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Cristiano Romero: Muito além da economia

Para oferecer mais democracia a quem mais necessita dela, o Estado brasileiro terá que passar por profunda e difícil reforma

O economista Luiz Guilherme Schymura é um liberal que gosta de discordar. À frente do Ibre, o mais antigo centro de estudos econômicos do país, não deixa a instituição funcionar como igreja. Bem pensado: ninguém vai à igreja no domingo para questionar o chefe da paróquia - quando a discórdia é grande, o sujeito muda de igreja ou funda a sua ou, o mais difícil, tenta reformá-la. Ademais, economia não é religião.

É enfadonho o debate que apenas repete o samba de uma nota só do pensamento hegemônico. E é lamentável, neste país, a recusa da maioria ao debate civilizado e civilizador. O que se observa aqui é a demolição intelectual prévia do outro, com o apoio automático de alguns “sacerdotes”. Por aqui, a desmoralização do interlocutor chama mais atenção do que o debate de ideias. Mas, no “país do futuro”, demoniza-se o outro por ter vinculação política com o partido A ou B ou por ter estudado em Harvard e não no MIT ou nascido em Juazeiro (BA) e não em Petrolina (PE), por torcer para o Fluminense e não para o Flamengo. Perde-se muito tempo na Ilha de Vera Cruz com pequenezas.

Além de promover o debate e a “disputa” de ideias, facilitar a emergência do contraditório, tirar colegas da zona de conforto e de lembrar a todos que economia não é ciência exata, Schymura põe suas próprias ideias para brigar, sem abrir mão de sua sólida formação liberal. Nas análises, introduz aspectos que a maioria de seus colegas releva por considerá-los imponderáveis. Ora, o pensamento não chegaria a lugar algum se não houvesse ousadia, sonho, utopia.

A ciência que mais sofre na tentativa de entender o Brasil é justamente a destinada a esta missão: a antropologia. Porque o Brasil é um imenso encontro de etnias marcado por uma infâmia chamada escravidão, com a qual convivemos oficialmente durante quase quatro séculos e que, por isso, é a nossa principal característica como sociedade, como advertiu Joaquim Nabuco há mais de um século.

O Brasil, na verdade, ainda não existe. Nossa singularidade - a diversidade étnica - é vista pelas elites colonizadas como um defeito de origem. Ora, o conceito vago que temos de nação, o que julgamos ser parte de alguma identidade, a nossa riqueza como povo novo, na acepção de Darcy Ribeiro, deriva justamente desse encontro de imigrantes com os povos que estavam aqui antes da sua chegada.

Onde entra a economia nessa conversa? Para Luiz Schymura, não basta olhar para os números das finanças públicas e constatar que, deficitários, impedem a economia de crescer mais rapidamente. Essa análise é fácil. O difícil é largar a calculadora um minutinho e procurar entender por que o governo - em todas as esferas - gasta mais do que arrecada e, o mais importante, por que faltam recursos para o que é essencial (formar cidadãos) e sobram para quem não precisa.

Quem disser que é por causa da corrupção, cuidado! A corrupção é um mal em si, mas não faz cócegas no buraco das contas públicas, que, em 2019, somou R$ 429 bilhões. Quem acha que uma explicação possível está na maneira como o Orçamento é formulado está no caminho certo. O Orçamento Geral da União (OGU) é um retrato do pacto que nos impede de ser uma nação.

O OGU mostra que a divisão dos recursos públicos privilegia os mais ricos, as elites de todo tipo (não só as econômicas e financeiras, mas também as sindicais, intelectuais e culturais), a burocracia estatal, as grandes empresas e as multinacionais (a automobilística, que há 70 anos alega ter prejuízo no Brasil, mas não sai daqui), enfim, os grupos de interesses específicos. É provável que, ao ler o Orçamento, alguns leitores constatem estar entre os beneficiários do regime que faz do nosso contrato social um dos mais injustos do planeta.

Pior do que criar para si próprio privilégios é ser beneficiário deles e calar-se. No primeiro caso, estão os “donos do poder”, os que legislam em causa própria em todas as instâncias do poder; no segundo, os cúmplices, que recebem riqueza imerecida do Estado. São tantos, mas tantos exemplos de privilégios, que a tarefa de identificá-los é um exercício de cidadania.

No debate, Schymura afirma: o brasileiro quer mais democracia. E clama por isso desde a segunda metade do século XX. Os 50 milhões de miseráveis atendidos pelo Bolsa Família; as dezenas de milhões da faixa acima à dos beneficiários do Bolsa Família; as dezenas de milhões dos menos pobres, mas com pouquíssimas chances de ascensão devido ao caráter concentrador de renda das políticas públicas; a maioria quer mais democracia.

A história nos últimos 70 anos é reflexo desse desejo, observa Schymura. Nesse período, o que vimos foi a disputa entre quem quer mais ou menos democracia. Em 1984, fomos às ruas exigir a volta do direito de eleger o presidente pelo voto direto. Em 1985, aprovamos o direito dos analfabetos votarem. Em 1988, promulgamos a Constituição que instituiu direitos civilizadores, como o acesso universal gratuito à saúde e à educação, o pagamento de aposentadoria a trabalhadores do campo, mesmo sem terem contribuído para o INSS, e o direito de os indigentes receberem um salário mínimo mensal.

A Carta Magna, registre-se, acabou com a censura e definiu qualquer forma de discriminação como crime, passível de punição (artigo 5º, inciso XLI). Defensores da economia de mercado deveriam entender que a democracia é o melhor regime para o florescimento do capitalismo. Milhões de brasileiros foram às ruas em 2013 exigir serviços públicos de qualidade, prova de que nossa democracia é manca num aspecto fundamental: oferecer oportunidades iguais a todos.

Assegurada pela Constituição, a liberdade de expressão é um pilar da democracia. A defesa da concorrência, por sua vez, é o alicerce da economia de mercado. A insatisfação com juros e preços altos e a baixa qualidade dos bens e serviços é crescente. Não há economia forte onde poucas empresas e bancos dominam o mercado. A existência de monopólios e oligopólios estatais e privados enfraquece a economia de mercado e, em última instância, a democracia, e pouco se fala disso no mercado.

A profunda e perigosa divisão que a sociedade vive nesta hora pode ser fruto da reação de setores da sociedade ao “mais democracia”. Não se deve, porém, confundir “mais democracia” com assistencialismo e populismo, práticas que sabotam a própria democracia. Para oferecer mais democracia, o Estado terá que passar por profunda reforma. Terá que acabar com o sistema de castas que distingue trabalhadores do setor privado de funcionários públicos; combater o patrimonialismo que faz com que burocratas ajam como donos dos serviços públicos; “estatizar” o Estado, impedindo que grupos empresariais influenciem em decisões do governo.

*Cristiano Romero é editor-executivo


Carlos Melo: Riscos à democracia e realinhamento político

Riscos de exaustão dos freios democráticos provém também da sociedade. País carece realinhamentos políticos e alianças

O simples debate a respeito dos riscos à democracia é eloquente sinal do sentimento de parte do país. Num regime consolidado não há dúvida: tudo está sob o controle das leis; a liberdade não é apenas formal, imprensa e grupos de comunicação não são perseguidos nem favorecidos; não se apela à intervenções militares, nem se questiona o sistema de freios e contrapesos do país. Como observou Cláudio Couto, a erosão democrática não se dá aos saltos, mas dia após dia; submetidas a testes frequentes, também as instituições vão à fadiga.

É fato que, no Brasil, o esdrúxulo saltou do noticiário; sucedido por desculpas, repete um deliberado e entediante ciclo de ataques. O acintoso e o patético chocam cada vez menos; o país está anestesiado ou a desesperança venceu. O Legislativo, sim, tem exercido suas prerrogativas; é positivo, mas parece depender de arrimos e fiadores políticos, o que é precário. Já o Executivo, inábil em quase tudo, confunde o público com o privado e familiar. Pleno de conflitos, o Supremo já não consegue dissimular alinhamentos e disputas.

Seria menos preocupante se importantes instituições não fossem lentamente aparelhadas. Política Externa, Meio Ambiente, Educação, Ministério Público, Polícias Federal e Militares, Poder Judiciário e até as Religiões foram envolvidas em projetos de poder. É clara a instrumentalização daquilo que deveria ser impessoal e laico, o Estado.

Mas, de toda sorte, o debate acadêmico está posto por gente qualificada que esgrime bons argumentos a favor ou contra, incorretamente taxados de “otimistas” ou “pessimistas”. Todavia, o deixemos de lado: aqui, cumpre buscar as raízes dos tais riscos. Elas não estão apenas no bolsonarismo, residem também no silêncio e apatia da sociedade, na canibalização de setores democráticos, nos vetos cruzados de movimentos identitários, na ineficácia das lideranças políticas e na dificuldade de o país se reinventar.

A outrora chamada sociedade civil carrega culpas e responsabilidades. A dois anos da eleição, atores se precipitam aos palanques e a plateia se organiza como nos clássicos de futebol: torcidas indóceis, redes sociais que indicam que o país perdeu a elegância e a civilidade. A começar, pelos gritos, a dificuldade de ouvir, estabelecer diálogos e consensos - elementos da arte democrática.

Parte disto se deu em virtude da longa polarização PT/PSDB que, ao final, somou zero atingindo-os mutuamente. Quando se viu, o PSDB já era a direita atropelada pelo bolsonarismo; mutilado de guerra, o PT recolhe-se ao gueto da soberba e do ressentimento. Em paralelo, o centro emedebista sucumbiu ao fisiologismo e aos escândalos em pencas da era Temer. Desorganizado o sistema, a fúria eleitoral de 2018 plantou populismo autoritário e colheu política vazia.

Novos atores tentam emergir do naufrágio. Mas o cenário ainda é pouco promissor: pontes foram queimadas e canais obstruídos. Setores antes afeitos à democracia fecham-se em bolhas. Sem coordenação, interesses específicos se descolam do interesse geral: o velho patrimonialismo campeia e dá vida a novos tipos de corporativismo. Míope, o mercado se basta ao “traderismo” viciado em ganhos e vantagens de curto prazo. Desconhece-se que a democracia é a única forma politicamente sustentável de aprovação e implantação de agendas econômicas.

Noutra ponta, movimentos identitários de justas bandeiras fecham-se em si, ignorando princípios e valores mais amplos, como a necessária unidade política e a democracia como ação coletiva. Luta-se bravamente em vários campos, mas quase sempre de forma isolada, com vetos cruzados de autoritários “lugares de fala”. Também aqui soma-se zero, o que parece ser característico desta quadra histórica.

Enfim, uma marcha para a insensatez tem resultado numa estrada de riscos que sobrecarregam os freios democráticos. Desenvolvimento econômico, bem-estar social, liberdade política, nada disso se fará sem coordenação e cooperação, num sistema destinado à fragmentação e à dispersão. Ambientes de soma zero são assim: deixam todos descontentes e semeiam o canibalismo político. Até que se perceba que todos perdem, todos já perderam de fato.

A pacificação política não é arco-íris pós-tempestades, nem resultado óbvio do crescimento econômico. No longo prazo, o crescimento efêmero pode até agravar conflitos e tornar a comprometer economia. Ilude-se quem acredita que o mundo vive mais um trivial ciclo político ou econômico. Há mudança econômica estrutural, exclusão social e contestação planetária à democracia, com abalos políticos evidentes; basta ter olhos de ver.

No Brasil, setores que estiveram juntos na oposição ao regime autoritário e na transição democrática vivem hoje em discórdia, sob um risco comum. Há miopia e mesquinhez eleitoral. E pouca responsabilidade. A esfera democrática - ou pelo menos a sua defesa - não será assegurada sem realinhamentos políticos e a construção um arco de alianças cuja abrangência se dê do centro democrático liberal à esquerda igualmente democrática e progressista, aberto a quem mais aderir ao trinômio “democracia, políticas públicas e equilíbrio fiscal”.

Já não há Ulysses, Tancredo, tampouco há Nelson Mandela brasileiro - redentor ou mito, não importa. O processo construirá novas referências, mas não cabe idealizá-las. Antes, a sociedade política terá que se recompor e caminhar com aquilo que possui: cidadãos que à parte dos partidos se indagam sobre os riscos à democracia; que calculando perdas fundamentais convencem-se a forçar lideranças de que sentarem-se em torno de mesma mesa é o melhor a fazer - até para que ninguém se aventure a virá-la.

*Carlos Melo é cientista político e professor do Insper


Cristian Klein: Bolsonaristas e Bolsonaro na contramão

Tom pessimista do presidente sobre criação do Aliança indicaria desinteresse em participar da corrida municipal

O efeito da eleição municipal sobre a corrida presidencial, dois anos depois, é algo que não encontra comprovação conclusiva na literatura política, embora a sabedoria convencional sempre tenha tratado uma como preparação de terreno para a outra. A relação de causa e consequência não é tão direta, pelo menos para cargos majoritários, vide a ascensão de Bolsonaro, em 2018, despido de qualquer estrutura prévia de poder local espalhada pelo país. Foi na disputa à Prefeitura do Rio, em 2016, aliás, que a família do presidente da República teve a única derrota eleitoral em 24 disputas, contando o pai, os três filhos e a ex-mulher Rogéria Bolsonaro.

Hoje, a derrota de Flávio Bolsonaro, que ficou em quarto lugar, parece ter sido o prenúncio da ascensão do bolsonarismo, mas foi encarado naquele momento como um resultado sem maior significado político. O próprio Jair Bolsonaro foi contrário à candidatura, pois temia tanto um fiasco quanto uma vitória. Não queria dar explicações sobre um eventual fracasso da gestão do filho durante a campanha à Presidência. A história se repete. Bolsonaro é ele acima de tudo e esse comportamento em 2016 já indica qual será sua participação na corrida municipal deste ano.

A peleja de 2020, porém, traz um elemento complicador. Diferentemente de 2016, há centenas de destinos eleitorais que dependem dos rumos que Bolsonaro irá tomar. Se não mergulhou na campanha de Flávio a prefeito, Bolsonaro dá sinais de que também não o fará agora para os candidatos que buscam sua chancela e, mais urgente, precisam de uma legenda por onde concorrer. Muitos são deputados estaduais e federais já prejudicados pela impulsividade de Bolsonaro que levou ao rompimento de sua turma com o presidente nacional do PSL, Luciano Bivar. Bolsonaro e Flávio, detentores de cargos majoritários, já deram no pé e saíram da sigla. Mas aos parlamentares que querem concorrer a prefeito restam apenas três ou quatro alternativas, quase todas ruins ou improváveis. Eis as principais:

A primeira opção, e sonho de consumo dos deputados da ala bolsonarista, é obter uma justa causa sob a alegação de perseguição política e sair do PSL sem perder o mandato - o que já é buscado.

Decisão nesse sentido, porém, precisaria ser rápida, a tempo de registrarem nova filiação até seis meses antes da eleição em 4 de outubro. O tempo da Justiça é demorado, há Carnaval, recursos do PSL, o que torna a justa causa quase uma quimera. Do ponto de vista político, também é de se duvidar que a Justiça eleitoral libere em massa os deputados e abra a porteira e o precedente para o aumento da infidelidade partidária. Com essa “carta de alforria”, como eles comparam, os parlamentares poderiam ir para qualquer legenda.

Pela segunda alternativa, e de forma paralela, os deputados estaduais e federais trabalham na construção do partido bolsonarista Aliança pelo Brasil, que também representaria uma justa causa para troca de legenda, por ser uma sigla nova. Mais uma vez, o grupo esbarra no exíguo prazo, que termina daqui a dois meses. Geralmente uma grande barreira de entrada, a coleta de 492 mil assinaturas nem é o maior problema dada a capacidade de mobilização que vem da força e da popularidade de um presidente da República. Mas há o obstáculo da validação das assinaturas, o que depende da burocracia da Justiça, e a aprovação do registro no Tribunal Regional Eleitoral de pelo menos nove Estados, antes da homologação pelo TSE.

A terceira opção para os deputados bolsonaristas que querem disputar a eleição a prefeito é indicar outro nome do grupo político. Esse já é, por exemplo, o plano B do deputado federal Carlos Jordy, que pretende concorrer em Niterói. O parlamentar diz que, sem a “alforria” ou a construção a tempo do Aliança, ele apoiará o delegado da Polícia Civil e comentarista do SBT Rio Marcus Amin, que hoje está como vice de sua pré-candidatura.

No segundo maior eleitorado fluminense, em São Gonçalo, a indicação do vice, por outro lado, não é uma solução pois os dois integrantes da chapa, Filippe Poubel e Coronel Salema, são deputados estaduais. Há ainda o medo de que o indicado venha a se voltar contra eles. A trajetória do governador Wilson Witzel (PSC), eleito na esteira do bolsonarismo, assombra. Poubel ainda está indeciso se concorre pela vizinha Maricá, onde está seu domicílio eleitoral, ou em São Gonçalo, e receia: “Não tenho nome para indicar em nenhuma das cidades. Veja o que aconteceu com o governador, que é um traidor. Ele disse que não, mas fez campanha para Bolsonaro, andamos com ele nos quatro cantos do Estado”.

A quarta alternativa é a mais kamikaze: sair do PSL na marra, com o risco de perder o mandato. Seria algo tentador para os deputados que, segundo as pesquisas, estariam liderando a corrida a prefeito. É o caso do deputado estadual Dr. Serginho, pré-candidato em Cabo Frio.

Tudo considerado, o Aliança seria a melhor opção para os deputados pré-candidatos. Mas talvez não para Bolsonaro. Pelo número de vezes que o presidente já reconheceu a possibilidade de o partido não ficar pronto a tempo - num suposto tom pessimista - políticos atentos acreditam que o ex-capitão não deseja ter a legenda para já. “Ele não quer o Aliança. Ficar fora da disputa é melhor. Não acredito que Bolsonaro vá apoiar qualquer candidato. Talvez só no segundo turno, se houver polarização com a esquerda”, diz o deputado federal Hugo Leal (PSD-RJ).

Sem o Aliança, a solução paliativa para que o bolsonarismo ganhe fôlego na eleição de outubro - dentro das três alternativas restantes - seria a filiação em outras siglas - como o Patriota e o PRB - seja do grupo dissidente no PSL ou de novas apostas recrutadas - especialmente para a disputa a vereador. O presidente nacional do Patriota, Adilson Barroso, conta que conversou com Bolsonaro no dia 17, por meia hora, mas não tratou do assunto. Diz que seria uma honra receber o grupo do presidente desde que os bolsonaristas eleitos não debandem todos depois para o Aliança. “Barriga de aluguel não é parceria. Tem que deixar um ou dois vereadores pelo menos”, afirma. O PRB, do prefeito Marcelo Crivella, que busca a reeleição no Rio, também almeja receber o grupo. O líder nacional da sigla, Marcos Pereira, terá reunião nesta semana para tratar do acordo com Bolsonaro, informou Crivella à coluna.


Gustavo Loyola: Perspectivas de avanços significativos

Congresso tem diante de si as chaves para abrir o caminho para superar o estigma do baixo crescimento

A agenda do Legislativo em 2020 está recheada de matérias de grande relevância para o fortalecimento institucional do Banco Central e do mercado financeiro brasileiro, com reflexos positivos sobre a percepção de risco dos investidores em relação ao nosso país. Além da própria autonomia do BC, estão na pauta das casas do Congresso a nova legislação cambial e o projeto de lei complementar que trata de resolução bancária. A aprovação de tais matérias pelo Congresso Nacional ao longo do corrente ano reforçaria em muito as perspectivas de crescimento sustentável da economia brasileira nos anos vindouros.

Como se sabe, o projeto de lei complementar da autonomia do Banco Central, encaminhado pelo presidente Bolsonaro ao Congresso em abril do ano passado, dá à instituição as condições para o exercício da política monetária ao abrigo de pressões políticas, atribuindo mandato fixo ao seu presidente e a seus diretores, ao mesmo tempo em que estabelece os mecanismos de “accountability” indispensáveis no regime democrático. Trata-se de um texto enxuto, bem redigido, cuja aprovação legislativa aumentará a confiança dos agentes econômicos na preservação do poder de compra da moeda e na estabilidade do sistema financeiro, atributos essenciais na tomada de decisões de investimento principalmente em horizontes mais longos.

No passado, o debate no Brasil sobre a autonomia do Banco Central foi marcado pela dificuldade de se vencer ideias preconcebidas de parte dos políticos eleitos que viam na autonomia da autoridade monetária o risco de criação de um quarto poder, que poderia atuar totalmente a revelia das instituições típicas do Estado democrático. A experiência internacional, contudo, mostra hoje que tal temor é infundado, mesmo no caso de bancos centrais que legalmente dispõem de grande raio de ação para executar a política monetária.

Por outro lado, a estabilidade monetária obtida pelo Brasil no último quarto de século, após o Plano Real, mostrou claramente à sociedade os benefícios trazidos aos cidadãos pela ausência das incertezas e outras mazelas associadas à inflação galopante que caracterizava a economia brasileira antes de 1994. A maior aversão ao risco inflacionário presente na sociedade brasileira hoje dá uma sustentação mais ampla e profunda à ideia de um banco central com autonomia para executar as políticas necessárias à preservação do poder de compra da moeda.

Outro aperfeiçoamento relevante nas regras do jogo da economia seria a aprovação pelo Poder Legislativo do projeto da nova lei cambial apresentado pelo Executivo em outubro último. Em linhas gerais, o projeto busca substituir o emaranhado de dispositivos legais que disciplinam hoje o mercado cambial - alguns deles anacrônicos e datados ainda dos tempos da grande crise de 1929 - por um conjunto de normas sistemicamente coerente e que preparam o país para a livre conversibilidade de sua moeda.

São muitos os benefícios potenciais para a economia brasileira da adoção de um novo marco legal para o mercado de câmbio. Haverá a diminuição da insegurança jurídica que hoje existe em razão do patchwork de normas que regem a matéria e a redução da burocracia para exportadores, importadores e outros participantes desse mercado. Com isso, haverá o aumento da atratividade para os investimentos estrangeiros na economia brasileira e a possibilidade de aumento das trocas comerciais com o exterior.

Algumas críticas ao projeto da nova lei cambial destacam o risco de que a moeda brasileira se torne mais volátil e sujeita a ataques especulativos. No entanto, deve ser ressaltado que o projeto tem salvaguardas suficientes que permitem a atuação do Banco Central em situações de crise, além da previsão de implantação gradual da livre conversibilidade do Real.

Uma terceira iniciativa relevante no âmbito da economia é o projeto de lei complementar que trata da resolução bancária, encaminhado em dezembro passado ao Congresso. Trata-se de um projeto que vinha sendo gestado há muito tempo no Banco Central e que passou por várias rodadas de discussão com os especialistas da área. Moderniza e consolida a legislação que trata dos regimes de resolução, ao tempo em que alinha o Brasil às recomendações do FSB (Financial Stability Board).

O projeto vem coroar uma jornada iniciada há 25 anos, antes mesmo da crise global de 2008, que dotou o Brasil de instituições e instrumentos que asseguram a estabilidade financeira e minimizam o risco de crises financeiras sistêmicas. Sua aprovação ajudará também a melhorar a percepção de risco dos agentes econômicos em relação ao Brasil, trazendo fluxos adicionais de recursos para investimento.

Por tudo isso, o ano que se inicia pode ser memorável em termos de mudanças no ambiente institucional com vistas a abrir caminho para o crescimento sustentável da economia na próxima década. A responsabilidade recai sobre o Congresso Nacional que tem diante de si as chaves que podem abrir o caminho para a superação do estigma do baixo crescimento que por décadas flagela a economia brasileira.

*Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV e ex-presidente do BC


César Felício: A pedra angular

Aliança pelo Brasil ganha ares confessionais

Na concepção de poder bolsonarista, existem pilares de sustentação, que o alicerçam no liberalismo econômico exacerbado, com Paulo Guedes; e no jacobinismo das classes médias, com Sergio Moro. E há a pedra angular, aquela que se destaca no centro dos arcos de construções antigas, mantendo toda a estrutura de pé e com capacidade para suportar os pesos laterais.

Trata-se aqui, evidentemente, do ativismo evangélico no exercício da política. Tal como se descreve no versículo 22 do salmo 118, a pedra que os construtores do passado rejeitaram tornou-se a pedra angular. São os evangélicos imbuídos do propósito de construir um projeto de poder que fazem o elo entre Bolsonaro e a parcela mais pobre do eleitorado.

Há muitos ministros evangélicos neste governo, mas uma única pessoa está lá exclusivamente por este motivo. Muito subestimada ao longo de 2019, é a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves que estrutura o bolsonarismo nesta faixa de público.

A pauta de Damares não é a da arena pública, não são estratégias globais de saúde, educação, crescimento sustentável, distribuição de renda, longe disso. Sua agenda se conecta com assuntos de ordem moral, que estão da porta para dentro dos lares, não fora. A recente polêmica sobre a abstinência sexual é um exemplo. Ou não está no rol de preocupação de toda mãe a sexualização precoce e a gravidez ainda na adolescência?

Além de estabelecer estas faixas de sintonia, a ministra também parece disposta a fazer política. Em entrevista à jornalista Rachel Sheherazade, do SBT, Damares falou que um de seus propósitos é colocar mais mulheres na vida pública. Ela se queixou de que há 1,3 mil cidades no Brasil sem sequer uma vereadora. Prometeu uma “revolução” na ocupação de espaço político e incentivar a eleição de pelo menos uma mulher por municípios. Como fará isso, não disse.

A capilaridade que Damares busca não é banal. A ministra estrutura o programa “salve uma mulher”, para treinar pessoas a dar apoio a mulheres vítimas de violência. Não se limitará a servidores públicas. Ela quer envolver no projeto manicures, depiladoras, instrutoras de academias de ginástica. Uma multidão avaliada por ela em 4 milhões de pessoas.

Não lhe falta portanto ambição, como indica o próprio fato de ter feito treinamento de mídia e consultoria de imagem pouco depois de assumir o cargo. A ministra chegou onde chegou porque evangélicos mais bem posicionados para este patamar se inviabilizaram, como foi o caso do ex-senador Magno Malta, de quem foi assessora parlamentar. Ela pode continuar a auferir ganhos com as debilidades de potenciais concorrentes internos. Seu nome parece mais leve que o de Marcos Feliciano, por exemplo. E é bom lembrar que em 2018 a opção que Bolsonaro mais buscou para compor a chapa presidencial era um nome evangélico.

Partido confessional
O Aliança pelo Brasil, assim que se converter na nova estrela do firmamento partidário brasileiro, poderá ocupar um posto sem precedentes: arrisca a ser o primeiro partido confessional da história do país. Não há registro de um pastor pedir a fiéis que assinem apoio a um partido, acompanhado por funcionários de cartório, como fez o pastor Emerson Patriota, da Igreja Presbiteriano de Londrina, em vídeo divulgado esta semana pelas redes sociais.

Nem todos os evangélicos aplaudiram. Em nota, a Igreja Presbiteriana do Brasil se proclamou apartidária. Também pastor presbiteriano, em Florianópolis, o reverendo André Mello comentou ser difícil distinguir quem perde mais, se a Igreja ou o Estado, quando as duas esferas se misturam.

“Estão tentando fazer um partido religioso. Um partido que não será de uma religião específica, mas que terá um líder claro, que está no poder. Será que não percebem dentro das igrejas o risco que estão correndo? Será que ninguém está vendo?”, indaga Mello. O risco que se corre, por óbvio, é o dos templos se tornarem correias de transmissão de uma estrutura política. E das denominações, muitas das quais dominadas por clãs familiares, perderem o comando sobre sua base.

“A Igreja no Brasil tem credibilidade por ser vista pela população como autônoma em relação ao governo. Quando se abraça um projeto de poder, a linha divisória desaparece e o risco que surge é maior para a Igreja do que para o Estado”, comenta.

Mello não é neutro nessa história. Ele pertence ao Livres, um dos movimentos que tentam se inserir na política fora do ambiente partidário. No caso do Livres, com um recorte liberal na economia. O importante é que ele convida a observar o fenômeno de uma perspectiva pouco visitada até o momento: muitos procuram mostrar como Bolsonaro aderiu à agenda evangélica, mas nem tantos lançam o olhar para a trajetória inversa, a de como o bolsonarismo está dominando os templos.

O que a torna equação mais preocupante é que há outro evento em curso, o da expansão exponencial do protestantismo. As igrejas evangélicas espalham-se neste século pela América Latina como um todo e pelo Brasil em particular por motivos estruturais, que antecederam o advento das redes sociais e que ganharam tração depois delas.

“Para entender a força do crescimento evangélico é preciso entender que essa é uma religião de migrantes. De gente que saiu em sua maioria de um mundo desfeito, o da tradição rural, o dos pequenos municípios, o que está completamente fora do cosmopolitismo, das bandeiras universais. Os evangélicos crescem aí, na tentativa de desenraizados se recomporem”, analisa o reverendo.

Durante a era petista, Lula entregou políticas de transferência de renda a quadros que, em sua origem remota, estavam no catolicismo de esquerda. Foi da herança deste vetor religioso que se construíram as ferramentas que consolidaram o lulismo nos grotões, da qual o programa Bolsa Família é o carro-chefe. Para desestruturar esta fortaleza, Bolsonaro concluiu que precisaria ter a Bíblia à mão.

*César Felício é editor de Política.


Fernando Abrucio: A luta entre desigualdade e moralismo

Se o arco que vai do centro à esquerda quer lutar contra os retrocessos atuais, terá de mostrar que o combate à desigualdade pode ser o alicerce de uma nova ética pública

O Brasil é um dos países mais complexos do mundo. A variedade de seus problemas torna muito difícil escolher um único caminho ideológico como remédio a todos os males. Só que a disputa política geralmente produz a contraposição de visões de mundo. No momento, predominam duas delas que resumem bem as soluções colocadas à mesa. De um lado, um grupo que vai da esquerda até parte do centro defende que a agenda básica deve ser o combate à desigualdade. De outro, um agrupamento que capta parte da centro-direita e chega até à extrema-direita propõe que a questão central deve ser a reordenação moral da sociedade e do Estado brasileiros.

Obviamente que nenhuma liderança política vai dizer que é a favor da corrupção ou defender que não haja políticas públicas para os mais pobres. Posições tão extremas não estão em questão. Mas o embate político pode ser sintetizado pela luta entre a visão centrada no combate à desigualdade versus uma concepção mais orientada por questões morais, tanto públicas como privadas.

Somada à luta contra o autoritarismo, a redemocratização teve como slogan o resgate da dívida social. O país havia tido uma enorme transformação econômica desde o varguismo, porém, mantivera uma enorme desigualdade. Para mudar essa realidade, a sociedade levou uma série de demandas represadas aos constituintes e as lideranças políticas criaram aquilo que Ulysses Guimarães acertadamente chamou de Constituição cidadã. Assim, um cardápio amplo de direitos foi criado, buscando aumentar o acesso aos serviços públicos, principalmente aos mais pobres.

Construiu-se um consenso social democrata, que vigorou por mais de 20 anos, capaz de produzir várias medidas contra a desigualdade. A maioria no campo social, mas também se constituiu um olhar econômico preocupado não só com o crescimento, mas também com a redistribuição. O Plano Real seguiu esta trilha, bem como as políticas de salário mínimo.

Políticas como Fundef/Fundeb, ações do SUS (sobretudo na atenção básica), o Bolsa Família, as cotas sociais nas universidades, entre outras, foram medidas muito bem-sucedidas. Os indicadores sociais melhoraram bastante quando comparados à realidade da ditadura. O combate à desigualdade, no entanto, ainda tem muitos problemas. A qualidade da escola pública deixa a desejar, os mais pobres têm enorme dificuldade de marcar exames na rede de saúde e a população da periferia ainda sofre com as más condições habitacionais, de locomoção, acesso à cultura e, o mais importante, segurança. Vale ressaltar que a violência é um dos retratos mais fortes da desigualdade no Brasil: são os jovens negros os que mais sofrem com essa situação.

A luta contra a desigualdade não se resumiu às políticas sociais. Foram ampliados os direitos civis em medidas como o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso e o Código de Defesa do Consumidor. Aumentou-se a igualdade também no campo dos direitos políticos, algo que começou ainda no governo Sarney com a permissão do voto ao analfabeto. Todas essas legislações, ademais, abriram as portas para que diversos grupos historicamente desfavorecidos buscassem seus direitos, incluindo aí demandas comos a da população indígena, das organizações LGBT e dos movimentos negro e feminista.

Mesmo com tais avanços, permaneceram regras e lógicas que garantiam privilégios a determinados grupos. Isso vale para o corporativismo do setor público, para benesses tributárias ou de crédito a empresas e, ainda, para forma como a população negra e pobre é tratada por parte do Estado brasileiro. De todo modo, a agenda da desigualdade foi predominante e teve bons resultados se levarmos em conta a profunda tradição escravocrata do país.

É inegável que a desigualdade ainda se constitui no maior problema do país quando analisamos os dados do IBGE e de outras pesquisas sobre as condições de vida dos brasileiros. Mas a partir de 2013, exatamente num ponto em que o Brasil tinha avanços de duas décadas em prol da igualdade, houve uma mudança na visão de boa parte da sociedade. O tema da moralidade ganhou terreno, com a ideia, primeiro, de que se deveria tornar o combate à corrupção o tema número um da agenda pública, e, num segundo momento, num questionamento sobre políticas sociais e a intervenção do Estado em assuntos privados, que devem ser resolvidos pelos indivíduos, suas famílias e suas associações religiosas.

O moralismo como guia da ação política não é algo novo na política brasileira. A UDN fez isso por quase duas décadas e sua ação teve como desaguadouro um golpe civil-militar. O PT das décadas de 1980 e 1990 também cresceu por ter se colocado como o paladino da ética e a eleição de Lula em 2002 estava tão ligado a esse discurso quanto ao combate à desigualdade. O jacobinismo que se desenvolveu nas últimas três décadas em parcelas do Ministério Público tem nítido DNA petista.

As sucessivas crises de corrupção durante o período do PT no poder foram um dos estopins das jornadas de junho de 2013. Decerto que as demandas eram mais amplas e difusas, mas o mote vencedor foi o da luta contra um sistema político que estaria carcomido e que precisava de uma reforma moral. Neste contexto, a Operação Lava-Jato tornou-se o espírito de uma época. Suas ações atingiram fortemente o petismo e outros políticos que a ele se aliaram. A prisão de importantes membros da elite brasileira e a revelação de alguns episódios de corrupção convenceram uma boa parte da população que estaria nesta visão de mundo a solução para os problemas brasileiros.

O lavajatismo ainda é o espírito de nossa época, todavia, outros elementos de moralidade foram colocados nesta agenda. Primeiro, a defesa de uma visão mais conservadora em relação aos costumes. Neste sentido, é interessante como o MBL, que fora criado para levar adiante a bandeira do liberalismo, abraçou muito rapidamente a censura a uma exposição num museu paulistano. Foram menos liberais do que pensavam ser, mas conseguiram maior apoio social porque havia uma onda conservadora crescente.

A defesa desses valores mais conservadores veio junto com o ataque a políticas públicas que, em tese, favoreceriam visões contrárias à moralidade do brasileiro, enfraquecendo as famílias. Dessa perspectiva vem a Escola sem Partido, a proposta de abstinência sexual como instrumento de combate à gravidez precoce, o ataque às agendas identitárias e a proposta de reduzir a separação entre Igreja - no caso, as evangélicas - e o Estado. Se o ministro Moro é o líder do lavajatismo, Damares é a representante mais orgânica da agenda moral no campo dos costumes.

O bolsonarismo soube se apropriar dessas duas vertentes da moralidade na eleição de 2018, embora esteja bem mais próximo do damarismo do que do morismo - até porque, muitos bolsonaristas participaram do patrimonialismo corrupto que dizem combater. Vários fatores explicam a vitória de Bolsonaro, mas com certeza no topo está a capacidade de abraçar e representar essa nova agenda moralizante, que em boa medida está guiando o governo contra o antigo predomínio da visão de combate à desigualdade.

Vale ressaltar outro ponto que o bolsonarismo acrescentou à essa nova agenda. Trata-se de uma defesa de uma ampla liberdade individual contra o “discurso vitimista” que, para os bolsonaristas, orientava a agenda de combate à desigualdade. Por esta lógica, Bolsonaro defende o uso amplo das armas, uma forte desregulamentação do trânsito, uma visão cultural contra o politicamente correto e o apoio às forças de segurança contra a bandidagem - voltamos aqui à Primeira República, quando a questão social era antes de tudo uma questão de polícia.

Bolsonaro acredita estar do lado do cidadão comum, que nas últimas décadas viu seu modelo tradicional de vida ser questionado. Neste sentido, seria preciso restituir a antiga moralidade, com a família, a religião e os papéis sociais de gênero bem definidos. É essa agenda, e não o liberalismo, o carro-chefe do governo.

A redução da relevância da agenda da desigualdade já está muito clara. O desastre da política educacional, o péssimo tratamento dos que buscaram seus direitos previdenciários ou o Bolsa Família nos últimos meses, o incentivo à visão de que talvez os mais pobres tenham de morrer para se combater a violência e mesmo o liberalismo de Guedes - que já disse não ter a desigualdade no centro de suas preocupações - são sinais evidentes da vitória da concepção moralista ao estilo Bolsonaro, por ora com o apoio silencioso do lavajatismo.

Tão ruim quanto o enfraquecimento das políticas de combate à desigualdade, o que piorará a vida da maioria da população brasileira, é a polarização entre o discurso pelo social e a proposta de moralização da vida pública brasileira. A republicanização do Estado é peça-chave para qualquer projeto de modernização, do mesmo modo que é preciso entender a lógica das famílias pobres da periferia que optaram em 2018 pelo conservadorismo. Por isso, se um amplo arco que vai do centro à esquerda quer mesmo lutar contra os retrocessos crescentes, ele terá de mostrar como o combate à desigualdade pode não só se casar, mas ser o alicerce de uma nova ética pública.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP


Claudia Safatle: Amazônia passa ao topo da agenda do governo

Ministro promete debater regulamentação da mineração em terra indígena

Foi do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, a ideia de se criar, no governo, uma coordenação para as políticas de desenvolvimento e preservação ambiental da Amazônia. Esta seria a resposta inicial à opinião pública e às pressões de investidores internacionais. Segundo relato de Salles, ele conversou com o presidente Jair Bolsonaro na segunda-feira da semana passada e disse que gostaria de levar o tema Amazônia para ser discutido na reunião ministerial convocada para o dia seguinte, terça-feira, no Palácio da Alvorada.

O argumento do ministro fazia todo sentido, já que o assunto é de grande complexidade e envolve vários ministérios, não sendo suficiente, portanto, a atuação da pasta do Meio Ambiente. A coordenação também não poderia ficar em suas mãos, pois deveria vir de uma instância superior para que os demais ministros envolvidos no assunto a ela se submetessem.

A agenda da bioeconomia é uma interação entre o que faz o MMA e o Ministério da Economia. A fiscalização é feita por Ibama e ICMbio (Instituto Chico Mendes) em complemento com a Força Nacional de Segurança do Ministério da Justiça. O monitoramento é da alçada do Ministério da Defesa e de parte do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), do Ministério da Ciência e Tecnologia. Tem ainda a área de regularização fundiária, que é da competência do Incra, no Ministério da Agricultura.

Diante da gravidade da questão ambiental, cuja negligência incendiou a opinião pública internacional e já afeta os fluxos de capitais externos para o país, não se trata de dar uma resposta de marketing. “É preciso construir uma solução para o problema da Amazônia”, avalia o ministro.

“Estamos falando da região mais rica em recursos naturais do país e com o pior Índice de Desenvolvimento Humano [IDH]”, salienta o ministro do Meio Ambiente. Ela é do tamanho de 16 países europeus - corresponde à área que vai de Portugal à Polônia - e lá vivem 20 milhões de brasileiros que não têm nenhuma atividade econômica que lhes empregue.

“Se não criarmos alternativas eles vão cortar árvores ou minerar. Foi nesse sentido que o Paulo Guedes [ministro da Economia] disse, em Davos, que o maior inimigo do ambiente é a pobreza. A falta de perspectiva de renda é que faz essas pessoas serem cooptadas por atividades ilegais”, diz.

O natural seria criar uma área de coordenação na Casa Civil, mas antes mesmo de Salles, na reunião, verbalizar essa ideia o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, sugeriu:

“Por que não convidamos o general Mourão [vice-presidente Hamilton Mourão], que comandou a Amazônia, para fazer esse trabalho?”.
Bolsonaro concordou e pouco depois colocou no seu Twitter a decisão de criar o Conselho da Amazônia e a Força Nacional Ambiental, sob o comando de Mourão. Salles, como autor da iniciativa, não se sentiu enfraquecido.

Para compor a Força Ambiental, o procedimento será igual ao da Força Nacional de Segurança. O Ministério da Justiça deverá disparar ofício para as secretarias de Segurança dos Estados pedindo para que disponibilizem determinado número de policiais especializados em meio ambiente. Os governos estaduais enviam suas tropas e arcam com os salários e a Força Nacional os remunera com diárias e lhes fornece equipamentos, logística e alimentação.

A missão é específica, por exemplo, uma operação de 30 dias no Pará. Encerrada a tarefa, os policiais voltam para os seus Estados.

Ao mesmo tempo as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), com a atuação das Forças Armadas, devem continuar e a expectativa é que neste ano elas durem de março a outubro, cobrindo, assim, todo o período da seca na região, quando ocorrem as queimadas ilegais.

O comando da Força Nacional Ambiental será dividido entre as pastas da Justica e do Meio Ambiente, com base na estratégia de atuação definida pelo Conselho da Amazônia.

A política de defesa da Amazônia deve ser feita com base em cinco pilares, defende Salles. São eles: a regularização fundiária, os pagamentos por serviços ambientais, o zoneamento econômico ecológico - um plano diretor que identifique territorialmente as potencialidades e as fragilidades da floresta -, a bioeconomia e o comando e controle.

O ministro defende, também, a regulamentação da mineração em terras indígenas. Em dezembro de 2018, segundo ele, a Agência Nacional de Mineração identificava mais de 870 pontos de mineração ilegal conhecidos. “Não foi uma boa política pública adotar a regra do ‘faz de conta’ que não pode minerar na Amazônia ou nas terras indígenas. Eles vão minerar”, diz.

Ele conta que esteve na reserva indígena Roosevelt, em Rondônia, onde há mineração de cassiterita. Assim que o helicóptero do Ibama, que o levava, pousou, as pessoas correram para o mato. Aos poucos elas começaram a voltar. Primeiro as crianças, depois as mulheres, depois os mais velhos e por fim o cacique.

“Conversa daqui e dali, eu falei para o cacique: ‘O senhor sabe que nós vamos destruir os equipamentos aqui’. Ele respondeu: ‘Pode destruir. Na semana que vem está tudo aqui. Nós tiramos R$ 70 mil por semana e na semana que vem já compramos tudo de novo’.”
Salles garantiu que o governo vai regulamentar a atividade mineradora na região. “Colocaremos parâmetros restritivos, porém aceitáveis, de forma que eles possam sobreviver. Será uma política pública realista.”

O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, está concluindo uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que deverá estabelecer que até 3% ou 5% do território poderá ser objeto de licenciamento para exploração.

O argumento do ministro é de que não é possível fazer de conta que não existe uma pressão legítima dos povos da floresta para explorar aquele território onde há grandes reservas de cassiterita, de ouro, nióbio. “Vamos discutir a regulamentação. É só quebrar o preconceito do debate”, conclui.

*Claudia Safatle é diretora adjunta de Redação


Ribamar Oliveira: Parlamentarismo orçamentário

Agora, é o ministro que vai atrás do parlamentar

O Congresso criou, nos últimos anos, o que já está sendo chamado na área técnica de “parlamentarismo orçamentário”. Além de toda a peça orçamentária ter se tornado impositiva, mais de 50% dos investimentos da União foram alocados no Orçamento de 2020 por meio de emendas parlamentares. Isto significa que deputados e senadores vão dizer, neste ano, na maioria dos casos, onde e em que obras as verbas serão gastas.

A nova realidade orçamentária abrirá a primeira crise entre o governo Jair Bolsonaro e o Congresso Nacional neste início de ano legislativo. Já está negociada pelas principais lideranças da Câmara dos Deputados e do Senado a derrubada do veto do presidente da República ao artigo 64-A da lei 13.957, que alterou a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), válida para 2020.

A lei 13.957 torna obrigatória as emendas ao Orçamento feitas pelas comissões do Senado e da Câmara e pelo relator-geral. O artigo 64-A, motivo da disputa entre Executivo e o Congresso, determina que a execução das programações das emendas deverá observar as indicações de beneficiários e a ordem de prioridades feitas pelos respectivos autores.

Traduzindo o economês, o parlamentar é que vai indicar o órgão para onde os recursos de suas emendas serão destinados, as obras ou serviços que serão realizados e, em caso de contingenciamento das dotações orçamentárias, qual é a ordem de prioridade. O parlamentar será, portanto, o verdadeiro gestor do recurso orçamentário.

Além disso, o artigo vetado pelo presidente determina que o governo, ao fazer o contingenciamento das dotações orçamentárias, reduza as emendas feitas pelas comissões do Senado e da Câmara e pelo relator-geral na mesma proporção das demais despesas. Bolsonaro vetou dispositivos que darão efetivo controle sobre a execução das emendas parlamentares aos seus autores.

Na mensagem do veto, o presidente argumenta que o dispositivo proposto pelos parlamentares é contrário ao interesse público, pois “é incompatível com a complexidade operacional do procedimento estabelecer que as indicações e priorizações das programações com identificador de resultado primário derivado de emendas sejam feitas pelos respectivos autores”. É muito provável que Bolsonaro perderá nesta questão, pois o artigo vetado tem o apoio dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Os deputados e senadores não abrem mão de gerir suas emendas e da proporcionalidade no contingenciamento.

As emendas parlamentares ao Orçamento deste ano somam R$ 48,5 bilhões - um recorde histórico. Do total, R$ 9,4 bilhões são de emendas individuais, R$ 8,2 bilhões, de emendas de bancadas estaduais, e R$ 687,3 milhões, de comissões. Só o relator-geral do Orçamento, Domingos Neto (PSD-CE), apresentou emendas no total de R$ 30,1 bilhões (ver tabela abaixo). Do total das emendas parlamentares, R$ 23,8 bilhões foram destinados aos investimentos, que estão programados em R$ 41 bilhões para este ano.

Com a derrubada do veto, os parlamentares passarão a gerir, diretamente, mais da metade dos investimentos da União. Na prática, isto significa que serão eles que dirão aos ministros de cada área onde deverão aplicar os recursos orçamentários. Irão escolher a obra e definir prioridades. Toda a lógica orçamentária que predominou até agora será alterada.

Era comum encontrar deputados e senadores nos gabinetes de autoridades, às vezes sem conseguir serem recebidos, com pedidos para que os recursos das emendas fossem liberados e que a destinação ocorresse para as obras que desejavam. As solicitações eram atendidas, muitas vezes, depois de assegurados os votos favoráveis a projetos de lei de interesse do Executivo.

A partir deste ano, serão os ministros que terão que procurar os deputados e senadores para que eles destinem suas emendas para as obras que o governo considera prioritárias. Os encontros de ministros com parlamentares com esse objetivo já começaram.

“Agora, é o ministro que está indo atrás do parlamentar”, sintetizou um líder partidário, em conversa com o Valor.

Mesmo que o veto do presidente não seja derrubado, o artigo quarto da lei orçamentária deste ano (lei 13.978/2020) proíbe, em seu parágrafo 7º, o cancelamento de valores incluídos ou acrescidos no Orçamento por emendas parlamentares. Tudo terá que ser feito com a concordância ou sugestão do autor da emenda.

A emenda constitucional 100 estabelece que é um dever da administração executar as programações orçamentárias. A emenda 102 esclarece que a execução obrigatória se aplica exclusivamente às despesas primárias discricionárias, que são, justamente, os alvos das emendas parlamentares.

Nas próximas semanas, o governo deverá editar o primeiro decreto de programação orçamentária e financeira do Tesouro neste ano, com um contingenciamento das dotações. Neste documento, saberemos como o governo entendeu a impositividade das emendas parlamentares.


Maria Cristina Fernandes: Pressão sobre o MEC contamina federação

Escolha do substituto de Weintraub definirá, em grande parte, se, no segundo ano de governo, Bolsonaro optará por fazer entregas ou se continuará a fazer muito barulho por nada

O desastre do Enem deu clamor nacional ao epicentro da crise que abrirá o ano legislativo. Se o país está na contagem regressiva para a saída do ministro Abraham Weintraub, é o comando do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que mais inquieta os parlamentares.

É lá que está o cofre do MEC. Tirando a folha de salários da Pasta, o resto passa pelo FNDE, do ônibus escolar à compra de laptops. O orçamento deste ano é de R$ 30 bilhões, o que o equipara ao do Bolsa Família. Seu comando é mais volátil do que o do MEC. Teve três titulares ao longo do primeiro ano do governo Jair Bolsonaro. O primeiro foi um professor da FGV, indicado por militares. Às vésperas da aprovação da reforma da Previdência, o condomínio DEM/PP emplacou um ex-presidente da Funasa, o “ministério que fura poço”, da gestão Michel Temer, e próximo tanto do secretário de Transportes Metropolitanos do governo de São Paulo, Alexandre Baldy (PP) quanto do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM).

Maia, Guedes e governadores contra Weintraub
Na última semana do ano, Weintraub mexeu de novo. Colocou no comando uma das diretoras do fundo, concursada do MEC. A troca azedou o Natal de muita gente no Congresso. O FNDE sempre foi domínio do DEM. O balcão foi derrubado na gestão petista mas acabou remontado nos achaques que marcaram a trepidante segunda gestão de Dilma Rousseff.

O gabinete do presidente do FNDE é um dos mais procurados pelas caravanas de prefeitos em Brasília e pelos parlamentares que os ciceroneiam. Juntos, destravam tanto verbas de municípios bloqueados por erros nas prestações de contas quanto de outros que mantêm redes viciadas de fornecedores de merenda ou uniforme escolares. Weintraub espicaçou ambos ao entregar, durante o recesso, ônibus escolares viabilizados por emendas parlamentares de anos atrás sem avisar aos seus autores.

À pinimba política, some-se a inépcia administrativa de uma Pasta que não consegue gastar. No ano passado, o MEC acumulou o maior volume de restos a pagar desde 2013. A contenção em nada angariou simpatia por sua permanência no Ministério da Economia. Na véspera da divulgação do vídeo nazista do ex-ministro da Cultura, Weintraub anunciou um reajuste de 13% nos vencimentos de professores da rede pública. Enfureceu governadores e prefeitos, pela pressão sobre a maior fatia de sua folha de pagamentos, e confrontou preceitos de duas propostas do governo federal - uma, já em tramitação (PEC Emergencial), que prevê uma redução de R$ 6 bilhões nos gastos do funcionalismo público, e a reforma administrativa.

A decisão do ministro incendiará o debate sobre o Fundeb no reinício dos trabalhos legislativos. O fundo, que financia os gastos com educação, expira em dezembro de 2020. O Tesouro Nacional tem 10% de participação no bolo. Há parlamentares que querem renová-lo com um aumento de até 40%.

O Ministério da Economia propõe 15% mas será obrigado a aumentar esse percentual para que prefeitos e governadores, que se reúnem em fevereiro para debater o tema, possam abrigar o aumento salarial decretado por Weintraub. O titular do MEC não tem domínio da língua portuguesa mas demonstrou ser capaz de afundar um dos axiomas do bolsonarismo, o de que se trata de um governo liberal na economia e retrógrado nos costumes.

Na mira do Congresso, do Ministério da Economia, de prefeitos e de governadores, o ministro acresceu, à sua ficha corrida, a barbeiragem do Enem - a maior da história do exame, na avaliação de Priscila Cruz, do Todos pela Educação, não apenas pelo número de alunos envolvidos como por ter atingido o coração do sistema de avaliação do ensino público. Ao contrário de problemas anteriores, de vazamento e roubo de provas, o deste ano não se verificou na aplicação da prova, mas na confiabilidade dos resultados. O erro não se limitou ao processamento do gabarito. Passou batido pelo sistema de checagem da instância responsável, o Inep, e só ganhou o mundo pela denúncia dos alunos prejudicados em redes sociais.

Com Damares Alves (Direitos Humanos), Ernesto Araújo (Itamaraty) e os titulares da Cultura até Regina Duarte, Weintraub integra a quadra de animadores de auditório olavistas da Esplanada que movimenta a gigantesca rede virtual de apoio ao presidente da República nas redes sociais. A despeito do conjunto da obra, #FicaWeintraub disputa a liderança no Twitter.

Se tirar apenas o ministro, o presidente desgostará seu exército virtual. Vem daí a ideia de que o titular do MEC integraria o time a ser trocado depois do carnaval. Sua saída não resolve o imbróglio de sua substituição, indissociável da solução para o FNDE. A ideia de manter um escolhido dos aloprados virtuais para o MEC e um indicado do Centrão para o fundo não contempla as ansiedades da federação ou da Economia.

Se der ouvidos a Paulo Guedes, por outro lado, o presidente corre o risco de ver a Educação tomada pelas ideias expostas pelo ministro em Davos, quando se propôs a resolver o problema da desigualdade no Brasil distribuindo vouchers para as famílias com crianças em idade pré-escolar. Como não há um sistema nacional de avaliação na pré-escola, a proposta arrisca-se a disseminar uma prestação de serviços que não poderá ser aferida e ainda deixa de contemplar a oferta de vagas onde o mercado está ausente.

O calendário eleitoral pressiona a escolha. Creche é pule de dez no debate municipal. As 3 mil creches paradas por falta de repasses federais, segundo o TCU, já teriam suprimido em R$ 3 bilhões da renda de famílias pobres. Uma coisa é Bolsonaro não entrar na disputa eleitoral de outubro para não ser obrigado a carregar o ônus de derrotado. Outra é deixar um flanco aberto para sair dela como vilão de um debate que deixará explícita a precariedade da infraestrutura municipal para populações mais vulneráveis.

A escolha do substituto de Weintraub definirá, em grande parte, se, no segundo ano de seu governo, o presidente da República optará por entregar ou se continuará a fazer muito barulho por nada.


Fernando Exman: Nova dinâmica para ações na Amazônia

Tema ganha peso em debates econômicos e cenários eleitorais

Levou pouco mais de um ano, mas finalmente uma visão mais pragmática em relação à Amazônia começa a ganhar espaço no governo.

Dependendo do edifício da Esplanada dos Ministérios ou do gabinete do Palácio do Planalto em que se entra, a abordagem sobre a Amazônia é diferente. Interesses e prioridades divergem, num jogo de poder comum na capital federal. Nesta administração, as primeiras vítimas da área ambiental foram as estatísticas sobre desmatamento e estudos sobre o aquecimento global.

Por vezes, o debate sobre os possíveis modelos de desenvolvimento da região amazônica não se tornou público. Em outros casos, ocorreram cenas explícitas de insegurança jurídica, como quando o governo enviou sinais trocados sobre incentivos fiscais para a Zona Franca de Manaus.

Na semana passada, contudo, o presidente Jair Bolsonaro anunciou sua decisão de alinhar as diretrizes e unificar o discurso. Criou o Conselho da Amazônia, que será coordenado pelo vice-presidente Hamilton Mourão, e a Força Nacional Ambiental.

O anúncio foi precedido de uma reformulação do Programa Calha Norte, que visa o desenvolvimento sustentável da região e está sob responsabilidade do Ministério da Defesa. Logo na sequência, o Ministério do Meio Ambiente revelou ao Valor sua disposição de instalar uma secretaria ou pelo menos um escritório em Manaus. Mas não demorou para que uma das razões da preocupação do governo ficasse mais clara: também ao Valor o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, afirmou que o tema ambiental já afeta os fluxos financeiros.

Em um cenário de restrição fiscal, é prudente encarar a realidade e se adaptar a ela.

Com seu anúncio, o presidente Jair Bolsonaro fez um movimento político divalente. Mandou um recado para dentro e outro para fora do governo. Deixou evidente a importância que o novo colegiado terá no organograma administrativo do governo, apesar do relacionamento atribulado mantido com seu vice desde a campanha eleitoral. E ao mesmo tempo deu uma resposta aos mercados sobre a prioridade que a agenda deve ganhar a partir do segundo ano do mandato.

Se bem sucedido, o plano ajudará a melhorar a desgastada imagem do Brasil no exterior e garantirá maior velocidade à implementação de medidas que coloquem a região amazônica na trilha de um desenvolvimento econômico e social duradouro, mas também sustentável do ponto de vista ambiental.

A escassez de notícias durante o recesso parlamentar ajudou a reverberar o anúncio presidencial, que neste primeiro momento cumpriu seu papel de reposicionar o governo brasileiro num debate que vem ganhando também cada vez mais apelo eleitoral. A situação, contudo, pode mudar com o esclarecimento de como o plano será executado.

O formato de funcionamento e a capacidade operacional do Conselho da Amazônia ainda são incertos. Sabe-se que o colegiado regido por Mourão coordenará políticas públicas atualmente sob a responsabilidade de diversos ministérios, como Meio Ambiente, Defesa, Desenvolvimento Regional, Infraestrutura, Agricultura e Justiça.

Também já estão à mesa alguns dos desafios prioritários e os gargalos identificados pelas autoridades federais, muitos deles históricos e com soluções que dependem de medidas transversais. O governo Bolsonaro quer, por exemplo, aumentar a capacidade do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), dar celeridade às obras de infraestrutura que interliguem a região ao restante do território nacional.

A autonomia de abastecimento de energia elétrica da Amazônia também preocupa o presidentes e seus auxiliares. Defende-se, no governo, a necessidade de aumento da capacidade local de geração própria de energia seja por meio de hidrelétricas ou por energia solar, além da redução da participação das usinas térmicas na matriz.
Integrantes do Executivo também querem promover a piscicultura na região amazônica, com a capacitação das comunidades locais pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e das Emater (empresas de Assistência Técnica e Extensão Rural).

Apesar de esperar resistências do Congresso e de segmentos da sociedade civil organizada, o governo não retirou de seu radar a regulamentação da mineração em terras indígenas. Citando um exemplo, os defensores da ideia argumentam que a exploração de potássio reduziria a dependência brasileira de fertilizantes importados e poderia criar oportunidades para produtores de uma mercadoria estratégica e de valor agregado na própria Zona Franca de Manaus.

O papel da ZFM será certamente debatido pelo conselho. Apesar de o vocábulo “subsídio” ter se tornado um palavrão no Ministério da Economia, em outras alas do governo se pondera que o peso da Zona Franca no cálculo total dos incentivos fiscais é pequeno e ela desempenha papel central na política de ocupação, defesa e desenvolvimento da Amazônia.

Outras preocupações do governo são o combate ao narcotráfico e à presença de facções criminosas na região. Uma outra prioridade deve ser o desenvolvimento social e a oferta de melhores serviços públicos aos habitantes de uma região que sempre foi alvo da cobiça internacional e tem em sua história a Cabanagem. A revolta popular é vista como prova dos riscos que corre o poder central ao virar as costas a esta parte do país.

Governantes dos Estados amazônicos já perceberam que a floresta em pé lhes garante um tratamento diferenciado nos fóruns internacionais e na interlocução com outros países. Alguns deles têm, inclusive, projetos políticos nacionais que podem atravessar os interesses de Bolsonaro já a curto prazo.

Outros pré-candidatos a presidente da República também já modulam seus discursos para a região e sobre a região. O governo criou uma oportunidade para sair da armadilha de tratar a agenda amazônica apenas como parte de sua luta ideológica contra a esquerda.


Cristiano Romero: A estagnação brasileira

País mostra que não superou modelo falido de 1982

Um olhar sobre a trajetória da economia brasileira nas últimas quatro décadas, quando o ritmo de crescimento caiu para um patamar bem inferior ao registrado nas décadas anteriores, mostra que, muito provavelmente, o país ainda não acabou de desmontar o modelo de desenvolvimento que faliu em 1982. Naquele ano, por causa da elevação da taxa de juros nos Estados Unidos a inacreditáveis 20% ao ano, países em desenvolvimento, como o Brasil, que se endividaram na década de 1970 simplesmente quebraram.

Em vez de reconhecer o fato de que, dali em diante, o modelo de Estado-empresário e de substituição de importações não teria mais como ser mantido por causa da enorme e abrupta restrição fiscal e creditícia surgida em 1982, os governantes optaram, nos anos seguintes, principalmente durante o governo Sarney (1985-1990), por insistir na salvação do que não tinha mais como dar certo.

A extensão do modelo de forte intervenção do Estado na economia e de fechamento comercial criou dificuldades que visivelmente até hoje impedem o país de voltar a crescer de acordo com seu potencial histórico. A insistência, ademais, permitiu que os setores da sociedade beneficiados por aquele regime econômico - a burocracia estatal e a indústria - se organizassem e reagissem a mudanças. A fatura do atraso - a escalada permanente dos preços a níveis crônicos e depois hiperinflacionários - foi paga por todos, mas especialmente pelos pobres, de quem o chamado “imposto inflacionário” mais retira renda.

Crises econômicas costumam ser semeadas durante períodos de bonança, quando cidadãos e empresas perdem a noção do risco ao acreditar que o ciclo econômico em que estão jamais acabará. A explosão do preço do petróleo no início da década de 1970 elevou a níveis impensáveis a liquidez mundial. A derrama de “petrodólares” derrubou fortemente as taxas de juros cobradas pelos bancos internacionais. Ato contínuo, essas instituições ofereceram crédito a um custo muito baixo a países como o Brasil, que, sendo estruturalmente uma economia importadora de capitais, foi à banca buscar esses recursos.

O país terminara a década de 1960 com dívida externa em torno de US$ 6 bilhões. Dez anos depois, graças ao funding dos “petrodólares”, essa dívida saltou para algo próximo de US$ 100 bilhões. O Brasil precisava desse dinheiro? Não se tenha dúvida. Foi isso que permitiu promover um ambicioso investimento em infraestrutura, absolutamente necessário para uma economia que, naquele momento, crescia acima de 10% ao ano, o ritmo mais veloz do planeta.

Com o dinheiro da dívida externa, o país criou um sistema elétrico integrado nacionalmente, expandiu fortemente a capacidade geradora de energia, implantou um sistema de telefonia federal razoavelmente moderno, construiu rodovias federais cortando praticamente todo o território, inspiradas no modelo americano, ampliou aeroportos, ferrovias etc. A crença de que a dívida seria honrada se baseava na percepção, correta, de que, como a economia avançava num ritmo veloz, não faltariam receitas para pagar os débitos.

O problema é que as taxas de juros, embora baixas, eram flutuantes. Como a segunda crise do petróleo, em 1979, provocou nova escalada nos preços dos combustíveis, a inflação americana assanhou-se, chegando a atingir mais de 20% A reação do Federal Reserve (Fed) foi a que se espera de um banco central independente: elevar a taxa de juros para conter a demanda e, consequentemente, os preços. A pancada no custo do dinheiro bateu nos juros flutuantes das dívidas dos países do chamado Terceiro Mundo e então a quebradeira foi generalizada.

Na reunião anual do Fundo Monetário Internacional (FMI), o “pobre México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos” - na célebre frase de um de seus ex-presidentes, Porfirio Díaz - foi o primeiro a se declarar incapaz de honrar os vencimentos das dívidas contraídas na década anterior. Na sequência, outras economias fizeram o mesmo, generalizando o calote e iniciando um período terrível de nossa história econômica, marcado pela falta de acesso a poupança externa para financiar nosso desenvolvimento.

Os calotes se sucederam, o país foi obrigado a promover maxidesvalorizações de sua moeda frente ao dólar para elevar a competitividade das exportações e, assim, gerar saldos positivos na balança comercial, suficientes para pagar os vencimentos da dívida externa. Numa decisão drástica, o Banco Central centralizou o câmbio - basicamente, passou a definir a quem pagaria a dívida lá fora, uma vez que não havia divisas para pagar a todos.

As consequências vieram em forma de mais inflação, arrocho salarial, imprevisibilidade dos principais indicadores econômicos, enfim, uma situação que apenas os brasileiros com mais de 40 anos hoje viveram na pele. E, a partir dali, sem acesso a poupança externa e com inflação fora de controle, a taxa média de crescimento caiu a níveis nunca vistos nas três décadas anteriores.

Olhemos os números: da primeira década do século XX até a década de 1970, o Brasil cresceu a uma taxa média anual de 4,6%; de 1971 a 1980, esse ritmo saltou para 8,8%; na década de 1980, a taxa média de expansão recuou para 3%; na década de 1990, caiu para 1,8%; nos primeiros dez anos deste século, aumentou para 3,4% ao ano; na última década, a década perdida do novo século, o crescimento anual médio da economia brasileira foi de apenas 1,4%, a menor das 12 décadas desde 1900.

“Muita gente continua falando da recessão que acabou, mas alguns ignoram que estamos ainda numa depressão e, mais ainda, que estamos numa estagnação que acaba de completar quatro décadas”, diz o economista Roberto Macedo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. “Essa grave estagnação não vem sendo pautada pela mídia e tampouco está na pauta dos políticos. Meu objetivo é fazer com que cresça a percepção dessa tragédia, com a esperança de que venham ações para saná-la. É humilhante o fato de que a década passada foi a de pior desempenho do PIB desde 1901.”


Andrea Jubé: O troca-troca no governo Bolsonaro

Cresce pressão pela substituição de Gustavo Canuto

O presidente Jair Bolsonaro foi aconselhado a aproveitar a nomeação da atriz Regina Duarte para a Secretaria de Cultura para deflagrar mudanças no primeiro escalão que são cogitadas há meses.

É essa a expectativa para o desembarque de Bolsonaro hoje em Brasília, após a viagem à Índia, que está causando frisson (para citar Tunai, morto na última semana) entre autoridades e políticos influentes na Esplanada.

Muito além da controversa recriação do Ministério da Segurança Pública, que induz ao confronto direto com o superministro Sergio Moro, evoluíram nos bastidores articulações para substituir os ministros do Desenvolvimento Regional, Gustavo Canuto, e da Educação, Abraham Weintraub.

Bolsonaro é avesso a mudanças. Em dezembro, disse que não faria reforma ministerial. “No meu governo não tem troca-troca”. Mas o risco de uma septicemia na área educacional e de novas crises com o Congresso em ano de reformas o obrigam a refletir.

Uma fonte do governo ressalva que não se cogita uma “reforma ministerial”, mas o que se chama nos bastidores de “freio de arrumação” para recolocar áreas estratégicas nos trilhos, como a Educação, e afinar a relação com parlamentares, já que o Desenvolvimento Regional abriga os programas de maior apelo eleitoral, depois do Bolsa Família.

Em dezembro, em uma reunião com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), Bolsonaro afirmou que estava disposto a substituir Canuto, segundo relato de uma fonte do DEM. O sucessor seria um nome avalizado pelo Centrão (DEM, MDB, PP, PL, SD, Republicanos), que comandou a pasta em gestões anteriores.

Em ano de eleições municipais, com o Congresso esvaziado a partir de junho, interessa ao presidente aparar as arestas com os parlamentares para garantir, senão a aprovação, o avanço das reformas no Legislativo: tributária, administrativa e três emendas constitucionais (PECs): emergencial, do pacto federativo e dos fundos infraconstitucionais.

O Desenvolvimento Regional - que veio da fusão da Integração Nacional e Cidades - é um dos mais cobiçados da Esplanada. Com orçamento de R$ 14 bilhões, pilota políticas de forte apelo popular, como o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), e estratégicas para o Nordeste, por meio da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), que destina recursos para prefeituras da região e do norte de Minas Gerais.

No fim do ano, cresceu a insatisfação no Planalto com Canuto. Bolsonaro ficou contrariado porque o ministro autorizou a execução de emendas extraorçamentárias - recursos transferidos às prefeituras indicadas pelos parlamentares - à revelia do palácio.

Paralelamente, o ministro enfrenta a resistência da equipe econômica. O ministro Paulo Guedes torce o nariz para o projeto de Canuto de instituir vouchers no MCMV para a compra ou reforma de moradias populares.

Nessa conjuntura adversa, Canuto ainda entra em rota de colisão com os parlamentares ao tentar retirar das prefeituras a condução do processo de seleção dos beneficiários, transferindo-a ao Ministério da Cidadania.

Uma mudança dramática em pleno ano de disputa municipal porque as prefeituras compartilham a atribuição com os governos estaduais, que cedem terrenos ou fornecem equipamentos para os complexos habitacionais.

Está em jogo o poder de prefeitos, governadores e parlamentares de influir na disputa por meio do programa.

Embora associado ao governador do Pará, Hélder Barbalho (MDB), de quem foi secretário-executivo na Integração Nacional, Canuto é considerado um quadro técnico. Engenheiro, bacharel em Direito e funcionário público de carreira, foi escolhido após se destacar no governo de transição.

Enquanto ele permanece na cadeira, políticos influentes que no passado indicava o titular de seu posto, acomodaram apadrinhados em postos-chave na Codevasf.

O diretor-presidente do órgão, Marcelo Medeiros, foi indicado pela cúpula do DEM. O líder do partido, deputado Elmar Nascimento (BA), emplacou o irmão, Elmo Nascimento, na Superintendência Regional em Juazeiro (BA).

O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), indicou Aurivalter Cordeiro para a superintendência em Petrolina (PE), sua base eleitoral. O presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), indicou o superintendente regional em Teresina, Inaldo Pereira, e o diretor de revitalização das bacias hidrográficas, Fábio Miranda.

A pressão pela substituição de Canuto remonta a maio do ano passado, em meio às tratativas pela votação da reforma da Previdência. A proposta era recuar da fusão e recriar as pastas das Cidades e da Integração. Os deputados chancelariam nome do ex-titular da pasta Alexandre Baldy para as Cidades. Aos senadores caberia a indicação de Fernando Bezerra para a Integração - ele comandou o ministério na gestão petista.

Bolsonaro confirmou a reunião com Rodrigo Maia e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), para tratar do tema, mas alegou que o pleito vinha das entidades representativas dos prefeitos. A opinião pública não engoliu a história e a articulação deu em água. Oito meses depois, voltou à pauta.

Weintraub está nas cordas há meses, mas a gravidade da crise implicando o processo de Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e a correção das provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) - ações de maior visibilidade da pasta - podem recair sobre ele com a força de um nocaute.

A Justiça Federal suspendeu a divulgação dos resultados do Sisu depois que o MEC reconheceu erro na correção do Enem. Weintraub disse que a falha afetou cerca de 6 mil candidatos. O episódio será explorado na volta do Congresso semana que vem.

No governo que “não tem troca-troca”, Bolsonaro fez quatro substituições em um ano: duas na Secretaria-Geral, uma na Secretaria de Governo e outra no MEC. Nada impede que novas trocas se avizinhem.