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Ribamar Oliveira: O ano em que os juros foram jogados ao chão

Queda do custo da dívida representa mais de dois Bolsas Família

Há boas razões para acreditar que 2020 será melhor para a economia do que o ano que passou. O ritmo da atividade econômica ganhou impulso nos últimos meses de 2019, por causa da liberação dos saques do FGTS e do aumento do crédito. A confiança dos empresários aumentou com a estratégia econômica adotada pelo governo, com a aprovação da reforma da Previdência Social e com a melhora do quadro fiscal do setor público.

A expectativa que predomina no mercado é a de que um cenário de maior crescimento deverá se consolidar ao longo dos próximos meses, embora algumas nuvens negras que vêm do exterior ainda provoquem incertezas. Existem dúvidas também sobre o encaminhamento de algumas reformas indispensáveis à continuidade do ajuste das contas públicas, em virtude do ano eleitoral.

É importante destacar nesta coluna, no entanto, o fato econômico mais marcante de 2019 - ano que ficará conhecido como aquele em que os juros no país foram jogados ao chão. Quem acompanhou a economia brasileira ao longo das últimas duas décadas sabe avaliar a dimensão do fenômeno que presenciamos no ano passado. Durante anos, o Brasil foi um dos campeões dos juros altos no mundo, com taxas reais que eram verdadeiras aberrações.

O enorme custo financeiro dessa anomalia, que perdurou por longo tempo, foi suportado pela população mais pobre, ajudando a agravar a brutal desigualdade de renda do país. Uma Selic (a taxa básica de juros da economia, fixada pelo Banco Central) de dois dígitos foi considerada como normal durante muito tempo. Em março de 1999, por exemplo, ela chegou a 45% ao ano.

Na década de 1990, o país conviveu com taxa de juro real acima de 10% ao ano, situação que se manteve no início deste século. Depois, ela foi caindo lentamente para algo em torno de 5%, ainda muito distante das taxas praticadas no mercado internacional. Numerosos artigos e teses, escritos nos últimos anos pelos mais renomados economistas do país, tentaram explicar a anomalia brasileira dos juros altos e encontrar uma saída.

Ela veio, da forma mais dolorosa possível. Uma brutal recessão econômica, seguida de uma lenta recuperação, acompanhada de uma mudança radical na estratégia econômica do governo quebraram a espinha dorsal da inflação e os juros caíram para patamares inimagináveis.

A gestão do ex-presidente do Banco Central Ilan Goldfajn foi responsável, em grande medida, pela mudança. O cenário internacional de juros baixos, negativos em vários países, ajudou também na empreitada.

A queda dos juros foi rápida e forte. Em janeiro de 2016, a taxa Selic estava em 14,25% ao ano e o Tesouro pagava juro real de 7,2% ao ano em seus títulos corrigidos pelo IPCA (NTNB principal), com prazo de quatro anos. Hoje, a Selic está em 4,5% e o Tesouro consegue vender papéis com taxa real de 1% ao ano. Se, em 2016, um economista fizesse tal previsão, seria considerado delirante.
Como mais de 50% da dívida pública federal, incluindo no cálculo as operações compromissadas feitas pelo BC, gira em 12 meses, o efeito da queda dos juros sobre o custo do endividamento é muito rápido. Em conversa com o Valor, o secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, estimou que o custo médio da dívida pública federal ficou R$ 69 bilhões menor no ano passado, na comparação com 2018.

Para fazer o cálculo, ele utilizou a taxa média de juros de emissão dos papéis do Tesouro em 2018. Em seguida, estimou o custo da dívida em 2019 se essa taxa média tivesse permanecido. Depois, comparou com o custo verificado com as taxas médias efetivamente praticadas pelo Tesouro no ano passado.

A economia da União com a despesa de juros em 2019, estimada pelo secretário do Tesouro, representa mais de duas vezes o gasto anual com o programa Bolsa Família, que atende 13,5 milhões de famílias extremamente pobres. A projeção de Mansueto Almeida para este ano é de uma economia ainda maior: R$ 120 bilhões. Estamos vivendo uma nova realidade de juros.

Outros aspectos desta questão precisam ser destacados. A forte e rápida queda dos juros, junto com a venda de reservas pelo Banco Central, o pagamento antecipado pelo BNDES de empréstimos feitos junto ao Tesouro e a revisão dos valores do Produto Interno Bruto (PIB) em 2017 e 2018, anunciada pelo IBGE, obrigou o Tesouro a alterar também sua trajetória para a dívida pública.

Antes, o Tesouro projetava que a dívida pública bruta terminaria este ano em 80,8% do PIB e que continuaria aumentando até 2022, quando alcançaria 81,8% do PIB. Então, passaria a cair até 73,5% do PIB em 2028. Em sua nova projeção, o Tesouro considerou que a dívida bruta terminaria 2019 em 77,3% do PIB, subiria para 78,2% do PIB neste ano, quando estabilizaria. Passaria a cair a partir de 2023. Isso aconteceria mesmo com os déficits primários previstos para 2020, 2021 e 2022.

Na verdade, é difícil projetar a trajetória da dívida porque algumas variáveis com impacto fiscal ainda são desconhecidas. Não é possível estimar, por exemplo, quanto a União arrecadará com as privatizações de estatais e com vendas de imóveis neste ano. Nem quanto o BC venderá de reservas.

É difícil prever até mesmo a trajetória da arrecadação tributária em 2020, em decorrência da recuperação econômica. Também não é possível saber se a União conseguirá leiloar, em 2020, os dois campos de petróleo da chamada cessão onerosa que não tiveram ofertas no ano passado. Essas variáveis afetam, de alguma forma, a dívida bruta.

Existe, no entanto, um consenso entre os principais economistas do país de que os juros baixos continuarão por um bom tempo. Alguns acreditam que o BC ainda tem espaço para reduzir a Selic. A equipe econômica considera que os efeitos da queda da Selic ainda não foram transmitidos para economia. Como o ciclo de redução começou em julho de 2019, e existe uma defasagem da política monetária sobre a atividade, as autoridades acreditam que o impacto maior ocorrerá a partir de fevereiro.

O cenário econômico é, portanto, favorável, principalmente porque o país passou a conviver com uma nova realidade de juros.


Alex Ribeiro: Lei amplia arsenal do BC contra quebra de bancos

Dinheiro público pode salvar depositantes em crises sistêmicas

O projeto de lei de resolução de crises bancárias, enviado pelo governo ao Congresso, quer fazer os donos de bancos e grandes investidores pagarem os custos de quebras de instituições financeiras. Mas é flexível o bastante para, em períodos de pânico, salvar até mesmo os grandes depositantes para não desencadear crises sistêmicas.

Por mais que as regras prudenciais e a fiscalização sejam fortalecidas, bancos continuarão a quebrar. O dilema dos governos é saber quando usar recursos públicos ou quando deixar que o próprio setor privado resolva os problemas que causou. Nenhuma solução é perfeita. Um regime de resolução que usa apenas recursos privados pode gerar crises sistêmicas. A garantia de socorro com dinheiro público, por outro lado, faz com que banqueiros e depositantes assumam riscos exagerados. Também pode levar a crises fiscais.

A grande novidade do projeto é criar no Brasil o chamado “bail in”, que numa tradução livre significa resgatar bancos quebrados com o dinheiro privado que está dentro da própria instituição. Mas o “bail in” não é tratado como uma panaceia. O Banco Central poderá usar outras formas mais tradicionais de socorro, como separar a parte boa dos bancos da banda podre, ou propor ao Conselho Monetário Nacional (CMN) usar dinheiro público para salvar grandes depositantes.

É um benefício indevido aos tubarões do mercado que investiram mal, mas esse seria o preço a pagar para proteger a economia como um todo e os próprios cofres públicos. Em 1974, o governo Geisel tentou jogar duro com o Banco Halles. Acabou desencadeando uma crise cujo combate exigiu usar mais recursos públicos do fundo de reservas monetárias. A quebra do banco Lehman Brothers em 2008 foi o estopim da grande recessão americana.

No projeto de lei, há muitas salvaguardas para proteger o dinheiro público - e em nenhuma situação o banqueiro sairá salvo. O primeiro a cobrir eventuais rombos são os donos do negócio, que podem ver a sua participação acionária reduzida a R$ 1,00. Essa é uma diferença importante em relação ao Proer, um programa de socorro aos bancos do Plano Real. No Proer, os banqueiros tiveram seu capital implicitamente diluído porque o patrimônio líquido dos bancos ficou negativo. Mas eles formalmente continuaram com suas ações. Agora disputam na Justiça os despojos das massas falidas, alegando que têm direito a alguns bilhões.

Se o dinheiro dos acionistas for insuficiente para equacionar o desequilíbrio, quem paga a conta são os grandes investidores que compraram dívida subordinada. A dívida subordinada serve para isso mesmo: compor o capital dos bancos e absorver eventuais prejuízos. Se o rombo for pequeno, a dívida subordinada poderá virar capital, e esses investidores se tornam acionistas do banco. Se o rombo for muito grande, os grandes investidores terão o crédito reduzido a até R$ 1,00. O Valor apurou que, aprovado o projeto, o BC deve exigir que os bancos captem um mínimo de dívida subordinada para formar um colchão.

Depois de utilizada a dívida subordinada, o Banco Central tomará uma decisão importante: se vai usar o dinheiro de grandes depositantes para cobrir o rombo remanescente ou para recompor a base de capital. Em todos os casos, estará salva a parcela dos depósitos até R$ 250 mil, que são garantidos pelo seguro depósito. O BC poderá dispensar depósitos acima desse valor de cobrir o rombo para evitar o contágio de bancos saudáveis. Nesse caso, a solução pode - não necessariamente deve - usar dinheiro público.

Antes de colocar dinheiro do contribuinte, entra de novo o dinheiro privado. O projeto cria o fundo de resolução, a ser formado com contribuições dos bancos. A tendência é que esse fundo seja gerido pelo Fundo Garantidor de Crédito (FGC), de forma segregada do patrimônio do fundo que paga o seguro depósito.

Apenas quando o patrimônio do fundo de resolução for esgotado que entram os recursos públicos. Mas foi adotada uma precaução: o Tesouro fará empréstimos ao fundo de resolução. Isso significa que o aporte de recursos terá garantia do fundo de resolução e, mais tarde, o Tesouro poderá recuperar os valores, com novas contribuições dos bancos. Em crises mais graves, quando nenhum dos mecanismos acima resolver, o Tesouro poderá fazer socorro direto aos bancos, sem o “bail in” pelos grandes depositantes nem uso do fundo de resolução.

A filosofia do “bail in” é que ele seja usado quando o banco começa a ter problemas, bem antes do colapso. O projeto de lei permite explicitamente que o Banco Central decrete um regime de resolução nos estágios iniciais da crise, quando o banco enfrenta problemas de liquidez ou seu montante de capital cai abaixo do mínimo exigido pela legislação prudencial. O Banco Central entende que, na legislação atual, isso já é possível, mas banqueiros falidos têm usado brechas e ambiguidades para alegar na Justiça que o BC interveio cedo demais, causando a quebra.

Como efeito colateral, o projeto de lei poderá aumentar os custos de captação dos bancos. Hoje, investidores aceitam uma remuneração mais baixas para emprestar aos grandes bancos e aos bancos públicos porque supõem que, tacitamente, o governo garante os recursos. As agências de classificação de riscos poderão rever o rating dos bancos. O BC, porém, acha que o projeto de lei reduz a incerteza sobre quem e como vai pagar a conta no caso de quebra de bancos, o que tende a reduzir prêmios de risco. Em tese, o risco soberano também deve melhorar, porque o risco fiscal ligado ao socorro de bancos está delimitado.

No conjunto, o projeto amplia os poderes do BC e CMN para decidir como intervir em cada situação, usando ou não recursos públicos. Isso parece correto, já que numa crise não se pode esperar que o Congresso aprove cada operação. Mas a nova legislação não prevê novos instrumentos de prestação de contas à sociedade, além dos já existentes. A transparência será fundamental para que a opinião publica não se volte contra o sistema de resolução de crises bancárias. O Proer ficou tão impopular que levou à proibição de uso de dinheiro público para salvar bancos na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).


Bruno Carazza: Sobrevivemos (?)

Aos trancos e barrancos, as instituições funcionaram em 2019

Adeus ano velho, feliz ano novo... À medida em que os acordes de “Fim de Ano”, a valsa composta pelo jornalista David Nasser e pelo “Rei da Voz” Francisco Alves, se aproximam, é hora de fazer um balanço do ano na política brasileira.

A eleição de Bolsonaro sobre 2019 lançou uma série de dúvidas: Estaria nossa democracia em risco? Nossas instituições estariam preparadas para resistir a um governo com forte inclinação autoritária? A polarização política seria radicalizada a ponto de forçar uma ruptura institucional?

Em 1978, o cientista político Juan Linz criou um checklist com quatro grupos de indicadores para atestar comportamentos autoritários de políticos que poderiam levar ao colapso de regimes democráticos - esses parâmetros constituem a base para o best-seller “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, lançado em 2018.

Tomando por base os discursos, vídeos e postagens de Jair Bolsonaro nas redes sociais não era difícil enquadrá-lo como um forte candidato a tiranete seguindo a tabela de Linz. Não foram poucas as ocasiões em que o ex-capitão fez apologia à ditadura militar e questionou a legitimidade do processo eleitoral, lançando dúvidas sobre as urnas eletrônicas (condição nº 1 - “rejeição das regras democráticas do jogo, ou compromisso débil com elas”) e tratou seus adversários como criminosos (condição nº 2 - “negação da legitimidade dos oponentes políticos”).

Quanto à condição nº 3, o apoio à disseminação das armas e o elogio à brutalidade das forças policiais e até mesmo à ação de milícias eram sinais claros de seu posicionamento de “intolerância ou encorajamento à violência”. Por fim, a distribuição maciça de fake news e as frequentes ameaças à imprensa e a ONGs fechavam o ciclo (condição nº 4 - “propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia”). A eleição de Bolsonaro, portanto, teria sido o ápice de um processo que Levitsky e Ziblatt denominaram de “abdicação coletiva”, em que a sociedade elege um líder que flagrantemente põe em risco a democracia.

A disposição de Jair Bolsonaro ao confronto é marca de sua trajetória política, desde os tempos de suas insubordinações no Exército. Não seria de se esperar comportamento diverso uma vez investido no cargo mais alto da República. Já na primeira vez em que se dirigiu à população, no parlatório do Palácio do Planalto, Bolsonaro abriu sua fala anunciando que naquele momento “o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”.

Uma vez empossado, o presidente tratou de levar adiante várias de suas bandeiras ideológicas no que se refere ao uso de armas, meio-ambiente, cultura, participação social e liberdade de imprensa. Com dificuldades na articulação no Congresso, Bolsonaro frequentemente se valeu de medidas provisórias e decretos para tentar impor essa agenda - e acabou encontrando resistência nos partidos de oposição, no Supremo, no Congresso e também na opinião pública.

Desde a redemocratização nenhum presidente sofreu tantos questionamentos no STF quanto Bolsonaro. Apesar de débil no Congresso, a oposição manobrou bem os instrumentos jurídicos para questionar a constitucionalidade de atos normativos emanados do Palácio do Planalto. Ao longo de 2019, Bolsonaro respondeu a 58 ações diretas de inconstitucionalidade contra decretos, MPs e portarias - para efeito de comparação, Temer sofreu 14, Dilma duas e Lula cinco no primeiro ano de governo.

Algumas dessas ações já deram resultado, ainda que parcial, como na reversão liminar do decreto presidencial que reduziu a participação da sociedade civil em conselhos de políticas públicas. Em outros casos não diretamente relacionados a seus atos, o Supremo também impôs derrotas seja à visão de mundo bolsonarista (no caso do enquadramento da homofobia como crime de racismo), seja às práticas de seu núcleo mais próximo (na autorização do compartilhamento de informações financeiras entre os órgãos de controle).

A famosa “opinião pública”, expressa pela imprensa e cada vez mais pelas redes sociais, também estabeleceu limites a comportamentos autoritários do presidente, como na sua intenção de “comemorar” o golpe de 1964, na nomeação de figuras controversas para postos-chave em ministérios e na revogação do edital que excluiu a “Folha de S.Paulo” em licitação do Palácio do Planalto, entre tantos outros recuos.

No entanto, nenhuma instituição foi tão bem-sucedida na reação à vontade de Bolsonaro quanto o Congresso Nacional. Deputados e senadores bloquearam a aprovação de medidas provisórias motivadas pela intenção de enfraquecer financeiramente a imprensa e os sindicatos, votaram a favor da derrubada de decretos que enfraqueciam a transparência e flexibilizavam o porte de armas, demonstraram que teriam força para derrubar a indicação de Eduardo Bolsonaro para embaixador nos Estados Unidos, aumentaram seus poderes no processo orçamentário e derrubaram dezenas de vetos presidenciais.

A atuação do STF e do Congresso ao barrar medidas de Bolsonaro não quer dizer que tudo o que saiu de ambos foi positivo para o país (tivemos importantes retrocessos na agenda contra a corrupção vindos das duas Casas, por exemplo). Também não podemos nos esquecer que tanto o parlamento quanto o Supremo contribuíram de forma significativa para agenda positiva que muito beneficiará o governo Bolsonaro no futuro próximo, como no caso das privatizações e da reforma da Previdência. A recuperação da economia, aliás, desponta como tábua de salvação para as pretensões eleitorais do presidente em 2022, embora sejam bastante preocupantes os estragos de sua inação nas áreas de educação, meio-ambiente e relações internacionais.

Sob as lentes distorcidas do retrovisor, as instituições brasileiras parecem ter desempenhado bem seu papel de conter os arroubos antidemocráticos de Bolsonaro em seu primeiro ano de governo. Resta saber até quando manterão essa disposição. Que venha 2020!

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”


Valor: Risco à democracia marca bolsonarismo

Presidente atacou instituições e aproximou país de uma ‘democradura’, apontam especialistas

Por Cristian Klein e Malu Delgado — Do Rio e de São Paulo

Para ele, cientista político e diretor-geral da Fundação FHC, o primeiro ano do governo Bolsonaro foi marcado pelo constante “teste de estresse”, com ataques às instituições. Para ela, antropóloga e historiadora, o bolsonarismo no poder está levando o Brasil para o grupo de países que podem ser chamados de “democraduras”: têm governos “com forma democrática, mas um conteúdo altamente autoritário”.

O diagnóstico de Sergio Fausto e Lilia Schwarz sobre os 12 primeiros meses de Jair Bolsonaro no Planalto revela uma preocupação com o que pode vir pelos próximos 36 meses de mandato.

Fausto vê instituições que responderam bem às ameaças, como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Mas, à medida que Bolsonaro se mexe, forma um partido com viés religioso e pode fazer indicações ao STF, alerta: “Aguentará por mais tempo?”. Bolsonaro faz de seu governo um campo de batalha ideológico que pode atrapalhar a economia, afirma Fausto. Mesmo que não prejudique, o risco continua: o crescimento pode favorecer o “projeto autoritário” do presidente - a primeira liderança nacional de direita que o país já teve, aponta.

Lilia afirma que já imaginava um governo radical, mas que Bolsonaro desceria do palanque para construir consensos. Não foi o que ocorreu. “Não é esse o interesse do governo. O interesse é trabalhar nos binarismos. Me preocupa muito a intolerância religiosa, a racial, de gênero”.

A índole bolsonarista contra minorias, direitos constitucionais e instituições se dá por um “sistema de mentiras que alimenta certo grupo de brasileiros”. “São ministros sem nenhum receio de lançar falsas verdades”, afirma.

 


 

“Crescimento pode favorecer projeto autoritário”, diz Sérgio Fausto

Cientista político alerta que eventual retomada do crescimento embute o risco de favorecer um projeto autoritário

Por Cristian Klein,  Valor Econômico

Mesmo dando certo, com a recuperação econômica, o governo Bolsonaro pode dar errado, pelo que mostrou no primeiro ano, quando a gestão em áreas como política externa, educação e meio ambiente foi “absolutamente ruinosa”. O alerta é do cientista político e diretor-geral da Fundação Fernando Henrique Cardoso, Sergio Fausto, 57 anos, para quem a eventual retomada do crescimento embute um risco: o de favorecer um projeto autoritário do bolsonarismo. Fausto afirma que as instituições reagiram bem aos ataques feitos pelo presidente e seus aliados contra, entre outros, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e a imprensa. Mas teme pela capacidade de resistência institucional, sobretudo se a economia fortalecer o presidente. “Esse teste de estresse você aguenta por quatro anos. Aguentará por mais tempo?”, questiona.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Que balanço faz deste primeiro ano de gestão de Bolsonaro?
Sergio Fausto: A descoberta retumbante é que quem manda no governo é o Bolsonaro, ao contrário de algumas fantasias que se fizeram no inicio do mandato, de que, a rigor, haveria um dispositivo militar e outros setores mais pragmáticos que dariam o tom da banda governamental. Não. Quem dá o tom é o presidente e o seu núcleo ideológico. Aparentemente, os militares recuaram para uma posição de trincheira para proteger a corporação dos ímpetos politizantes do bolsonarismo. Sergio Moro também frustra expectativas de quem imaginava que ele pudesse ser uma espécie de contrapeso legalista que se espera de um ministro da Justiça que vem do Poder Judiciário. Não é isso. Ele reconhece o mando político de Bolsonaro e dança conforme a música cujo tom é dado pelo presidente.

Valor: Há exceção?
Fausto: É o ‘posto Ipiranga’. O ministro Paulo Guedes [Economia] conseguiu uma esfera de autonomia maior e isso se estende a alguns outros setores ligados à área econômica, como Infraestrutura e Minas e Energia. São espécies de reservas de racionalidade dentro do governo. Paulo Guedes encontrou no Congresso uma liderança disposta a fazer avançar uma agenda reformista, personificada no [presidente da Câmara] Rodrigo Maia. A dobradinha Rodrigo Maia e Rogério Marinho - o secretário de Previdência, que é o principal negociador, não é o ministro da Economia - produziu resultados. Isso fez com que a recuperação cíclica da economia fosse favorecida neste último trimestre do ano por uma percepção de que existe uma agenda sobretudo na área fiscal que vai ganhando musculatura. Tem o caso da Previdência, já aprovada, e iniciativas de reformas semelhantes também nos Estados. Tem política de governo nessa área.

Valor: E nas outras áreas?
Fausto: Não tem política pública. Em áreas como política externa, educação e meio ambiente, a gestão do governo tem sido absolutamente ruinosa. Há duas perguntas que se colocam: a economia ganhará impulso sustentável ou a gestão ruinosa em outras áreas acabará por interferir no processo de retomada? E mais importante do que isso, do ponto de vista de valores caros a uma sociedade aberta e democrática, é se, com o respaldo da retomada da economia, não acabará por se impor, no médio prazo, um projeto de poder que tem características claramente autoritárias e regressivas.

Valor: Como poderia acontecer?
Fausto: O governo e o seu núcleo ideológico submetem, de maneira sistemática, as instituições a testes de estresse. E elas têm respondido de maneira muito positiva. O Congresso é um destaque extraordinário, seja pelo que fez de construtivo, seja pelo que impediu que fosse feito. Serviu como freio, obstáculo, à implementação de medidas claramente danosas aos direitos humanos e à democracia no Brasil: excludente de ilicitude, sufocamento do financiamento dos jornais e por aí vai. E o STF, sobretudo na figura do decano Celso de Mello, respondeu à altura toda vez que foi provocado acintosamente. Agora, esse teste de estresse você aguenta por quatro anos.

Aguentará por mais tempo? Porque o governo começa a mexer suas peças, nomeia ministros [ao STF], pode vir a se organizar como partido político, pode passar a ter bancada mais orgânica no Congresso. É um processo que inspira temor. As instituições têm resistido, mas aos olhos da população, segundo pesquisas, continuam com prestígio muito baixo.

Valor: Mas Bolsonaro não se mostrou muito desagregador?
Fausto: Sim, Bolsonaro não é um líder com grande capacidade estratégica. Tem muita capacidade de comunicação, é destemido, dobra a aposta, e esta ousadia é percebida como um atributo positivo pela sua base. É capaz portanto de manter a sua base permanentemente mobilizada. Isso é uma novidade na história brasileira. É um presidente de extrema-direita que tem enraizamento popular. Isso permite que ele tenha 30% do eleitorado. A despeito de tudo e de todos, ele manteve essa base solidamente e isso o credencia como candidato forte à reeleição. No caso do Bolsonaro, é tudo mais imprevisível, pelas características e pela trajetória, de onde ele vem.

Valor: Como assim?
Fausto: O Bolsonaro tem uma questão sociológica. Vem de um meio político em que as fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade não estão claramente demarcadas e isso o torna vulnerável a curtos-circuitos, a chuvas e tempestades.

Valor: Está se referindo à relação dele com milicianos?
Fausto: Isso, não estou fazendo nenhuma acusação, mas me baseando em fatos conhecidos. Meu ponto de vista não é criminal, é sociológico, é o meio do qual ele vem. Ele carrega esse meio consigo. Nunca houve um presidente com as origens do Bolsonaro, e há investigações de uma pessoa muito próxima não só em relação ao filho mais velho, mas a toda família Bolsonaro. É um segredo de polichinelo que é um ponto de vulnerabilidade do presidente.

Valor: Refere-se ao ex-capitão da PM Antônio Nóbrega, foragido da Justiça e acusado de liderar um grupo de assassinos de aluguel?
Fausto: Tem vários elos, vários laços. Não estou tirando nenhuma conclusão precipitada. São fatos sequer negados por Bolsonaro.

Valor: Qual é a novidade que Bolsonaro traz?
Fausto: Nunca houve no Brasil uma liderança nacional de direita como ele. Você tem fenômenos locais de políticos de direita, com enraizamento popular. Maluf é um caso em São Paulo. Lacerda foi no Rio de Janeiro. Nunca chegaram a ser lideranças nacionais. O Bolsonaro não só está mais à direita do que estavam Lacerda e mesmo Maluf - e portanto é correto caracterizá-lo como um político de extrema-direita - mas também se diferencia por ser uma liderança nacional. Hoje em dia há apenas duas lideranças nacionais: Lula e Bolsonaro. De onde vem esse enraizamento popular do Bolsonaro? Com a conexão que ele estabeleceu com o mundo evangélico, com a chamada “família militar”, e ao penetrar numa classe média conservadora do interior do país, sobretudo das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, ligada política e sociologicamente ao agronegócio. Esses setores, em geral, emprestavam apoio na eleição presidencial ao PSDB pela contraposição com o PT, embora não o fizessem de coração. O PSDB durante um tempo funcionou como uma espécie de dique, de represa, que recolhia o impulso à direita.

Valor: Qual é o ponto fraco de Bolsonaro?
Fausto: Essa insensibilidade para o tema da desigualdade, mesmo para o tema da pobreza, é um dos principais calcanhares de Aquiles dele. Se o Brasil não atacar, por meio de políticas públicas, da solidariedade social, a desigualdade e a pobreza, ele se transformará num país cada vez mais suscetível à violência, às explosões e à instabilidade. As enormes desigualdades no Brasil não são mais desigualdades, são fossos que dividem a sociedade em vários arquipélagos e estão em estado de guerra latente, uns com os outros.

 

 


 

Risco à democracia marca bolsonarismo: “Estamos em uma batalha de narrativas”, diz Lilia

Para antropóloga e historiadores, intelectuais devem sair a campo e encarar o debate público

Por Malu Delgado / Valor Econômico — De São Paulo

Um governo que produz as próprias verdades sem compromisso com a história e com a ciência. A avaliação da antropóloga e historiadora, Lilia Schwarcz, sobre o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro não é suave. Disposta a deixar o hermetismo da academia e se lançar nas redes sociais, a professora da USP acha que num momento de disputa de narrativas históricas como o atual, os intelectuais devem sair a campo e encarar o debate público. Governos deste tipo, afirma, atuam “no sequestro social”.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Que balanço faz deste primeiro ano de gestão de Bolsonaro?
Lilia Schwarz: Democracia é um regime, por definição, inconcluso. É preciso conquistar a cada dia nossos direitos. Nos últimos 30 anos, os brasileiros conviveram com uma democracia, senão absoluta, pelo menos plena: as instituições funcionaram de maneira autônoma e você não tinha uma imposição do Executivo sobre o Legislativo e Judiciário, e vice-versa. Os brasileiros viveram um momento forte de consolidação de pautas minoritárias e de uma agenda mais ampla, plural e inclusiva. São pautas que hoje, neste governo, estão sob ameaça.

Valor: Ameaças a direitos constitucionais, são a postura mais preocupante deste governo?
Lilia: Nos 28 anos em que nosso presidente foi deputado não primou por defender essas pautas. Hostilizou-as. Eu não tenho problema nenhum com o pensamento conservador. Ao contrário. Acho que a democracia funciona muito melhor quando lida com a diferença. Mas neste caso é regresso democrático. Não é a única pauta em regresso.

Se prestarmos atenção nos ataques à academia e à ciência, veremos que é um governo que claramente produz suas próprias verdades e não tem muito apego a fatos e informações. Há o ataque forte à ciência e ao jornalismo. Mais que uma mentira isolada, conforma um sistema de mentiras que alimenta certo grupo de brasileiros.

Valor: Para onde o Brasil caminha e qual seria o papel da academia? Ela tem sido omissa?
Lilia: No meu livro, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, chamei esses governos, usando fatos citados por outros autores, de “democraduras”. São governos que têm uma forma democrática, mas um conteúdo altamente autoritário. Têm em comum esse tipo de pautas. São presidentes que preferem não fazer o debate público, porque eles se movem nas bolhas das redes sociais. Há momentos em que a intelectualidade brasileira é chamada a opinar publicamente.

Escrevi um livro sobre autoritarismo, que penso que foi uma das primeiras respostas a esse governo, na minha área. Aos que reagiram com espanto à vitória de Jair Bolsonaro, digo no livro que nós sempre fomos autoritários. Ou seja, não é uma resposta atual. Nosso presente está lotado de passado. Na academia nós vivemos um mundo muito protegido da política. Nas redes, foi a primeira vez em que fui chamada de esquerdopata, com maiúsculas e símbolos que eu nem sabia o que eram. Essa exposição é importante, faz você refinar os argumentos e refletir até onde pode ir. Existem certos momentos em que, como se diz nos EUA, “go public”. Ir a público e testar se você pode ajudar no debate. Estou neste momento.

Valor: Sua premissa sobre as “democraduras” suscita que o Brasil está num beco sem saída?
Lilia: Historiador é ruim de previsão. Somos mais a máxima do conselheiro Aires, de Machado de Assis, que dizia que as coisas só são previsíveis quando já aconteceram. Eu imaginava um governo radical, mas também imaginava que nosso presidente pararia de fazer uma política de palanque e construiria consensos. Não é esse o interesse do governo. O interesse é trabalhar nos binarismos. Me preocupa muito a intolerância religiosa, a racial, de gênero. Um presidente que transforma identidade de gênero em ideologia de gênero e altera dados da realidade é um presidente que não tem vocação para governar em nome de todos. Um presidente que recusa dados de “global warming” e demite o diretor do Inpe [Ricardo Galvão], reconhecido com um dos dez maiores cientistas do mundo, que chama de pirralha uma garota que virou o símbolo de uma luta necessária da ecologia é um presidente que não tem vocação para representar um país tão grande como o Brasil. Se existe uma saída, é de longo prazo e é a aposta na educação. Temos um ministro que aposta no escândalo e não se comporta. Que tipo de mensagem esse ministro passa?

Valor: Como o presidente se apropria do discurso Deus, Pátria, Família?
Lilia: Bolsonaro se elegeu em parte com esse discurso. As igrejas evangélicas são muito plurais. Esse é um país laico. Quando o presidente se define a partir de uma religião só, ele rasga a Constituição. Ele tem se valido desse grupo. Bolsonaro não é só um autoritário. Ele é um populista. Muitos desses representantes máximos das “democraduras” têm esse discurso populista. A característica do populismo é retratar a realidade de forma muito simplista, com frases curtas, de grande efeito, e prometer o que você sabe que não pode cumprir. Não raro esses líderes populistas se associam a imagem de pequenos deuses na terra. A imagem de Bolsonaro como mito e de Eduardo Bolsonaro como mitinho é preocupante. O que é o mito? Mito é com quem você não discute, com quem você não dialoga. O mito está numa esfera muito diferenciada dos demais cidadãos. O mito não tem que responder. Não tem que fazer pactos republicanos. O mito é tudo, menos um presidente republicano. Bolsonaro usa e abusa de seus símbolos. O problema não é se apropriar da bandeira, mas é garantir as cores da bandeira só a uma parte dos brasileiros. Esses tipos de governo atua no sequestro social. O tema do nós, os justos, eles ruins. É o uso da simbologia pátria, como se a Pátria fosse propriedade privada do presidente. Ele governa como se estivesse em casa própria, a partir de argumentações de fundo familiar e íntimas.

Valor: Se o autoritarismo nos acompanhou há tantos séculos, onde foi que essa tampa da panela de pressão se abriu? E por quê?
Lilia: Temos que pensar internacionalmente. A eleição de [Donald] Trump teve efeito mundial. Foi uma onda reacionária que nos invadiu. Minha geração errou ao achar que a democracia era o final da linha. Há manuais de governo. Basta ver o encontro conservador que tivemos aqui em São Paulo. O governo Bolsonaro permitiu que as pessoas saíssem de suas cavernas.

Valor: Uma das características desse governo é a sucessão de recuos. O presidente adota um comportamento inidôneo?
Lilia: Ele tem um comportamento político que não se preocupa com a idoneidade. Até então nós julgávamos um político a partir da sua idoneidade e da sua ética. Nós nunca tínhamos visto como qualidade o fato de um político dizer, desdizer e não se arrepender disso. E são ministros sem nenhum receio de lançar falsas verdades. É impressionante a capacidade que eles têm de dizer e se desdizer.

Valor: Nossas instituições são sólidas o suficiente para conter essa onda autoritária?
Lilia: Eu penso que não, tanto que nosso chefe do Executivo tenta, a todo momento, passar por cima delas. Bolsonaro destituiu o fiscal que o multou por pescar em área proibida. Bolsonaro entrou no governo para ser um vingador. Estamos num momento de batalhas de narrativas históricas. Há duas narrativas muito castigadas: a escravidão e a ditadura militar. O Brasil é um país que não pensa em reparações. É como se fosse o fantasma que volta para puxar seu pé. A Constituição de 1988 abriu mão de legislar sobre a questão militar. Fomos o último país do ocidente a abolir a escravidão mercantil e nunca se pensou em ressarcimento. E esse governo, de forte influência militar, tem essa campanha aloprada de negar as consequências do golpe.


Fabio Graner: Salário mínimo, um dilema para Guedes

Com base em argumentos principalmente fiscais, aumento real do piso salarial oficial do país encontra forte resistência na área econômica do governo

Em recente entrevista, o ministro da Economia, Paulo Guedes, aparentou flertar com a ideia de dar aumento real para o salário mínimo em 2020. Diante dos jornalistas, chegou a pedir para o secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues, fazer a conta de quanto seria o impacto adicional de subir 1% acima da inflação. Um tanto constrangido, Waldery informou: R$ 4,5 bilhões. Guedes evitou se comprometer, mas disse que tomaria uma decisão até o próximo dia 31.

Apesar do aceno do ministro, nos bastidores da área econômica há forte resistência à ideia, o que dificulta seu avanço. As preocupações maiores são de natureza fiscal, pelo impacto direto na Previdência e outras despesas indexadas. Mas os interlocutores do governo ouvidos pelo Valor também levantaram questionamentos sobre se essa seria a melhor política distributiva e para o mercado de trabalho.

“Aumento do salário mínimo tem impacto relevante nas contas públicas, devido ao fato de haver várias despesas indexadas. Na atual restrição fiscal, qualquer aumento de despesa implica maior dificuldade para estabilizar a dívida, bem como a necessidade de reduzir alguma outra despesa para reequilibrar o orçamento”, comenta uma fonte. “Geralmente será necessário reduzir investimentos ou outras despesas discricionárias, com impacto negativo na oferta de serviços públicos”, completa.

Outro interlocutor aponta que o salário mínimo no Brasil seria relativamente alto, considerando o universo de pobreza do país. “Se colocássemos cem brasileiros enfileirados, aquele que recebe o salário mínimo estaria na posição 72 ou 73, mais perto dos mais ricos”, explica a fonte. Esse mesmo integrante do governo lembra que quando começou a era Lula, em 2003, estava abaixo de 40% da “renda mediana”.

Também é mencionada a hipótese de que subir mais salário mínimo teria efeitos negativos sobre o emprego, desestimulando contratações ou até mesmo fomentando demissões. Favoreceria ainda a informalidade no mercado de trabalho. O debate sobre esse efeito é antigo e longe de um consenso entre economistas.

Para estas fontes, promover um aumento real nesse momento, ainda que pequeno, seria “um tiro no pé”. Passaria um sinal contrário em relação à política fiscal em um momento no qual o ajuste se consolida.

“Até toparia elevar se for cortar o fundo eleitoral”, ironiza um técnico, que sabe da impossibilidade política. “Mas espero sinceramente que não ocorra. O salário mínimo já subiu bastante, e reajustar pela inflação por três anos ajudaria bastante”, comentou. “O aumento do salário mínimo seria prejudicial à retomada do emprego formal. O reajuste real neste momento não parece uma política que eleve o bem-estar da população em geral”, sentenciou outra fonte.

Fora do governo, as opiniões variam. O diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto, defende uma política de longo prazo para o salário mínimo e apoia um aumento real modesto neste ano. “Acho que tem que dar um aumento real. É verdade que tem impacto fiscal, mas também tem um efeito social importante”, disse. “A decisão sobre o salário mínimo pode ajudar a dar um fôlego extra para as famílias. Mas é preciso ter equilíbrio”, avaliou.

Para ele, mesmo com a melhora da economia esperada para o ano que está chegando, o ritmo ainda é medíocre, dados os níveis de ociosidade. Por isso, um reajuste do piso salarial, com seu efeito sobre a demanda pode ser positivo. “Não sou do grupo que diz que não pode de jeito nenhum ter política de demanda.”

O economista do BTG Gabriel Leal de Barros se posiciona contra reajuste real. “Cada real de aumento tem grande impacto e gera um dano fiscal”, disse. “Como há um volume grande desempregados, a prioridade deveria ser a retomada do emprego mais do que um efeito preço. Isso poderia dar alguma ajuda para a economia, mas seria anabolizado e não sustentável”.

O ex-secretário de Política Econômica do ministério da Fazenda Manoel Pires reconhece a preocupação com a questão fiscal. Mas pondera que um aumento real de 1% não alteraria a direção do processo de ajuste e ainda contribuiria para a economia.

“Um reajuste real de fato seria contraditório com a PEC Emergencial, que congela o salário por dois anos. Parece justificável o governo não fazer um reajuste neste ano. Mas se o fizer, pode ser uma ajuda para a economia e não atrapalharia a direção do ajuste”, disse, acrescentando que o ritmo de crescimento esperado para 2020 é inferior ao necessário para o país. “Ter 2% ou pouco mais de crescimento econômico depois de três anos crescendo a 1% é ruim, muito aquém do que a nossa realidade econômica exige”.

De fato, apesar da euforia que começa a se consolidar em setores do governo e do mercado, os números projetados para o PIB (3% nos cenários mais otimistas de dentro e fora do governo) ainda não justificam que se solte fogos. E cabe lembrar que os índices de desemprego e a renda dos mais pobres estão muito ruins. Não à toa, apesar do melhor Natal dos últimos cinco anos na economia, pesquisa Datafolha divulgada ontem mostrou que cerca de um terço da população de renda mais baixa (até dois salários mínimos) acredita que a situação econômica do país vai piorar, o triplo do que era em comparação a um ano antes.

Há que se reconhecer que definir o salário mínimo não é algo trivial. Não se deve menosprezar as implicações fiscais. Ao elevar o piso do país acima da inflação e, portanto, do previsto no Orçamento, a regra do teto de gastos determina que outra despesa deverá ser cortada. E é público e notório que o espaço para isso é restrito. Por outro lado o crescimento econômico do país está se acelerando a um ritmo longe de ser brilhante. E isso tem implicações fiscais e sociais.

Uma alta real moderada, com seus cerca de R$ 10 a mais no bolso do assalariado brasileiro, poderia dar ânimo extra para quem tem sofrido mais com essa longa recessão/estagnação. E, com seus efeitos multiplicadores, reforçar a retomada da atividade.

Mesmo que estatísticas coloquem o salário mínimo como alto no Brasil, os pouco mais de R$ 1 mil pagos mensalmente para milhões de trabalhadores efetivamente não o são. Esse dinheiro extra faria diferença, inclusive para aqueles com renda inferior ao piso, que se beneficiariam indiretamente. Longe de ser um ato de populismo, faz sentido econômico. Que o espírito natalino ajude o ministro a tomar a melhor decisão.


Bruno Carazza: Sob pressão

Denúncias de corrupção podem desestabilizar governo

Contra todos os prognósticos, Bolsonaro apostou na polarização para chegar ao poder e se deu bem. Numa estratégia bem pensada, suas polêmicas foram reproduzidas em massa via posts, memes e vídeos disseminados pelo WhatsApp e outras redes sociais. Em tempos de Lava-Jato, Bolsonaro encarnou o espírito do combate à corrupção, do antipetismo e da aversão aos partidos e à classe política tradicional. Mais do que isso, o então candidato autoproclamou-se protetor da moral e dos bons costumes - seja lá o que isso for.

Logo ao receber de Michel Temer a faixa presidencial, em discurso no parlatório do Palácio do Planalto, Bolsonaro celebrava a vitória e já sinalizava que o clima de campanha iria continuar: “É com humildade e honra que me dirijo a todos vocês como presidente do Brasil. E me coloco diante de toda a nação, neste dia, como o dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto“, foram as suas primeiras palavras dirigidas à sociedade.

Como efeito direto de sua tática de “nós contra eles”, Bolsonaro herdou um eleitorado dividido. Já em abril, 35% dos brasileiros consideravam seu governo ótimo ou bom, enquanto 27% atribuíam a ele uma nota de ruim/péssimo. Essa diferença (8%) era disparadamente a menor entre seus antecessores eleitos nas urnas: Collor (33%), FHC (29%), Lula (44%) e Dilma (51%).

Após um ano de governo, Bolsonaro já conseguiu a proeza de cair para o campo negativo, em que o grupo daqueles que abominam o seu governo (38% de ruim/péssimo) supera a turma que o adora (29% de ótimo/bom). Collor levou um pouco mais de tempo para chegar a esse ponto: com o seu plano econômico fazendo água e as denúncias de corrupção começando a pipocar, a rejeição superou a aprovação depois de 16 meses. FHC foi mais longe, mantendo-se no campo positivo durante todo o primeiro mandato, garantindo com folga sua reeleição. A partir de janeiro de 1999, porém, com a desvalorização do real, mergulhou nas profundezas da desaprovação e nunca mais voltou à tona.

As denúncias de corrupção fizeram a popularidade de Lula sangrar com a eclosão do mensalão. Entre setembro e dezembro de 2005 seu governo balançou, com índices de ruim/péssimo de 32%, contra ótimo/bom de 29%. Dilma, por sua vez, foi abatida pelos protestos de junho de 2013 (sua reprovação saiu de 7% para 31%) e pela Lava Jato e o processo de impeachment - quando chegou a 70% de ruim/péssimo.

As fortes evidências trazidas pelo relatório do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio de Janeiro, combinadas com as frágeis explicações do senador Flávio Bolsonaro para a evolução de suas finanças pessoais e seu relacionamento com assessores, poderão contaminar ainda mais a avaliação pessoal de Jair Bolsonaro no restante de seu governo. Como atesta nossa história recente, o apoio aos sucessivos presidentes é bastante sensível a denúncias de corrupção e ao mau desempenho econômico.

O descontrole do presidente ao ser questionado sobre a situação do filho evidencia o quanto o desenrolar das investigações pode ser danoso para um político que construiu sua imagem com palavras de ordem contra a corrupção e o mau uso de recursos públicos. Se as denúncias de funcionários fantasmas, rachadinhas e laranjas que pipocam desde a época da campanha não foram capazes de impedir sua eleição, podem ser fatais à medida em que mais fatos e dados forem sendo descobertos pelos órgãos de controle. Como atestam tantos escândalos de corrupção, “quando se puxa uma pena, vem uma galinha inteira”, já dizia o falecido ministro Teori Zavascki. E as informações trazidas pelo Ministério Público até o momento evidenciam um trabalho robusto de cruzamento de dados e informações financeiras difícil de ser rebatido.

Por fim, numa época em que celebramos a paz e os desejos de tempos melhores, merece repulsa o comportamento do presidente da República perante os repórteres que o indagavam sobre as investigações contra o seu filho e seu próprio relacionamento financeiro com Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro. A estratégia de polemizar, radicalizar e “lacrar” tem limites - ainda mais quando se é uma autoridade pública, sujeita a prestar contas de seus atos. O comportamento homofóbico e desrespeitoso do presidente da República não deve ser relativizado.

A esse respeito, acaba de sair a pesquisa “Democracies under Pressure” conduzida pela francesa Fundação pela Inovação Política e pelo americano Instituto Republicano Internacional em 42 países. Ao todo, foram entrevistadas 36.395 pessoas, sendo 1 mil delas no Brasil.

Por meio de um extenso questionário de 35 perguntas, mediu-se o pulso da sociedade sobre o estado da democracia ao redor do mundo.

O resultado da pesquisa em relação ao Brasil, em particular, é preocupante. Em relação à média internacional, consideramos que a democracia por aqui funciona mal (77%), estamos mais dispostos a abrir mão de nossa liberdade em favor de mais ordem (73%) e desconfiamos da maior parte das instituições democráticas, como o governo (93%), o Congresso (90%), o Judiciário (69%) e a imprensa (83%).

Mas se há uma coisa em que nós nos sobressaímos positivamente em relação aos demais países é a tolerância e o otimismo. Os brasileiros entrevistados se mostraram muito mais simpáticos a pessoas com posições diferentes das suas em relação à orientação sexual (85% x 77% da média dos 42 países), religião (90% contra 78%), opinião política (86% x 78%) e raça (96% contra 84%). E, apesar de todos os problemas e ameaças que enfrentamos, ainda esperamos que nosso futuro será melhor do que atualmente (36%, contra 20% da média internacional).

Em tempos de tanta agressividade e preconceito partindo de nossa autoridade máxima, esses números são um sopro de esperança em relação ao nosso futuro, com mais respeito, tolerância e inclusão. Feliz Natal a todos!

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Sergio Lamucci: Juro baixo é o grande trunfo para 2020

Com mais crescimento e uma trajetória mais benigna para a dívida, a percepção de risco melhora, tornando o cenário mais favorável para o investimento no país

A forte queda dos juros e a expectativa de que a Selic ficará baixa por longo período melhoraram consideravelmente o cenário para a recuperação cíclica e para a dinâmica das contas públicas no Brasil.

Mesmo se o Banco Central (BC) não cortar mais a taxa básica em 2020 e a mantiver em 4,5% ao ano ao longo do ano que vem, um juro real (descontada a inflação) pouco acima de zero deverá ter efeito importante sobre a atividade, contribuindo também para reduzir as despesas financeiras do setor público. Com mais crescimento e uma trajetória mais benigna para a dívida, a percepção de risco melhora, tornando o cenário mais favorável para o investimento no país.

Um avanço mais firme do PIB de modo sustentado vai depender do aumento da produtividade, mas o quadro de juros baixos deve sustentar a retomada cíclica, ainda que seja importante uma queda expressiva das taxas cobradas em empréstimos e financiamentos. Juros menores tendem a permitir um crescimento do PIB acima de 2% por algum tempo, desde que não haja uma piora acentuada no cenário externo e o governo não crie incertezas e problemas desnecessários, como na relação com o Congresso.

Para o ano que vem, o Bradesco prevê uma expansão da economia de 2,5%, uma aceleração em relação ao 1,2% esperado para este ano, amparada no nível baixos dos juros e na recuperação do mercado de trabalho. “As melhores condições financeiras, com juros em patamar historicamente baixo, favorecerão os setores ligados a crédito, como o automotivo, as indústrias de eletrônicos e de bens de capital, construção residencial e infraestrutura”, aponta o banco, em relatório.

Além disso, a recuperação do mercado de trabalho deve ganhar força, com o aumento da formalização - em novembro, o país criou quase 100 mil vagas com carteira assinada, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Foi o oitavo mês seguido de geração de vagas formais, e o melhor resultado para novembro desde 2010. “Isso deve adicionar maior dinamismo ao consumo das famílias e impactar positivamente o comércio varejista, os serviços prestados às famílias e o sistema de saúde privado”, dizem os economistas do Bradesco, que também veem “um cenário favorável para todo o complexo carnes, a exploração de petróleo e a mineração, em dinâmicas setoriais próprias”.

Os juros baixos também devem estimular o investimento por parte das empresas, avalia o Bradesco. A confiança empresarial tem melhorado e está em curso um processo de redução das incertezas. “As exportações devem se manter em baixo patamar, mas a demanda interna deve compensar”, diz o banco, para quem “os aportes seguirão concentrados em modernização e automação, ainda mais se considerarmos o elevado nível de ociosidade em alguns segmentos”.

À medida que a indústria cresça com mais força, porém, o excesso de capacidade se reduzirá, aponta o Bradesco. Desse modo, há uma expectativa de que a retomada seja puxada pelo consumo das famílias e pelo investimento, ainda que a ociosidade elevada freie apostas em projetos de ampliação da capacidade produtiva, pelo menos num primeiro momento.

O economista-chefe do Bradesco, Fernando Honorato, diz que, em evento recente promovido pelo banco em Nova York, ficou claro que o investidor estrangeiro “quer ver crescimento”. Essa é a grande prioridade do capital externo, segundo ele. Se confirmadas as previsões para 2020, o Brasil será uma das principais economias do mundo a registrar uma aceleração mais expressiva do crescimento no ano que vem. Isso pode atrair recursos estrangeiros para a bolsa, cuja alta em 2019 foi puxada por dinheiro local, e para projetos de infraestrutura e outros setores da economia, diz Honorato. Muitos investidores externos permanecem reticentes em relação ao país devido ao desempenho fraco da economia nos últimos anos.

Os juros baixos também melhoraram significativamente as perspectivas para a trajetória da dívida pública. A mudança fica clara nas projeções para a dívida bruta do Santander, por exemplo. Em 2015, o banco via o endividamento bruto atingindo o pico de 91,7% do PIB em 2023. Na estimativa feita em 2017, o indicador alcançaria 88,7% do PIB também em 2023. Hoje, o banco acredita que o pico será de 77,8% do PIB, nível em que a dívida bruta baterá em 2021.

Em resumo, o indicador, um dos principais termômetros de solvência das contas públicas de um país, deverá subir menos que se esperava há alguns anos, além de atingir o seu nível máximo um pouco antes.

O economista Rodolfo Margato, do Santander, ressalta o papel dos juros mais baixos para a melhora das projeções. Também pesam a expectativa de um crescimento um pouco mais forte e as devoluções dos recursos do BNDES ao Tesouro, de acordo com ele. Isso ajuda a abater o estoque da dívida bruta, que deve fechar 2019 em 76,8% do PIB, nas projeções do banco.

Num quadro de elevado desemprego e inflação sob controle, os juros tendem a ficar baixos por um bom tempo. O Santander espera que a taxa recue dos atuais 4,5% para 4% no começo do ano que vem, enquanto o Bradesco acredita que a Selic cairá para 4,25%. Nos dois casos, a expectativa é que os juros não vão subir ao longo de 2020. A aprovação da reforma da Previdência e o teto de gastos também foram importantes para a queda da taxa nos últimos anos, por melhorar a sustentabilidade das contas públicas no longo prazo.

Para que os juros sigam em níveis baixos de modo duradouro é fundamental continuar com a agenda fiscal, diz Honorato, para quem é importante a aprovação de medidas que tornem viável o cumprimento do teto, o mecanismo que limita a expansão das despesas não financeiras da União. Também é preciso adotar iniciativas do lado da oferta, para aumentar a produtividade e, com isso, a capacidade de o país crescer a taxas mais elevadas, segundo ele. Margato diz que o ajuste das contas públicas não está completo, sendo necessário aprovar medidas que controlem a expansão dos gastos obrigatórios.

Depois de três anos de crescimento pífio, a economia entra em 2020 com a expectativa de expansão mais forte e uma situação fiscal mais favorável. Se o ambiente internacional não azedar e o governo não for uma fonte de incertezas e ruídos, o PIB parece caminhar de fato para uma expansão no ano que vem superior a 2%, nada brilhante, mas algo que não ocorre desde 2013.


Naercio Menezes Filho: A situação do mercado de trabalho

Os movimentos recentes não sinalizam melhora consistente e dificuldades devem prosseguir em 2020

A recuperação do mercado de trabalho tem sido decepcionante. A taxa de desemprego, que era de 6,5% no final em 2014, dobrou com a crise econômica e desde então vem se reduzindo lentamente, tendo atingido 11,8% no último trimestre. Quais são os grupos mais afetados pelo desemprego? Como o desemprego afeta a participação dos diferentes membros da família? Quais as perspectivas de redução do desemprego para o futuro?

Os grupos mais afetados pelo desemprego são os jovens e os que concluíram apenas o ensino fundamental completo, que tiveram aumentos de desemprego bem acima da média. Com relação aos jovens, sabemos que eles naturalmente têm desemprego mais alto, pois circulam muito entre empregos para experimentar, combinam estudo com trabalho e têm baixo conhecimento de matemática e habilidades socioemocionais, tais como resiliência e motivação, como mostra o seu desempenho ao longo da prova do Pisa. Como eles não permanecem muito tempo no emprego, seus empregadores investem pouco no seu treinamento e seus salários aumentam pouco com a experiência, o que reforça os incentivos para eles deixarem logo o emprego. Cria-se, assim, um círculo vicioso. Além disso, os jovens são os últimos a serem contratados com o fim da crise.

A taxa de desemprego entre as pessoas com ensino superior é bem mais baixa do que a média e o seu diferencial de salários com relação às pessoas que tem apenas o ensino médio continua bastante elevado (160%). Isso mostra que fazer ensino superior ainda é a melhor alternativa para se proteger do desemprego e ter salários mais altos, apesar do grande aumento do número de formados que houve recentemente no Brasil. Assim, é necessário aumentar ainda mais as matrículas no ensino superior no Brasil, especialmente nos cursos de exatas. Além disso, quem tem alguma pós-graduação ganha 80% a mais do que os graduados e esse diferencial cresce sem parar.

Com relação à composição familiar, é interessante notar o comportamento do cônjuge (esposa ou esposo) no mercado de trabalho. Sua taxa de participação tem aumentado desde o início da década, passando de 55% para 63% e aproximando-se da participação dos chefes de família, que declinou para 65%. Isso é evidência do chamado “efeito trabalhador adicional” que ocorre quando há um grande choque no mercado de trabalho que faz os chefes perderem o emprego. Esse efeito faz com que os cônjuges sejam responsáveis por uma parcela cada vez maior na renda familiar hoje em dia e atenua a queda na renda familiar per capita, que está hoje no mesmo nível de antes da crise.

A taxa de desemprego é o resultado líquido de dois fluxos principais: a porcentagem de pessoas que perde o emprego (demissões) e a porcentagem de pessoas que encontra emprego (admissões). As variações na taxa de desemprego no Brasil dependem mais do comportamento da taxa de admissões do que da taxa de separações, que varia bem menos ao longo do ciclo econômico.

A figura mostra o comportamento da taxa de admissões para os diferentes membros da família entre o segundo trimestre de 2012 e o mesmo período em 2019, usando dados da PNAD Contínua (IBGE), seguindo os mesmos indivíduos por dois trimestres consecutivos. Esses dados incluem também o setor informal e mostram um perfil mais fiel da renda e do desemprego nas famílias do que os dados do Caged, que retratam o setor formal apenas.

Em primeiro lugar, é interessante mostrar a diferença entre as taxas de admissões (saída do desemprego) dos diferentes grupos. A parcela que encontra emprego é bem maior entre os chefes de família, pois são eles (ou elas) os responsáveis, em última instância, por sustentar a família. A taxa de admissão entre os chefes estava em torno de 45% antes da crise, mas começou a cair fortemente a partir do segundo trimestre de 2015, até atingir 35% em 2017. A má notícia é que, após um período de estabilidade entre 2017 e 2018, a taxa de admissões voltou a declinar no último ano.

Os jovens também tiveram uma grande queda na taxa de saída do desemprego, de 35% em 2012 para 25% em 2016, permanecendo nesse nível desde então. Com relação aos cônjuges, a taxa permaneceu ao redor de 30% em todo o período, aumentando um pouco no período recente. Isso ocorreu porque os cônjuges aumentaram seu esforço para achar emprego para amortecer os efeitos da crise na renda familiar, como vimos acima. Assim, a parcela de cônjuges que sai do desemprego, que estava mais próxima da taxa dos jovens, se aproximou da taxa dos chefes. A taxa de transição dos cônjuges do emprego para a inatividade também declinou muito no período.

Com relação à taxa de entrada no desemprego, os números mostram um grande aumento entre os jovens na crise, de 5% para 9% entre 2014 e 2016. Depois de uma relativa estabilidade até 2012, a taxa voltou a aumentar no último ano. Entre chefes e cônjuges, a taxa de pessoas que perderam seus empregos também aumentou de 1,3% para 2,6% dos ocupados no mesmo período, permanecendo nesse nível desde então.

Outro ponto importante diz respeito à informalidade. Grande parte das pessoas que se mantiveram ocupadas durante a crise estão na informalidade ou trabalhando por conta própria (em aplicativos, por exemplo). A taxa de permanência no setor informal aumentou de 30% para 35%, enquanto a taxa de permanência no setor formal caiu de 39% para 35%. Ou seja, as pessoas que mais conseguem manter seus empregos hoje em dia são os que estão no setor informal. E também não há indicativos de melhora nessa situação no período recente.

Em suma, há muita heterogeneidade no comportamento do mercado de trabalho recente no Brasil. Os mais afetados são os chefes e os jovens, ao passo que os cônjuges aumentaram sua participação no mercado de trabalho e conseguiram manter a renda per capita média nas famílias remediadas, mas não nas mais pobres. Os movimentos recentes do mercado de trabalho não sinalizam uma melhora consistente, ou seja, as dificuldades devem continuar no ano que vem, infelizmente. Apesar disso, feliz ano novo para todos!

*Naercio Menezes Filho é professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, professor associado da FEA-USP e membro da Academia Brasileira de Ciências.


César Felício: A injeção de óleo canforado, de novo

Governo demonstra que quer focalizar investimento social

O presidente Jair Bolsonaro encerra seu primeiro ano do governo pagando décimo-terceiro para os beneficiários do Bolsa Família, um fato político com dois efeitos significativos. O primeiro é que ele não está exatamente parado ou indiferente em relação à necessidade de estabelecer compensações sociais aos efeitos da sua estratégia econômica liberal. O segundo é que há sinais abundantes de que o governo pretende se aventurar na estrada da focalização de benefícios.

O número de ganhadores do Bolsa Família não é estático, flutua de um mês para o outro, com entrada e saída de gente. Da criação da transferência de renda até o governo Dilma, a trajetória da quantidade de beneficiários era crescente. Em julho de 2014, chegou a 14,204 milhões de benefícios pagos. Era a antevéspera da eleição em que a presidente havia prometido “fazer o diabo” para ganhar, como de fato ganhou.

No governo Temer, houve um pente fino para limpar o cadastro e o número de beneficiários começou a cair, até bater em 12,7 milhões de beneficiários em julho de 2017, em pleno ambiente de crise econômica. A partir daí a trajetória de crescimento foi retomada e Temer encerrou seu governo pagando a bolsa para 14,1 milhões de famílias, quase o teto de Dilma, em dezembro de 2018.

No governo Bolsonaro, o número embicou para baixo: já são sete meses de queda consecutiva no número de beneficiados, hoje em 13,17 milhões. É mais dinheiro para menos gente. Quase 1 milhão a menos.

Está na área social um dos dois únicos ministros do governo Temer que Bolsonaro decidiu preservar, o emedebista Osmar Terra. Eis uma área em que o presidente não quis inovar.

O ministro é um bolsonarista recente, convertido só no ano da eleição ao credo reacionário, mas esteve por trás de tudo o que foi feito nas últimas décadas em termos federais na área social fora do petismo. Foi secretário-executivo do Comunidade Solidária, no governo Fernando Henrique. A administração tucana criou diversos programas de transferência de renda focalizados, para populações de municípios particularmente pobres ou então com condicionalidades aos beneficiários bastante rígidas. As iniciativas daquele tempo chegaram a ser chamadas de “injeção de óleo canforado” por um governador à época, o de Sergipe Albano Franco, e tiveram efeito eleitoral, ainda que limitado.

Com alarde, o tucano lançou em 2001 o projeto Alvorada, uma injeção de recursos adicionais para as 390 cidades que tinham índice de desenvolvimento humano abaixo de 0,5. Um dos principais motores do programa eram os cartões magnéticos para pagamento aos beneficiados. As pequenas peças de plástico foram concebidas para deixar bem claro que a ajuda brotava do Palácio do Planalto, e não de prefeituras, instituições sociais, governos estaduais ou o que quer que fosse. O número de cidades com IDH abaixo de 0,5 despencou de 390 para 23. Das 50 cidades mais pobres em 1991, só três permaneceram nesta mesma condição em 2002. O candidato tucano à Presidência, José Serra, ganhou em 26 destas cidades e Lula em apenas 13. Nos grandes centros, o desemprego e a violência em alta anularam a vantagem tucana nos grotões. Dos 62 maiores colégios eleitorais, Lula triunfou em 57.

O PT colocou a transferência de renda em escala exponencial e estendeu sua capilaridade para os pequenos e pobres municípios em que estavam ausentes. A política rende frutos até hoje. Fernando Haddad ganhou nos 48 dos 50 que, em 2002, eram os mais pobres, e Bolsonaro não foi vencedor em nenhum. Já nas grandes, o sinal se inverteu.

Bolsa Família não é a única política social compensatória do governo Bolsonaro com redução de escopo. Movimento muito mais drástico deve acontecer com o programa Minha Casa, Minha Vida. Foi divulgado que o governo está para lançar uma espécie de voucher para as famílias com renda até R$ 1,2 mil para comprar um imóvel novo ou construir um. Na versão atual do programa, há um subsídio de 90% para a faixa de renda de até R$ 1,8 mil adquirir uma propriedade. Desta vez será menos benefício para menos gente. Não só a faixa atendida será menor, como o benefício financeiro passa a ter teto mais baixo do que os R$ 95 mil que vigoravam em São Paulo, Rio e Distrito Federal até ano passado. De todo modo, será um avanço em relação à situação atual. O governo só está liberando recursos para a conclusão dos projetos em andamento. Não há contratações novas.

Onde o governo mais acerta é na saúde. O programa Médicos pelo Brasil propõe-se a ter o mesmo efetivo de 18 mil profissionais que o petista Mais Médicos chegou a ter, mas com remuneração maior e direcionamento para pequenas cidades do Norte e do Nordeste, onde de fato o acesso da população à saúde é menor. O desenho do programa, portanto, é melhor. A questão agora é saber se a classe médica irá se inscrever no programa bolsonarista. A conferir.

No curto prazo, a política social focada poderá dar a Bolsonaro algum dividendo nas pesquisas que o escândalo envolvendo o filho senador está tirando. Dezembro costuma ser um mês com mais dinheiro no bolso, e portanto há um repique na popularidade de presidentes. Foi nesta época do ano que Lula bateu seu recorde, em 2010, ao conseguir 87% de aprovação; e até Dilma no fatídico 2013 cresceu em dezembro, de 37% para 43%, segundo o CNI/Ibope. Nada mais natural, portanto, que Bolsonaro tenha uma boa notícia na pesquisa a ser divulgada hoje.

A sombra de Queiroz, o suspeito de ter coordenado a “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa contudo, deita raízes, que independem da conclusão ou não do inquérito conduzido pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. É uma brecha que pode afastar ainda mais o bolsonarismo do lavajatismo, motor importante para a eleição do ano passado. Algo que pode ficar em estado de dormência para eclodir, com mais força, adiante.


Ribamar Oliveira: Orçamento impositivo alastra-se pelo país

Modalidade já é adotada por 13 Estados, o DF e mais 9 capitais

Até o fim de 2018, 13 Estados brasileiros, o Distrito Federal e nove capitais adotavam algum tipo de Orçamento impositivo, de acordo com pesquisa realizada pelo professor Rodrigo Luís Kanayama, chefe do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Em conversa com o Valor, Kanayama alertou para o fato de que os números podem ter aumentado neste ano e que a sua pesquisa não abrangeu os municípios do interior.

No caso dos Estados, cinco deles adotam em suas constituições a obrigatoriedade para a execução de todas as programações orçamentárias. Outros sete e o Distrito Federal tornaram obrigatória a execução apenas das emendas parlamentares, e um deles, das emendas e das decisões tomadas em audiências públicas sobre o Orçamento.

Seis Estados inscreveram o princípio em suas legislações antes de o Congresso Nacional incluir na Constituição da República, por meio da Emenda Constitucional 86/2015, a obrigatoriedade de execução das emendas individuais dos parlamentares ao Orçamento. De 2015 a 2018, outros seis Estados foram pelo mesmo caminho.

A aprovação das emendas constitucionais 100 e 102 à Constituição da República, neste ano, poderá abrir uma verdadeira avenida para que outros Estados e municípios avancem em direção ao Orçamento impositivo. A emenda 100 tornou obrigatória a execução das emendas de bancada estadual e determinou que “a administração tem o dever de executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade".

A emenda 102 estabeleceu que a obrigatoriedade de execução “aplica-se exclusivamente às despesas primárias discricionárias”, que são os investimentos e o custeio da máquina pública. Como as demais despesas são de execução obrigatória por algum dispositivo constitucional ou legal, todo o Orçamento passou a ser impositivo.

A tradição brasileira é de Orçamento apenas autorizativo, como lembrou o professor Kanayama. No fim da década de 1990, alguns parlamentares deram início a um movimento a favor do Orçamento impositivo. A PEC 77/1999, de iniciativa do então senador Iris Rezende, do PMDB goiano, propôs a obrigatoriedade da execução orçamentária. A bandeira foi, então, empunhada pelo então poderoso senador Antônio Carlos Magalhães, do PFL da Bahia, que, em 2000, apresentou uma proposta no mesmo sentido. Naquela época não se falava em emenda impositiva, mas na obrigatoriedade de execução de todas as programações orçamentárias.

O movimento foi uma reação ao uso excessivo, por parte do Executivo, da barganha na execução das emendas que os parlamentares faziam ao Orçamento, para que eles aprovassem as propostas de interesse do governo. A crítica principal era que o Executivo executava o que queria e que o Orçamento tinha virado uma peça de ficção.

Em 2015, os parlamentares impuseram uma derrota à ex-presidente Dilma Rousseff e aprovaram a Emenda Constitucional 86, que tornou obrigatória a execução das emendas parlamentares individuais ao Orçamento, até o limite de 1,2% da receita corrente líquida da União.

O máximo que o então governo conseguiu foi que 50% dos recursos seriam destinados obrigatoriamente à área da saúde. Depois vieram as emendas 100, 102 e agora a emenda 105, que permite ao parlamentar doar ao município ou governo que desejar, sem destinação específica e sem fiscalização do Tribunal de Contas da União (TCU), até a metade do valor de suas emendas individuais.

Para o professor Kanayama, a mudança que está ocorrendo no Orçamento é de fundamental importância, pois altera a relação entre o Executivo e o Legislativo. “A força que o Parlamento ganha é muito grande”, avaliou. Ele acredita que, se a prática se espalhar para os municípios do interior, é alto o risco de que ocorra um aumento da ineficiência na alocação dos recursos públicos.

A procuradora Élida Graziane Pinto, do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, acha que o país caminha para uma espécie de “parlamentarismo fiscal”. Para ela, está ocorrendo uma paulatina reversão do poder que o Executivo tinha de capturar lealdades parlamentares por meio das emendas ao Orçamento. “Assim, tem sido expandido o nicho de deliberação autônoma do Congresso em caráter obrigatório para o Executivo”, observou. “Como o presidente Bolsonaro cedeu espaço para o Congresso, foi mais fácil para este acelerar o processo da impositividade orçamentária que diminui a discricionariedade do Executivo em favor da ampliação de poder do Legislativo”.

Ainda é difícil prever as consequências para o sistema político brasileiro da mudança que está em curso.

Inconstitucional
Especialistas consultados pelo Valor garantem que um aspecto da proposta orçamentária aprovada pelo Congresso Nacional, na noite de terça-feira, poderá ser considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Em seu parecer, o relator-geral da proposta, deputado Domingos Neto (PSD-CE), promoveu uma redução da ordem de R$ 6 bilhões nos gastos de pessoal em 2020, condicionada à aprovação da proposta de Emenda Constitucional 186/2019, que permite que o governo diminua a jornada de trabalho e o salário dos servidores em até 25%. A economia com pessoal foi usada para programar outros gastos.

O problema é que o parágrafo terceiro do artigo 166 da Constituição proíbe, expressamente, a redução da dotação para o pagamento de pessoal e encargos sociais por meio de emenda parlamentar. Em conversa com o Valor, o deputado Domingos Neto observou que a lei orçamentária aprovada determina que, no caso da não implementação dos dispositivos da PEC 186, poderão ser recompostos os valores das despesas de pessoal com o cancelamento dos gastos que ficaram condicionados. “Avaliamos pela constitucionalidade exatamente por entender que fica preservado o Orçamento em todas as circunstâncias”, disse.


Fernando Exman: Bolsonaro enfrenta trincheira municipalista

Parlamentares querem alterar PEC do pacto federativo

A prosa tem uma leve mudança de rumo, quando se pergunta a auxiliares próximos do presidente da República sobre um ponto específico da proposta de pacto federativo que tramita no Congresso. Durante a conversa, predomina a confiança no avanço da agenda legislativa no ano que vem. Mas há um indisfarçável ceticismo quanto à possibilidade de deputados e senadores aprovarem um dispositivo que reduzirá o número de municípios do país.

A portas fechadas, essas autoridades examinam com pragmatismo os desafios da articulação política. E o tema não é tratado como tabu.

Bolsonaro ganhou a eleição prometendo revolucionar a interação entre os Poderes. Quase um ano depois de ele ter tomado posse, é possível afirmar que não decepcionou seus eleitores. Por outro lado, também é correto dizer que as relações entre os articuladores políticos do Palácio do Planalto e os parlamentares estão longe do patamar ideal.

Isso não impede que o governo tenha clareza dos obstáculos que enfrentará. Esses auxiliares de Bolsonaro sabem, por exemplo, o erro que seria menosprezar a potência do instinto de sobrevivência de deputados federais e senadores. Para eles, prefeitos e vereadores são a mão de obra utilizada nas campanhas eleitorais. Ou seja: quanto mais municípios, maior será a força de trabalho à disposição.

O presidente Jair Bolsonaro parece não seguir essa lógica. Na última campanha eleitoral, priorizou a comunicação direta com os eleitores por meio das redes sociais. Atualmente não demonstra grandes preocupações com a possibilidade de seu novo partido, o Aliança pelo Brasil, não conseguir lançar candidatos no pleito municipal de 2020. O presidente também não tomou conhecimento do perigo de acabar transformando em uma legião de adversários os prefeitos das cidades que podem ser extintas.

A ameaça a uma parte considerável dos gestores municipais consta da Proposta de Emenda Constitucional 188 de 2019. A PEC visa, entre outras medidas, tirar do mapa do Brasil os municípios incapazes de se sustentar.

O critério foi definido pela equipe econômica e apresentado formalmente pelo líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE). A nota de corte é objetiva: municípios de até 5 mil habitantes deverão, até o dia 30 de junho de 2023, demonstrar que o produto da arrecadação dos impostos municipais corresponde a, no mínimo, 10% da sua receita total. Caso contrário, o município será incorporado a partir de primeiro de janeiro de 2025 ao município limítrofe com melhor sustentabilidade financeira. Essa espécie de fagocitose municipal será limitada a até três unidades por cada prefeitura incorporadora.

A apuração da quantidade de habitantes será baseada nos dados do censo populacional de 2020. Isso, claro, se houver recursos para a realização do levantamento pelo IBGE.

A PEC também estabelece que uma lei complementar federal poderá fixar requisitos de viabilidade financeira para a criação e o desmembramento de municípios.

A reação dos prefeitos e vereadores foi rápida e bem articulada. Representantes da Confederação Nacional dos Municípios circularam pela capital federal com um estudo em mãos, a fim de sensibilizar parlamentares e a equipe econômica. Segundo a CNM, 1.252 dos 5.568 municípios têm até 5 mil habitantes. Desses, 1.217 serão incorporados se não conseguirem comprovar sua sustentabilidade financeira. Cerca de 4 milhões de pessoas moram nessas localidades.

Um efeito colateral, na visão do governo. Para a equipe econômica, essa será uma forma eficaz de reduzir despesas, descentralizar a gestão dos recursos e ampliar os instrumentos de controle.

A ala política do governo é mais assertiva: a medida é necessária para reduzir “fontes de roubalheira”. Na visão de um ministro, trata-se de uma necessidade do ponto de vista ético, pois haveria uma redução substancial no número de prefeitos, vices, secretários e vereadores. Se confirmada, a economia será considerável. “Mas a política não se pauta por essas coisas”, resignou-se o ministro.

A CNM listou os Estados que seriam os principais atingidos. Bolsonaro venceu a eleição em todos eles: Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Goiás, Mato Grosso, Santa Catarina e São Paulo.

É possível também mapear os partidos que mais perderiam prefeitos de um dia para outro. No topo da lista está o MDB, sigla dos líderes do governo no Senado e no Congresso. O relator da PEC, senador Márcio Bittar (AC), também é filiado à legenda. A boa notícia para ele é que atualmente nenhum município de seu Estado seria alcançado pela regra.

PSDB, PP, PSD, PR, PT e DEM também seriam grandes prejudicados. Unidos, esses partidos teriam votos suficientes para barrar uma proposta de emenda constitucional.

Um outro fator deve ser levado em consideração. Grande parte dos municípios extinguíveis é do interior e depende da agropecuária. Eles não atraem indústrias nem contam com boas ofertas de serviços.

Portanto, teriam poucas alternativas para aumentar a arrecadação e sair da lista da degola. Muitos são redutos eleitorais da bancada ruralista, uma das mais influentes do Congresso e com a qual Bolsonaro tenta manter um relacionamento mais próximo.

Não é de hoje, no entanto, que o tema provoca desgastes entre os Poderes, os governadores e os prefeitos. Quando há a emancipação ou criação de um novo município, o que está em jogo é o rateio de recursos públicos e o domínio político local. A ex-presidente Dilma Rousseff, por exemplo, vetou projeto que viabilizava a criação de novos municípios e provocou uma crise com seus aliados a poucos meses das eleições de 2014. O veto foi derrubado pela própria base governista.

Por via das dúvidas, o Congresso dedicou-se nos últimos dias a aprovar uma série de projetos que ampliam as fontes de recursos para os municípios. Se o governo surpreender e conseguir aprovar a medida, os parlamentares têm um plano alternativo. Questionarão a iniciativa na Justiça, sob o argumento de que a Constituição prevê a consulta prévia, por meio de plebiscito, a toda população diretamente envolvida na criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios. O mais novo capítulo dessa polêmica apenas começou.


Daniel Rittner: Cinco fatos de 2019 e seus desdobramentos

Previdência, Freitas, UE-Mercosul, China-EUA e ambiente são cinco destaques do ano que termina

Chega a hora dos balanços, reflexões, retrospectivas de um ano em que ouvimos que 1964 não foi golpe, um novo AI-5 seria bem-vindo para conter protestos, o nazismo era de esquerda, descendentes de escravos deveriam agradecer seus ancestrais por terem deixado a África, ONGs atearam fogo na Amazônia por doações.

A normalização do absurdo foi uma marca de 2019, mas deixemos controvérsias e manipulações de lado para destacar fatos importantes para a economia brasileira - apontando seus desdobramentos. Eis aqui um ensaio, pessoal e subjetivo, para resumir cinco deles. Não estão em ordem de importância e podem facilmente ser substituídos por outros temas ou episódios. É nada mais do que isso: um ensaio, uma tentativa.

1) Previdência: a necessidade de reforma das aposentadorias e pensões estava madura na sociedade quando o governo começou, mas Jair Bolsonaro realmente conseguiu aprová-la sem (muito) toma-lá- dá-cá nas negociações com o Congresso. Ponto para ele. Isso lhe permitiu sustentar o discurso de “nova política” junto ao eleitorado, mas teve reflexos danosos. O presidente imaginou que tinha cacife para aprovar outras pautas sem uma base aliada. É bater a cabeça contra a parede. Paulo Guedes achou que a reforma tributária estava no bolso e poderia até propor uma “nova CPMF”. Só tumultuou o debate.

Demonstrou-se ingênuo o argumento de que a aprovação da reforma traria uma chuva de investimentos. Mas sua rejeição - ou novo atraso - teria jogado o país em um precipício fiscal. O saldo é positivo, mas a exclusão de Estados e municípios ainda vai custar caro aos entes federativos. Quanto mais perto da eleição de 2020, menores as chances de a Câmara votar uma PEC paralela e Assembleias Legislativas fazerem reformas em seus Estados.

2) Leilões de março: as concessões de 12 aeroportos terminaram com ágio de 4.700% e a vitória de operadoras com prestígio. A Rumo pagou o dobro do valor mínimo de outorga pela Ferrovia Norte-Sul e surpreendeu todos que viam o certame feito sob medida para a Vale. Foi o passaporte do ministro Tarcísio Freitas, um quase desconhecido fora da área de infraestrutura, para o estrelato. Ele encaminhou outros bons projetos, decretos sobre relicitação e arbitragem, entregou a BR-163 asfaltada.

Tarcísio virou peça central na engrenagem do governo, xodó do presidente e é sempre cotado para voos mais altos. Foge de intrigas políticas e do jogo sujo nas redes sociais. As guerrilhas bolsonaristas implicaram com ele - que escândalo! - por ter se reunido em Nova York, durante “road show” para atrair investidores estrangeiros, com representantes do Soros Investment Fund, do bilionário George Soros, alvo preferencial de olavistas. “O programa de concessões segue uma linha estritamente técnica e precisamos protegê-lo de agendas de cunho político”, tuitou Tarcísio, em resposta. No atual ambiente de radicalização, não é pouca coisa.

3) Acordo União Europeia- Mercosul: o anúncio de conclusão das negociações de livre-comércio deu uma injeção de ânimo no combalido bloco sul-americano. Até agora, o Mercosul tinha só três acordos fora da vizinhança: com Israel, Egito e Palestina. Irrelevantes.
O sucesso do acordo é uma construção coletiva que passa pelo segundo governo Dilma - curto, porém mais pragmático em relação à abertura comercial do que os 12 anos anteriores de gestões petistas. Avança bastante sob Michel Temer. Mas a “última milha” das negociações, como se diz no jargão diplomático, é sempre complicada e por isso o governo Bolsonaro tem méritos.

O Mercosul se cercou de cuidados, como a possibilidade de salvaguardas em caso de disparada das importações, mas restam algumas desconfianças - como cláusulas de propriedade intelectual e interpretações antagônicas em torno do princípio de precaução na agricultura. De toda forma, abre-se o caminho para novos acordos porque finalmente se definiu jurisprudência sobre até onde se pode chegar em temas sensíveis, como tarifas para bens industriais. Não à toa, um tratado com o EFTA - Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein - foi anunciado na sequência. Acordos com Canadá e com Cingapura são boas apostas para o ano que vem.

Ponto negativo? O Mercosul, que vinha ganhando tração, agora entra em compasso de espera pelo desalinhamento entre Bolsonaro e Alberto Fernández. O auge do mal-estar talvez esteja ficando para trás, mas a Argentina não deve topar redução unilateral da Tarifa Externa Comum e bastará uma faísca para incendiar as relações.

4) EUA x China: tréguas comerciais rendem manchetes e aliviam a tensão no curto prazo, mas têm pouca efetividade numa guerra que, no fundo, no fundo, é tecnológica. A corrida do 5G pode definir o vencedor do século XXI.

A postura óbvia, para o Brasil, era manter equidistância e extrair os benefícios possíveis de cada lado. Bolsonaro e auxiliares capricharam nas indelicadezas com a China. Buscaram forçar amizade com Donald Trump. De início, a proximidade com a Casa Branca até rendeu frutos, como o apoio para entrar na OCDE, o status de aliado extra-Otan e o acordo de salvaguardas tecnológicas, que é essencial para viabilizar a Base de Alcântara.

E como é que se chega ao fim do ano? Dos Estados Unidos tivemos: veto à carne in natura mantido, apoio na OCDE jogado para mais adiante, tarifas ao aço e ao alumínio sem aviso prévio, pressão em torno do 5G. E o que veio da China? Abertura para o melão do Rio Grande do Norte, habilitação para a carne de 25 frigoríficos, petroleiras chinesas no leilão do pré-sal, CCCC e CR20 na ponte Salvador-Itaparica.

5) Ambiente: maior desmatamento na Amazônia em dez anos, queda de 25% nos autos de infração emitidos pelo Ibama, negacionismo climático, discurso irresponsável contra a “indústria da multa” dando a senha para crimes ambientais.

Nas últimas três décadas, o Brasil foi visto como um sócio- chave para o desenvolvimento sustentável. O protagonismo na Eco-92, na Rio+20 e no Acordo de Paris ilustra isso. Agora nos enxergam como parte do problema, não da solução.

A COP-26 ocorrerá em 2020 no mesmo mês de novembro em que se costumam divulgar os índices de desmatamento. Novo fiasco brasileiro, somado a mais um ano de queimadas nas florestas, pode ensejar boicotes e, no limite, comprometer a ratificação do acordo Mercosul- UE no Parlamento Europeu.