nichos foram a base da vitória de Bolsonaro nas eleições. Assim, na prática, o presidente "defende o que ele representa da forma que ele acha correta". Essa forma, disse, é "trabalhar com o micro", respondendo de forma objetiva ao anseio de determinados setores.
Nesse sentido, ele citou caminhoneiros, trabalhadores rurais, motociclistas e garimpeiros como os alvos de ação do presidente, ao responder esses anseios. “Quando a gente vai falar de caminhoneiro, vai dizer que o caminhoneiro precisa de infraestrutura, de um marco [regulatório] de trabalho correto e que a economia cresça para contratar frete. O presidente Bolsonaro pensa diferente. O 'tratar o caminhoneiro' dele é reduzir o preço do óleo diesel e aumentar a pontuação da carteira de motorista. Ele vai nos pontos objetivos e a gente fica no abstrato. E é por isso que ele mantém popularidade junto a um terço da população."
De forma análoga, Maia disse que a solução de Bolsonaro para os agricultores passa por armá-los para evitar invasões e, para motociclistas, acabar com o seguro DPVAT. "Se acaba o DPVAT e não coloca nada no lugar, quem é que vai pagar por acidentes contra terceiros, que acontecem todo dia? Mas o cara que tem a moto olha e acha que é bom. Esse formato dele trabalhar em termos micro dá resultado. Não sei se a médio e longo prazo, mas no curto prazo, dá resultado", analisou.
Reforma administrativa
O presidente da Câmara afirmou ainda ao participar das gravações do podcast que vai entregar uma proposta de reforma administrativa independente da proposta do governo - e disse esperar "tramitação fácil" da reforma tributária em 2020.
"Independente da proposta do governo, a gente vai ter a nossa, para enxugar isso [carreiras do funcionalismo], construir novas carreiras com o salário inicial mais baixo para chegar ao teto ao longo de 20 ou 25 anos. Porque não dá mais para isso acontecer da noite para o dia como é hoje nos três poderes".
Segundo Maia, uma consultoria contratada, a Falcone, entregará, na semana que vem, relatório com a análise das carreiras do poder Legislativo.
Maia disse que só não entregou a proposta ainda porque está discutindo a legalidade de legislar sobre a estrutura do Executivo e Judiciário. "Tenho conversado com a ministra Cármen Lúcia [do Supremo Tribunal Federal] porque tem uma dúvida constitucional, no caso de tratar da carreira de outro poder, se posso usar uma emenda constitucional de parlamentar. Uma parte dos ministros diz que não posso e a outra [parte], até por casos já julgados, diz que posso. Independente do governo eu acho que a gente pode avançar nesse tema", disse.
Ele ponderou, no entanto, que o melhor seria harmonizar a reforma entre os três poderes, que apoiariam as mudanças conjuntamente. Nesse sentido, convocou o governo a encaminhar seu pacote e o Judiciário a "vir junto".
"A reforma administrativa reduz a desigualdade porque, hoje, os recursos estão concentrados na atividade meio e não há recursos para investimento. Em 1993, o Brasil tinha uma capacidade de investimento de 30% do orçamento. Nossa capacidade de investir hoje é de 2% [do orçamento], mas, na verdade, é negativa porque você tem déficit", afirmou.
Na visão do deputado, fala-se muito na possibilidade de protestos de rua, como os que têm acontecido no Chile. Para ele, o meio de evitar que o Brasil caminhe para isso é, justamente, reorganizando o orçamento para reduzir desigualdades. Para tanto, disse, um primeiro passo já foi dado com a reforma da Previdência - e seguirá, agora, com a reforma administrativa. "Na Câmara existem 4 mil funções, até para colocar o broche tem uma pessoa", reclamou.
Ao falar sobre reformas, o deputado afirmou ainda que a tributária tem um "apelo muito forte" dentro da Câmara como uma proposta da Casa. "A origem é nossa, o trabalho foi feito junto com os quadros técnicos na área tributária e acho que ela vai caminhar com muita facilidade. Esse é o meu sentimento", disse.
Sergio Lamucci: Os efeitos de um crescimento mais forte
PIB mais forte pode deixar erros do governo em segundo plano
A recuperação da economia brasileira enfim ganha fôlego, com vários analistas apostando num crescimento acima de 2% em 2020 - Bradesco e Credit Suisse, por exemplo, projetam expansão de 2,5% no ano que vem. O grande destaque pelo lado da demanda deverá ser o consumo das famílias, mas também há sinais de um desempenho melhor do investimento, ainda que não se espere um resultado exuberante. São boas notícias para um país com 12,4 milhões de desempregados, que viu o Produto Interno Bruto (PIB) afundar 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016 e depois avançar a uma taxa pouco superior a 1% por três anos seguidos. A expansão do crédito, a queda forte dos juros e a redução das incertezas sobre a sustentabilidade das contas públicas, com a aprovação da reforma da Previdência, formam um quadro mais favorável para a aceleração da atividade.
Essa perspectiva de melhora é sem dúvida bem-vinda, mas não deveria ofuscar os problemas na orientação do governo Jair Bolsonaro em áreas como educação, ambiente e relações exteriores -e por vezes na própria economia. A falta de rumo na educação, por exemplo, é um obstáculo para o país conseguir melhorar a qualidade do capital humano e, com isso, a produtividade. Em vez de definir diretrizes claras para dar prioridade à educação básica, o ministro Abraham Weintraub perde tempo em polêmicas estéreis.
Já o descaso com o ambiente, evidenciado na expansão do desmatamento e nas declarações de Bolsonaro e do ministro Ricardo Salles, pode afugentar investimentos de empresas e fundos estrangeiros, além de dificultar a aprovação de acordos comerciais.
Marcada pelo alinhamento incondicional aos EUA, a política externa, por sua vez, não tem dado resultados, como ficou evidente mais uma vez no anúncio feito pelo presidente Donald Trump na semana passada, de que vai retomar a sobretaxa sobre o aço e o alumínio brasileiros. A estratégia de confronto com o presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández, tampouco é útil aos interesses brasileiros, uma vez que o país vizinho é um grande comprador de produtos manufaturados.
Além de serem preocupantes em si mesmas, as políticas para essas áreas cruciais podem comprometer o próprio crescimento do país, ainda que não imediatamente. Num ambiente de recuperação mais forte da economia, contudo, esses e outros problemas do governo podem passar a incomodar menos. “São temas que mexem com setores importantes e organizados. Sempre haverá uma reação”, avalia Ricardo Ribeiro, analista político da MCM Consultores Associados. “Para o pessoal dos negócios”, porém, os erros e deslizes tendem a ser “tolerados se a economia andar. Para o grosso da população, também”, diz ele.
Se a economia engrenar e finalmente superar para valer o patamar de 1% de crescimento registrado nos últimos três anos, as bizarrices, as excentricidades e os arroubos autoritários - alguns apenas retóricos, outros efetivos - do governo Bolsonaro tendem a ficar em segundo plano”, avalia Ribeiro, em nota.
“É certo que algo em torno de 2,5% de crescimento, patamar para o qual convergem as expectativas para 2020, pode não ser suficiente para melhorar de maneira acentuada a sensação de bem-estar do conjunto da população”, observa Ribeiro. “O desemprego continuará elevado e os novos empregos podem ser precários e de baixa remuneração. Entretanto, quanto maior o crescimento, maior tende a ser a boa vontade da população em relação ao governo.”
Para Ribeiro, fatores como “o pouco caso do governo com o meio ambiente, a declaração do ministro da Educação a respeito da alegada existência de extensas plantações de maconha em universidades federais, os ataques de Bolsonaro a determinados empresas da mídia e a proteção a outras, as menções levianas ao AI-5 feitas por gente de dentro ou próxima ao governo, entre outras atitudes polêmicas, ofendem setores importantes da sociedade. Mas, para a maioria da população, tendem a ser toleradas ou esquecidas se a economia enfim passar a crescer em ritmo mais acentuado”.
Há obviamente incertezas em relação ao crescimento no ano que vem, mas o cenário econômico sugere que uma expansão superior a 2% em 2020 não parece excesso de otimismo. O resultado do PIB do terceiro trimestre, com alta de 0,6% sobre o trimestre anterior, mostrou uma economia crescendo a um ritmo um pouco superior ao que a maior parte dos economistas esperava. No quarto trimestre, há sinais que apontam para uma atividade mais forte, um período em que haverá o efeito mais significativo da liberação dos recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). A indústria teve um bom desempenho em outubro e tudo indica que o varejo teve um bom mês de vendas em novembro, com as promoções da Black Friday. Além disso, houve redução da incerteza e aumento da confiança empresarial no mês passado, segundo a Fundação Getulio Vargas.
Por fim, a criação de empregos formais nos últimos meses aponta um ritmo um pouco mais firme, de acordo com o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).
Com a perspectiva de redução adicional dos juros básicos, de 5% para 4,5% ao ano ou até menos, e a avaliação dominante de que a Selic ficará baixa por um período considerável, a atividade ganhará um relevante impulso monetário. É verdade que há fontes de incerteza, como o ambiente externo, caracterizado pela desaceleração da economia global, num quadro de guerra comercial entre EUA e China. Outro foco de indefinição pode vir do próprio governo, se houver problemas para fazer avançar a agenda de reformas no Congresso.
Segundo o economista-chefe do Credit Suisse, Leonardo Fonseca, basta a economia manter o ritmo de alta de 0,5% a 0,6% - registrado no segundo e no terceiro trimestre deste ano em relação ao anterior - que o PIB crescerá 2,5% em 2020. Se concretizado, esse quadro ajudará a dar mais gás à recuperação em curso do mercado de trabalho.
Para Ribeiro, “o impacto de boas notícias na economia sobre o estado de espírito dos agentes econômicos tende a ser maior neste momento, após anos de recessão e crescimento pífio”. Nesse cenário, pode haver maior tolerância em relação a políticas problemáticas do governo em áreas como educação, ambiente e relações exteriores, o que seria algo preocupante.
Bruno Carazza: Poço sem fundo
2020 é o patamar para ainda mais dinheiro em 2022
Peço desculpas às leitoras e aos leitores pela insistência. Pode parecer falta de assunto, mas nos tempos atuais, analistas políticos não têm do que reclamar - da pressão em favor da prisão em segunda instância à recente investida de Bolsonaro contra a classe artística, desta vez vedando sua participação no regime tributário especial do MEI, há excesso de matéria prima para colunas. Apesar disso, volto ao tema do aumento do fundo eleitoral porque considero não haver nada mais central para a configuração da política brasileira nos próximos anos.
Caso o Congresso venha a ratificar a proposta de elevar a dotação orçamentária do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas para R$ 3,8 bilhões em 2020, os partidos brasileiros conseguirão a façanha de extrair, do Erário, mais recursos do que obtinham das grandes empresas até 2014, quando o STF decidiu acabar com a farra das doações privadas misturadas com propinas do petrolão, do trensalão e de muitos outros esquemas de corrupção.
Projetando recursos do fundo partidário em torno de R$ 1 bilhão ao ano, mais duas parcelas de R$ 3,8 bilhões do fundo eleitoral em 2020 e 2022, serão quase R$ 12 bilhões de dinheiro público distribuído no atual ciclo eleitoral. E como a alocação desse dinheiro segue regras que privilegiam quem foi bem-sucedido nas urnas em 2018, as maiores fatias desse bolo ficarão com PSL (R$ 1,3 bilhão) e PT (R$ 1,2 bilhão). Na sequência, um grupo de nove partidos, do PSDB ao PDT, terão direito a um total que ficará entre R$ 560 milhões e R$ 700 milhões. Não é à toa que é justamente esse grupo de legendas (PSL, PT, PSDB, PSD, PP, MDB, PSB, PL, Republicanos, DEM e PDT, mais PTB e Solidariedade) que lidera o movimento para aumentar o fundão, numa coalizão baseada numa única ideologia: sangrar os cofres públicos para multiplicar suas chances de permanecer no poder.
Para quem acompanha a dinâmica das reformas eleitorais, esse movimento não é surpresa. Se até o início desta década o financiamento público de campanhas - modelo que não é adotado por nenhum país relevante do mundo - era uma quimera defendida exclusivamente pelo PT e seus partidos satélites, logo depois que o STF vetou as contribuições empresariais quase todos os demais partidos mudaram de lado. Sob o argumento de que “a democracia tem um preço e as eleições no Brasil são caras”, siglas de centro e da direita também passaram a defender a destinação de mais e mais dinheiro público para custear suas campanhas.
O primeiro movimento foi a ampliação do fundo partidário, que saltou de um patamar de R$ 100 milhões no final dos anos 2000 para o atual R$ 1 bilhão. Em 2016, quando o Congresso discutia a proposta de Emenda Constitucional para estabelecer o teto de despesas, os parlamentares inseriram um cavalo de Tróia no texto final: estariam de fora da base de cálculo do limite anual “despesas não recorrentes da Justiça Eleitoral com a realização das eleições”. No ano seguinte, a profecia se cumpria: o Congresso aprovou o fundo eleitoral de R$ 1,7 bilhão.
Afora todas as críticas que o aumento do fundo eleitoral tem recebido - de concentrar o poder de distribuição do dinheiro nas mãos dos caciques partidários, de favorecer sobremaneira os candidatos que buscam a reeleição e de elevar as barreiras à entrada e à renovação na política - é bom ser preparar para o pior. Se nas eleições municipais do ano que vem eles vão levar R$ 3,8 bilhões, podemos esperar cifras ainda mais altas em 2022.
O interessante nesse processo é que ele se dá à revelia de qualquer evidência empírica sobre a necessidade de alocar mais recursos públicos nas campanhas. Desta vez a fake news se baseia no fato de que as eleições serão realizadas em mais de 5 mil municípios, o que multiplica os gastos. De fato, eleições municipais são um pouco mais caras do que as eleições estaduais e federais, mas nada que justifique a ampliação do fundo eleitoral em mais de 120%. Basta lembrar que, o ministro Paulo Guedes que o diga, a maior parte dos municípios brasileiros tem um eleitorado tão reduzido que as campanhas são realizadas porta a porta, sem a necessidade de aportes milionários.
Não precisamos ir longe para demonstrar como não é necessário elevar o valor do fundo eleitoral no próximo ano. Em 2016, tivemos um experimento bastante interessante. As últimas eleições para prefeitos e vereadores foram realizadas após a decisão do STF de proibir as doações de empresas (2015) e antes da criação do fundo eleitoral (2017). Naquele ano, os gastos totais de todos os candidatos ficaram em torno de R$ 3,1 bilhões - em torno de 60% do custo total das eleições de 2014. E não houve qualquer ameaça ao pleno funcionamento da democracia.
Dada a gravidade da crise fiscal, os parlamentares estão decidindo sacrificar recursos da saúde, da educação e da infraestrutura para inflar o fundo que custeará as campanhas de seus partidos em 2020 e 2022. Trata-se de mais uma evidência de como a lógica dos custos difusos e dos benefícios concentrados impera no Estado brasileiro. Deputados e senadores jogam com a perspectiva de não serem responsabilizados individualmente pelo aumento do fundo eleitoral.
Como a maioria deles não sairá como candidato no ano que vem, eles utilizarão a ampliação do fundão para consolidar alianças nas suas bases eleitorais visando 2022 - e, até lá, ninguém mais se lembrará das listas de quem votou contra ou a favor do aumento do fundo no, então, longínquo dezembro de 2019.
Mais recursos para o fundo eleitoral também significam mais riscos de corrupção; afinal, esse mesmo Congresso acaba de aprovar uma reforma eleitoral que flexibiliza ainda mais a possibilidade de uso desses recursos e está derrubando, um a um, todos os vetos presidenciais dados na direção contrária. Com mais dinheiro e menos controle, os donos dos partidos terão o cenário perfeito para levar adiante esquemas com empresas de parentes e amigos, num enredo que nós brasileiros, infelizmente, já estamos acostumados a assistir.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Valor: Por que o nacionalismo é a marca das próximas décadas
Guerras tecnológicas, políticas nacionalistas e pouca coordenação global devem ser a marca das próximas décadas
Por Diego Viana, Valor Econômico
SÃO PAULO - Após 30 anos de um consenso liberal que surfou na onda da globalização, o mundo está entrando em nova fase: guerras tecnológicas, políticas nacionalistas e pouca coordenação global devem ser a marca das próximas décadas. O período de acelerada globalização, entre a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a crise financeira de 2008, foi uma exceção histórica, segundo a economista Monica Baumgarten de Bolle, pesquisadora-sênior do Instituto Peterson de Economia Internacional (Piie). O nacionalismo econômico de líderes como Donald Trump não são um acaso ou um momento passageiro, mas o primeiro passo na direção de uma outra fase da economia global.
“Está se formando uma ‘cortina de ferro tecnológica’”, afirma o cientista político Oliver Stuenkel, coordenador da pós-graduação em relações internacionais da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. Para Stuenkel, são duas as causas: ascensão da China como superpotência global e mudança na relação entre desenvolvimento técnico e integração regional. “O avanço das tecnologias, que costumava integrar mais os países, passa a produzir esferas de influência tecnológica”, afirma. “Para mim, essa é a maior ameaça ao livre-comércio.”
A tendência vai além da tecnologia, porém. Nesta semana, o Brasil sentiu na pele o pendor nacionalista de Trump, mas num setor tradicional: a siderurgia. O presidente americano acusou o país, e também a Argentina, de desvalorizar artificialmente suas moedas, e ameaçou reativar taxas de importação de aço e alumínio. Trata-se de taxas anunciadas para o mundo todo no ano passado, de 25% e 10% respectivamente, mas das quais os dois países sul-americanos tinham ficado isentos.
No mesmo dia, Trump ameaçou taxar produtos franceses em até 100%, em retaliação a um imposto sobre transações digitais. Desde 2017, o presidente americano também acusa a China de manipular sua moeda, o renminbi, reativando o tema das “guerras cambiais”, que era assunto em 2011, quando o então ministro da Fazenda brasileiro, Guido Mantega, dizia que a moeda artificialmente desvalorizada era o próprio dólar.
“A antítese do liberalismo não é o socialismo, como muita gente pensa, mas o nacionalismo”, afirma Monica. Em parceria com Jeromin Zettelmeyer, seu colega no Piie, a economista mediu o quanto as mensagens dos partidos políticos ao redor do mundo, à direita e à esquerda, estão se afastando do consenso liberal das últimas décadas. A dupla concluiu que é justamente essa antítese que está se expandindo.
“Ouvindo as propostas de Trump e depois de outros partidos populistas, aquilo nos pareceu familiar: lembra a tradição nacionalista e protecionista da América Latina”, afirma Monica.
O anúncio de Trump reforçou a demanda da indústria siderúrgica europeia para a Europa também aumentar barreiras à entrada do produto brasileiro. A Eurofer, associação dos produtores siderúrgicos da Europa, disse temer que o aço que o Brasil e a Argentina não puderem mais exportar para o mercado americano acabe desviado para a Europa, fragilizando ainda mais a já combalida indústria europeia.
A pesquisa do Piie, que analisou as plataformas de partidos políticos com mais de 10% dos votos nos países do G20 (grupo formado pelas 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia), antes e depois da crise de 2008, faz mais do que apontar a presença do populismo: mostra também que os partidos tradicionais do centro estão se tornando mais favoráveis a medidas de controle do comércio exterior ou de desenvolvimento macroeconômico nacional.
Em quase todos os critérios da pesquisa, as sociedades se tornaram mais protecionistas, nacionalistas e economicamente populistas. O resultado foi obtido ponderando os programas dos partidos com os votos que eles obtiveram em eleições, segundo tópicos como política industrial, recepção de imigrantes e recebimento de investimento estrangeiro. Siglas consideradas populistas, que costumavam ter uma posição econômica mais liberal, embora fossem anti-imigração, caminharam na direção de maior proteção comercial e adotaram propostas de política industrial. Ao mesmo tempo, partidos considerados não populistas passaram a adotar propostas mais hostis aos imigrantes, ao menos no mundo desenvolvido.
O fenômeno vale tanto para países ricos quanto para emergentes. As diferenças entre os dois grupos não são tão expressivas como se poderia esperar: em ambos, o gosto por tratados multilaterais de livre-comércio e instituições de governança global diminuiu acentuadamente. A principal diferença é que, no mundo desenvolvido, os partidos aumentaram a aposta em medidas de controle da imigração, enquanto nos países em desenvolvimento as promessas dos políticos evocam mais medidas de proteção à indústria local.
“As esferas de influência tecnológica vão ser o maior desafio para a política externa dos demais países, particularmente os emergentes”, afirma Stuenkel. “Uma coisa que me preocupa é que poucos países vão liderar o processo de avanço em áreas como inteligência artificial. Vão dominar essas indústrias. A corrida para controlar essas tecnologias vai criar muita desigualdade, porque os países em desenvolvimento tendem a não conseguir acompanhar o processo, o que vai aumentar a situação de dependência.”
No caso do Brasil, uma política de não alinhamento, como o país manteve durante boa parte da Guerra Fria, seria ideal, diz Stuenkel. Mas não seria fácil.
“A cortina de ferro tecnológica vai ser muito mais difícil de superar do que a cortina de ferro ideológica”, afirma. Mesmo no auge da Guerra Fria, os EUA colaboraram com países do bloco comunista, quando houve interesses em comum. “Mas se a disputa é pela dominância tecnológica e comercial, a situação é mais complicada: ou um país usa certa tecnologia ou não usa.”
Stuenkel sugere que, se não quer ficar para trás, o Brasil deve ter um “plano de investimento estratégico possante”, com adaptação da legislação que torne o ambiente econômico atraente para empresas de tecnologia e a formação de “uma nova elite, que seja competitiva no mundo da indústria 4.0”. Para as redes 5G, um bom passo seria conseguir que o país fornecedor se disponha a arcar com os custos de instalação da rede, algo que a China parece inclinada a fazer.
“Se a China tem uma empresa como a Huawei, que domina a tecnologia 5G, e os Estados Unidos não têm nada parecido, a ideia é que isto é por falta de uma política econômica nacional”, diz Stuenkel.
Mesmo nesse campo, encontra-se indício da passagem do consenso liberal à nova fase do nacionalismo econômico. “É um debate estratégico de longo prazo, que deveria acontecer nos ministérios e seria um ótimo tema para discutir em cúpulas anuais de dirigentes da América Latina, o que hoje, obviamente, não é viável, já que a mentalidade ainda está nas divisões da Guerra Fria, e não na guerra tecnológica”, diz.
Historicamente, a emergência do consenso liberal, a partir dos anos 80, foi um processo chefiado pelas potências ocidentais, na descrição do cientista político alemão Michael Zürn, autor de “Uma Teoria da Governança Global” e diretor do Centro de Pesquisa em Ciências Sociais de Berlim. Já nessa década, os acordos comerciais, ainda essencialmente tarifários, começaram a se tornar mais amplos, abrangendo mais áreas. A partir daí, os tratados começaram a intervir também nas políticas econômicas nacionais, “vistas como estratégias de proteção aos mercados domésticos”, afirma.
“O consenso liberal incentivou a evolução desses acordos, em processo que se intensificou com a evolução tecnológica, à medida que as fronteiras nacionais se tornaram menos relevantes e mais incômodas”, diz Zürn. “A globalização se intensificou a partir daí. Quando a União Soviética, pressionada e tentando responder com uma abertura controlada, entrou em colapso, os EUA e potências ocidentais viram a oportunidade de estabelecer um mundo realmente baseado no consenso liberal.”
Zürn aponta que, no geral, as instituições que organizam o mundo globalizado são as mesmas que surgiram ao fim da Segunda Guerra: Organização das Nações Unidas (ONU), Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial. A essas se somam instituições regionais, das quais a mais conhecida é a União Europeia (UE), que começou como mera união aduaneira. As atribuições dessas entidades se expandiram ao longo do tempo, tornando-se os alicerces da ordem global e promotoras do consenso liberal.
Monica e Zettelmeyer sublinham a importância da crise de 2008, conhecida como Grande Crise Financeira, como catalisadora da mudança nos programas dos partidos. “As mensagens de centro-direita e centro-esquerda ficaram pouco atraentes para os eleitores depois da crise”, diz Monica.
“Quando as mensagens mais extremadas começam a crescer no gosto da população, isso sempre inclui uma dose de nacionalismo econômico.”
Nos partidos já existentes, as siglas identificadas com a esquerda foram mais afetadas: sua reorientação para o nacionalismo econômico a partir de 2008 é mais radical do que a dos partidos considerados à direita.
Essa guinada reverte o processo que colocou os tradicionais partidos da esquerda, sobretudo na Europa, no coração do consenso liberal, ao longo da década de 90. Esse foi o momento da chamada Terceira Via, a era de Tony Blair (primeiro-ministro britânico de 1997 a 2007), Bill Clinton (presidente dos EUA entre 1993 e 2001) e o brasileiro Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Sob esse nome, a partir de um termo cunhado pelo sociólogo britânico Anthony Giddens, partidos de esquerda ao redor do mundo adotaram plataformas de defesa do livre-comércio e desregulação financeira, mas com maior preocupação social.
Essas são as agremiações que levaram o maior golpe após a crise financeira. A ala do partido Trabalhista britânico ligada a Tony Blair foi derrotada pelos seguidores mais radicais de Jeremy Corbyn. Na França, o presidente socialista François Hollande foi tão impopular que nem chegou a concorrer à reeleição. Na Alemanha, o tradicional Partido Social-Democrata (SPD) compõe o governo com seu antigo rival, os democrata-cristãos (CDU), mas vem tendo votações cada vez menores, ano após ano.
Algum movimento na direção de maior nacionalismo econômico e protecionismo é algo que se pode esperar após grave crise econômica. O exemplo clássico é a década de 30, em que a Grande Depressão levou os governos nacionais a enxergar o comércio e a finança internacionais não mais como uma arena de cooperação entre povos e países, mas como um espaço de disputa e rivalidade. Desvalorizações cambiais, barreiras tarifárias e outras medidas, que visavam à proteção da indústria doméstica e de empregos locais, deram o tom do período. Também foi o momento de ascensão de políticos populistas e nacionalistas, que resultou na Segunda Guerra.
Em 2015, os cientistas políticos alemães Manuel Funke, Moritz Schularick e Christoph Trebesch publicaram um artigo demonstrando que esse não foi um caso isolado. Examinando eleições ao longo de 140 anos (entre 1870 e 2014), os autores apontam que cada período de crise financeira é seguido de um aumento da incerteza política e da fragmentação partidária. Este é o solo em que se assenta o crescimento das políticas nacionalistas e das lideranças populistas. “Na média, partidos da extrema-direita populista, que põem a culpa da crise em minorias e estrangeiros, aumentam sua votação em 30% depois de crises financeiras”, escrevem.
Para Stuenkel, a crise e a lenta retomada que se seguiu não são o fator preponderante, mas a ascensão da China como polo econômico, geopolítico e tecnológico. “A grande aposta dos EUA, ao fim da Guerra Fria, foi na capacidade de inserir a China no sistema global, o que deveria trazer uma liberalização política e econômica no país. Não foi assim que aconteceu”, diz.
O caso da Huawei é emblemático. A empresa domina uma tecnologia de ponta em telecomunicações: a 5G, fundamental para o desenvolvimento da internet das coisas. É a primeira vez que o avanço industrial chinês envereda por campos que os países do Ocidente não atingiram. Também é, segundo Stuenkel, o primeiro momento em que um país emerge no cenário econômico mundial de um jeito que os Estados Unidos não conseguem encontrar uma resposta, como foi quando o Japão parecia ameaçar a hegemonia americana, nos anos 80.
Competidor
A reação dos tradicionais países desenvolvidos ao novo competidor transparece em detalhes contraintuitivos. Um deles é o item investimento direto estrangeiro, na pesquisa de Monica e Zettelmeyer. Nas economias mais ricas, as plataformas dos partidos apontam um aumento das restrições a esses investimentos. Mas quem restringiria o investimento produtivo?
“Em geral, essas restrições são a investimentos que de alguma maneira vêm da China”, afirma Monica. Na Europa, a principal preocupação é a perda da vantagem tecnológica, quando empresas de ponta são compradas por companhias chinesas. Nos EUA, soma-se a sensação de uma “perda da hegemonia americana no mundo”, diz a economista. “A questão é que o poder de influência dos chineses está cada vez maior, tomando o espaço do poder de influência dos americanos. Isso leva tanto os democratas quanto os republicanos a reagir.”
Um exemplo se encontra no projeto Estratégia Industrial Nacional 2030, que o ministro alemão da Economia, Peter Altmaier, anunciou em fevereiro. Um dos pontos do projeto é que o governo deverá intervir para evitar que empresas nacionais sejam compradas por companhias estrangeiras que sejam estatais ou “fortemente subsidiadas”.
De fato, o governo de Angela Merkel manifesta preocupação há anos com a possibilidade de perder para empresas chinesas a posição de ponta em maquinário industrial que a Alemanha possui. Em 2016, a fabricante de robôs Kuka foi comprada pela chinesa Midea. No ano passado, porém, o governo chinês, adiantando-se à promessa de intervenção de Berlim, impediu o grupo Yantai Taihai de comprar a fabricante de maquinário alemã Leifeld. A Leifeld produz equipamentos para indústrias nucleares.
“Essa estratégia alemã dificilmente vai ser bem-sucedida”, afirma Stuenkel. “Os alemães estão querendo vencer o jogo jogando como os chineses, mas estão muito em desvantagem.” Seria mais eficaz, para o cientista político, definir setores em que a Alemanha não vai cooperar com a China e, apenas para esses mercados, introduzir proteções.
Altmaier também tem defendido que a Europa desenvolva uma política conjunta para desenvolver a indústria, com um fundo para investir em novas tecnologias e a proteção do mercado continental. “Isso é muito surpreendente para um país que vive de exportação e depende de mercados abertos”, diz Stuenkel.
A versão final do documento foi apresentada no mês passado e ainda será analisada pelo governo da Alemanha, que poderá rejeitá-lo ou modificá-lo. Comentando as críticas que o projeto tem recebido, Altmaier chegou a dizer que a intenção era recolocar a indústria em seu lugar de direito: “Pela primeira vez em anos, o centro do debate político”. O ministro também disse que recebeu apoio de outros países da Europa.
Para conseguir jogar o jogo chinês com chance de vitória, seria necessário que a Europa estivesse em estágio de coordenação política que não existe. No caso das tecnologias 5G, Merkel deixou claro que não quer que o âmbito da decisão seja Bruxelas. Assim, são os parlamentos nacionais que vão escolher entre aceitar ou rejeitar a participação da Huawei.
A ascensão do nacionalismo econômico sugere que a globalização perdeu força e pode até mesmo estar refluindo. Desde 2008, a expansão do comércio internacional, que até então era duas vezes mais rápida do que a expansão da economia como um todo, arrefeceu, e não tem ultrapassado o ritmo do crescimento global. Desde o início de 2019, vem até mesmo recuando, em comparação com o ano passado.
O plebiscito do Brexit, em 2016, talvez tenha sido o primeiro grande sintoma de que o impulso globalizador se esgotava. Na ocasião, o diplomata chinês He Yafei, ex-vice-ministro de Relações Exteriores da China, se referiu à votação como “parte da primeira onda de desglobalização” e previu futuro “intenso e feroz, com forças pró e contra a globalização lutando batalhas acirradas em diversos campos”.
A ordem liberal, que emergiu na virada para a década de 90, já estava abalada desde 2001, afirma Zürn. Foi nesse ano que o ataque às Torres Gêmeas, nos EUA, demonstrou que haveria resistência ao avanço da ordem liberal; e também foi em 2001 que o economista britânico Jim O’Neill cunhou a expressão Brics para se referir a países emergentes com grandes territórios e tendência ao crescimento não só econômico, mas de influência global.
Ainda que se possa duvidar da coordenação efetiva entre Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul, o que O’Neill indicava, com o horizonte para 2050, era a perda relativa de influência e poder das potências ocidentais, Europa em particular. Significaria que os países em ascensão passariam a exigir mudanças nas regras da governança global, avançando seus interesses. Mas essas mudanças provocariam reações nos países estabelecidos, perante o risco de perder espaço.
Este é, de fato, o momento que o mundo atravessa hoje. As potências emergentes, China à frente, se ressentem do modelo de tomada de decisões dos organismos de governança global. As potências ocidentais têm pouco interesse em reformá-los. Certas lideranças, a começar por Trump, preferem se afastar e agir por conta própria. Zürn acrescenta que as antigas potências foram incapazes de se adaptar à emergência de novas potências, o que se reflete na crise das instituições de Bretton Woods e na criação de instituições paralelas, como o Banco de Investimento em Infraestrutura da Ásia e o Banco dos Brics. Mas a crise do consenso liberal conduz à pergunta: poderíamos, de fato, esperar que a transição ocorresse de maneira mais harmoniosa?
Tendência
Stuenkel aponta tendência de que o comércio global esteja cada vez mais sujeito a tomadas de decisão geopolíticas. Esta é uma das maneiras como as esferas de influência tecnológica vão se manifestar. “Se, por exemplo, um país do tamanho do Brasil optar pela Huawei para a rede 5G, certamente os Estados Unidos vão reagir dificultando a entrada de produtos brasileiros em seu mercado”, diz. A interdependência entre comércio global e geopolítica vai necessariamente implicar a interferência política dos governos na circulação internacional de bens e serviços.
A comparação com a América Latina é esclarecedora por outros motivos. No ano passado, Trump implodiu o Nafta (Acordo de Livre-Comércio da América do Norte), e em seu lugar foi criado o USMCA (Acordo Estados Unidos-México-Canadá). “Não é um acordo de livre-comércio, mas um acordo de comércio administrado. Tem cotas de importação, restrições voluntárias de exportação, vários instrumentos de manejo do comércio que não estão em linha com o que se entende por livre-comércio", diz Monica. É um modelo mais próximo ao Mercosul.
Por outro lado, os países de governos mais liberais tampouco estão imunes à onda do nacionalismo econômico. A saída americana do TPP (Parceria Transpacífica), novamente por iniciativa de Trump, ensejou a criação de um substituto incluindo os demais membros do acordo abortado: trata-se do CPTPP (Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica). “Mas esse acordo, depois da saída dos EUA, embora tenha mantido muito do que estava no TPP, reintroduziu várias barreiras ao comércio”, afirma a economista.
A nova fase geopolítica é um “nivelamento”, segundo o economista irlandês Michael O’Sullivan, do banco Crédit Suisse. O’Sullivan lançou neste ano o livro “The Levelling: What’s Next After Globalization” (O nivelamento: o que vem depois da globalização), argumentando que o mundo caminha para uma estrutura multipolar. Isso significa que cada região do planeta se torna mais isolada das demais, com uma maior coesão interna a cada polo e com suas próprias instituições internas de governança.
O’Sullivan afirma que as estruturas de governança internacionais foram incapazes de acompanhar a velocidade com que a economia se globalizou, as empresas se tornaram transnacionais e as decisões políticas e econômicas saíram das mãos dos governos nacionais. O descompasso levou a uma rejeição da integração internacional, primeiro entre eleitores, que começam a se inclinar mais para mensagens populistas; depois no sistema político em geral, que adota programas cada vez mais nacionalistas. Por fim, nas atitudes concretas de quem detém o poder.
Para o economista, a ordem que se constituiu nos últimos 30 anos se desfaz, entre outras razões, porque “o contrato que as pessoas acreditavam ter com políticos, governos, instituições e possivelmente entre si está se desintegrando”. É um erro se referir ao desconforto dos eleitores como mera inclinação ao populismo, porque por trás existe uma genuína sensação de desconforto e confusão com o mundo, diz.
Essas disputas internacionais se refletem nas políticas domésticas indiretamente. Assim, alguns episódios pontuais revelam o processo pelo qual partidos estabelecidos, tradicionais e anteriormente adeptos do consenso liberal vão aos poucos sendo empurrados na direção de maior protecionismo e nacionalismo. Muitas vezes, esse movimento também passa pela xenofobia.
Em outubro, o presidente da França, Emmanuel Macron, sofreu críticas ao conceder entrevista para uma revista conservadora de pequena tiragem, “Valeurs Actuelles”. Na entrevista, os temas da laicidade e do islã tiveram posição central. Para os críticos, Macron estava sinalizando aproximação com a direita nacionalista que tem votado em candidatos como Marine Le Pen.
Na Alemanha, Angela Merkel adotou em 2015 uma política de recebimento livre de imigrantes, com a divisa “Wir schaffen es” (Nós vamos conseguir). A política foi usada por partidos de extrema-direita, como o Alternativa para a Alemanha (AfD), para agitar o sentimento nacionalista em eleições regionais, com sucesso. Desde então, a política imigratória de Merkel mudou. Neste ano, foi aprovada uma lei que, por um lado, facilita o acesso de imigrantes ao mercado de trabalho, mas, por outro, também reduz drasticamente as barreiras para deportações.
Nos Países Baixos, as eleições de 2017 marcaram aparente derrota do extremista Geert Wilders e de seu Partido da Liberdade (PVV). Wilders é conhecido por vociferar contra a “islamização” de seu país e da Europa. Segundo o sociólogo Dirk Witteveen, porém, o que ocorreu naquele ano não foi um refluxo da mensagem anti-imigração de Wilders, mas a progressiva adoção, ao longo da campanha eleitora, de algumas de suas propostas pelos partidos tradicionais - os Conservadores Liberais (VVD), os Democratas Cristãos (CDA) e os Democratas (D66).
Witteveen aponta que o VDD e o CDA, que compõem a coalizão de governo, passaram de favoráveis à integração europeia a contrários à expansão das prerrogativas da UE. Ambos os partidos adotaram projetos nacionalistas e protecionistas, sobretudo em relação à imigração. Ainda assim, o partido de Wilders cresceu, chegando a 20 deputados de um total de 150. Tornou-se o segundo maior partido do país, atrás apenas dos conservadores, com 33 deputados.
O sociólogo faz a ressalva de que a plataforma de Wilders também propõe um Estado mais ativo na economia, com a redução da idade de aposentadoria e a construção de moradias para idosos. Assim como no exemplo de Trump, cuja campanha eleitoral, em 2016, se apoiava tanto na retórica anti-imigração como na promessa de geração de empregos e recuperação da indústria, nem sempre é possível discernir o nacionalismo político do econômico.
O caso americano chama atenção porque ambos os grandes partidos, que dominam a política do país quase inteiramente, têm se afastado desde 2016 do consenso liberal. O Partido Republicano, mais conservador, se tornou sob a batuta de Donald Trump um bastião do nacionalismo, inclusive econômico. A partir de 2017, os EUA bloquearam a TPP, saíram do Acordo de Paris e começaram uma guerra de tarifas contra a China.
Os democratas, por sua vez, testemunham a ascensão de movimentos internos que questionam as regras que sustentaram a economia globalizada das últimas décadas. A pré-candidatura de Bernie Sanders à Presidência em 2016, que disputou a indicação democrata com Hillary Clinton, já apontava para um Estado mais presente na economia. O projeto do Green New Deal, encampado pela deputada Alexandria Ocasio-Cortez, é fortemente baseado na capacidade estatal de fazer os investimentos necessários à transição energética, ainda que isso inclua a emissão de moeda e o endividamento público.
“Há um novo consenso surgindo na sociedade americana”, diz Stuenkel. “Se a China tem uma empresa como a Huawei, que domina a tecnologia 5G, e os Estados Unidos não têm nada parecido, a ideia é que isto é por falta de uma política econômica nacional.”
César Felício: O preço da liberdade
São poucos os que não chegaram à constatação de que o atual presidente só não golpeia as instituições por falta de oportunidade
A frase, muito repetida, é de 1790 e trata-se da adaptação do trecho de um discurso de um advogado irlandês pouco conhecido no Brasil, John Curran. “A condição sobre a qual Deus deu liberdade ao homem é a vigilância eterna; a qual, se quebrada, torna a servidão ao mesmo tempo consequência de seu crime e castigo de sua culpa”. O preço da liberdade, pois, é a eterna vigilância, como têm alertado recentemente governadores, dirigentes partidários e observadores da cena política brasileira.
Do PSDB ao PCdoB, do MDB ao Republicanos, do PL ao Psol, da sala de um banqueiro na Faria Lima a simpósios de cientistas políticos, ao longo do ano, a frase foi frequentemente citada quando os interlocutores foram convidados a refletir sobre o que tem significado este primeiro ano do governo Bolsonaro. São poucos os que não chegaram à constatação de que o atual presidente só não golpeia as instituições por falta de oportunidade. A estratégia é a de contenção permanente, em um ambiente onde o risco de um golpe não está sendo negligenciado.
Brasil vive guerra fria particular que favorece Bolsonaro
O próprio presidente e seu entorno ajudam seus vigilantes nos momentos de grande vacilação, em que a tese do golpismo parece excessivamente frágil por não responder a perguntas essenciais. Por exemplo, qual seria um possível pretexto para uma ruptura institucional? A resposta não tardou. Ora, que dúvida! Um novo AI-5 se justifica em um cenário de conturbação social, em que a turba enlouquecida promova saques, incêndios, depredações e o caos absoluto. É o que os arautos do bolsonarismo supõem que esteja acontecendo no Chile.
Na realidade, até o momento, a classe política chilena procura saídas para a insatisfação popular dentro da institucionalidade. Uma demonstração disso é a convocação de uma assembleia constituinte. Outra demonstração foi a mudança de gabinete que o presidente Sebástian Piñera promoveu. Fala-se no país da construção de um sistema de seguridade social mais consistente. Se tudo isso irá ou não acalmar as ruas, cedo para dizer, mas o fato é que ninguém, por ora, tem apregoado um AI-5 naquele país.
Bolsonaro mantém o revólver sobre a mesa, até com certo deboche. Ontem foi flagrado pelo microfone aberto durante a cúpula do Mercosul, em uma brincadeira, perguntando se “não dava pra dar um golpe não?” e continuar na Presidência pro-tempore do bloco. O presidente exercita o bom humor em um momento em que a democracia e a tolerância são sentimentos em baixa no mundo.
Vive-se tempos de intolerância, de origem ainda a esclarecer. Há autores que ligam o desprestígio da democracia com a crise econômica global e outros com as desordens no Oriente Médio deste século, tudo tendo como catalisador o avanço da inteligência artificial e a multiplicação exponencial do arsenal de manipulação de informação de que se dispõe atualmente.
O medo é um sentimento poderoso que se espalha pelas redes. Uma pesquisa global coordenada no ano passado pela Fundação de Inovação Política do Instituto Republicano Internacional, um ‘think tank’ francês, realizou 36 mil entrevistas em 42 países e deixou evidente que as ondas de pânico não conhecem fronteiras. Segundo o levantamento, intitulado “Democracias sob tensão”, há mais brasileiros inquietos com uma potencial ameaça islâmica do que americanos e britânicos (62% a 54% e 53%, respectivamente), um dado que surpreende, já que no Brasil nunca houve atos terroristas de motivação religiosa.
Surpreende ainda mais, dado que o levantamento mostrou, mais uma vez, que o brasileiro é muito tolerante. O percentual de pesquisados que diz que não se incomoda com opiniões políticas diferentes das suas no Brasil simplesmente é o maior do mundo. Mas de cada quatro brasileiros, três preferem mais ordem, ainda que com quem menos liberdade. Só um em cada seis brasileiros confia na mídia. Já a percepção da Internet e das redes sociais é amplamente positiva.
Quem se dispõe a exercer a eterna vigilância sobre Bolsonaro - partidos políticos, o parlamento, a mídia, a Justiça - são instituições todas em crise. A eterna vigilância, neste caso, em tese, pode não ter o aval popular. O povo, de certa forma, estaria aberto a uma ditadura regeneradora. Se Bolsonaro é a pessoa capaz de exercer este papel messiânico é outra coisa. Falta ao presidente popularidade para tal - trata-se de um dirigente com taxas apenas medianas de aprovação, abaixo das obtidas por outros presidentes eleitos nos últimos anos, considerando o mesmo tempo decorrido de governo.
Não há, contudo, outro candidato a Bonaparte no horizonte. Em um movimento que pode ter sido definitivo para consolidar seu poder e o mais importante que fez desde a vitória nas urnas, o presidente neutralizou Sergio Moro, rival capacitado para atrair este tipo de idolatria, ao colocá-lo no Ministério da Justiça e obter a sua lealdade. Manter Moro próximo de si continua sendo crucial para o presidente.
O ano de 2019 se aproxima do fim com o Brasil vivendo sua guerra fria particular, onde um equilíbrio do terror se exerce. Nem Bolsonaro tem a força para golpear as instituições, nem as instituições contam com combustível suficiente para promover a contenção definitiva de seus ímpetos.
A posição do presidente, contudo, é a mais confortável. Ter colocado um revólver sobre a mesa de nenhuma maneira o obriga a utilizá-lo. E é questionável cravar que estamos em um ponto de ruptura. O Brasil ainda é um pais onde um juiz federal de uma pequena cidade do interior bloqueia uma nomeação presidencial, como acaba de ocorrer no caso da escolha de Sergio Nascimento para o comando da Fundação Palmares.
De embate em embate, de desautorização em desautorização que recebe dos eternos vigilantes, o presidente vai construindo o cenário para a reeleição. Tem pronto o discurso e terá um partido à sua imagem e semelhança. O Aliança pelo Brasil não será a primeira a sigla a nascer no Brasil pela e para a vontade de um mandatário e nada faz pensar que será o último.
É possível brincar com a democracia, e, ao mesmo tempo desfrutar dela. No Brasil, as instituições funcionam.
Ribamar Oliveira: Opção preferencial pelos militares
Investimentos da Defesa se tornam obrigatórios
Contrariando o discurso oficial, que prega a redução do engessamento orçamentário, o governo aceitou que os investimentos do Ministério da Defesa programados para 2020 não sejam objeto de limitação de empenho, ou seja, não poderão sofrer contingenciamento. Os investimentos da Defesa serão, portanto, obrigatórios no próximo ano. Os únicos do Orçamento.
O governo poderia ter vetado o dispositivo da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) - lei 13.898/2019 - que dá tratamento privilegiado aos investimentos da Defesa, como fez com outros gastos que os deputados e senadores tentaram proteger da tesoura no próximo ano, mas não o fez.
Os parlamentares incluíram na lista das despesas que estão livres do contingenciamento 13 novas ações e programas. Eles excluíram dos cortes, por exemplo, todas as ações vinculadas à educação, os gastos com o programa Mais Médicos e as ações do Plano Nacional de Segurança Pública. Tudo isso foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro, depois de ouvido o Ministério da Economia.
A explicação para os vetos foi a seguinte: “Os itens propostos não são passíveis de limitação de empenho, o que, por consequência, eleva o nível de despesas obrigatórias e reduz o espaço fiscal das despesas discricionárias, além de restringir a eficiência alocativa do Poder Executivo na implementação das políticas públicas”. O governo também argumentou que “a inclusão contribui para a elevação da rigidez do Orçamento, dificultando não apenas o cumprimento da meta fiscal como a observância do Novo Regime Fiscal, estabelecido pela EC nº 95/2016 [teto de gastos], e da ‘regra de ouro’, constante do inciso III, do art. 167 da Constituição Federal”.
Os mesmos argumentos, no entanto, não foram válidos para os investimentos do Ministério da Defesa e para as despesas com ações vinculadas à função ciência, tecnologia e inovação, no âmbito do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Quando encaminhou ao Congresso a mensagem modificativa da proposta orçamentária de 2020, o governo informou que incluiu na relação das despesas obrigatórias do próximo ano dotações de R$ 4,1 bilhões do Ministério da Defesa e R$ 3,1 bilhões do MCTIC.
Na mesma mensagem modificativa, o governo ampliou em R$ 5,4 bilhões as chamadas despesas discricionárias, que são os investimentos e o custeio estrito da máquina pública. Elas estavam com valores muito baixos na proposta orçamentária original. Do total, 44% foram destinados ao Ministério da Defesa, ou R$ 2,376 bilhões. A área de infraestrutura ganhou só 17,6% do total e o Ministério da Educação, ficou com apenas 11%.
Não houve explicações oficiais para a maior destinação de recursos ao Ministério da Defesa nem para a inclusão dos investimentos do órgão no rol das despesas obrigatórias da União, principalmente diante da carência de recursos em áreas vitais da infraestrutura, no momento em que o país passa por um verdadeiro apagão logístico.
Os investimentos do Ministério da Defesa que passarão a ter execução obrigatória no próximo ano são: programa de desenvolvimento de submarinos (Prosub) e programa nuclear da Marinha (PNM), com dotação de R$ 1,5 bilhão; desenvolvimento de cargueiro tático militar de 10 a 20 toneladas, com R$ 166,430 milhões; aquisição de aeronaves de caça e sistemas afins, projeto FX-2, com R$ 951,370 milhões; aquisição de cargueiro tático militar de 10 a 20 toneladas, projeto KC-390, com R$ 613,830 milhões; implantação do sistema de defesa estratégico Astros, com R$ 155,7 milhões; implantação do projeto Guarani, com R$ 338,1 milhões; e implantação do sistema integrado de monitoramento de fronteiras (Sisfron), com R$ 239,7 milhões. Os dados constam da mensagem modificativa da proposta orçamentária de 2020.
Mais gastos
Por meio do decreto 10.120, de 21 de novembro deste ano, o presidente Jair Bolsonaro elevou os limites para despesas com pessoal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) e do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFJ). Especialistas em finanças públicas ouvidos pelo Valor estimam que os novos limites permitem que os dois órgãos elevem seus gastos com pessoal em até 45% ou algo em torno de R$ 1,4 bilhão.
A Constituição determina que o gasto da União com pessoal não pode exceder a 50% da receita corrente líquida, sendo o limite de 40,9% para o Executivo. Deste total, 3% serão distribuídos entre o Distrito Federal, o TJDFT, o MPDFT e o quadro em extinção dos ex-territórios do Amapá e de Roraima. Com o decreto, o limite do TJDFT passou de 0,275% para 0,399%, enquanto que o limite do MPDFT passou de 0,092% para 0,133%. Os limites dos ex-territórios foram diminuídos, o do Distrito Federal foi mantido, respeitando o limite global de 3%.
Consultado pelo Valor sobre a mudança, o Ministério da Economia informou que o decreto 10.120 “não altera os gastos no total, tendo em vista os limites estabelecidos pela emenda constitucional 95, de 2016, ou seja, para aumentar a despesa com pessoal, os órgãos envolvidos deverão reduzir os mesmo valores nas despesas discricionárias”.
Segundo o Ministério da Economia, “a alteração partiu de demanda do órgão em comum acordo com os outros órgãos submetidos ao mesmo limite para ajustar à realidade da divisão de gastos de pessoal entre os envolvidos”.
É preciso considerar, no entanto, outros aspectos desta questão. Em 2012, o TJDFT usava 65,1% do seu limite para gasto com pessoal e em 2019 foi para 87,3%. O MPDFT, por sua vez, saiu de 57,8% de seu limite para 86,1%, no mesmo período. Os dados indicam que há uma tendência nesses dois órgãos para uma política de pessoal expansionista. A modificação realizada não é neutra do ponto de vista fiscal, pois abre espaço para a continuidade dessa política.
Um eventual aumento do gasto com pessoal dos dois órgãos terá que ser compensado pelo corte de outras despesas para que a regra do teto seja cumprida. A questão é que haverá, mais uma vez, aumento de despesa obrigatória, com redução das despesas discricionárias, o que é, justamente, o que o atual governo deseja evitar.
Luiz Gonzaga Belluzzo: O Papa Francisco e o esterco do diabo
Documento aponta males da supremacia dos mercados financeiros e suas consequências sobre a vida dos homens
Em carta aos jovens economistas do mundo, Papa Francisco sugeriu que se reunissem na cidade de Assis, Itália, entre 26 e 28 de março de 2020 para repensar uma nova doutrina econômica para o mundo.
Uma doutrina que vá além das “diferenças de credo e nacionalidade”, inspirada “na fraternidade, sobretudo para os pobres e excluídos”.
Em 2013, o Papa Francisco ofereceu aos cristãos a Primeira Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”. Assim como as encíclicas Rerum Novarum de Leão XIII, Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII, a exortação apostólica de Francisco abordava as vicissitudes e esperanças da vida cristã no mundo contemporâneo.
Também em 2013, Francisco lamentou o Espírito desse mundo que reduz o Homem “a uma única das suas necessidades: o consumo e, pior ainda, o ser humano é considerado também um bem de consumo que pode ser utilizado e jogado fora. Inversamente, “a solidariedade, o tesouro do pobre, é considerada contraprodutiva, contrária à racionalidade financeira e econômica”. Isto deve-se “a ideologias promotoras da autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira, que negam o direito de controle dos Estados”.
Já em 2015, durante outra audiência no Vaticano, o Papa disse que “o dinheiro é esterco do diabo”, acrescentando que, quando o capital se torna um ídolo, ele “comanda as escolhas do homem”. Aprisionado nas engrenagens impessoais da economia sem alma, o Homem sem Escolhas entrega seu destino ao diabo e seus estercos.
Na edição de 17/5/ 2018, o Osservatore Romano registra a divulgação do documento Oeconomicae et pecuniariae quaestiones elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé. O texto de 16 páginas contém “considerações para um discernimento ético acerca de alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro”.
O documento foi apresentado na Sala de Imprensa pelo arcebispo Luis Francisco Ladaria Ferrer e pelo cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson. Já na introdução o texto revela seu propósito de avaliar a supremacia dos mercados financeiros - os estercos do Diabo - e suas consequências sobre a vida de homens e mulheres que habitam o mundo dos vivos. “A recente crise financeira poderia ter sido uma ocasião para desenvolver uma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira, neutralizando os aspectos predatórios e especulativos, e valorizando o serviço à economia real”.
Embora muitos esforços positivos tenham sido realizados em vários níveis, sendo os mesmos reconhecidos e apreciados, não consta, porém, uma reação que tenha levado a repensar aqueles critérios obsoletos que continuam a governar o mundo. Antes, parece às vezes retornar ao auge um egoísmo míope e limitado a curto prazo que, prescindindo do bem comum, exclui dos seus horizontes a preocupação não só de criar, mas também de distribuir a riqueza e de eliminar as desigualdades, hoje tão evidentes.
Está em jogo o autêntico bem-estar da maior parte dos homens e das mulheres do nosso planeta, os quais correm o risco de serem confinados de maneira crescente sempre mais às margens, se não de serem “excluídos e descartados do progresso... se queremos o bem real para os homens, o dinheiro deve servir e não governar!”.
A palavra da Doutrina da Fé despertou-me a lembrança dos Essays in Persuasion de John Maynard Keynes. O conjunto de ensaios publicado em 1930 espargia esperanças. Keynes sustentou que “o Mundo Ocidental já tem os recursos e a técnica capazes de reduzir o Problema Econômico que agora absorve nossas energias morais e materiais, se pudéssemos criar a organização para usá-los... Acredito que não está longe o dia em que o Problema Econômico vai tomar o banco de trás e a arena do coração e do cérebro será ocupada, ou reocupada, por nossos problemas reais - os problemas da vida e das relações humanas, da criação, do comportamento e da religião”.
Na contramão dos vislumbres otimistas de Maynard, a economia contemporânea, comandada pela finança, excita as esperanças, mas, enquanto destrói a natureza, constrói terríveis realidades humanas. As novas formas financeiras contribuíram para aumentar o poder das corporações internacionalizadas sobre grandes massas de trabalhadores, permitindo a “arbitragem” entre as regiões e nivelando por baixo a taxa de salários. As fusões e aquisições acompanharam o deslocamento das empresas que operam em múltiplos mercados.
Isso ampliou o fosso entre o desempenho dos sistemas empresariais “globalizados” e as economias territoriais submetidas à regras jurídico-políticas do Estados nacionais. A abertura dos mercados e o acirramento da concorrência coexistem com a tendência ao monopólio e debilitam a força dos sindicatos, fazendo periclitar os direitos sociais e econômicos.
Em seu livro As Ideias e os Fatos, Frederico Mazzuchelli registra a menção de Francisco à concorrência, matriz da “insatisfação e da tristeza individualista que escraviza”. O Papa rejeita as formas de religiosidade que fazem o espírito recuar para os recônditos do individualismo, uma espécie de “consumismo do sagrado”. “Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus”. Os olhares do nosso tempo perderam de vista a utopia da comunidade cristã, forma de convivência incrustrada nas origens do cristianismo.
“Um Jesus Cristo sem carne” é o código de acesso ao mistério libertador da Encarnação, um divisor de águas na história da humanidade, um movimento revolucionário, nascido das crueldades e sabedorias do mundo greco-romano.
Na corporeidade do Filho, Deus Pai adquire uma dimensão humana para sofrer as agruras dos mortais e despejar solidariedade incondicionalmente. O tempo assume uma dimensão histórica: Cristo trouxe a certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história coletiva realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo sacrifício da cruz e pela ressurreição.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.
Fernando Exman: Será ruim retaliar com Alcântara
Lançamento comercial só deve ocorrer em 2022
A intempestiva ação do presidente americano, Donald Trump, que ameaçou taxar produtos brasileiros chegou em péssima hora para os defensores do acordo de salvaguardas tecnológicas, assinado com os Estados Unidos, para viabilizar o Centro Espacial de Alcântara. Será negativo, contudo, se esse acordo passar a figurar em uma eventual lista de potenciais retaliações aos EUA.
Nada mais natural que a oposição aproveite a oportunidade de criticar o governo pelas concessões feitas aos americanos, sem que as esperadas contrapartidas tenham se concretizado. Talvez apenas o presidente Jair Bolsonaro e sua família acreditaram que o Brasil teria um tratamento privilegiado dos EUA, em razão de sua vitória na eleição do ano passado.
O acordo de salvaguardas tecnológicas não entra nesse balaio. Ele assegura que o Brasil se compromete a proteger as tecnologias americanas, as quais, segundo dados do governo, estão em aproximadamente 80% dos componentes utilizados em foguetes e satélites do mundo.
No Executivo, é visto como instrumento fundamental para o desenvolvimento do setor e para o estabelecimento de uma política espacial efetiva. E pretende ser utilizado também como vetor do desenvolvimento da região em que o Centro Espacial de Alcântara está localizado, no Maranhão.
A tramitação do acordo não foi absolutamente tranquila, mas conseguiu superar obstáculos ideológicos. Se tivesse demorado um pouco mais, poderia correr o risco de ter sua aprovação utilizada como refém ou até mesmo vítima colateral do recente estranhamento observado nas relações bilaterais.
Seria um erro do Congresso. Com a autorização do Legislativo em mãos, portanto, o Executivo começa a tomar as providências cabíveis.
Ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), Marcos Pontes tem apreço pelo tema e o trata como prioritário. Ao Valor, ele detalhou o que se pode esperar a partir de agora: um grupo interministerial se debruçará sobre o assunto e definirá um “plano de negócios”.
Além do MCTIC, estarão envolvidas as pastas da Infraestrutura, da Cidadania, da Mulher, Família e Direitos Humanos, da Educação, da Saúde, da Agricultura e da Defesa. Representantes desses ministérios irão a Alcântara conversar com a comunidade quilombola local, integrantes dos governos estadual, municipal, universidades e empresários da região. Com a ajuda do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), formularão políticas de capacitação de trabalhadores e de empreendedores locais. Esse grupo também analisará as demandas de infraestrutura para a região e as necessidades do centro espacial, tanto para as suas instalações físicas quanto em relação a equipamentos.
Marcos Pontes costuma dizer que, em 30 anos, foi o único ministro a visitar o local para conversar com os moradores. Quer ouvir deles o que se pode fazer para aprimorar os serviços de saúde e educação da região. Defende melhorias no instituto federal lá instalado, e revela que o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) quer ter um braço em São Luís.
“Eu não gostaria de mexer na cidade de Alcântara. Lá é uma cidade histórica, tem ruínas lá dentro. As ruas são antigas, o estilo das casas. Aquilo ali pode ficar igual Paraty, pode ter restaurantes e barzinhos”, diz, defendendo que não se altere a estética local. Construção de prédios só com o mesmo estilo arquitetônico e para abrigar museus ou outros equipamentos públicos relacionados à cultura e à tradição. “A gente pode fazer uma estrada passando pelas vilas e construir, aí sim, um setor novo com prédios modernos, hotéis, restaurantes modernos e uma estrutura adequada e confortável.”
Para Pontes, Alcântara precisa ter logo internet de alta velocidade e um melhor fornecimento de água. Com isso, vai virar um polo de inovação ligado ao setor espacial.
“Estamos em um momento no planeta em que os países perceberam que isso é um bom negócio”, destacou o ministro, acrescentando que Portugal está fazendo um centro espacial e oceânico nos Açores e a Nova Zelândia está também apostando no setor.
Uma aposta comercial, sublinha. Não militar.
“Isso aqui é para ser um centro comercial. A ideia é ter empresas vindo para cá”, explicou. “O centro vai oferecer serviços de lançamento. Ele é operado pelo Brasil o tempo todo, com todo o controle das operações.”
O ministro explica com didatismo. De um lado, o Brasil terá como fornecedores empresas que possuem foguetes. A base terá seis plataformas, com distintas adequações técnicas. Com esse portfólio de lançadores, irá atrás de clientes que querem ter seus satélites lançados.
Assim, o país vai operar o lançamento, fazer a cobrança desse cliente e repassar parte do que cobrar para pagar o fornecedor. Usará o restante do dinheiro para desenvolver o programa espacial brasileiro e promover melhorias na infraestrutura local. Em relação ao programa espacial, o plano do ministro é direcionar os recursos principalmente para o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que desenvolve sistemas espaciais. “Isso vai movimentar todo o parque industrial que apoia este setor.”
Segundo informações prestadas pelo governo para convencer os parlamentares, este mercado movimenta cerca de US$ 350 bilhões por ano e pode atingir cerca de US$ 1 trilhão. Marcos Pontes estima que o Brasil possa arrecadar no início das operações aproximadamente R$ 300 milhões por ano.
“Não é pouco?”, pergunta o ministro, para então emendar a resposta: “Não. Para se ter uma ideia, no nosso programa espacial inteiro eu consigo colocar R$ 150 milhões no ano. É o dobro”.
O governo acredita que fazer esse “plano de negócios” funcionar tomará 2020. Lançamentos de treinamento ocorrerão em 2021. “Imagino que em 2022 é uma boa e otimista expectativa de a gente ter um primeiro lançamento comercial. Tem que ser realista com a coisa”, diz o ministro, que já avalia se haverá necessidade de assinatura de acordos de salvaguarda com outros países.
Depois de tantos avanços e retrocessos, as autoridades estão otimistas com as perspectivas do programa. Estão de olho no espaço, mas com os pés no chão.
Andrea Jubé: As ‘fake news’ e os dois coelhos da cartola
Depoimento de Joice pode ser divisor de águas na CPMI
No dia 26 de junho, um falso portal de notícias publicou uma falsa entrevista do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), onde ele atacava o governo e o presidente Jair Bolsonaro com frases grosseiras e ofensivas.
Foi uma operação sofisticada, muito além do mero impulsionamento de notícias falsas. Antes de publicar o conteúdo fraudado, o portal fantasma (www.portal79.news) funcionou durante um mês, com o mesmo logotipo e reproduzindo integralmente matérias do site original, o Portal 79 (www.portal79.com.br), a fim de imprimir credibilidade ao material.
Entretanto técnicos do site verdadeiro haviam detectado a clonagem desde o início e acompanharam diariamente os desdobramentos da fraude. Quando a entrevista falsa foi ao ar, o diretor de redação do Portal 79, Higor Trindade, acionou o senador. Foi instaurado inquérito na Polícia Federal. A investigação corre em sigilo, mas os investigadores já descobriram que a página fantasma que saiu do ar estava hospedada na Romênia.
Alessandro Vieira diz que o objetivo da fraude era criar desconforto entre ele e o governo e setores da direita. Ele se declara “crítico ao governo”, mas jamais daria as declarações de baixo calão que lhe foram atribuídas.
Único sub-relator da CPMI das ‘Fake News’, Vieira é vítima recorrente de notícias falsas, com que o torpedearam durante a campanha. Uma entrevista que ele efetivamente concedeu a uma rádio sobre a união civil homoafetiva foi editada, distorcida e divulgada em grupos de WhatsApp da comunidade evangélica para que ele perdesse apoio do eleitorado conservador.
Antes de se eleger, Vieira foi delegado da Polícia Civil na área de combate aos crimes cibernéticos e vai aplicar a experiência na investigação do esquema de produção e disseminação de conteúdo falso em atividade no Brasil.
O senador admite que a CPMI - que funcionará até abril de 2020 - atravessou até agora um “período de espuma”, com muito barulho e pouco conteúdo, mas ressalta que a investigação entrará em uma fase concreta de apuração.
Ele recebeu informações de que a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), que será ouvida amanhã, apresentará laudos periciais atestando que o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ) atuou na campanha presidencial do então candidato Jair Bolsonaro disseminando conteúdo falso. A oposição já apresentou requerimentos de convocação de Carlos, que ainda aguardam votação.
Um foco de investigação de Vieira é o aplicativo de conversas. “A rede principal de disseminação de ‘fake news’ foi o WhatsApp, que tem condições de informar de onde partiram as principais ondas”, adianta o senador.
O sub-relator tem informação de que verdadeiras centrais de montagens de ‘fake news’ atuaram na campanha presidencial, com um banco de dados de mais de 40 milhões de brasileiros, e o desafio é comprovar esse fato nos autos da investigação.
“São operações estruturadas porque hoje é possível acesso a um volume imenso de dados pessoais, a partir dos quais se criam campanhas micro direcionadas a grupos específicos, tentando criar identificação política”.
O senador assegura que as informações são rastreáveis porque é possível identificar tecnicamente a primeira postagem de um vídeo ou de uma foto que viralizou nas redes. “Cada arquivo digital tem uma assinatura própria, o hash. A partir daí se pode estabelecer se a disseminação é comportamento humano ou de robô”, complementou.
Um dos pontos de seu relatório será a defesa do fim do anonimato nas redes porque a barreira para rastrear a origem das ‘fake news’ é a criptografia. “Não tenho como apurar nada porque só consigo chegar a um pacote de dados criptografados. O conteúdo falso é protegido pela criptografia que o WhatsApp usa de ponta a ponta. Apesar da discussão sobre a privacidade, não se pode ter anonimato total no Brasil”, sustenta.
Vieira quer aprimorar a legislação brasileira para que se permita aos juízes ordenar a quebra do anonimato nas redes, enfrentando a oposição das grandes corporações - Instagram, Facebook, Twitter e WhatsApp.
“O debate continua sendo: posso ter comunicação sigilosa entre pessoas, que mesmo com uma ordem judicial não possa acessar?”, questiona. “É respeitável quem acha que sim, mas eu defendo que não. Só com a quebra do anonimato pela Justiça será possível chegarmos em quem financiou e onde começou”.
Vieira reconhece que está na natureza da internet a circulação de boatos, “pegadinhas”, mas com conotação despretensiosa. Segundo ele, o que ocorre agora é a manipulação desses “boatos” como arma de guerra cibernética. “É uma realidade mundial a manipulação de dados pra fins eleitorais”.
Ele rechaça a acusação dos bolsonaristas de que o objetivo da CPMI é anular a eleição de 2018. “Essa discussão está no TSE [Tribunal Superior Eleitoral]”. Mas lembra que a disseminação de conteúdo falso na campanha eleitoral do ano passado está no escopo da CPMI.
“Se você quer ter uma democracia viva, tem que ter informação verdadeira circulando. As ‘fake news’ são uma ameaça global, não só brasileira”, critica.
Questionado se a comissão não está enxugando gelo, porque o consumo de conteúdo falso já estaria enraizado na população pelos aplicativos de conversa, o senador diz que urge um processo de educação digital da população brasileira, especialmente dos jovens.
Após a eleição de Donald Trump, cuja campanha sofreu contaminação de ‘fake news’, aumentou o número de iniciativas americanas de educação digital da população - ou media literacy. Um exemplo é o MediaWise, projeto criado para ensinar 1 milhão de adolescentes americanos a identificar notícias falsas, voltado aos jovens de comunidades de baixa renda.
Vieira compara a atuação da CPMI a um jogo de gato e rato, porque à medida que a investigação avança, tecnologias mais sofisticadas de produção e disseminação de ‘fake news’ serão implementadas. “Teremos que tirar dois coelhos de uma vez da cartola”.