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Bruno Villas Bôas: Os rumos da desigualdade

País precisa de uma agenda social e reforma tributária

A recuperação da economia ganhou mais força e o mercado de trabalho dá sinais de melhora, com o avanço um pouco mais intenso de postos com carteira assinada. É combinação desejável para o início de um novo ciclo de redução da desigualdade de renda no país, após o aumento do fosso social ao longo da crise. Mas o caminho de volta promete ser longo.

O Brasil sempre foi desigual, mesmo com as tênues conquistas sociais da primeira década e meia do milênio. Em 2015, o índice de Gini do país era de 0,524 - o indicador varia de zero a um, sendo zero a igualdade perfeita. Era, então, o melhor número da série histórica, mas colocava o país apenas entre Botsuana e Suazilândia. Como a recessão destruiu empregos e atingiu trabalhadores que já ganhavam menos, a disparidade ficou ainda maior nos anos recentes. O índice era 2018 em 0,545, o mesmo do Lesoto.

O pesquisador Sergei Soares, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), acredita que, daqui para frente, o índice de Gini da renda domiciliar per capita tende a melhorar gradualmente. O índice chegaria a 0,520 em 2030. Seriam necessários, portanto, mais dez anos para retornarmos ao mesmo nível de desigualdade de 2015.

O cenário traçado por Soares, que foi presidente do Ipea entre 2014 e 2015, considera um crescimento econômico médio de 2% ao ano, alguma melhora do mercado de trabalho e pouca novidades no campo da proteção social. É um quadro de recuperação gradual, que chamou de “medíocre”.

Segundo ele, a disparidade entre ricos e pobres vai ceder lentamente mesmo com fatores demográficos e educacionais atuando a favor. Um deles é que as famílias mais pobres têm cada vez menos integrantes, convergindo ao padrão das famílias ricas. Isso contribui porque o Gini é calculado pela divisão da renda da família pelo número de integrantes.

Outro fator é o início do encolhimento da população em idade ativa, o que potencialmente reduzirá a oferta de mão de obra - se o trabalhador qualificado é hoje escasso, o não qualificado também será, elevando salários. O terceiro fator está na redução da desigualdade educacional ocorrida no país no passado recente, o que ainda vai produzir frutos.

Mas existe um outro cenário que aponta para uma melhora mais acelerada da diferença de renda. Nele, o país reduziria o índice de Gini para 0,470 em 2030. O Brasil entraria na próxima década com a menor desigualdade já registrada, embora ainda elevada e distante da de vizinhos como o Uruguai (0,395).

Como acelerar a redução da desigualdade? Há muito a ser feito. Uma reforma tributária capaz de redistribuir a carga de impostos é uma peça fundamental. Daniel Duque, pesquisador do Ibre/FGV, diz que a medida passa por criar uma nova alíquota máxima do Imposto de Renda, acima de 27,5%, além de aumentar o teto do imposto sobre herança e reduzir impostos indiretos sobre consumo.

Outro campo fértil é o de programas de garantia de renda, de inclusão produtiva, as rede de proteção ao trabalhador, o saneamento. Uma agenda nessa direção foi apresentada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em novembro, batizada de Agenda para o Desenvolvimento Social. Entre as medidas, está a ampliação do programa Bolsa Família.

Durante a crise, os mecanismos de proteção social foram insuficientemente usados para compensar os efeitos da recessão sobre a parcela mais vulnerável da população, como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), e o seguro-desemprego, defende Rogério Barbosa, pesquisador das universidades de São Paulo e de Columbia.

“Seria esperado que nesse período de crise a proteção social atuasse de forma particularmente mais intensa, de modo a compensar os efeitos mais perniciosos para os mais pobres. Mas isso não aconteceu”, diz Barbosa.

Sem a ampliação desses gastos, a pobreza também levará mais uma década para retornar aos níveis pré-crise, diz Marcelo Neri, da FGV Social. Nos cálculos dele, se a renda total crescer 2,5% ao ano de 2019 a 2030, com a desigualdade constante, a pobreza chegará ao fim do período no mesmo nível que estava em 2014.

“Revertendo a redução de políticas de combate à pobreza, chegaremos a 2030 com menos pobreza do que antes da crise, simples assim”, diz Neri.

No governo Jair Bolsonaro, porém, os rumos de programas sociais seguem incertos. O governo pretende reformular o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida para que recebam a “digital” do presidente. Recentemente, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, declarou que pretende aumentar a renda de 10 milhões de beneficiários que já estão no programa a um custo de R$ 7 bilhões. É meritório, mas ainda uma intenção.

Se existe um primeiro sinal positivo foi a pausa na piora da desigualdade da renda do trabalho no terceiro trimestre de 2019. O índice de Gini da renda do trabalho domiciliar per capita ficou estável frente ao mesmo período de 2018. O indicador piorara em 14 dos 15 trimestres anteriores por essa base de comparação.


Fabio Graner: Crescimento ainda está distante do ideal

Apesar da melhora que parece contratada para o PIB deste ano, não há motivo para euforia

O Ministério da Economia se prepara para lançar ainda neste primeiro bimestre uma nova versão do programa Brasil mais Produtivo, política para aumentar a produtividade nas plantas industriais.

O objetivo dessa nova fase será apoiar cerca de 200 mil empresas em até quatro anos. Os esforços de aumento de produtividade não serão apenas voltados para o setor industrial, como na versão criada no governo Michel Temer. Incluirão também as empresas de pequeno e médio porte dos setores de serviços e comércio.

O projeto original prestou consultoria para cerca de 3 mil empresas entre 2016 e 2018. Seu relançamento havia sido prometido pelo secretário especial de Competitividade, Carlos Da Costa, ainda no início de 2019, mas só agora a medida está ficando pronta.
O Valor apurou que um dos objetivos do novo programa é colocar as empresas industriais na trilha da chamada indústria 4.0, que tem alto grau de digitalização e informatização em seu processo produtivo. Na versão original, o objetivo era mais modesto: melhorar os processos no “chão de fábrica”.

Ainda não há muitos detalhes sobre a iniciativa, que deve contar com recursos orçamentários e do Sistema S. De qualquer forma, evidencia correta preocupação do governo em fomentar a produtividade e dar horizonte mais sustentável e robusto de crescimento ao país.

A questão que se coloca é se o que a área econômica tem feito e pretende fazer, como esse novo programa, é suficiente para atender às enormes necessidades do país, que ainda não voltou aos níveis de produção, emprego e renda anteriores a 2015.

Há um amplo consenso entre os economistas de que a economia está em aceleração. Os cenários variam entre os mais pessimistas, com expansão ao redor de 2% ou pouco abaixo, e os mais otimistas, que já enxergam o PIB subindo na casa de 3% em 2020. O Ministério da Economia oficialmente prevê alta de 2,3%, mas está revendo os números. Algumas fontes oficiais apostam que o PIB poderá crescer acima de 3% neste ano.

Apesar da melhora que parece contratada, não há motivo para euforia. Como bem coloca o economista Manoel Pires, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador do Ibre, o país vive fase de “expectativas rebaixadas”. “Os dados econômicos no Brasil apresentam claros sinais de melhora. O PIB do terceiro trimestre avançou 0,6%. Este resultado, apesar de positivo, não tem nada de excepcional”, diz.

Para ele, em análise no Blog do Ibre, a lenta recuperação e o elevado desemprego normalizaram padrões baixos. “O que antes era visto como uma estatística econômica ruim passou a oferecer uma perspectiva mais positiva da economia. O atual modelo econômico entregou taxas de juros mais normais, mas ainda precisa mostrar capacidade expressiva de geração de emprego e crescimento e de melhoria das condições gerais de vida da população”, diz Pires. Há poucos anos, lembra, um crescimento de 3% era visto como decepcionante pela sociedade.

Ele defende medidas como uma reforma para ampliar e dar mais previsibilidade aos investimentos públicos. “Devem constar em um orçamento plurianual que garanta recursos ao longo do tempo para sua execução, sem interrupções. Devem ser iniciados com projetos executivos prontos e aprovados e devem passar por avaliação de custo benefício, mas não devem ser tratados como algo efêmero porque não são. Não é aceitável ver viadutos desabando como assistimos nos últimos anos”, sugere.

O professor de economia da UnB José Luis Oreiro espera uma expansão de no máximo 2% para o PIB neste ano. E diz que mesmo o consenso do mercado, de alta de 2,5%, é “medíocre”. Para ele, medidas como a liberação do FGTS deram algum impulso para o consumo, mas com fôlego limitado. Ele destaca que alta do emprego se dá em posições mais precárias, e a recuperação do setor de construção, em projetos de alta renda, inibindo resultados melhores no PIB.

Dessa forma, Oreiro defende a retirada dos investimentos públicos do limite do teto de gastos, como forma de alavancar o crescimento do país, impulsionando também a produtividade das empresas.
Paulo Gala, economista da Fator Administradora de Recursos e professor da FGV-SP, também concorda que o desempenho esperado para o país neste ano é muito abaixo do necessário. “Temos chance de crescer entre 2,5% e 3% neste ano, que é aquém do necessário mesmo para uma recuperação cíclica. E tenho dúvidas se isso se sustenta a partir de 2021”, diz.

Ele também é defensor de retirar os investimentos públicos, que estão no piso da série histórica, do teto de gastos. Isso, entende, seria necessário para fomentar o aumento da produtividade do país.

O economista tem se destacado por suas pesquisas e defesas de uma agenda de aumento da complexidade da economia nacional, que reverta a trajetória de primarização produtiva que tem ocorrido. Ele aponta a necessidade de apoio governamental para que o setor industrial volte a recuperar terreno na corrida tecnológica.

“A boa política industrial é aquela que ajuda a conquistar o mundo, e não a proteger o mercado interno”, salientou, defendendo que o governo mapeie os nichos de potencial apoio para estimular a inovação. Nesse sentido, ele aponta que o BNDES deve ter um papel importante, financiando projetos para elevar a capacidade tecnológica das empresas.

Segundo Gala, no passado o banco estatal errou ao financiar empresas que pouco contribuíram para o avanço da complexidade produtiva brasileira. E é a sofisticação do que se fabrica, na visão dele, que promove aumento de emprego, renda e crescimento econômico de qualidade e sustentável no longo prazo. “A China hoje já tem trabalhadores industriais com salários por hora maior do que dos trabalhadores brasileiros”.

Além de mais investimentos em infraestrutura e de uma nova política industrial, o economista defende que se evite uma valorização do real. “Eu não venderia reservas hoje. O câmbio é um pilar que garante que pelo menos parte dessa recuperação cíclica seja direcionada para a indústria”, salientou.

A equipe econômica acerta ao fomentar a produtividade das empresas com o novo Brasil Mais Produtivo. Mas faria bem em prestar atenção aos alertas acima, sem se conformar com o nível de crescimento que se desenha.


César Felício: O vento da mudança no Supremo

Substituição de Celso de Mello irá mudar equação no STF

Para mudar a cara do Supremo Tribunal Federal, o presidente Jair Bolsonaro talvez não precise de um cabo e de um soldado, ou de aumentar de 11 para 21 o número de seus integrantes, como chegou a propor durante a campanha. É possível que seja desnecessário para este propósito antecipar a idade de aposentadoria dos ministros, conforme os bolsonaristas mais fanáticos propuseram na Câmara. E nem promover de baciada processos de impeachment no Poder Judiciário, outra iniciativa dos aliados incondicionais do presidente.

A troca que o presidente empreenderá este ano, com a aposentadoria compulsória do decano, o ministro Celso de Mello, subverte toda a equação. Ele completa 75 anos no dia 1º de novembro.

Muita atenção se dá ao perfil de quem vai entrar. Se será o ministro da Justiça, Sergio Moro, ou, como parece mais provável agora, alguém “terrivelmente evangélico”, conhecedor mais profundo da Bíblia do que dos códigos. Outra vertente que permite antever quão emblemática pode ser a substituição é olhar as características de quem sai de cena.

Decano não é propriamente uma função, é um personagem do qual o ator titular pode representar o papel inteiramente ou não. O decano exerce naturalmente força contrária a mudança de tradições, é um ponto de equilíbrio entre diversas tendências e vaidades.

A politização extremada do Supremo - incapaz de estabelecer jurisprudência firme em diversos pontos, dado ao consenso quase impossível de seus membros, mergulhado no debate partidário que está- revestiu o decano de outra característica: a de ser uma voz da casa, uma espécie de presidente honorário do colegiado. Nos últimos anos, a voz de Celso de Mello soou mais alto que a de Cármen Lúcia e Dias Toffoli, para ficar apenas nos últimos presidentes.

Exemplos recentes neste sentido, compilados por Felipe Recondo e Luiz Weber, autores do livro “Os Onze”, publicado no ano passado: em abril de 2018, na ocasião do julgamento do habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tentava impedir sua prisão após a condenação em segunda instância, o então comandante do Exército Eduardo Villas Bôas fez a sua famosa mensagem pelo Twitter em que disse que a Força compartilhava “do anseio de todos os cidadãos de bem”. Celso de Mello respondeu ao que lhe pareceu uma ameaça encoberta em plenário: “Em situações tão graves assim, costumam insinuar-se pronunciamentos ou registrar-se movimentos que parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas e lesivas à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir”.

Meses depois, veio à tona a fala de Eduardo Bolsonaro em que o filho do hoje presidente bravateou que bastava um soldado e um cabo para fechar o Supremo, “sem desmerecer o soldado e o cabo”. Mello voltou a se pronunciar, desta vez pela imprensa. Chamou a declaração de inconsequente, golpista, irresponsável, inaceitável e autoritária.

No ano seguinte, com Bolsonaro já na Presidência, Mello pediu - e foi atendido - para que se pautasse para a votação em plenário a ação de inconstitucionalidade que criminalizava a homofobia, da qual ele era relator. Ao proferir seu voto a favor da criminalização, citou a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, por pedir que meninas vestissem rosa e meninos azul. Afirmou que esta era uma visão de mundo que restringia liberdades fundamentais da população LGBT.

Depois da publicação do livro, é possível lembrar outra atuação de Celso de Mello em que ele se colocou como um ator contra veleidades antidemocráticas. Na ocasião em que o perfil do presidente Jair Bolsonaro divulgou um vídeo em que um leão era acossado por hienas, uma delas identificada como o STF, o ministro respondeu quase de imediato, à imprensa: disse que o vídeo parecia partir de quem “desconhece o dogma da separação de poderes e, o que é mais grave, de quem teme um Poder Judiciário independente e consciente de que ninguém, nem mesmo o presidente da República, está acima da autoridade da Constituição e das leis da República”.

É esse o ministro que sai de cena no fim de ano, em uma troca que, além de colocar a assinatura de Bolsonaro na Suprema Corte, também altera a ordem de votação, as expectativas, as possibilidades de aliança dentro do Judiciário. É difícil que o personagem de decano seja exercido do mesmo modo por Marco Aurélio, que se aposenta alguns meses depois, ou por Gilmar Mendes, a partir de abril do próximo ano. Em que pese o trânsito político e o conhecimento jurídico que nenhum dos muitos inimigos de Gilmar é capaz de negar, o futuro decano é, de longe, o ministro do Supremo com pior imagem, alvo de nada menos que nove pedidos de impeachment. A chance deles prosperarem é próxima de zero, mas tolhem o ministro de exercer o papel de referência da Corte.

O Judiciário cultiva a imagem de ser um esteio do direito da individualidade frente às tendências majoritárias na opinião pública e no centro do poder político. Mas não há que se tomar essa intenção manifesta como um postulado. A decisão a favor da censura ao especial de Natal do grupo “Porta dos Fundos”, proferida pelo desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Benedicto Abicair é sugestiva de que o Brasil vive novos tempos.

Acionado para se manifestar a respeito do caso, o ministro Dias Toffoli, fez o que se esperava, que é derrubar a liminar. Fica o assombro portanto com o fato da censura ter sido estabelecida por um juiz de segunda instância nas circunstâncias em que foi concedida, dias depois de uma investida que se pretendeu terrorista contra a produtora do vídeo. A defesa do exercício da liberdade de expressão, feita por Toffoli, é um sinal alentador para quem acredita que o vento da mudança não arrastará a tudo.

*César Felício é editor de Política.


Ribamar Oliveira: A despesa da União que mais cresce

Despesa com sentenças judiciais é nova ameaça ao teto de gastos

Não é apenas o crescimento das despesas previdenciárias que ameaça a manutenção do teto de gastos da União nos próximos anos. O pagamento de sentenças judiciais, que é uma despesa primária submetida ao teto, tem aumentado em ritmo muito mais acelerado nos últimos anos, tornando-se uma verdadeira dor de cabeça para as autoridades do Ministério da Economia. Mesmo assim, ela está fora do atual debate fiscal.

Desde 2017, após a criação do teto pela Emenda Constitucional 95, parte do enxugamento que o governo realizou em suas despesas foi para acomodar a elevação deste gasto. E sua trajetória é imprevisível. A tendência, no entanto, é de crescimento, de acordo com o Relatório de Riscos Fiscais da União, recentemente divulgado pela Secretaria do Tesouro Nacional.

Em 2014, os pagamentos referentes a ações judiciais ficaram em R$ 19,8 bilhões, enquanto a previsão do Tesouro Nacional é que a despesa tenha atingido R$ 42 bilhões no ano passado - um crescimento nominal de 112,1% ou 62,1% em termos reais, considerando uma inflação de 4,13% em 2019, medida pelo IPCA, como prevê o mercado, de acordo com o boletim Focus do Banco Central.

O governo projetou um gasto de R$ 53 bilhões com o pagamento de sentenças judiciais no Orçamento da União deste ano - R$ 11 bilhões a mais do que o previsto para o ano passado. Se a despesa se confirmar, o aumento nominal será de R$ 33,2 bilhões, em comparação com o que foi pago em 2014, ou seja, crescimento nominal de 167,7%.

Nenhuma despesa da União cresceu tanto no mesmo período. Em termos de comparação, o gasto com benefícios previdenciários foi de R$ 394,2 bilhões em 2014 e está projetada em R$ 677,6 bilhões para este ano - um aumento nominal de 71,9%. É uma elevação explosiva, mas sem comparação com o pagamento de sentenças judiciais.

As demandas judiciais contra a União são classificadas segundo a probabilidade de perda, podendo ser de risco provável, de risco possível ou de risco remoto. As ações de risco provável são contabilizadas pelo Tesouro em contas de provisão para perdas judiciais, afetando o balanço patrimonial da União.

De 2014 até junho de 2019, as ações na Justiça contra a União registraram um aumento de 290%, passando de R$ 559 bilhões para R$ 2,184 trilhões. Deste total, R$ 634 bilhões dizem respeito a ações classificadas com risco de perda provável, que foram provisionadas no balanço patrimonial da União em 30 de setembro do ano passado.

Os valores mais expressivos de ações contra a União, de acordo com o Relatório de Riscos Fiscais, são de natureza tributária, inclusive previdenciária. O anexo de riscos fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2020 informa que tramitam atualmente perante o Supremo Tribunal Federal (STF) 163 temas tributários com repercussão geral reconhecida e que podem ter algum risco fiscal ao Orçamento da União.

Quando um tema em discussão no STF, por meio de recurso extraordinário, é reconhecido como de repercussão geral, sua decisão final aplica-se a todas as ações judiciais sobre a mesma questão.

O STF já tem decisão favorável, por exemplo, à exclusão do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) da base de cálculo das contribuições do PIS e da Cofins. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) entrou com recurso no STF, pedindo a modulação da sentença, para que o valor do ICMS considerado seja apenas o que a empresa recolheu, e não o que está na nota fiscal e solicitando que a decisão só se aplique a partir de janeiro de 2018.

O recurso da PGFN será julgado em abril. O anexo da LDO estima o impacto da decisão em R$ 45,8 bilhões para um ano e em R$ 229 bilhões para cinco anos. Esta ação já foi classificada como de risco provável.

A preocupação da área econômica com a evolução da despesa da União com sentenças judiciais pode ser avaliada por três movimentos que foram feitos no ano passado. A proposta de reforma da Previdência Social encaminhada pelo governo (PEC 06/2019) continha um artigo estabelecendo que nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderia ser criado, majorado ou estendido por ato administrativo, lei ou decisão judicial, sem a correspondente fonte de custeio total. O dispositivo foi excluído da proposta.

A PEC 186/2019, mais conhecida como “PEC Emergencial”, estabelece que, no exercício em que o volume de operações de crédito exceda a despesa de capital, os três Poderes da República estarão impedidos de criar despesas obrigatórias ou adotar medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação. Não está claro se esta proibição se aplica às decisões judiciais.

A PEC 188/2019, também conhecida como “PEC do Pacto Federativo”, cria o Conselho Fiscal da República, que terá participação dos presidentes de todos os Poderes, com o objetivo de “salvaguardar a sustentabilidade de longo prazo dos orçamentos públicos”. A inclusão do presidente do STF no conselho indica uma preocupação em mostrar diretamente ao Judiciário a situação das contas públicas.


Cláudio Gonçalves Couto: O antipluralismo bolsonarista

Liberalismo do governo Bolsonaro é manco, expressando-se unicamente na política econômica. Trata-se de um disfarce

Uma das principais referências políticas do bolsonarismo é a Hungria de Viktor Orbán - como já deixou claro em mais de uma ocasião o filho 03, Eduardo Bolsonaro, líder ideológico local do movimento capitaneado pelo pai. Em célebre discurso de 2014, Orbán expressou seu desejo de transformar a Hungria numa “democracia iliberal”, como já o seriam a Rússia de Vladimir Putin e a Turquia de Recep Tayyp Erdogan. Nesses regimes, o apoio plebiscitário de uma maioria ao líder entronizado lhe permite governar passando por cima de eventuais limites.

Assim, restringe-se ou mesmo se elimina a liberdade de imprensa; perseguem-se e até se encarceram opositores; combate-se a independência dos centros de produção intelectual autônoma - como as universidades e as artes; deslegitima-se a oposição, apontando-lhe como formada por traidores da pátria - não existiria, como no Reino Unido, uma oposição “de” Sua Majestade, mas apenas “a” Sua Majestade. O modus operandi da democracia iliberal passa por sufocar as divergências e subalternizar as minorias não alinhadas à linha dominante, personificada pelo líder máximo e amparada plebiscitariamente no apoio de uma maioria baseada em critérios identitários - como valores, etnia, religião ou um conjunto de todas essas coisas.

Liberalismo não é só econômico, mas político e social
O caráter “democrático” das democracias iliberais residiria unicamente em seu plebiscitarismo, na expressão da vontade majoritária em eleições e outras votações nas quais a competição política é prejudicada porque a oposição é sabotada ou reprimida, bem como o debate público aberto é substituído pelo oficialismo dos discursos governamentais e pela retórica voltada a deslegitimar discordâncias. Dessa perspectiva, jornalistas são categoria em extinção e devotada a produzir “fake news”, universidades são lugares de balbúrdia e ideologização, educadores não alinhados são doutrinadores pervertidos, artistas dissidentes são sórdidos e mentirosos, opositores são bandidos e traidores.

Diferentemente de suas antecessoras da antiguidade clássica, as democracias do século XX se notabilizaram por serem, justamente, liberais. Não houve uma única democracia passível de ser chamada por tal nome que não tenha contido o elemento liberal - ou seja, competitivo e limitador do poder. Em sua célebre obra, “Poliarquia”, Robert Dahl observou que os regimes democráticos realmente existentes (chamados por ele de poliarquias), eram a combinação de participação política ampliada (direito ao voto e à elegibilidade) e competição política plural.

O processo de democratização contemporâneo, portanto, significaria avançar em dois eixos de um plano cartesiano: o da participação/inclusão (com contingentes cada vez maiores da população detentores de plenos direitos políticos, tendendo à universalização) e o da liberalização (com uma competição política cada vez mais intensa e diversa). A ideia de poliarquia, portanto, é justamente essa: a do poder plural. Logo, o pluralismo e a competição que dele decorre são características inescapáveis do regime democrático que só é democrático sendo liberal.

Daí se depreende que a ideia de democracia iliberal é um oxímoro, ou seja, uma contradição nos termos. A expressão foi cunhada originalmente por Fareed Zakaria para descrever sinteticamente esses regimes em que competição e pluralismo são suprimidos, dando lugar apenas ao apoio majoritário, seja nas ruas, seja nas urnas. Antes dessa formulação de Zakaria, tecida por ele criticamente a esse tipo de regime, o jurista do Terceiro Reich, Carl Schmitt, já concebia a democracia de forma antipluralista - porém, para defender esse formato. Dizia ele: “Em toda a verdadeira democracia está implícito que não só o igual seja tratado igualmente, mas que, como consequência inevitável, o não igual seja tratado de modo diferente.Portanto, a democracia deve, em primeiro lugar, ter homogeneidade e, em segundo - se for preciso - eliminar e aniquilar o heterogêneo”.

E quem seriam os não iguais, os heterogêneos? Ora, os opositores, os dissidentes, os infiéis, os seguidores de modos de vida dissonantes daqueles da maioria, os críticos à linha dominante. A eles o que cabe? A eliminação e a aniquilação, como apontava Schmitt. Foi o que, durante o Terceiro Reich, se abateu sobre judeus, ciganos, comunistas, homossexuais e todo tipo “heterogêneo”. É o que pregam hoje os “democratas iliberais” como Orbán, Putin, Erdogan, Maduro e Bolsonaro.

Além dos ataques repetidos de seu governo à imprensa, à comunidade científica, aos professores e aos artistas - estes desferidos preferencialmente por seu lugar-tenente na área cultural, Roberto Alvim - Bolsonaro também deixa claro, repetidas vezes, o viés schmittiano (ainda que provavelmente sem tê-lo lido) de sua concepção de democracia. Disse ele em 2017, na Paraíba: “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”. Contudo, para não irmos tão longe no tempo, tomemos uma declaração de dezembro último, diante do Alvorada: “Não tem essa história de branco e negro. Somos iguais e ponto final. Cultura é para maioria, não é para minoria, não”. Ou pouco antes, em novembro, num culto evangélico em Manaus: “Se nós somos a maioria, por que cedemos à minoria? O senhor é professor de Direito Constitucional, mas eu entendo que a lei tem que ser feita para atender às maiorias e não às minorias. Respeitamos as minorias, mas nós, a maioria, o povo é que deve conduzir o destino de uma nação”.

Equiparando povo à maioria, Bolsonaro exclui os grupos minoritários da condição de membros desse povo, vedando-lhe a legitimidade de participar da condução dos destinos da nação. O respeito às minorias aí enunciado torna-se, portanto, mera escusa retórica: respeitamos as minorias, desde que caladas e subalternas. Essa é a própria negação do pluralismo, que não respeita apenas minorias caladas e submissas, mas considera legítimos também seus pleitos e é capaz de conviver com a diversidade.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP


Fernando Exman: Um Bolsonaro mais político em 2020

Presidente vem se envolvendo mais nas pautas econômicas

O presidente Jair Bolsonaro inicia 2020 com um novo figurino. Um traje que Bolsonaro recusou durante a campanha eleitoral e parte considerável do ano passado, mas que, depois de repaginado, parece ter conquistado de vez o seu gosto. É o modelito de quem se apresenta com ampla experiência política e responsabilidade direta pelos resultados da política econômica.

O novo figurino cai bem para um chefe de Estado e de governo, que precisa interagir com autoridades de outros Poderes e articular os interesses do Executivo. Mas pode ser considerado fora da estação, se usado como uniforme de campanha em vez da roupa usada para executar os afazeres do dia a dia.

Nos últimos meses, o presidente foi deixando de lado o Bolsonaro que rechaçava a política. A despeito das quase três décadas exercendo o cargo de deputado federal, ele fazia questão de tentar se diferenciar dos políticos e se desvincular dos partidos.

Aquele Bolsonaro também se dizia completamente desinteressado pela economia. Terceirizava a auxiliares a responsabilidade de formular as propostas da área econômica, executar essas políticas e monitorar os resultados de cada ação colocada em prática.

Deu-se nesse contexto a ascensão do deputado do chamado baixo clero ao posto mais poderoso da República. Esse comportamento deu credibilidade à promessa de que, mesmo sendo Bolsonaro um parlamentar com históricas posições nacionalistas, uma equipe econômica estava sendo contratada com autonomia para implementar um programa liberal.

Ao longo de 2019, contudo, ocorreu uma paulatina calibragem no discurso do presidente. O ano passado é visto, no Palácio do Planalto, como um período de adaptação do presidente às suas novas atribuições à frente do Executivo e de realinhamento das engrenagens da máquina federal ao novo comandante. O próprio Bolsonaro chegou a dizer publicamente, no início do governo, que ainda não estava habituado à liturgia do cargo.

Agora, demonstra estar cada vez mais à vontade. E quer que sua história na política seja vista como experiência, uma indiscutível vivência capaz de identificar e evitar as armadilhas que o processo legislativo pode criar para sua base eleitoral. Esse argumento foi utilizado para justificar a sanção do dispositivo que cria a figura do juiz de garantias, decisão duramente criticada por bolsonaristas nas redes sociais. Na narrativa de aliados, Bolsonaro evitou a derrubada de um veto e que seu desgaste no Congresso fosse maior.

Outra característica emerge deste novo Bolsonaro. Após conceder “carta branca” à equipe econômica, o presidente passou a dizer que ouve 90% do que fala o ministro Paulo Guedes em nome da política, do social e do ser humano potencialmente prejudicado. Em outras palavras, em função da receptividade do Congresso e dos eleitores em relação às propostas da equipe econômica.

No fim do ano passado, por exemplo, a alta do dólar chamou a atenção do presidente e o assunto entrou em pauta numa reunião ministerial.

A equipe econômica buscou tranquilizar o chefe. Disse que não havia surpresa. O fenômeno já estava previsto quando foi iniciado o movimento de redução da taxa de juros, asseguraram.

O argumento apresentado ao presidente foi que a queda da Selic estava levando os “aventureiros” a deixarem o país. Com a saída desse dinheiro, acrescentou-se durante a explanação, o dólar inevitavelmente subiria. Mas depois a cotação se estabilizaria. E concluiu-se: somada a outras medidas na área econômica e do setor de infraestrutura do governo, a política monetária proporcionaria as condições para a entrada de recursos para investimentos diretos.

A explicação agradou o núcleo político do governo e serviu, inclusive, como subsídio para pronunciamentos públicos do presidente sobre o assunto.

O preço dos combustíveis é a preocupação atual, e novamente o presidente decidiu participar das análises de conjuntura e dos debates sobre eventuais medidas a serem tomadas. Em um gesto simbólico, saiu na segunda-feira do Palácio do Planalto e foi ao Ministério de Minas e Energia para se inteirar das discussões sobre os potenciais desdobramentos, no mercado internacional de petróleo e na economia doméstica, do ataque americano que matou o general iraniano Qassem Soleimani.

Até agora, não há consenso no governo. A ala política vislumbra uma solução que preserve a imagem do governo entre os eleitores, enquanto integrantes da equipe econômica sustentam que a dinâmica de preços é dada pelo mercado. Há um hiato nada desprezível entre as expectativas dos políticos e a realidade apresentada pelos técnicos. Uma saída preliminar foi o presidente tentar dividir o ônus político com os governadores, colocando sobre a mesa a discussão sobre a tributação do setor.

O governo tenta uma solução que evite criar subsídios e intervir na política de preços da Petrobras, embora esteja permanentemente preocupado com a sensibilidade dos bolsos dos eleitores em relação ao tema. Em outra frente, o presidente entrou abertamente para conduzir o debate sobre as regras do setor de geração de energia solar, articulando o apoio da cúpula do Congresso para aumentar a pressão sobre a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

Bolsonaro passou a cobrar que lhe deem crédito pela recuperação da economia e pelo aumento da oferta de empregos. Tem razão. Afinal, há indicadores que traduzem em números o otimismo propalado por representantes de seu governo durante todo 2019.

O presidente e seus mais próximos auxiliares estão seguros de que a economia vai continuar a apresentar resultados positivos ao logo do novo ano. Empresários, trabalhadores e o próprio Bolsonaro têm a ganhar, se essas projeções se confirmarem. Não se deve esquecer, no entanto, que parte considerável dos avanços obtidos até agora se deve também à autonomia de que as áreas técnicas puderam usufruir. Eventuais resultados negativos também recairão na conta presidencial.


Luiz Gonzaga Belluzzo: Brasil e Irã na batalha do petróleo

Golpe que apeou o primeiro-ministro do Irã visava reverter a nacionalização da Anglo-Iranian Oil Company

Nos tempos das sabedorias das redes antissociais, seria imprudente indagar dos acontecimentos no mundo do petróleo nos idos de 1953.
Meu otimismo, no entanto, imagina que seria possível confiar na memória de alguns brasileiros, aqueles que, porventura, tenham sobrevivido aos 75 anos. Esses senhores, talvez, sintam ecoar as vozes inflamadas do Repórter Esso no dia 3 de outubro de 1953.

Sempre “o primeiro a dar as últimas”, o locutor anunciava a assinatura da Lei 2004 de criação da Petrobras.

Em sua magnífica biografia de Getulio Vargas, Lira Neto conta o episódio que mereceu o ribombar das exclamações do Repórter Esso. Peço licença para usá-lo com e sem aspas. “Rodeado por todos os assessores, sentado à mesa negra de jacarandá do gabinete de despachos, molhou a pena no tinteiro e assinou a lei nº 2004, de 3 de outubro de 1953. Depois de 22 meses de tramitação na Câmara e no Senado, justamente quando o governo se via imerso em uma aguda crise política, estava criada, em caráter oficial, a maior empresa nacional de todos os tempos, a Petróleo Brasileiro S.A. - Petrobras.”
Lira Neto prossegue em sua digressão e sustenta que a data não fora escolhida por acaso. “O simbolismo estava evidente. Getúlio fizera coincidir a sanção do projeto, aprovado em definitivo e remetido pelo Congresso no final de setembro, com o aniversário do estopim da Revolução de 1930.” Após a solenidade, o presidente falou ao microfone instalado no palácio, pronunciando um discurso que seria retransmitido para todo o país, pela Voz do Brasil.

O Correio da Manhã classificou a Petrobras como uma “aventura de nacionalistas rasteiros” que defendiam “monstruosidades como o monopólio estatal petrolífero”. “Já não dispomos de tempo para experiências que estão sempre sujeitas a fracassar”, argumentou o Correio, que comparava o Brasil a uma casa entregue ao fogo. “Que diríamos de um indivíduo que, diante de sua residência em chamas, passasse a exigir carteiras de identidade e atestados de boa conduta dos transeuntes que se prontificassem a ajudá-lo a debelar o incêndio?”, indagava

“Esse projeto não constitui apenas um entrave à solução do problema do petróleo; significa fechar as portas ao capital estrangeiro”, declarou aos Diários Associados o senador udenista (CE) Plínio Pompeu, que seguia o mesmo raciocínio e discordava do apoio de seu partido à aprovação da matéria. “[A Petrobras] é um convite para que se retirem do Brasil os que colaboram conosco. A culpa é do governo, que não teve coragem de resistir à onda comunista e nos deu esse projeto horrível que aí está”, avaliou o político. “O nacionalismo tacanho levará ao fracasso, dentro de um ano, no máximo, a exploração de petróleo no Brasil.”

Getúlio não teve vida boa. Desde a sua eleição, em 1950, até o suicídio, em 24 de agosto de 1954, enfrentou as manobras da oposição que urdia suas habituais e tediosas maquinações para “melar o jogo”, sempre, é claro, em nome da democracia. Primeiro, tentaram impedir sua posse com a tese esdrúxula e oportunista da maioria absoluta, tese não consagrada na Constituição. (Getulio obteve 48% dos votos). Depois, cuidaram de imobilizar o governo. A agressividade do establishment civil e militar - sempre turbinada pelos esgares da imprensa livre e independente - exacerbou-se no início de 1954 quando Vargas comunicou o envio da Lei de Lucros Extraordinários ao Congresso.

Outro evento petroleiro ocorreu no Irã em 19 de agosto de 1953. O Arquivo de Segurança Nacional dos Estados Unidos liberou, em 2013, documentos que registram as façanhas da CIA no Irã. “O golpe militar que derrubou Mohammed Mossadegh e o governo da Frente Nacional foi realizado sob direção da CIA como um ato de política externa norte-americana"

A CIA usava e usa criptônimos para identificar operações clandestinas, tal como o golpe que em 1953 apeou o Primeiro-Ministro iraniano Mohamed Mossadegh. Ajax foi o criptônimo atribuído à operação. Essa empreitada aliou o Xá do Irã, Rezha Palevi. Winston Churchill, Anthony Eden com o presidente Eisenhower, John Foster Dulles e a Agência Central de Inteligência dos EUA.

A ideia da Ajax veio da Inteligência Britânica depois de baldados esforços junto a Mossadegh para reverter a nacionalização da Anglo-Iranian Oil Company (AIOC. A motivação britânica era simplesmente recuperar a concessão de petróleo da AIOC.

No livro Patriot of Persia, Christopher Bellaigue registra o “arrependimento” americano. “Anos mais tarde, os Estados Unidos reconheceriam que, ao derrubar Mossadegh, cometeram erro terrível, pois sufocaram valores que simpatizavam com os seus. Em 2000, Madeleine Albright, secretária de Estado de Clinton, reconheceu que, em 1953, os Estados Unidos desempenharam um "papel significativo na orquestração da derrubada do popular primeiro-ministro iraniano, Muhammad Mossadegh", e que isso tinha sido claramente "um revés para o desenvolvimento político do Irã".

Bellaigue traça o perfil de Mossadegh e o retrata como o primeiro líder liberal do Oriente Médio moderno. “Era um racionalista que odiava obscurantismo e acreditava na primazia da lei. Sua compreensão da liberdade foi excepcional no Irã e em toda a região. Na verdade, o Ocidente teria gostado mais dele se ele tivesse sido menos comprometido com a liberdade.” Ele não recuaria de sua demanda por independência econômica para atender Grã-Bretanha. Ele não prenderia comunistas para agradar Washington. O plano para derrubá-lo fez um grande dano aos interesses ocidentais.

Para Bellaigue, o episódio Mossadegh foi o início de uma política dos EUA em apoio aos déspotas de má qualidade do Oriente Médio. A lógica desta política era assim: "Os orientais não podem ser entregues à independência e à liberdade; homens fortes, pró-americanos oferecem a melhor esperança de estabilidade.” Saddam Hussein era um homem forte. Hosni Mubarak também. A galeria dos déspotas é longa e bem fornida.

Essa política sofreu sua primeira derrota em 1979, quando os revolucionários islâmicos do Aiatolá Khomeini derrubaram o Xá. Khomeini revelou distância das ideias de Mossadegh "Não estamos interessados em petróleo", anunciou, logo após seu retorno triunfante do exílio. “Queremos o Islã”. Quanto à democracia de estilo ocidental, equivale a "a usurpação da autoridade de Deus para governar".Olho no lance!!!

*Luiz Gonzaga Belluzzo, professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.


Valor: 'É preciso abrir espaço fiscal para ter mais recursos para o setor da saúde', diz Arminio Fraga

Para Arminio, todos os esforços terão que ser feitos, tanto em relação aos recursos financeiros quanto no campo da eficiência e da precisão cirúrgica dos gastos

Por Leila de Souza Lima, Valor Econômico

SÃO PAULO - Mesmo com a urgência em se fazer ajustes na saúde pública, com melhora na gestão, adoção de novas tecnologias e redução de despesas, é necessário abrir espaço fiscal para direcionar recursos à área devido aos desafios socioeconômicos do país, avalia o ex-presidente do Banco Central (BC) Arminio Fraga. Neto, filho e sobrinho de professores da área médica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o economista encontrou nessa ascendência parte da razão para fundar em meados do ano passado o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps). Como descreve, a organização surge com o fim de debater e formular políticas para o setor, além, caso necessário, de se posicionar reativamente a propostas e medidas geradas no âmbito do sistema. “Sempre de forma independente, apartidária e analítica”, frisa ele.

Arminio e seus colaboradores - um time de estudiosos e especialistas no assunto - sabem que não é fácil avançar nessa cruzada, num cenário em que patrocinadores estão cada vez mais escassos. Esse é o motivo de ser difícil encontrar no Brasil entidades dedicadas ao tema, que requer estudos caros, prescindindo de ajuda do governo ou da iniciativa privada. “O dinheiro vai vir de fora do setor”, diz o cientista político Miguel Lago, diretor-executivo do Ieps. “E não aceitamos nem do poder público. Isso torna o desafio maior, mas nos dá total independência”.

Esse princípio é primordial diante do que o Ieps - por ora bancado totalmente por Arminio - defende como essencial para manter de pé um sistema que atende aos três quartos da população sem planos de saúde. Em resumo, definir “de forma consciente” prioridades de gastos na área, o que provoca reação dos defensores mais ferrenhos do SUS como sistema universal que é, e a concretização de reformas que vão desagradar a alguns segmentos da sociedade, como mexer no Imposto de Renda, um terreno para subsídios tributários altamente regressivos no Brasil, conforme pontua Arminio, sócio da Gávea Investimentos.

Ele afirma, no entanto, que todos os esforços terão que ser feitos, tanto em relação aos recursos financeiros quanto no campo da eficiência e da precisão cirúrgica dos gastos. “E não ficar na ilusão de que tudo é possível instantaneamente, dando no que deu ao longo de décadas”, analisa. A questão de obter recursos exige a decisão estratégica de abrir espaço orçamentário, um aspecto relacionado à própria democracia brasileira, ressalta o economista.

Dessa forma, segundo Arminio, é importante discutir gestão com postura “desarmada”, um recado que se dirige às várias pontas desse debate - setores público, acadêmico e privado, que se desdobra em planos, seguros, fornecedores e prestadores dos serviços médicos. Apesar de reconhecer o SUS como um bom modelo, ele vê lugar para melhorar a eficiência e reorganização federativa do sistema a fim de “fazer mais com menos”, a exemplo do que o governo propala como possibilidade.

Arminio pondera, contudo, que essa ideia não pode ser usada como argumento fazendário para fechar as comportas orçamentárias. “Então vejo um setor que vive certo impasse; tem essa tensão entre a falta de dinheiro, os desafios de gestão e as necessidades fiscais. A saúde pública corretamente reclama por mais investimento num terreno em que há disputa por recursos entre as áreas. E o país também está numa situação complicada e há a necessidade de organizar a situação financeira. Não podemos viver crises econômicas de dez em dez anos, um claro obstáculo ao desenvolvimento”, observa ele, para quem o caminho até o equilíbrio entre esses dois mundos - fiscal e social - é longo e difícil.

O ex-presidente do BC conta que, paralelamente aos estudos em torno de alternativas para a saúde, tem se debruçado sobre os grandes números num trabalho combinado sobre desigualdade no país. Essa imersão confirmou a ele o excesso de rigidez do Orçamento federal. E essa é uma das queixas de pesquisadores que já fizeram contas para projetar os impactos da austeridade imposta pelo teto de gastos vigente desde 2017, como o freio na redução da mortalidade infantil, segundo mostrou estudo liderado por Harvard e divulgado pelo Valor ano passado.

“As despesas com funcionalismo e Previdência representam 80% do gasto público, somando-se as três esferas de governo. Aí sobra muito pouco para o resto. Claro que tem funcionalismo na saúde, na educação, muita gente. Mas é daí também que pode surgir uma racionalização para atender às prioridades da nação”, afirma ele, para quem a reforma do Estado, adiada no ano passado, precisa voltar à pauta o mais rapidamente possível por ser outra fonte de economia e redistribuição de verbas.

“A reforma da Previdência que foi aprovada também só resolve um terço da questão. Ela vai ter que ser reforçada, e um aspecto já está em discussão; os Estados que terão que ser incluídos. E mesmo que se inclua, ainda vai faltar.”

A questão colocada pelo economista é: de onde vai sair o dinheiro? “A carga tributária no Brasil já é bem alta, não é fácil aumentar imposto num país como o nosso. Mas existem subsídios e genuinamente absurdos do ponto de vista distributivo, que deveriam ser eliminados. Já tenho proposto esse caminho.”


Sergio Lamucci: A produtividade continua a decepcionar

Agropecuária é o único setor a mostrar ganhos de eficiência

A retomada cíclica da economia brasileira ganha força, e um crescimento na casa de 2,5% em 2020 parece plausível. Com o impulso dos juros baixos, da melhora do mercado de trabalho e do aumento do crédito, a atividade deve avançar a um ritmo mais firme, com perspectivas favoráveis para o consumo das famílias e, em menor medida, para o investimento.

Do lado da produtividade, porém, as notícias continuam desanimadoras, um sinal preocupante para a capacidade de o país crescer a taxas mais elevadas no longo prazo. Números do Instituto de Economia Brasileira da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV) mostram queda da produtividade do trabalho nos três primeiros trimestres de 2019, com desempenho muito ruim da indústria e dos serviços - a exceção é a agropecuária, o segmento que tem grandes ganhos de eficiência, mas uma participação pequena no PIB.

Na Carta do Ibre deste mês, o diretor do instituto, Luiz Guilherme Schymura, nota que o comportamento setorial mostra um padrão “parecido no curto e no longo prazo”. Em 2019, a produtividade do trabalho na indústria e nos serviços caiu nos três primeiros trimestres na comparação com os mesmos períodos do ano anterior, enquanto a da agropecuária subiu no primeiro e no terceiro, quando teve um salto de 4,6%. No intervalo de julho a setembro, a da indústria caiu 0,7% e a dos serviços, 1,3%. Entre 1995 e 2018, o resultado da indústria é muito decepcionante: uma queda de 5%. Nesses 23 anos, a de serviços avançou raquíticos 6%. A da agropecuária aumentou 358%.

Depois da saída de uma recessão cavalar, que fez o PIB encolher 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016, era de se esperar uma recuperação com avanço da produtividade. Em geral, há enorme ociosidade nas empresas, muitas das quais reduziram custos para enfrentar o período de vacas magras. Não é, porém, o que tem ocorrido. A produtividade do trabalho agregada aumentou 1,2% em 2017, ficou quase estagnada em 2018, ao subir 0,1%, e deve ter caído 0,7% em 2019, segundo as projeções do Ibre/FGV.

“A razão pela qual a produtividade está recuando é simples: o nível de emprego, sempre medido pelas horas trabalhadas, está crescendo mais do que o PIB”, diz Schymura. “O valor agregado na economia - variável próxima do PIB, mas que exclui impostos e subsídios - cresceu em 2017, 2018 e 2019 a taxas muito parecidas, de respectivamente 1,3%, 1,3% e 1,2% (números quase idênticos aos do próprio PIB). Mas o total de horas trabalhadas na economia teve um crescimento ascendente, de 0,1%, 1,3% e 1,9%, respectivamente, naqueles três anos”. Isso quer dizer que “a produtividade cresceu em 2017 (produziu-se mais com praticamente a mesma quantidade de trabalho), ficou estável em 2018 (trabalho e valor agregado avançaram juntos) e caiu em 2019, com a expansão do fator trabalho superando a do valor agregado por 0,7 ponto porcentual”, escreve Schymura. Os números de 2019 são projeções.

Citando o economista Fernando Veloso, responsável pelo Observatório da Produtividade do Ibre/FGV ao lado de Silvia Matos, Schymura diz que a geração de empregos está próxima do que se registrava no período anterior à recessão de 2014 a 2016. O ponto é que as horas trabalhadas a mais não têm se convertido em aumento significativo da produção. Isso ocorre porque os empregos criados “situam-se, em média, em setores e atividades muito pouco produtivos”. Segundo Schymura, a baixa produtividade se deve ao fato de que grande parte deles está no setor informal, em média quatro vezes menos produtivos que os do segmento formal.

Nas contas do Ibre/FGV, o aumento da informalidade contribuiu com mais da metade do recuo de 4,3% da produtividade do trabalho no Brasil desde o fim de 2014. “Esse impacto foi especialmente expressivo em segmentos intensivos em mão de obra e com a característica de alta informalidade, como construção e transportes” aponta ele.

É possível que o avanço do emprego informal e a queda da produtividade sejam transitórios, associados às características da retomada do mercado de trabalho, avalia Veloso. Nessa hipótese, depois da recessão, a criação de vagas começa por vínculos informais e é seguida pela aceleração das contratações formais, à medida que a economia ganha força - as vagas com carteira assinada inclusive têm crescido mais nos últimos meses.

Veloso, porém, mostra algum ceticismo em relação a essa possibilidade. Ele menciona um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apontando que elevações do desemprego em geral ocorrem simultaneamente ao aumento da informalidade, em especial do trabalho por conta própria. A alta da desocupação e da informalidade entre 2014 e 2016 corresponde ao padrão esperado, segundo ele. No entanto, a informalidade continuou a crescer em 2018 e 2019, num momento em que a taxa de desemprego já tinha começado a recuar.

Para ele, esse padrão discrepante do crescimento da informalidade com queda de desemprego acende um “sinal amarelo”, indicando a possibilidade de o fenômeno ter uma característica mais duradoura. Não há uma explicação cabal para isso, diz Veloso. O estudo do Ipea sugere um traço mais estrutural, ligado à terceirização e à chamada “economia dos aplicativos”, como Uber, iFood e Rappi.

Veloso vê outro fator importante afetando negativamente a produtividade - a incerteza elevada. O Indicador de Incerteza da Economia (IEE-Br) da FGV, por exemplo, encerrou 2019 em 112,4 pontos, um número ainda alto, acima do nível neutro de 100 pontos. Num cenário incerto, empresários tendem a adiar investimentos e contratações formais.

A aprovação da reforma da Previdência e a recuperação da atividade contribuem para reduzir a incerteza, por melhorar a percepção sobre as contas públicas e sobre a demanda futura. Isso deve dar mais confiança aos empresários para investir e contratar mais trabalhadores com carteira assinada, o que deve ter um impacto positivo sobre a produtividade.

A tarefa de tornar a economia mais produtiva, no entanto, passa por um conjunto enorme de medidas, como reforma tributária, abertura comercial, avanços na educação e investimentos em infraestrutura. Sem isso, a produtividade continuará fraca e o país, depois de crescer por alguns poucos anos em cima da ociosidade existente, terá dificuldades para avançar a taxas mais expressivas.


Bruno Carazza: Agenda complexa em ano eleitoral

Desafios nacionais não podem ser relevados por 2020

O que esperar de 2020? As festas de fim de ano passaram e, com elas, renovamos nossas reflexões sobre a vida que levamos e os sonhos que acalentamos. Na mitologia romana, o deus Jano, com as suas duas caras (uma olhando para trás e a outra para a frente), controla a transição entre o passado e o futuro. Seu mês, janeiro, descortina um novíssimo período de 365 dias para tentarmos fazer diferente e melhor - e olha que em 2020 teremos uma oportunidade a mais, já que o ano é bissexto.

Do ponto de vista das relações entre economia e política, 2019 deixou na memória a surpreendente aprovação da reforma da Previdência, medida acalentada desde o governo Temer, mas que retomou a tração a partir do alinhamento de visões da equipe econômica de Paulo Guedes, do centro parlamentar comandado por Rodrigo Maia e, sempre é importante destacar, de uma sociedade que parece cada vez mais madura para encarar difíceis escolhas econômicas. Infelizmente Bolsonaro deu-se por satisfeito com essa vitória e, em vez de tentar colher o máximo possível de lucros no primeiro ano de governo, quando seu capital político estava no topo, determinou ao Ministério da Economia que contivesse seu ímpeto por mudanças.

Mas, ao adentrarmos janeiro, é hora de passarmos das retrospectivas para as projeções quanto ao que virá. Tudo o mais constante, e caso o mundo não descarrilhe num conflito global de larga escala, uma de nossas poucas certezas é que teremos eleições municipais no Brasil.

Tradicionalmente isso significa um ano legislativo menos produtivo, com mais Brasil e menos Brasília na agenda dos parlamentares, já que a maioria deles encara essas disputas locais como a oportunidade de enraizamento de alianças que poderão garantir votos em 2022. Os problemas do país, contudo, são tão graves e em tantas áreas distintas, que o menor número de sessões no Congresso e a baixa propensão de deputados e senadores encararem pautas impopulares não pode servir de desculpa para a interrupção de uma agenda de mudanças.

Seria muito importante para o país se o Congresso encaminhasse a aprovação definitiva de dois projetos que avançaram em 2019: a extensão das novas regras previdenciárias para Estados e municípios e o novo marco legal do saneamento básico. De um lado, a chamada PEC paralela da Previdência pode enfrentar a resistência de parlamentares receosos da reação da opinião em suas bases, mas como alguns governadores e prefeitos têm demonstrado, a conscientização do eleitorado quanto à inevitabilidade dos ajustes é um sinal de que vale a pena um esforço adicional para virarmos essa página de modo definitivo, pelo menos no médio prazo.

Quanto ao novo marco do saneamento, trata-se de uma nova estratégia para atacar uma das piores chagas da desigualdade brasileira. O acesso diferenciado à água tratada e a um sistema decente de coleta de esgotos é causa e consequência de um conjunto de políticas públicas que favorece regiões e grupos de indivíduos em detrimento de outros, criando privilégios que repercutem do nível nacional até bairros e ruas de uma mesma cidade. Estimular a entrada de investimentos privados para o saneamento básico por si só não eliminará um problema cultivado ao longo de séculos - ainda será necessário bastante esforço para conceber projetos, editais de licitação e regulação de serviços -, mas ampliará o leque de opções para reduzir nosso atraso nessa área, que impõe um pesado ônus na qualidade de vida de dezenas de milhões de brasileiros mais pobres.

Do ponto de vista da agenda econômica, as peculiaridades do ano legislativo colocam diante do governo o ônus de escolher as brigas que ele vai querer comprar em 2020. Para começar, já se encontram no Congresso os três projetos que constituem a proposta de reforma fiscal de Paulo Guedes, apelidada de novo pacto federativo. Há meses o governo também anuncia (e sistematicamente posterga em seguida) a remessa de uma reforma administrativa, sistematizando melhor as centenas de carreiras de servidores federais, instituindo um novo sistema de gestão e avaliação de pessoal e reduzindo o diferencial salarial entre trabalhadores dos setores público e privado.

Para concluir a pauta de projetos, todos eles estratégicos para a construção de um ambiente econômico e de um Estado mais sustentáveis e eficientes, temos a reforma tributária. Com a intenção de corrigir parte das distorções criadas nas últimas décadas e que tornaram o nosso sistema de arrecadação de tributos um dos mais complexos e injustos do mundo, tramitam concomitantemente na Câmara e no Senado duas Propostas de Emenda à Constituição com filosofias bastante similares: a unificação de vários tributos que incidem sobre a produção e circulação de bens e serviços num único imposto sobre valor agregado, não cumulativo, com implantação gradual para permitir que setores e entes federativos possam se adaptar de modo mais suave às mudanças.

Embora as PECs tributárias em tramitação na Câmara e no Senado sejam muito próximas nas ideias gerais, mas bastante distintas na abrangência e no desenho de sua operacionalização, o governo fez bem em não tumultuar ainda mais o ambiente com o envio de uma terceira alternativa - principalmente se levarmos em conta os muitos e poderosos interesses que serão afetados por qualquer proposta que venha a ser aprovada. Isso não quer dizer, porém, que Paulo Guedes e sua equipe não acompanharão de perto o que se discutirá no Congresso, não apenas pelo seu potencial impacto fiscal como pelas ideias pré-concebidas que o ministro tem sobre as possibilidades de uso do sistema tributário para desonerar a produção e o emprego.

Como pode ser visto, governo e legisladores têm diante de si desafios nacionais que não podem ser relevados em função de interesses paroquiais visando as eleições de 2020 ou de 2022. Que Jano nos proteja em nossas escolhas no ano que se inicia.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Fernando Abrucio: Existe um Brasil para além de Bolsonaro

Se quisermos sair do clima de confronto e da mediocridade impostos pelo bolsonarismo, precisamos lembrar do Brasil que vai além da lógica de guerra

Passado um ano de governo, um aspecto salta à vista: Bolsonaro criou um estilo próprio de liderança presidencial. Obviamente que ele repete certos padrões personalistas anteriores, que se apresentavam em figuras tão distintas como Vargas, Collor e Lula. Descontadas as semelhanças, o que fica é um modelo de presidente que busca a todo momento ser o centro da política brasileira, criando factoides que priorizam as críticas a pessoas, ideias e comportamentos. Trata-se de um modo basicamente negativo de construção de projeto de poder. Bolsonaro sempre precisará de um inimigo para governar o país.

A lógica bolsonarista de liderança é eficaz em vários sentidos. Primeiro, porque marca uma posição perante uma parcela do eleitorado, gerando uma forte identidade entre o líder presidencial e os seus correligionários - é o “eu contra eles”, num tom muito mais radical que o do petismo. A porção da população que vai ficar neste grupo ainda é uma incógnita. De todo modo, na pior das hipóteses, Bolsonaro consegue manter pelo menos de 15% a 20% ao seu lado, o que não garante a reeleição, mas solidifica um nicho de apoiadores que irão até o fim com o presidente, mantendo-o como um governante que tem anteparo para digladiar com outras lideranças políticas.

Selecionando inimigos e os atacando a todo momento, muitas vezes por meio de acusações e temáticas secundárias em relação às políticas governamentais, Bolsonaro obriga os criticados a se defender constantemente. O presidente se torna o dono da bola do jogo e faz com que os outros fiquem correndo atrás da pelota, sem que nunca a tenham por completo. Antigamente, isso tinha um nome: diversionismo, isto é, a capacidade de evitar o que é central na disputa do poder e nas políticas públicas. Essa estratégia dificulta ter um maior foco na crítica ao governo, pois se a cada semana há um assunto novo para se discutir, o que deve ser priorizado no debate com a população?

É interessante notar que mesmo naquilo que o bolsonarismo procura trazer de agenda positiva, isto é, de defesa de uma visão comum de país, ele o faz criticando outros ou reprimindo comportamentos ou ideias que deveriam ser extirpados. Para ficar nas simbologias religiosas, trata-se de um modo menos franciscano de pensar a política e mais baseado numa concepção cruzadista - conquistar corações significa usar a guerra como instrumento.

Bolsonaro é muito parecido com Lula em sua grande capacidade de falar a linguagem popular e de fazer campanha eleitoral permanente. Porém, ao construir seu discurso com tonalidade negativa e centrado na busca de inimigos, ele constrói um tipo de liderança cuja força está em captar o medo e a raiva das pessoas. Foi esse o espírito predominante nas eleições de 2018, depois de anos de recessão e da avalanche contra a corrupção produzida pela Lava-Jato. Ainda há muita gente ligada a esses dois sentimentos, mas em algum momento muitos desses eleitores vão querer de volta a esperança.

Se o presidente conseguir um bom resultado econômico e social até 2022, algo realmente robusto, pode estar aí uma novidade em relação ao seu padrão atual, sustentado na negatividade. Caso contrário, terá que se basear num modelo em que ele briga contra todos, torcendo principalmente para ter alguma polarização com o PT. Só que antes de pensar nas próximas eleições presidenciais, é preciso lembrar a longa travessia, de mais três anos, que teremos de enfrentar.

Há duas grandes variáveis que podem, em algum momento, inverter o clima construído pela liderança presidencial de Bolsonaro. A primeira é de cunho estratégico e a segunda capta as profundezas de um país que parece ter ficado para escanteio na agenda política. Afinal, o clima azedo do bolsonarismo disseminou-se e muitos se perguntam se há algum lugar em que isso não seja dominante hoje no Brasil.

Ao ter de criar a todo momento fatos políticos baseados no confronto, Bolsonaro abre muitas arestas e possibilidades de problemas, inclusive porque atua desse modo também no plano internacional.

Esse conjunto de inimigos e disputas vai se acumular durante quatro anos, e caso a bonança não venha logo, a tendência é que o número de adversários e eleitores insatisfeitos vai crescer mais do que o contingente de criticados (pessoas, ideias e grupos sociais) pelo presidente.

Exemplo maior disto é a postura ambiental do país, criticada recentemente pela Comissão Europeia, que disse abominar as atuais ações do governo Bolsonaro. O mais provável, conhecendo seu estilo, é que o bolsonarismo vai continuar nesta toada até que a crise vire algo muito grande. Assim, não deverá ser aprovado o acordo União Europeia/Mercosul neste quadriênio, o agrobusiness brasileiro pode perder mercados, megainvestidores institucionais reduzirão seu ímpeto e não adianta xingar a “pirralha” da Greta. No meio desse caminho, o governo pode perder apoiadores, deixando o capitão apenas com seu séquito mais fervoroso, cujo tamanho é pequeno demais para garantir a governabilidade.

Muitas outras áreas dominadas pelo discurso bolsonarista do confronto podem ter esse mesmo desfecho, como na política externa ou na educação. Portanto, talvez seja muito difícil para Bolsonaro manter esse estilo durante toda a travessia sem ter arranhões muito grandes. Mas, além disso, é preciso lembrar (quase gritar) que existe um Brasil para além de Bolsonaro. Um país que, a despeito desse caldo de cultura marcado pelo confronto permanente, está tendo sucesso em suas ações adotando outra forma de agir coletivamente.

Uma parte importante desse outro país está com políticas públicas bem-sucedidas no plano subnacional. O bolsonarismo criou o slogan “Mais Brasil, menos Brasília”, mas poucas vezes olha com a devida atenção para o que ocorre em vários entes da Federação. Em vez do ministro da Educação ficar xingando tudo que ocorreu antes dele por conta dos resultados dos alunos brasileiros no exame internacional do PISA, ele deveria conhecer e disseminar o que tem dado certo em termos de políticas educacionais estaduais e municipais.

Weintraub deveria parar de criar factoides e começar a conhecer a experiência de Sobral e, numa escala maior, do Ceará, para ver como é possível fazer uma revolução no processo de alfabetização. Existe ali um Brasil que dá muito certo e não segue a lógica bolsonarista. Ao contrário, o forte do modelo cearense é a montagem de uma governança baseada na confiança mútua e colaboração entre os mais diversos atores, inclusive de vários partidos políticos. Deveria, ainda, conhecer a experiência dos Arranjos do Desenvolvimento da Educação (ADEs), que juntam municípios num processo cooperativo para resolver problemas educacionais, seja na Chapada Diamantina, em Votuporanga (SP) ou na Grande Florianópolis. Mais uma vez, a solução aqui foi um arranjo que reúne pessoas e movimentos os mais variados, em vez de procurar inimigos em todo canto.

A cultura é um dos grandes patrimônios de qualquer país. No caso brasileiro, isso é ainda mais marcante porque somos reconhecidos internacionalmente pelas nossas obras culturais e artistas. Pois bem, e o que faz o governo Bolsonaro? Coloca em xeque a riqueza cultural e nossa diversidade em nome de um projeto de purificação de nossa arte. Onde isto deu certo? No Irã de Khomeini? Na Coréia do Norte?

Fernanda Montenegro e Chico Buarque são símbolos nacionais e internacionais de um Brasil que dá certo. Eles não precisam de Bolsonaro, mas o Brasil precisa de gente como eles. E se a nova orientação oficial é procurar a “verdadeira cultura popular brasileira”, é preciso conversar com os jovens da periferia das grandes cidades, que produziram cultura como forma de combater a desigualdade e dar visibilidade a quem não tem espaço no grande “show business”. Mas o bolsonarismo não vai dialogar com esse pessoal, nem com os seguidores de Ariano Suassuna.

Existe uma sociedade civil pujante no Brasil, com projetos coletivos em várias áreas, que melhoram a qualidade das relações sociais em vários lugares, sobretudo nos mais carentes. Há muitas parcerias entre universidades e destas com empresas produzindo inovação e desenvolvimento de longo prazo para o país, usando como principal instrumento a busca de sinergias. Também há empresas e empreendedores que obtiveram sucesso internacional porque acreditam que boas ideias e muito trabalho são mais importantes do que ficar brigando nas redes sociais.

Se quisermos sair do clima de confronto e da mediocridade impostos pelo bolsonarismo, precisamos lembrar do Brasil que vai além dessa lógica de guerra. Um país que deveria ter orgulho de Paulo Freire, porque as melhores universidades americanas o consideram um dos maiores educadores do século XX, e a Finlândia, aquele país sempre elogiado no PISA, usa claramente o seu método educativo para formar os jovens que vão compor sua sociedade do futuro.

Desejo a todos um excelente 2020, que deixe para trás a lógica do confronto permanente instalada por Bolsonaro. Temos um país em que há ainda muitos problemas e feridas, como a escravidão, mas cuja saída está em mais colaboração entre Estado e sociedade, bem como maior tolerância e negociação entre lideranças políticas diferentes.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP


Cláudio Gonçalves Couto: Que centro é este?

Eleitorado se deslocou à direita, mas parte se assustou com o radicalismo bolsonarista: abre-se espaço para um centro

2019 foi marcado pela discussão sobre a polarização que marcaria nossa política. Frequentemente, o termo foi tomado como sinônimo de extremismo ou radicalização política. Polarização não tem a ver com isso, mas com a contraposição de alternativas políticas claras. É assim que historicamente Democratas e Republicanos polarizam a política nos EUA, Conservadores e Trabalhistas no Reino Unido, Socialistas e Republicanos na França.

No Brasil, entre os anos 90 e 2014, a polarização foi entre um partido social-liberal (o PSDB) e um social-democrata (o PT). Na medida em que o PT caminhou para o centro, deslocou o PSDB para a direita, configurando uma típica polarização centro-esquerda/centro-direita, cujo centrismo foi acentuado nos dois casos pela necessidade de coalizões. Assim, o vermelho oposicionista do socialismo petista se debotou, assumindo tons rosados no governo, enquanto o social-liberalismo tucano se tornou menos social e mais liberal, primeiro pela imposição das reformas econômicas, depois pela oposição ao adversário à sua esquerda, o PT.

As jornadas de junho de 2013, a Lava-Jato, o impeachment e o impopular governo de Michel Temer mudaram as coisas. Muito enfraquecido num primeiro momento (como se notou nas eleições municipais de 2016, quando perdeu 60% de seus prefeitos), o PT recuperou algo de sua força depois, chegando ao segundo turno das eleições presidenciais e fazendo a maior bancada na Câmara. Com isto, manteve-se como um polo da disputa, sendo o ator principal à esquerda do espectro nas eleições nacionais.

Contudo, à direita, o PSDB (associado ao governo Temer e ao establishment) minguou, culminando no vexaminoso desempenho de Geraldo Alckmin na disputa presidencial e na redução das bancadas congressuais do partido. O eleitorado à direita, que votava no PSDB (ou contra o PT) desde os anos 90, migrou para Jair Bolsonaro e deu ao PSL a maior votação para a Câmara de Deputados. Mesmo nas disputas estaduais, deram-se bem candidatos que se alinharam ao bolsonarismo durante a eleição, como Wilson Witzel no Rio de Janeiro e João (Bolso)Dória em São Paulo. Criou-se uma nova polarização, entre uma esquerda socialdemocrata momentaneamente mais estridente e uma extrema-direita oriunda da margem do sistema político.

Nos anos 50 do século passado surgiu um teorema que tentava explicar o comportamento do eleitorado em tais polarizações, em eleições majoritárias. Esboçado inicialmente por Dunkan Black (“On the rationale of group decision-making”) e depois aprimorado por Anthony Downs (Uma teoria econômica da democracia), o “teorema do eleitor mediano” supõe que o eleitorado apresenta uma distribuição normal entre esquerda e direita, concentrando-se a maior parte dele ao centro. Desse modo, o idealizado eleitor mediano (aquele localizado a meio caminho entre cidadãos dos dois lados do espectro ideológico) seria o votante a ser conquistado, pois o competidor à esquerda já teria garantida a maioria dos votos à esquerda do mediano, enquanto o competidor à direita teria a maioria dos votos do seu lado. A dinâmica dessa competição levaria esquerdistas e direitistas a caminharem para o centro, em busca do voto decisivo, moderando-os.

O teorema faz bastante sentido e ajuda bem a entender a lógica das eleições e dos partidos em cenários nos quais de fato o eleitorado se distribua em duas metades praticamente iguais, na forma de uma curva normal simétrica da esquerda à direita. Porém, por vezes a distribuição se torna assimétrica e o eleitor mediano se desloca consideravelmente para um dos flancos do espectro ideológico, carregando para ali a maior parte do eleitorado. A vitória de Bolsonaro no segundo turno mostrou que em 2018 o eleitor mediano se deslocou bastante para a direita, explicando a debacle do PSDB já no primeiro turno: o antipetismo tucano se mostrou insuficiente para grande parte dos votantes, que preferiram um candidato mais radicalmente antagonista ao petismo. E como Bolsonaro se apresentava como alternativa radical não apenas ao esquerdismo petista, mas também ao establishment político de um modo geral (em que se enquadrava o PSDB), levou consigo a maioria.

Hoje, após um ano de governo, com suas peripécias e confusões, parte do eleitorado se vê assustada com o bolsonarismo e seu radicalismo, que não arrefeceu após a vitória eleitoral, como supunham alguns. No outro polo (o que não é o mesmo que dizer no outro extremo), a esquerda petista mantém o discurso e a postura que alienaram boa parte de seus eleitores, desapontados com o desastre econômico do governo Dilma, com os escândalos de corrupção e com a incapacidade de uma transformação. Desse modo, surgiu espaço para um denominado (e autodenominado) “centro”, que procura se apresentar como opção tanto ao petismo como ao bolsonarismo. Há aí um pouco de tudo.

Parte desses centristas não são nada novos. São o “Centrão”: conglomerado de partidos de adesão e políticos de viés conservador e fisiológico, dispostos a apoiar quaisquer governos, desde que recompensados com cargos, verbas e políticas para os segmentos que representam corporativamente. Estes, porém, dificilmente articulam candidaturas presidenciais.

Outra parte é uma nova direita pós-tucana, de discurso conservador, liberal quase só economicamente, antipolítico, focado na ideia de gestão pública como gerencialismo, e na segurança pública como guerra - como o Bolsonarismo. Dória e Witzel estão aí.

É desse campo que também surge Luciano Huck, com seu antipetismo visceral, postura de moderno e liberal também politicamente (não só na economia), vindo de fora da política para renová-la. Talvez seja, dos três, o mais efetivamente centrista - já que os outros são claramente direitistas.

Por fim, até Ciro Gomes tenta ocupar esse espaço, à centro-esquerda. Começou na eleição, desvinculando-se do PT, e seguiu depois, atacando petistas sempre que possível. Resta saber se além de alienar o eleitorado à esquerda, conseguirá convencer centristas. Não será fácil.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP e colunista convidado do “Valor”