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Sergio Lamucci: Um mundo cada vez mais endividado

Com juros baixos, dívida global deve continuar a crescer

Num mundo marcado juros extremamente baixos, o endividamento global atinge níveis cada vez mais elevados. No terceiro trimestre de 2019, a dívida de famílias, governos, empresas não-financeiras e bancos dos principais países desenvolvidos e emergentes alcançou o recorde de US$ 253 trilhões, o equivalente a 322% do PIB, de acordo com números do Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês). A expectativa é de que o endividamento siga em alta em 2020, batendo em US$ 257 trilhões no primeiro trimestre, impulsionado pelos juros baixos e por condições financeiras relaxadas, apontam os analistas do IIF.

Por enquanto, não há temores de problemas imediatos relacionados a esses níveis globais de endividamento, mas eventuais aumentos dos juros ou movimentos mais expressivos de moedas podem causar estresse nos mercados, como destacou o presidente do IIF, Tim Adams, ao repórter Daniel Rittner, do Valor, em entrevista no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na semana passada. Como parte das dívidas das empresas está denominada em divisas estrangeiras, pode haver estragos em caso de desvalorizações cambiais fortes e abruptas.

Um estudo recente de economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI) trata do endividamento público em cenários de juros baixos e em que frequentemente é negativa a diferença entre a taxa de juros e a taxa de crescimento da economia. O relatório recomenda às autoridades cautela quanto a níveis elevados de dívida, mesmo quando o custo de tomar dinheiro emprestado é baixo.

Publicado neste mês, o estudo “Dívida não é livre”, dos economistas do FMI Marialuz Moreno Badia, Paulo Medas, Pranav Gupta e Yuan Xiang, conclui que a dívida pública “é o mais importante preditor de crises”. Acima de determinados níveis de endividamento, a probabilidade de problemas aumenta fortemente, a despeito a diferença entre a taxa de juros e a taxa de crescimento.

“A nossa análise também revela que as interações entre a dívida pública com a inflação e os desequilíbrios externos podem ser tão importantes quanto os níveis de endividamento”, afirmam os autores, que identificaram 418 episódios de crises fiscais em 188 países, no período de 1980 a 2016.

Para economias desenvolvidas, a chance de uma crise aumenta significativamente se a dívida externa atinge a casa de 70% do PIB. Para países emergentes, a probabilidade estimada de um problema fica relativamente estável para patamares de endividamento externo abaixo de 30% do PIB, mas sobe fortemente acima dessa fronteira, dizem os economistas do FMI. No caso do Brasil, a dívida externa pública está na casa de 10% do PIB, e o país ainda é credor externo líquido (ou seja, os ativos em moeda estrangeira, como as reservas, superam os passivos).

“Esses resultados, embora não necessariamente impliquem causalidade, mostram que os governos devem ser cautelosos em relação à dívida pública elevada, mesmo quando os custos de empréstimo parecem baixos”, reiteram os economistas do FMI. O ponto, segundo eles, é que “as dinâmicas das crises são altamente não-lineares” e, no momento em que a diferença entre a taxa de juros e a taxa de crescimento passar a ser um sinal de alerta, as autoridades podem estar desprevenidas. “Essas conclusões não significam que reduzir a dívida é sempre a prescrição adequada. Há claramente casos em que o uso do endividamento para propósitos contracíclicos, para aumentar o investimento público ou para enfrentar outras necessidades estruturais é desejável”, afirmam os autores do estudo, ressaltando, contudo, que a evidência apresentada por eles indica que a dívida pública não é isenta de problemas.

O texto menciona a avaliação feita em 2019 por Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI, de que “a dívida pública pode não ter custo fiscal”, num ambiente em que a taxa de juros tende a ficar abaixo da taxa de crescimento por longos períodos. O argumento ganha força no debate num cenário de juros baixos, quando não negativos. Mas o relatório, como fica claro, não vê com bons olhos a análise benigna de Blanchard e alguns outros analistas sobre o endividamento público, mesmo num quadro de juros ínfimos.

No Brasil, a dívida de famílias e empresas não-financeiras voltou a subir na comparação com o PIB nos últimos trimestres, após um período de redução de endividamento provocada pela grave recessão do segundo trimestre de 2014 ao quarto trimestre de 2016, mostram os números do IIF. No terceiro trimestre de 2019, a dívida das famílias equivalia a 28,7% do PIB e a das empresas não-financeiras, a 42,9% do PIB.

Com a recuperação da economia, a tendência é que os débitos de pessoas físicas e jurídicas continuem a crescer. Com juros mais baixos e um crescimento maior, o processo pode ser saudável, num quadro de melhora das perspectivas para a renda dos consumidores e para a receita das empresas.

Já a dívida pública brasileira, depois do enorme salto ocorrido a partir de 2014, tem crescido a um ritmo mais fraco, e pode começar a cair nos próximos anos, especialmente devido à Selic menor, mas também pela expectativa mais favorável para o PIB. O indicador, que fechou 2013 em 51,5% do PIB, atingiu 77,7% do PIB em novembro de 2019.

Estimativas como as do Tesouro Nacional apontam para uma estabilização da dívida bruta na casa de 78% do PIB e uma redução lenta nos anos seguintes, uma trajetória bem mais otimista que a projetada na virada de 2018 para 2019, por exemplo.

Ainda assim, o endividamento brasileiro é bem superior ao da média dos emergentes, um pouco inferior a 54% do PIB, segundo projeções do FMI. Nesse quadro, é importante que o Brasil faça um esforço fiscal para reduzir o indicador um pouco mais rapidamente nos próximos anos, o que exigirá a geração de resultados primários positivos (receitas menos despesas, exceto gastos com juros). A boa notícia é que não terão que ser tão altos como no passado, de 2,5% a 3% do PIB, pois superávits menores deverão ser suficientes para diminuir a relação entre a dívida e o PIB, desde que os juros de fato permaneçam baixos e o crescimento seja um pouco mais forte.


Bruno Carazza: Não podemos importar propina

Liberar licitações para estrangeiros exige cuidados

Na sua segunda passagem por Davos, Paulo Guedes demonstrou mais uma vez que as teorias antiglobalistas passam longe do Ministério da Economia. Depois de ter costurado um acordo sem precedentes entre o Mercosul e a União Europeia, o governo brasileiro anunciou a intenção de aderir ao Acordo de Compras Governamentais da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Na cabeça de Guedes não há espaço para teses obscurantistas que influenciam outros setores importantes do governo, como o Itamaraty e até mesmo o Palácio do Planalto. Para o todo-poderoso da Economia, a aceitação dos parâmetros e normas ditados por organismos multilaterais como a OMC e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) é o passaporte para o Brasil alcançar “a primeira divisão” da economia internacional.

Na prática, liberar gradativamente o multibilionário mercado das licitações federais, estaduais e municipais para empresas estrangeiras significa abrir mão de um poderoso instrumento de estímulo à produção nacional. Não é à toa que apenas um grupo limitado de países desenvolvidos faz parte desse acordo da OMC, como os membros da União Europeia, EUA, Japão, Canadá, Austrália e Coreia, além de poderosos entrepostos comerciais como Singapura, Hong Kong e Taiwan.

Estimativas indicam que as compras e contratações do setor público movimentam entre 10% e 13% do nosso PIB. As firmas brasileiras, obviamente, sempre buscaram reservar para si a exclusividade desse mercado, e na última década ainda ampliaram sua vantagem com a introdução de regras de conteúdo nacional e margens de preferência.

Mas Paulo Guedes acredita que, para o país atrair mais investimentos externos e se integrar às cadeias globais de negócios, o preço a ser pago é a exposição do empresariado local a uma maior concorrência estrangeira. No seu estilo direto de dizer, afirmou que o Brasil não pode ser uma “fábrica de bilionários à custa da exploração dos consumidores”.

Guedes sabe que não será fácil vencer o lobby da indústria brasileira contra seu plano de ser o primeiro grande país em desenvolvimento a liberalizar seu mercado de licitações a firmas provenientes das mais avançadas economias globais. E é por isso que embalou o anúncio de suas intenções num discurso caro ao eleitor bolsonarista: o combate à corrupção. Nas suas palavras, a medida será “um ataque frontal à corrupção”, num país de “200 milhões de trouxas servindo a seis empreiteiras e seis bancos”.

De fato, denúncias de fraudes em licitações - de merenda escolar às grandes obras da Petrobrás - fazem parte do noticiário cotidiano no Brasil há décadas. Nem mesmo a adoção de sistemas mais eficientes de seleção de fornecedores, como o pregão eletrônico, foi capaz de reduzir de forma drástica o desvio de recursos públicos em licitações públicas. Editais direcionados, julgamentos enviesados de propostas e cartéis de licitantes continuam a fazer com que o setor público contrate produtos e serviços piores por preços muito mais altos. Na visão do Ministério da Economia, permitir que empresas estrangeiras compitam em pé de igualdade nas licitações brasileiras pode romper esse círculo vicioso.

Mais concorrência e abertura sem dúvida podem contribuir em muito para reduzir a corrupção nas compras e contratações do setor público brasileiro, em seus três níveis. Porém, como quase tudo em economia, trata-se de uma condição necessária, mas não suficiente.

Não custa lembrar que empresas estrangeiras protagonizaram um dos maiores escândalos de desvio de recursos públicos nos últimos anos. Investigações conduzidas pelo Cade, com o apoio do Ministério Público e da Polícia Federal, comprovaram que um cartel internacional liderado pelas multinacionais Siemens (Alemanha), Alstom (França), Bombardier (Canadá), CAF (Espanha) e Mitsui (Japão) superfaturou ao longo de décadas contratos de construção de linhas e o fornecimento de trens e vagões para o metrô de São Paulo e outras capitais brasileiras. O chamado “trensalão tucano” está aí para comprovar que não existe bala de prata quando se trata de corrupção.

A propósito, na última sexta-feira a Transparência Internacional publicou a nova edição do seu relatório anual, que divulga o Índice de Percepção da Corrupção - um levantamento que conjuga dados quantitativos e avaliação de especialistas para classificar os países quanto ao combate à corrupção. Em 2019 o Brasil manteve a pontuação do ano passado (35 pontos, numa escala de 0 a 100), alcançando a 106ª posição, num total de 180 países - bem atrás de nossos vizinho Uruguai (21º) e Chile (26º). Esse resultado indica que, a despeito dos méritos da Operação Lava Jato, não conseguimos avançar de modo sistemático na prevenção e repressão de desvios de dinheiro público.

A leitura do relatório deste ano da Transparência Internacional deixa claro que, quando se trata de corrupção, não existem anjos. O documento destaca como até mesmo empresas provenientes de nações que figuram no topo do ranking - os sempre invejados países nórdicos - deixam-se envolver em grandes esquemas de pagamentos de propinas e lavagem de dinheiro no estrangeiro. Casos como o da sueca Ericsson, do conglomerado de pesca islandês Samherji e do banco estatal norueguês DNB revelam que, por mais íntegra que seja a sua origem, a corrupção ocorre quando a oportunidade surge, e isso deve servir de alerta para o governo brasileiro.

O Brasil só dará um salto significativo para figurar entre os países que melhor combatem a corrupção se houver medidas consistentes nessa direção tomadas no âmbito dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário ao longo de sucessivos governos. Permitir que empresas estrangeiras participem das licitações no Brasil sem dúvida alguma deve fazer parte dessa agenda. No entanto, a experiência internacional e nosso passado recente revelam que não podemos parar por aí.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli Cardoso: Regras contra o populismo

Somente o estado de direito observado nas democracias tranquiliza empreendedores a fazer investimentos de longo prazo

A longa defasagem temporal entre a adoção de uma política econômica e a plena observação de seus efeitos constitui um dos principais impedimentos à solução de problemas econômicos estruturais, em países democráticos. Há vários sinais de que o Brasil começa a aprender como resolvê-los, mas também outros em direção contrária que são motivos de preocupação.

O enfrentamento de problemas que afligem a sociedade por décadas, não raro séculos, impõe custos políticos no curto prazo, mas seus benefícios só se tornam visíveis após decorrido um longo período desde sua implantação. Por isso, muitas reformas estruturais são sistematicamente adiadas ou, quando implantadas, acabam abandonadas. A mesma defasagem permite que políticas populistas que trazem benefícios de curto prazo, mas criam novos problemas para o futuro, levem muitos anos até que suas consequências nefastas sejam percebidas pelo eleitorado. A defasagem entre causa e efeito cria um viés que favorece o imediatismo irresponsável.

Em muitas democracias, o eleitorado leigo em assuntos econômicos, diante do grande interregno entre a implantação de uma política estrutural e a percepção de seus resultados, não enxerga a relação de causa e efeito. A incompreensão de problemas complexos é oportunistamente explorada por partidos políticos de diferentes matizes. Quando estão no poder lutam pelas reformas, mas as combatem quando se tornam oposição. O partido que promove um ajuste estrutural não apenas perde as próximas eleições, como ainda deixa a casa arrumada para que seu adversário político, que lutou contra as mesmas reformas, possa fazer um ótimo governo, alcançando a reeleição. Promover reformas estruturais é percebido como um suicídio político. A argentina constitui um caso proverbial desse fenômeno.

No Brasil, a Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada em 2000, foi a reforma que consolidou a estabilização monetária iniciada pelo Plano Real. A LRF gerou uma década e meia de superávits primários, mas derrubou o prestígio político de FHC junto ao eleitorado que lhe havia dado duas vitórias em primeiro turno, abrindo caminho para o triunfo do PT em 2002. Este colheu os frutos das reformas que combatera duramente quando estava na oposição. A LRF foi, posteriormente, enfraquecida por Dilma Rousseff, resultando na mais prolongada recessão da história brasileira. No curto prazo aumentou sua popularidade, mas o país pagou os custos desse populismo por muitos anos.

No passado, incentivos perversos de curto prazo, como os ilustrados acima, foram oportunistamente usados até como justificativa para a supressão da democracia. A premissa era que um governo competente e bem-intencionado, desde que pudesse desconsiderar restrições político-eleitorais, conseguiria implantar as necessárias reformas sempre adiadas pelas disputas eleitorais, rompendo o ciclo vicioso do subdesenvolvimento.

A falha dessa visão está na sua premissa, pois nada garante que, na ausência das liberdades individuais asseguradas pela democracia, o poder venha a ser realmente exercido pelos tecnicamente mais competentes, muito menos que suas prioridades coincidam com as verdadeiras necessidades da população. Adicionalmente, somente o estado de direito observado nas democracias tranquiliza empreendedores a fazer investimentos de longo prazo, sem temor de mudanças abruptas e arbitrárias das regras do jogo. A Rússia de Putin é um exemplo típico de país que atrai poucos investimentos externos, devido à incerteza gerada pela ausência de um confiável estado de direito.

É perfeitamente possível conciliar eficiência econômica com democracia. Basta que se modifiquem as regras do jogo que mantêm muitos países democráticos prisioneiros do populismo de curto prazo. No Brasil, a já mencionada LRF gerou uma década em meia de estabilidade macroeconômica. A Emenda do Teto do Gastos restabeleceu a confiança dos mercados na solvência da dívida pública, propiciando a queda inédita da taxa real de juros. O modelo de agências reguladoras, cuja missão é fiscalizar o cumprimento de regras estáveis de longo prazo desconsiderando pressões eleitoreiras de curto prazo, viabilizou importantes investimentos privados. Na direção contrária, indicações políticas para essas mesmas agências e a recente intervenção do presidente Bolsonaro na discussão sobre taxação de energia solar, passando por cima da Aneel, aumentam a insegurança do ambiente de negócios, podendo mesmo inviabilizar investimentos de longo prazo.

No momento, tramitam no Congresso reformas destinadas a criar novas regras do jogo que, ao reduzir a liberdade de ação do governo de turno, viabilizam a perseguição de importantes objetivos de longo prazo. A independência operacional do Banco Central assegurada em lei, ao garantir aos mercados que a instituição não sofrerá interferência do governo, como observado na gestão Dilma Roussef, aumentará a potência da política monetária, com redução do prêmio de risco pago sob forma de juros e atenuação do ciclo econômico-eleitoral.

Outro bom exemplo é a PEC 186, alcunhada de emergencial, que não apenas propõe limites prudenciais para os gastos permanentes de estados e municípios, como fornece os instrumentos jurídico-administrativos para se observá-los. Em caso de descumprimento dos limites, governadores e prefeitos poderão reduzir em 25% a jornada de trabalho de servidores, com queda proporcional de remuneração, bem como a demitir servidores estáveis. Paradoxalmente, essas medidas extremas serão raramente aplicadas, pois os próprios sindicatos de servidores serão os primeiros a moderar pressões salariais, por temer o atingimento dos referidos limites.

Em direção contrária está o processo de privatizações. Apesar do discurso, até agora pouco foi feito, o que indica fraca vontade política. Mais ainda, a eleição de vacas sagradas a serem preservadas - Petrobrás, CEF e BB - deixa uma enorme dúvida sobre o futuro.

Apesar das melhorias de governança nessas empresas e de gestões bem mais eficientes, o que garante que uma mudança de governo no futuro, ou a mera troca de equipe econômica, não as leve de novo à corrupção, ao uso político e ao desperdício de recursos, com toda a insegurança que isso traz ao ambiente econômico?

A democracia oferece soluções criativas para os problemas que ela mesmo cria. O Brasil parece estar aprendendo as lições de seus próprios sucessos e fracassos, mas ainda há muito a ser feito para garantir um futuro com pouco espaço para populismos de direita ou esquerda.

*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento
*Renato Fragelli Cardoso é professor da EPGE-FGV


Fernando Exman: As próximas fases da crise na Venezuela

Bancada de Roraima quer mais recursos do FPE e do FPM

A evolução da crise venezuelana foi objeto, em Brasília, de reuniões de análise de conjuntura e articulações políticas durante o normalmente pacato período de recesso parlamentar.

O tema ganhou evidência na semana passada, quando no último dia 16 o presidente Jair Bolsonaro levou para o Palácio do Planalto a cerimônia de passagem do comando da Operação Acolhida. Símbolo de prestígio e reconhecimento às atividades executadas, principalmente pelo Exército, no acolhimento e na interiorização dos migrantes e refugiados venezuelanos.

Nos bastidores, contudo, autoridades do Palácio do Planalto, ministros e parlamentares de Roraima também trataram de outras questões. Há uma preocupação em relação ao possível aumento da violência dentro da Venezuela e o fluxo populacional que pode resultar desse fenômeno, assim como com a capacidade do Estado brasileiro de atender essa população sem reduzir a qualidade dos serviços públicos na região.

Algumas estatísticas da Operação Acolhida ajudam a explicar as razões da movimentação política. Segundo estimativa do governo federal, cerca de 264 mil venezuelanos entraram e permaneceram no Brasil de 2018. Foram “interiorizadas” aproximadamente 27,2 mil pessoas, ou seja, transferidas para cerca de 375 cidades em 24 unidades da federação.

Dentre esses venezuelanos estão os cinco militares que foram detidos na fronteira no fim de dezembro do ano passado. Apesar das críticas do governo de Nicolás Maduro, que os considera terroristas, eles devem receber refúgio após passarem por período de quarentena. O que mais preocupa as autoridades de Roraima, contudo, são os civis que por lá se instalam.

As reuniões entre representantes de Roraima e autoridades federais ocorrem em clima cordial, mas não de completa descontração. A bancada do Estado no Congresso cobra mais celeridade do governo no processo de interiorização, ajuda na segurança pública e, claro, mais recursos.

No mais recente encontro, por exemplo, representantes de Roraima apresentaram dois dados aos seus interlocutores: cerca de 450 bebês de pais venezuelanos já nasceram na maternidade de Boa Vista e aproximadamente 300 venezuelanos estão encarcerados no Estado.

Com essas estatísticas em mãos, a bancada estadual passou a defender uma atualização dos critérios de distribuição do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). E quer apoio do governo federal para alterar as regras de rateio.

Apesar de legítima, a demanda atinge os interesses de outros entes da federação. Deve enfrentar resistências no Congresso e inclusive acabar levando o tema para ser analisado novamente pelo Judiciário.

Segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), os municípios do Estado de Roraima receberam R$ 555,2 milhões do FPM no ano passado, montante 8,2% maior do que em 2018. A capital Boa Vista foi o destino de R$ 473,7 milhões, ainda de acordo com a entidade. Já a cidade de Pacaraima, principal porta de entrada dos venezuelanos no país, ficou em segundo lugar. Recebeu R$ 6,4 milhões.

A presença dos venezuelanos virou uma questão central na política local. Foi um dos temas da campanha de 2018 e tende a ter novamente peso relevante nas eleições de outubro, principalmente se um dos cenários mais críticos se confirmar: uma ampliação do fluxo migratório, em razão de um eventual recrudescimento da crise humanitária ou de um conflito civil mais severo no país vizinho.

Essa é outra preocupação frequente na capital federal. Desde o início de janeiro, o presidente Nicolás Maduro vem patrocinando uma série de movimentos para aumentar o número de integrantes da milícia que apoia seu governo. Sua ideia é ter pelo menos um miliciano presente em cada parte do território venezuelano, bairro e escola. Diante de centenas de apoiadores uniformizados, anunciou recentemente que a milícia já dispunha de 3,7 milhões de homens e mulheres. Tem como meta somar 4 milhões ao seu lado, todos armados e dispostos ao martírio.

Na visão de autoridades brasileiras, Maduro está reforçando sua autoridade e o poder central nas bases. Com isso, conseguiria arregimentar mais massa de manobra e demonstrar força para desencorajar a oposição. Afinal, há farta distribuição de armas à milícia.

Um novo ponto de inflexão na dinâmica interna venezuelana ocorreria, portanto, caso as Forças Armadas e a milícia comecem a ser utilizadas de forma sistemática contra o povo.

Na semana passada, segundo relato de líderes da oposição, milicianos teriam atacado o comboio liderado por Juan Guaidó que se dirigia ao Parlamento. Militares também cercaram a sede do Legislativo, para impedir seu funcionamento e a reeleição de Guaidó. O risco de guerra civil não é desprezível. Tampouco desprezado pelas autoridades brasileiras.

Alvim
A demissão de Roberto Alvim da Secretaria Nacional de Cultura recolocou em evidência algumas das diferenças existentes entre as alas que integram a administração Jair Bolsonaro. O governo está longe de ser monolítico.

Militares já haviam demonstrado oposição a declarações da chamada ala ideológica do governo, mas o episódio protagonizado por Alvim extrapola essa divisão. E o ex-secretário deu nova oportunidade para que os militares repreendessem, ainda que nos bastidores, qualquer menção positiva aos regimes nazifascistas.

Um oficial de alta patente destacou: não se pode esquecer que milhares de homens da Força Expedicionária Brasileira desembarcaram na Itália, em julho de 1944, para lutar na Segunda Guerra Mundial justamente contra o nazifascismo.


Cristiano Romero: O grande risco

Espera-se que Bolsonaro não ameace cumprimento da agenda econômica defendida hoje pela maioria dos brasileiros

Em julho de 2015, o economista Nilson Teixeira fez uma profecia terrível: a recessão que atingira o país no segundo trimestre do ano anterior seria a mais longa da história e a recuperação, a mais lenta. Infelizmente, acertou. A “Grande Recessão” durou três anos (2014/16) e registrou contração do PIB de 6,2%. A recuperação tem sido medíocre: entre 2017 e 2019, o crescimento acumulado pode ter sido de apenas 3,8%, muito inferior, portanto, à queda ocorrida no triênio anterior.

Economista-chefe do Credit Suisse quando fez o vaticínio, Nilson, hoje sócio da gestora Macro Capital, e sua equipe projetaram números menos pessimistas que os revelados mais tarde pela realidade. Ainda assim, a previsão contrariava a tradição da economia brasileira, de recuperação rápida de crises. A severa crise fiscal, um governo fraco e sem nenhuma intenção de promover reformas e corrigir os erros que provocaram a “Grande Recessão” compunham um quadro tão desolador que a superação levaria tempo.

Ninguém esperava, porém, que o PIB fosse recuar 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016. Nos últimos três anos, o crescimento foi desanimador, contrariando as expectativas da maioria dos analistas - de 1,3% em 2017 e 2018 e de 1,16% em 2019, considerando para o ano passado a mediana das expectativas do mercado captadas pelo Banco Central.

O gráfico abaixo mostra que, em termos de crescimento econômico, a segunda década deste século foi perdida. Não foi à toa que os brasileiros respaldaram dois movimentos políticos: o primeiro, em 2016, de apoiar nas ruas o impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT); o seguinte, eleger o candidato que se apresentou bem cedo, nas redes sociais, como o anti-PT, o político que revogaria as políticas que afundaram o Brasil na crise mais longa e profunda de sua história.

Fernando Henrique Cardoso costuma dizer que, para tirar um presidente do cargo na nossa democracia é preciso cumprir três condições (não basta apenas uma delas): ter apoio das ruas (manifestações populares demonstrando insatisfação), maioria de votos no Congresso e pelo menos uma razão de natureza técnico-jurídica que justifique o questionamento do chefe do Executivo. Essas condições estiveram presentes tanto no impeachment de Fernando Collor, em 1992, quanto de Dilma, em 2016.

Ao apoiarem a queda de Dilma, as ruas deixaram claro que, neste momento, apoiam agenda oposta à da ex-presidente. Mesmo tendo sido eleita pela extraordinária popularidade de seu antecessor e então mentor (Lula), Dilma abandonou a política econômica que herdou dele. Desta forma, rompeu com o consenso que vigorava na área econômica desde 1999, desde o início do segundo mandato de FHC. Abraçou o populismo fiscal sem constrangimento e, em 2015, reeleita com dificuldade e prometendo aprofundar o que já tinha dado errado, esboçou correção de rumo ao adotar política fiscal austera, contrariando o que prometera a seus eleitores. Mas, logo, à semelhança do escorpião da fábula, voltou ao seu normal, desistiu do ajuste, rompeu com aliados e foi destituída do cargo.

O capital político do vice Michel Temer, que assumiu a Presidência em maio de 2016, era implantar a agenda anti-Dilma. Em pouco tempo, reformas que se diziam impossíveis, como a fixação de um teto para o aumento dos gastos da União, foram aprovadas no Congresso. No meio do caminho, entretanto, Temer perdeu seu capital político no episódio da gravação de diálogo embaraçoso com o empresário Joesley Batista, mas isso, ao contrário do que imaginou a elite política do país, não abalou o apoio da população à agenda econômica adotada desde a queda de Dilma.

Essa agenda não é de um grupo político específico, à direita do espectro partidário. Ela é necessária, urgente, absolutamente racional, de quem tem um mínimo de consciência, ética e responsabilidade em relação ao contrato social que rege ou deveria reger a vida dos mais de 200 milhões de viventes da Ilha de Vera Cruz. Dos presidentes eleitos pelo voto direto desde a redemocratização, cinco abraçaram essa agenda de uma forma ou outra, deixando Dilma na incômoda posição de exceção, o que só agrava sua avaliação.

Jair Bolsonaro, deputado de uma nota só (a defesa dos interesses corporativistas dos militares), percebeu isso, mas Geraldo Alckmin, do PSDB, e Fernando Haddad, do PT, não. O tucano nunca fez oposição aguerrida ao PT nem defendeu o receituário econômico com que FHC, a maior liderança de seu partido, governou o país de 1995 a 2002. O petista defendeu em sua campanha os anacronismos perpetrados pelas políticas da presidente deposta, o que leva a crer que Lula, sabido que só ele, colocou Haddad na disputa porque, claro, sabia que ele trataria de ser derrotado.

Setores da esquerda brasileira que ainda não superaram a Queda do Muro logo trataram de rotular a agenda em vigor de liberal. É uma forma de constranger formadores de opinião porque, no Brasil, lucro é coisa do cão babão.

Bolsonaro é um presidente que incomoda bastante, mas muito mesmo, quem preza por uma sociedade civilizada, que não tolera discriminação de qualquer espécie, inclusive, porque é isso o que prescreve a Constituição de 1988. Incomoda seu excesso de gesticulação na área ambiental, onde o Brasil, desde a Rio 92, se destacou como um ator crucial. Incomoda com seu discurso em defesa do uso de armas e que tais. Espera-se que tudo isso e muito mais não ameacem o cumprimento da agenda econômica defendida hoje pela maioria dos brasileiros.


Robinson Borges: Muito além dos muros da economia

Transição para a democracia eleva o PIB per capita em 20% em 25 anos, indica pesquisa

O governo federal pode ser compreendido como a aliança de quatro grandes blocos vivendo em um mesmo condomínio: o econômico, o militar, o jurídico e o de costumes. Apesar de serem vizinhos, tem sido comum a percepção de parcela da sociedade de que os blocos são independentes, têm a sua própria portaria e o que ocorre em cada um tem caráter autônomo. São frequentemente celebradas as vitórias da agenda liberal na economia, por exemplo, mas minimizados os impactos das medidas da ala ideológica, como se fosse mais um ruído daquela turma barulhenta lá do bloco do fundo.

Os blocos, de fato, têm perfis, importâncias, qualidades e realizações distintos e, às vezes, contraditórios e complementares. No entanto, é impossível ignorar que um condomínio, como um governo, funciona de forma sistêmica. Assim, quando um secretário adensa o estoque de elogios a Estados despóticos e divulga vídeo com citações de discursos de ministro nazista, seu efeito vai muito além do endereço reservado para os “costumes”. Ele se esparrama por todos os espaços do condomínio.

Foi acertada, portanto, a decisão do presidente de exonerar seu secretário especial da Cultura, Roberto Alvim, que ultrapassou todos os limites. Mas é preciso ressaltar que ele não é o centro do problema. Alvim pode ser visto como mais um sintoma do grupo de políticos que chegou ao poder, pelas vias democráticas, elogiando Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Já foram debatidos os efeitos corrosivos dos ataques às pesquisas científicas e ao combate da mudança climática, além do pouco caso com o multilateralismo, não só para a reputação do Brasil como para a economia do país. Mas há outra questão que também impõe um teto importante para a falsa ideia de autonomia do bloco econômico e a “agenda liberal” que se configura por aqui: o cerceamento da liberdade.

Há evidências acadêmicas de correlação entre o crescimento econômico e a liberdade dos cidadãos de um país. A liberdade é motor da inovação, do empreendedorismo e de novas formas para melhorar a produtividade, o que levaria a um maior desenvolvimento, especialmente nesse momento de transformações tecnológicas gigantescas. Esse empoderamento criativo nasce da diversidade, dos sonhos, dos projetos e das paixões das pessoas, o que floresce muito melhor se não houver o controle do Estado sobre os seus cidadãos.

Parece poesia, mas essa tese é de Daron Acemolgu, premiadíssimo professor do MIT e um dos economistas mais citados no mundo, e do cientista político James Robinson, professor da Universidade de Chicago.

Ambos são autores do best-seller “Por que as Nações Fracassam” (Elsevier) e do recém-lançado “Narrow Corridor” (Corredor estreito), em que analisam a relação entre política e economia ao longo da história e concluem: a prosperidade de um país depende do equilíbrio entre o poder do Estado e o da sociedade, que se dá num espaço limitado, no corredor estreito formado entre o autoritarismo e um mundo sem lei.

Segundo Acemoglu e Robinson, para a liberdade existir, é necessário um Estado tão forte quanto uma sociedade mobilizada. É nesse jogo, numa espécie de competição e cooperação, que se dá a garantia da liberdade. Se o Estado é poderoso demais, abala o equilíbrio. Se a sociedade se torna indiferente às leis e às instituições, a liberdade fica comprometida em guerras ou presa a estruturas tribais.

Com essa perspectiva, os autores são críticos do populismo, que compromete o crescimento ao desviar-se do corredor estreito. Seus elementos antipluralistas e excludentes minam as instituições e os direitos democráticos básicos. Mas não só. Favorecem a concentração excessiva do poder político e a desinstitucionalização, levando a um déficit na oferta dos serviços públicos e a um desempenho econômico abaixo da média.

A noção de liberdade do livro é baseada em John Locke, pai do liberalismo: uma sociedade deve ser livre da violência, da intimidação e de atos humilhantes para que as pessoas possam fazer escolhas para suas vidas e tenham meios para viver sem ameaças de punições descabidas ou sanções sociais draconianas.

Confiança, não temor, é o que torna um Estado forte, constatam. Mas eles advertem, a consolidação democrática implica passar por um processo de embates, plural, atento às diferenças, o que pode gerar frustrações - um terreno fértil para os populistas.

Numa pesquisa anterior ao livro, “A Democracia Causa Crescimento Econômico", Acemoglu e Robinson já haviam obtido dados importantes. Eles se juntaram a Suresh Naidu e Pascual Restrepo e constataram o peso dos regimes democráticos sobre o PIB: um país que transita de um regime autoritário para a democracia tem um PIB per capita 20% maior nos 25 anos seguintes.

Os quatro analisaram a evolução econômica de diversos países de 1960 a 2010, período com grande transição de regimes políticos, especialmente depois da queda do Muro de Berlim. Nos anos 1990 e 2000, o mundo viveu sob uma espécie de triunfo do livre mercado e da democracia liberal. Mas vieram a crise de 2008, a desconfiança desse modelo, o aumento da desigualdade, o crescimento de atos violentos por causa da xenofobia... enfim, o fortalecimento do autoritarismo ao redor do globo e a ascensão da direita radical em vários países importantes. Com isso, a noção de democracia ficou abalada.

Certamente a China tem um papel importante para a percepção de que as instituições democráticas são irrelevantes para o crescimento econômico. Para alguns acadêmicos, o país estaria em vias de provar que o desenvolvimento pode até prescindir da democracia. Ou seja, o êxito pode ocorrer em um país mesmo com milhões de câmeras de reconhecimento facial para monitorar seus cidadãos.

A interrogação de muitos é menos misteriosa aos olhos dos autores. Com base numa pesquisa histórica de séculos, os dois advogam que o Partido Comunista da China será tão forte, mas tão forte, que impedirá o país de se tornar rico. Isso vai destruir, sobretudo, o progresso, que, segundo Robinson e Acemoglu, também está baseado na liberdade dos cidadãos para inovar, inventar e empreender, um movimento fundamental para os desafios deste século.

Diante dessa análise, vale perguntar para os que renunciam aos valores democráticos: será que os ruídos daquela turma barulhenta lá do bloco do fundo são mesmo inócuos para a economia?

*Robinson Borges é editor de cultura.


Valor: Fórum de Davos este ano será mais verde

A edição deste ano de Davos, que marca seus 50 anos, será inevitavelmente mais verde. A discussão ambiental supera o número de sessões previstas para macroeconomia. Muitos ministros de Meio Ambiente participarão do evento - mas não o brasileiro Ricardo Salles

Por Daniela Chiaretti,  Valor Econômico

São Paulo e da Cidade do Cabo (África do Sul) - Greta Thunberg antecipou há dez dias o tom de sua participação no Fórum Econômico Mundial, que acontece esta semana em Davos, na Suíça. É a segunda vez que a jovem ativista sueca vai ao principal encontro mundial de chefes de Estado, empresários e executivos do mercado financeiro. “Nossa casa está queimando”, disse a adolescente a uma plateia surpresa com sua retórica, em janeiro de 2019, ano em que grandes incêndios de diferentes origens queimaram a Amazônia, a Califórnia e a Austrália, sempre agravados pela mudança do clima. Desta vez Greta promete tocar no ponto fraco do debate e dizer aos líderes que deixem de investir em combustíveis fósseis. A edição de Davos este ano, o 50º aniversário do encontro, será inevitavelmente mais verde.

Quase três mil participantes são esperados. Muitos virão em jatinhos emitindo grandes volumes de gases-estufa, como bem disse a CNN. Trata-se de uma contradição evidente em encontro onde questões ambientais ligadas à mudança do clima estão entre as cinco maiores preocupações dos líderes pela primeira vez em 10 anos, segundo o relatório de riscos globais do Fórum Econômico Mundial feito anualmente pelo Marsh & McLennan e a seguradora Zurich.

Falando em nome da sua geração, Greta publicou um artigo no “The Guardian” onde diz: “Exigimos que no fórum deste ano, participantes de todas as empresas, bancos, instituições e governos interrompam imediatamente todos os investimentos na exploração e extração de combustíveis fósseis, encerrem já todos os subsídios em combustíveis fósseis e deixem de investir imediata e completamente em combustíveis fósseis”. Como se pudesse ser mais clara, seguiu: “Não queremos que essas coisas ocorram até 2050, 2030 ou mesmo em 2021. Queremos que sejam feitas agora, neste exato momento.”

A tendência de empresas, universidades, grupos religiosos, fundos de pensão e de investimento de deixar de investir em combustíveis fósseis é cada vez mais forte. Segundo a 350.org., organização não-governamental fundada em 2007 e que tenta promover um movimento global em busca de soluções para a mudança do clima, existem hoje 1.176 instituições - com ativos que somam US$ 12,02 trilhões - deixando de investir em projetos relacionados a carvão, petróleo ou gás. Grupos religiosos e fundações filantrópicas são a maioria, seguidas por instituições de ensino, governos, empresas e fundos de pensão e fiduciários.

A maior gestora de recursos do mundo, a BlackRock, responsável pela gestão de quase US$ 7 trilhões em ativos, juntou-se na semana passada a uma iniciativa de investidores que quer reduzir emissões e aumentar a transparência em investimentos relacionados a clima, a Climate Action 100+.

O esforço também avança entre governos. A Alemanha anunciou que irá abandonar o carvão até 2038, o que exigirá investimentos de 40 bilhões. Um terço da energia alemã vem do linhito, um tipo de carvão muito emissor.

Os prefeitos Sadiq Khan, de Londres, e Bill de Blasio, de Nova York, iniciaram 2020 pedindo a seus pares em grandes metrópoles do mundo que deixem de investir em combustíveis fósseis em seus fundos de pensão. Além das duas cidades, o exemplo vem sendo seguido por Berlim, Oslo e Estocolmo. Os fundos de pensão destas cidades não registraram impacto negativo na performance de seus portfólios com a decisão de “desinvestir”, conforme o jargão verde.

Este assunto será discutido em março, em Nova York, durante encontro anual do C-40, grupo que reúne os prefeitos das 40 maiores cidades do mundo em busca de futuros urbanos mais sustentáveis.

No Reino Unido, os organizadores do movimento de alunos e professores pelo desinvestimento nas universidades anunciaram que a metade das instituições do país está aderindo ao esforço. Trata-se de uma carteira de mais de 11 bilhões de libras. A lista das universidades incluem Oxford, Cambridge e a London School of Economics.

Até agora são 79 universidades no Reino Unido e duas na Irlanda com compromissos que variam do desinvestimento total em dez anos, como o da Universidade de Glasgow, ao de instituições que prometem deixar de colocar recursos em projetos de carvão ou nas areias betuminosas conhecidas por “tar sands”, ou dizem que irão criar políticas neste rumo.

Julia Peck, que foi coordenadora da Oxford Climate Justice Campaign, diz que o movimento “explodiu” desde 2017. Ela nota mudanças em como estudantes falam sobre seu papel na transição energética. “Mais gente, que dizia não se ver como um ativista pelo clima, está aparecendo em nossas reuniões de desinvestimento”, conta. “Relatam ter mudado de postura de tanto ver a destruição de habitats e comunidades nas notícias”.

A campanha de desinvestimento dos recursos das universidades nasceu nos Estados Unidos, no Middlebury College, em Vermont, há alguns anos, mas o ensino superior americano foi mais lento que o britânico em aderir ao esforço. Julia diz que o movimento nos EUA recebeu impulso em novembro, quando centenas de estudantes, professores e funcionários invadiram o jogo de futebol entre Harvard e Yale pedindo que as universidades retirassem os investimentos em fósseis. A iniciativa teve grande cobertura, apoio de políticos, e a pauta subiu na agenda. A Universidade da Califórnia, com um endowment de US$ 13 bilhões e fundo de pensão de US$ 70 bilhões anunciou o total desinvestimento da carteira. “Algo me diz que em 2020 acontecerá o efeito-dominó do desinvestimento nas universidades dos EUA”, diz ela.

Julia Peck contou sua experiência na campanha de desinvestimento de Oxford durante conferência na Cidade do Cabo, em setembro. O evento reuniu 300 pessoas de 44 países entre ambientalistas, políticos, religiosos e executivos financeiros. Foi a primeira reunião do gênero no hemisfério Sul. O termo desinvestimento foi cunhado nos anos 1960, como maneira de boicotar o regime do Apartheid da África do Sul.

“O desinvestimento está crescendo em todo o mundo porque as gerações mais jovens entendem que, para forçar mudanças radicais a curto prazo, precisam ir onde nosso poder é maior. Somos estudantes com voz em algumas das instituições de pesquisa mais influentes do mundo: se pudermos romper o vínculo entre o ensino superior e a indústria de combustíveis fósseis, as empresas perderão sua licença social e científica para continuar operando”, diz. “Tenho imenso orgulho dos grevistas climáticos que ainda não entraram nessas universidades de prestígio. A mensagem deles é sistêmica e abrangente enquanto a nossa é prática e específica”, continua, referindo-se à geração de Greta. “Eles estão dizendo que precisamos de um sistema econômico inteiramente novo que não dependa da exploração e do crescimento infinito: precisamos mudar tudo”.

No evento, que aconteceu no “Two Oceans Aquarium”, um café da manhã com vista para arraias e tartarugas nadando em um tanque, reuniu líderes de várias religiões relatando sua opção por deixar de investir em fósseis.

“Não podemos continuar queimando combustíveis fósseis como se não houvesse amanhã”, disse Rachel Mash, fundadora do “Green Anglicans”, movimento anglicano que tem crescido em países africanos. “Até porque se continuarmos assim, não haverá mais amanhã”.

Grupos religiosos são o setor mais forte no desinvestimento em fósseis globalmente. “Temos uma questão moral e ética com este tema”, explica o pastor episcopal Fletcher Harper, diretor-executivo da Green Faith, organização internacional de perfil ambiental e religioso que engloba entidades de diferentes crenças. “Não é bom para ninguém ganhar dinheiro se matarmos o planeta”, continua.

A ONG, uma das mais antigas com este perfil, “busca ajudar as comunidades a tornar suas operações mais verdes”, informa o site da organização, que começou inspirada pela Rio 92, a conferência de desenvolvimento sustentável da ONU no Rio de Janeiro, em 1992. No evento na África do Sul havia líderes católicos, protestantes, judeus e muçulmanos.

“O relatório do Fórum Econômico Mundial deixa claro que um dos maiores riscos para a estabilidade econômica do planeta hoje é a mudança climática, mais do que migrações, guerras nucleares ou o colapso da internet”, diz o físico Paulo Artaxo, professor da USP e participante do evento na Cidade do Cabo organizado pela 350.org. “É um reconhecimento por economistas, não por cientistas ou ambientalistas, de que a questão climática já atingiu um nível insuportável na nossa estrutura social, econômica e política, e que precisamos reduzir emissões para garantir um desenvolvimento sustentável”.

O encontro do Fórum Econômico terá o dobro de sessões sobre ambiente do que sobre macroeconomia. Muitos ministros de Meio Ambiente participarão - mas não o brasileiro Ricardo Salles. Oceanos, florestas, plásticos e bioeconomia estarão em foco. Nesta quarta-feira, em debate sobre o futuro sustentável da Amazônia, participarão os cientistas Jane Goodall e Carlos Nobre e o ex-vice presidente dos EUA Al Gore.

A expectativa é que a pauta do desinvestimento permeie debates. Desde 2014 Davos fala nos “stranded carbon assets”, os ativos “podres” ligados aos combustíveis fósseis. A lógica é simples: se governos retirarem subsídios e investirem em políticas públicas com tecnologias limpas, conforme seus compromissos no Acordo de Paris, estes investimentos perderão valor.

“Os gerentes de grandes carteiras estarão reunidos em Davos no contexto de uma emergência climática. Os jovens estão caminhando pelos Alpes em direção a eles, exigindo que tomem medidas”, diz May Boeve, diretora-executiva da 350.org. “Esperamos que muitos sigam a Blackrock e iniciem a rápida saída dos combustíveis fósseis. Eles podem se mover por razões financeiras, por causa da pressão pública sem precedentes ou porque veem que todo mundo está fazendo isso. Mas se moverão.”

 


 

Davos vai propor um novo capitalismo

O “Manifesto de Davos 2020” estabelece como premissas: pagamento justo de impostos, tolerância zero com a corrupção, proteção do meio ambiente, estímulo à qualificação dos empregados, uso ético das informações privadas na era digital, vigilância dos direitos humanos em toda a cadeia de fornecedores e remuneração responsável dos executivos

Por Daniel Rittner, Valor Econômico

Davos (Suíça) - O Fórum Econômico Mundial começa hoje sua 50ª reunião anual, no pacato resort alpino de Davos, tentando colocar em prática uma cartilha lançada meio século atrás por seu fundador, Klaus Schwab, para guiar as práticas corporativas. Agora, diz o alemão de 81 anos e sotaque carregado, a hora de colher uma reforma do capitalismo finalmente chegou. Tanto que ele lançou o “Manifesto de Davos 2020” para atualizar conceitos pensados originalmente em 1971.

Nunca foi tão urgente, segundo Schwab, dar significado concreto à ideia de um “capitalismo das partes interessadas” (stakeholder capitalism) no lugar de outros dois modelos em voga nas últimas décadas. O “capitalismo de acionistas” teve seu momento de esplendor enquanto centenas de milhões de pessoas prosperavam, tinham acesso a bens de consumo inéditos, empresas abriam novos mercados e empregos eram criados.

Só que esse modelo não é mais sustentável, avalia o fundador do Fórum, que dá as razões. “Primeiro veio o efeito Greta Thunberg: ela nos recordou que o sistema econômico atual constitui uma traição às gerações futura pelo dano ambiental que provoca. Em segundo lugar, os ‘millenials’ e a ‘geração Z’ já não querem trabalhar, investir ou comprar em empresas que não atuem com base em valores mais amplos. Por último, cada vez mais os executivos e investidores compreendem que o sucesso deles no longo prazo também depende do êxito de seus clientes, empregados e fornecedores”, afirma Schwab.Já o “capitalismo de Estado” pode ter colhido bons resultados e cumpriu um papel no desenvolvimento de alguns países, sobretudo na Ásia, mas precisa evoluir para não se corromper, segundo ele.

O novo manifesto estabelece premissas: pagamento justo de impostos, tolerância zero com a corrupção, proteção do meio ambiente para futuras gerações, estímulo à qualificação dos empregados, uso ético das informações privadas na era digital, vigilância dos direitos humanos em toda a cadeia de fornecedores, remuneração responsável dos executivos. Em um ensaio de construção desse novo capitalismo, dezenas de empresários e banqueiros que estão subindo a “montanha mágica” de Davos receberam, no fim da semana passada, carta assinada por Schwab - tendo como coautores os presidentes do Bank of America e da gigante holandesa Royal DSM - com uma proposta de compromisso: que suas companhias zerem as emissões líquidas de gases do efeito estufa, tornando-se “carbono neutras”, até 2050.As questões ambientais, inclusive, estão transformando a atual edição no que muitos chamam de “Davos verde”. Serão 51 painéis de discussão sobre ecologia, desenvolvimento sustentável e mudanças climáticas - contra 50 de geopolítica e 27 específicas de economia. Uma iniciativa coordenada pelo Fórum promete o plantio de um trilhão de árvores, até 2030, contra o aquecimento global.

Sem nenhum representante do governo brasileiro, uma sessão na quarta-feira intitulada “Assegurando um Futuro Sustentável para a Amazônia” terá no palco o climatologista Carlos Nobre, crítico das políticas ambientais de Jair Bolsonaro. O ex-vice americano Al Gore também integra essa discussão.


Operação Lava Jato

Bruno Carazza: Férias numa colônia penal

Rotina de presos da Lava Jato reproduzia privilégios

A vida dos detentos da Lava-Jato melhorou muito quando puderam utilizar na cadeia um produto denominado “bloqueador de odores sanitários”. Com o problema do mau-cheiro resolvido, o cotidiano na sexta galeria oferecia um serviço cinco estrelas comparado com as demais prisões no Brasil: rádio e TV liberados, um pátio maior para fazer exercícios físicos e livre trânsito entre as celas dos colegas.

A cena é descrita por Wálter Nunes em “A Elite na Cadeia: o dia a dia dos presos da Lava Jato”, lançado recentemente pela editora Objetiva. Repórter da “Folha de S.Paulo”, Nunes cobriu in loco o entra-e-sai de políticos e executivos de algumas das mais importantes companhias do país na carceragem da Polícia Federal em Curitiba e no Complexo Médico Penal de Pinhais.

Nos plantões em que acompanhava os efeitos de decisões judiciais e acordos de delação premiada no âmbito das várias fases da operação, o jornalista obteve a confiança de agentes penitenciários, carcereiros e diretores das prisões, além de advogados e parentes dos detentos, que lhe contaram o comportamento e a rotina dos presos mais famosos do Brasil - relatos esses que são a matéria-prima do livro.

A presença de políticos, empreiteiros, lobistas, doleiros e dirigentes de estatais no sistema prisional é um feito incomum dado nosso longo histórico de leniência não apenas com a corrupção, mas com os chamados crimes de colarinho branco em geral. Não é à toa que menos de 1% da população carcerária brasileira tem curso superior.

As prisões brasileiras são uma amostra, em cores ainda mais sombrias, da imensa desigualdade social brasileira, e o livro-reportagem de Wálter Nunes mostra como esse sistema gera privilégios para os mais ricos e poderosos até mesmo na cadeia.

É difícil disfarçar nosso sadismo quando imaginamos os responsáveis por desvios bilionários dos cofres públicos comendo arroz, macarrão e feijão na marmita fria, ou ao pensarmos em seus familiares sendo submetidos à mesma revista íntima degradante a que milhares de parentes dos presos “comuns” são obrigados a enfrentar nos dias de visitas. Não é fácil exercer a empatia mesmo diante dos relatos de crises de choro e depressão quando nos lembramos que aqueles mesmos indivíduos distribuíam ou recebiam malas de dinheiro e transferiam milhões de reais desviados para paraísos fiscais.

O fato de figurões da República estarem sob a responsabilidade da Polícia Federal e do sistema penitenciário paranaense, porém, lhes conferiu uma série de benesses que são negadas aos detentos normais. Por medo de se tornarem alvo de facções criminosas ou rebeliões, os presos da Lava-Jato ficavam em geral apartados em galerias exclusivas, o que por si só lhes protegia das condições medievais em que são confinados os demais criminosos no país. É óbvio que não estou aqui a defender tratamentos desumanos para quem descumpre a lei; pelo contrário, um sistema prisional indigno só degenera ainda mais os condenados no seu retorno à sociedade.

Mas, a partir do descrito em “A Elite na Cadeia”, a deferência com que foram tratados corruptores e corruptos - e o que é pior, os privilégios que foram adquirindo com o passar do tempo - revoltam o cidadão comum.

De acordo com o relato de Wálter Nunes, progressivamente os detentos da Lava-Jato foram conquistando pequenas regalias em geral negadas aos presos comuns. Um exército de advogados muito bem pagos tratou de obter junto ao então juiz Sergio Moro condições que, apesar de estarem previstas na Lei de Execuções Penais, dificilmente são concedidas a quem não dispõe dessa assessoria, como atendimento médico, dieta especial e até podóloga. Conforme conquistavam a confiança e a intimidade de agentes penitenciários e diretores da prisão, os lava-jatos passaram a ter acesso a objetos normalmente negados, de jornais e revistas a barras de chocolate, passando por aparelhos de ginástica e luminárias.

É curioso notar como, dentro da prisão, alguns lava-jatos desempenhavam os mesmos papéis exercidos em liberdade. Fernando Baiano e Adir Assad, por exemplo, se encarregavam de levar aos responsáveis pela sua custódia os pleitos dos demais presos, tentando convencê-los da necessidade do seu atendimento, tal qual faziam na sua atividade de lobistas. Em algumas situações os empreiteiros levaram a cabo verdadeiras parcerias público-privadas com a direção da prisão, custeando o conserto das caldeiras do aquecimento de água ou a reforma do sistema de captação do sinal de TV aberta.

O livro de Wálter Nunes ainda traz a suspeita, transmitida ao autor por várias de suas fontes, de que regalias também foram prometidas e concedidas como estímulo à celebração de acordos de delação premiada. A convivência entre delatores e delatados, como Alberto Youssef e Nelma Kodama, também teria sido determinante para aumentar o número de interessados em negociar com o Ministério Público e a Polícia Federal.

Ao final da leitura de “A Elite na Cadeia” fica-se com a sensação de que, para os poderosos pegos pela Lava-Jato, o crime compensou. Na ânsia de aprofundar as investigações, o recurso de conceder benefícios em troca de informações delatadas parece ter ido longe demais. Hoje, a maior parte dos personagens do livro de Wálter Nunes já se encontra em casa, beneficiados pela colaboração premiada ou pela decisão do Supremo contra a prisão em segunda instância. Pelo montante de recursos desviados e a degeneração da República, corruptos e corruptores ficaram muito pouco tempo na cadeia - e mesmo durante esse período, a rotina dos lava-jatos descrita no livro mais parece um misto de spa, retiro espiritual e colônia de férias.

Graças à Lava-Jato, Sergio Moro chegou a ministro da Justiça e hoje é o responsável pelas investigações da Polícia Federal e pela execução das penas no sistema prisional. Seria bom se, perante a bancada do “Roda Viva” de hoje, ele expusesse um plano concreto para fazer do cumprimento da pena um real incentivo para evitar que criminosos voltem a delinquir e outros não sigam seu caminho.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Luiz Carlos Mendonça de Barros: Finalmente estamos fora do buraco negro

Para trazer a carga tributária a um nível que estimule a atividade empresarial será necessário enfrentar o mito da Constituição cidadã

Podemos, neste início de ano, dizer com segurança que, depois de seis anos de muito sofrimento, as consequências mais perversas criadas na sociedade brasileira por uma quase depressão econômica estão ficando para trás. Ainda que de maneira tímida o crescimento econômico está voltando e, mantida nos próximos anos a política econômica atual, poderemos progressivamente nos afastar das piores armadilhas criadas pela incompetência dos governos petistas em seus mais de 12 anos de poder.

Antes de continuar, faço uma observação que tem sido pouco citada pelos analistas sobre este período: nós só não vivemos a verdadeira depressão econômica porque não tivemos no Brasil uma crise bancária que, normalmente, vem associada à queda do PIB na dimensão da ocorrida em 2015 e 2016. Evitamos esta armadilha porque no governo Itamar Franco, com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no comando da economia e Gustavo Loyola na presidência do Banco Central, uma corajosa reestruturação do sistema bancário brasileiro, que se chamou Proer, foi levada adiante com muito custo para o Tesouro federal.

E por uma armadilha que a história sempre prega, o Proer foi violentamente criticado à época pelo PT e demais partidos de esquerda sem que soubessem que, mais de vinte anos depois, ele evitaria que uma catástrofe ainda maior ocorresse no governo da ex-presidente Dilma Rousseff.

Feitas estas observações, volto agora ao eixo central desta coluna que é a confirmação de que deixamos o pior da crise para trás e entramos agora em nova fase, denominada pelos economistas de recuperação cíclica. De certa forma esta coluna é o complemento de outras escritas por mim ao longo do ano passado em que tratei da minha convicção de que este momento ocorreria ainda em 2020. Esta confiança nascia da observação de vários momentos da história em que economias de mercado sofreram - por erros de gestão de seus governantes - uma queda violenta da atividade econômica. Em um primeiro momento ocorre uma queda no vazio - vejam o gráfico acima - seguida por uma recuperação ainda lenta, caso uma política econômica adequada seja implementada. E foi o que ocorreu no governo Temer e, de forma mais abrangente e segura, agora em 2019, a partir de reforma da Previdência e da gestão fiscal de alta qualidade e disciplina.

O ano de 2020 - e isto hoje é consenso entre grande número de analistas - trará de maneira mais segura a consolidação da recuperação que falamos, com a volta ao longo do ano de um crescimento próximo a 2,5%. Mas ela não será suficiente para eliminar de forma abrangente as várias sequelas que ainda ficaram na sociedade como herança da era PT. Segmentos sociais importantes, principalmente os de baixa renda, ainda estarão longe dos padrões atingidos em um passado não tão longínquo em função da piora sensível dos indicadores de distribuição de renda. O desemprego continuará elevado e o grande contingente de trabalhadores sem carteira assinada representará parcela importante do total ainda por certo tempo.

Para que, ainda na segunda década do século, possamos chegar em uma sociedade mais justa, a economia precisará atingir uma velocidade de cruzeiro superior à dos últimos trinta anos. E para isto outra agenda de reformas precisará ser definida e acordada entre nós brasileiros. Pretendo hoje iniciar algumas reflexões pessoais como contribuição para as discussões que certamente ocorrerão e que serão submetidas à sociedade como outras alternativas nas eleições de 2022.

Uma das questões relevantes, na minha opinião, é que com a reforma da Previdência, a volta do crescimento econômico e uma nova realidade da estrutura dos juros, será possível voltarmos nos próximos anos a trabalhar com superávits primários suficientes para estabilizar o equilíbrio fiscal do orçamento federal. Em outras palavras a ameaça de uma dívida federal fora do controle deixará de existir, ancorando de forma mais sólida as expectativas dos agentes econômicos em relação ao futuro.

Mas esta situação de equilíbrio será obtida às custas de uma carga tributária da ordem de 33% do PIB, muito acima da média de economias emergentes como a nossa. Para se chegar a este nível de arrecadação foi necessária ao longo dos anos a construção de um monstruoso sistema de impostos e tributos que acabam limitando de forma importante o funcionamento racional de uma economia de mercado. Não por outra razão as expectativas sobre uma reforma tributária abrangente dominam as mentes de empresários e consumidores.

Mas estas expectativas vão se frustrar caso não seja enfrentada de forma organizada a razão primária da existência deste monstruoso sistema tributário construído ao longo do tempo para acomodar a estrutura de gastos constitucionais definidos na Constituição de 1998. Portanto, para trazer a carga tributária para um nível que estimule e fortaleça a atividade empresarial privada será necessário enfrentar o mito da Constituição cidadã de Ulysses Guimarães e outros heróis de minha juventude profissional tão cheia de ilusões.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.


Ribamar Oliveira: Situação inusitada na área fiscal em 2020

Há um risco concreto neste ano de piora do déficit primário do governo central e, ao mesmo tempo, de melhora do déficit nominal

Existe um risco concreto de uma piora do déficit primário do governo central (Tesouro, Previdência e Banco Central) neste ano e, ao mesmo tempo, de uma melhora do déficit nominal, que considera a despesa com o pagamento dos juros da dívida pública.

Esta situação inusitada poderá acontecer, em parte, porque o resultado primário em 2019 ficou em torno de R$ 70 bilhões, muito abaixo da meta, segundo estimativa do secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues. Os dados fiscais do ano passado serão divulgados no fim deste mês.

No ano passado, a meta de déficit primário do governo central era de R$ 139 bilhões, mas o ingresso nos cofres públicos de um volume recorde de receitas atípicas, não recorrentes, principalmente de leilões do petróleo, reduziu substancialmente o “buraco” nas contas.

Outro fator que contribuiu para a substancial melhora foi o chamado “empoçamento” de recursos, quando o Tesouro libera o dinheiros e o órgão público não consegue gastar. O “empoçamento” foi turbinado pelo fato de que o governo só acabou com o contingenciamento das dotações orçamentárias nos últimos meses de 2019, deixando pouco tempo para o dinheiro ser gasto.

Para este ano, a meta de déficit primário do governo central é de R$ 124,1 bilhões, mas o resultado efetivo, certamente, será menor do que este valor. Atualmente, as metas fiscais estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) não têm correspondência com a realidade. Elas são estabelecidas para que o governo não corra risco de não cumpri-las. Esta prática foi estabelecida depois da criação do teto de gastos da União.

O tamanho do déficit primário deste ano dependerá da arrecadação tributária e das receitas atípicas que serão obtidas. A tributária está relacionada ao crescimento da economia, à inflação, ao crescimento da massa salarial e ao volume das importações, entre outros parâmetros econômicos.

Na semana passada, o governo alterou todos esses parâmetros e, consequentemente, a previsão de receita. O governo elevou sua projeção para o crescimento da economia de 2,32 para 2,4%. A estimativa da inflação subiu de 3,53% para 3,62%. O crescimento da massa salarial, que impacta diretamente a receita previdenciária, passou de 6,26% para 7,16%.

Com isso, a nova previsão de receita tributária a ser anunciada pelo governo nos próximos dias será maior do que aquela que está no Orçamento deste ano. Como as despesas da União estão submetidas ao teto de gastos, qualquer aumento da arrecadação resultará em melhor resultado primário.

O governo incluiu no Orçamento uma previsão de R$ 16 bilhões com os novos contratos de concessão das usinas hidrelétricas da Eletrobras. O problema é que há uma forte reação no Senado contrária à privatização da Eletrobras. Se essas resistências não forem vencidas, o governo terá que excluir esta receita do Orçamento, o que afetaria diretamente o resultado primário.

Diferentemente do que ocorreu em 2019, o governo poderá não contar com receitas atípicas expressivas neste ano. Dois campos de petróleo da chamada cessão onerosa (Atapu e Sépia), que não receberam ofertas no leilão realizado no ano passado, poderão ser oferecidos novamente neste ano. A receita com bônus de assinatura prevista para os dois campos era de R$ 36,6 bilhões, sendo que R$ 12,1 bilhões seriam distribuídos aos Estados e municípios. O leilão, no entanto, poderá ficar para o próximo ano, pois o governo sinalizou que pretende alterar alguns termos do edital para atrair os investidores estrangeiros.

Outras receitas atípicas poderão ocorrer, como a arrecadação de Imposto de Renda derivada de IPO (emissão primária de ações) da Caixa Seguridade, prometida para o primeiro semestre deste ano, e outras empresas públicas. A receita do Imposto de Renda com essas operações não está prevista no Orçamento.

O déficit nominal do setor público, por sua vez, vai diminuir. O resultado no ano passado já foi uma enorme surpresa, pois o mercado e o próprio governo esperavam que ele ficasse em torno de 7% do Produto Interno Bruto (PIB). Ele terminou em torno de 5% do PIB. E vai cair mais ainda, principalmente, por causa da redução dos juros. O Tesouro está conseguindo colocar títulos no mercado com juro real de 1% ao ano, enquanto o juro real em janeiro de 2016 estava em torno de 7% ao ano. O maior impacto da queda no custo da dívida pública ocorrerá neste ano.

Segundo o secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, mais de 50% da dívida mobiliária federal gira em 12 meses, incluindo no cálculo as operações compromissadas feitas pelo Banco Central. Por esta razão, o efeito da queda dos juros sobre o custo da dívida é rápido.

Mansueto estimou uma redução de R$ 120 bilhões no custo do endividamento público neste ano, o que corresponde a 1,5% do PIB. Como o atual ciclo de redução da Selic pelo Banco Central começou em julho do ano passado, o efeito da queda dos juros sobre o custo da dívida federal será pleno em 2020. Em 2019, a redução do custo da dívida foi estimada pelo secretário em R$ 60 bilhões.

O custo da dívida vai cair também pelo pagamento antecipado pelo BNDES de empréstimos tomados junto ao Tesouro, pela venda de reservas internacionais pelo Banco Central e pela privatização de estatais federais. Essas variáveis, no entanto, ainda não são conhecidas.

O secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, Salim Mattar, disse ao Valor, no fim do ano passado, que o BNDES deve pagar antecipadamente “no mínimo” R$ 100 bilhões. Mattar também informou que a meta do governo é obter R$ 150 bilhões com a venda de suas participações em empresas estatais. É difícil saber, no entanto, quanto desses recursos ingressará efetivamente nos cofres do Tesouro e poderá ser utilizado para abater a dívida pública.


Cláudio Gonçalves Couto: As instituições estão funcionando?

Corrosão democrática se dá não só entre os três poderes; importam fronteiras entre religião e Estado, civis e militares

Já há muitos anos que se debate no Brasil sobre a qualidade do funcionamento de nossas instituições: se funcionam bem, se funcionam mal, ou se simplesmente funcionam. Por óbvio que pareça, nunca é demais lembrar que “funcionar” significa cumprir alguma função. Portanto, a dúvida sobre a operação das instituições diz respeito a quão capazes são elas de resolver os problemas para os quais foram criadas.

A renitente insatisfação, expressa nos infindáveis clamores por alguma reforma política, provém de uma série de fatores: a percepção negativa de nossa estrutura institucional e de seus atores pela população, os seguidos escândalos de corrupção, o custo proibitivo (ou mesmo obsceno) de campanhas eleitorais, a baixa representatividade de um sistema em que eleitores sequer se lembram daqueles nos quais votaram, os muitos abusos cometidos por diferentes agentes do Estado, a ineficiência e a ineficácia do setor público, os privilégios de corporações estatais, a politização da Justiça, a insegurança jurídica Enfim, a lista é longa.

Se tivermos como métrica o bom funcionamento absoluto, nunca estaremos satisfeitos - nem aqui, nem alhures. Não à toa, em trabalho já antigo, o filósofo político e jurista, Norberto Bobbio, dizia que a democracia tinha diversas promessas não cumpridas - e segue tendo. Mas podemos nos perguntar se, mesmo não funcionando de forma ideal, as instituições democráticas dão conta minimamente dos problemas que devem resolver ou evitar - como a própria destruição da democracia.

A pergunta segue pertinente no Brasil atual diante dos temores do autoritarismo bolsonarista, por um lado, e da crença de que as estruturas organizacionais do Estado brasileiro, bem como os atores políticos, dão conta de conter os ímpetos mais perigosos do atual governo. Numa leitura mais otimista, como a de meu colega da FGV Ebape, Carlos Pereira, a democracia brasileira não ruiu e provavelmente não ruirá, pois atores judiciais e políticos têm operado eficazmente para conter ou mesmo reverter excessos do governo, corrigindo seus rumos. Congresso e Judiciário têm tomado decisões concretas nessa direção, impondo derrotas ao Executivo, moderando políticas e resguardando direitos.

Analistas mais pessimistas, como Celso Rocha de Barros, apontam a vocação autoritária do governo e suas medidas concretas de desmonte de instituições e perseguição a atores relevantes no âmbito de suas atribuições. Se considerarmos a forma como se destrói o aparato fiscalizador na área ambiental, o aparelhamento ideológico e a censura que ocorrem na cultura, a diluição da fronteira entre o Estado laico e certas denominações religiosas, ou mesmo o estímulo da retórica presidencial a ações violentas na cidade e no campo, temos razões para nos preocupar. Nessas frentes, o funcionamento dos freios e contrapesos da democracia tem sido menos efetivo e a lenta e gradual erosão do ambiente democrático ocorre, dia após dia.

Já que há uma metáfora física na ideia clássica dos freios e contrapesos, levemo-la um passo adiante. Mecanismos desse tipo são sujeitos a tensões, desgaste e têm limite para sua resistência. Assim como o não uso tende a deteriorar um mecanismo, o uso abusivo pode causar seu colapso. O estilo de governo do bolsonarismo exige uma operação severa dos dispositivos institucionais, que operam sob tensão constante, precisando limitar, corrigir ou frear as iniciativas governamentais incessantemente. Os freios de um veículo existem para pará-lo ou controlar sua condução, mas quem desce a serra com o pé no breque corre o risco de não conseguir frear justamente quando chegar à planície.

O governo mediante confronto contínuo força os demais atores a operar quase que todo o tempo na contenção, aumentando o desgaste e desperdiçando energias que poderiam ser mobilizadas de forma mais construtiva. O Congresso derruba vetos presidenciais como nunca, deixa caducar Medidas Provisórias de forma inaudita, reverte decretos presidenciais em montante inédito - sobretudo para um primeiro ano de governo. O Judiciário, em particular o STF, é mobilizado para por freio a seguidas iniciativas do governo que violam direitos ou desrespeitam preceitos legais. Se existe a máxima jornalística de que quando um cão morde um homem não há notícia, mas quando o inverso ocorre há, vivemos num país em que todos os dias a imprensa, atacada pelo presidente, noticia mordidas governamentais em cachorros e humanos.

E, nesse sentido, o tempo interessa, pois relações humanas são sensíveis a ele. O modus operandi belicoso do governo produz mais desgaste quanto mais o tempo passa. Resistir um ano é possível; será possível seguir mais três no mesmo ritmo? Qual o limite da paciência dos demais atores? Qual o limite da paciência do governo com as contenções que lhe são impostas? E, para além dos enfrentamentos com os outros poderes do Estado, há também aspectos preocupantes na partidarização das forças de segurança. Em matéria desta semana na Supercoluna de O Estado de S. Paulo, Marcelo Godoy aponta que o “Bolsonarismo invade os quartéis da PM”.

Ou seja, além da fronteira borrada entre governo e religião, o bolsonarismo também tem produzido o transbordamento da disputa política para dentro dos batalhões. Em evento de outubro, na PM paulista, familiares de sargentos que se formavam vaiaram o governador e receberam o presidente aos gritos de “mito”. Em discurso nesse mesmo evento, Bolsonaro associou a atuação da PM ao combate à esquerda, arrancando aplausos do público. Note-se que não se trata apenas das Forças Armadas, mas das polícias militares nos estados, mais capilarizadas, atuantes e acostumadas a lidar cotidianamente com a violência. Que instituições operam para conter esse processo em curso, de partidarização dos agentes armados do Estado? Há mecanismos institucionais capazes de fazer isso? Difícil de ver.

O tempo dirá se temos mais razão para sermos otimistas ou pessimistas. Neste momento, o que se vislumbra nesta seara são sinais bastante ambíguos.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP