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César Felício: Céu de brigadeiro, horizonte distante

Bolsonaro quer ficar só e suas alianças são de curto prazo

Falar de 2022, para o presidente Jair Bolsonaro, é levar a discussão para uma zona de conforto. O presidente hoje - dois anos e oito meses antes do sufrágio - concretamente não tem adversários. A pesquisa divulgada ontem pelo site da revista “Veja”, realizada pela FSB com 2 mil entrevistas por telefone, é mais uma indicação neste sentido. Além de Bolsonaro liderar em todos os cenários em que é incluído, há um tanto de irrealismo em considerar como ameaças seus principais rivais.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, benzido pelo papa ou não, é inelegível, pelas normas da Lei da Ficha Limpa. O ministro da Justiça, Sergio Moro, por ora é um candidato a uma vaga no Supremo Tribunal Federal, não há elementos para se pensar o contrário. O apresentador Luciano Huck é só uma conjectura. Ciro, Haddad e Amoêdo são puro “recall”. E Doria é o último colocado em qualquer cenário testado.

O antibolsonarismo é uma força, basta olhar a rejeição ao presidente, que não é capitalizada por ninguém. Há um vácuo, um posto vazio no cockpit, e Bolsonaro dá suas voltas no circuito. Seu maior inimigo, no momento, é o tempo. Faltam 30 meses e a quantidade de variáveis que podem surgir inviabilizam qualquer projeção de favoritismo. No começo de 2015, mesma antecedência em relação ao pleito futuro que vivemos hoje, também era impossível divisar quem encarnaria o antipetismo.

Bolsonaro deu partida para seu plano de reeleição em 2022 redobrando a aposta na comunicação direta com seu público de estimação, sem se comprometer com nenhuma liderança intermediadora.

Nada mais irônico do que o nome que adotou para o partido que articula, o Aliança pelo Brasil. Não há aliança com ninguém. O partido que se ergue é uma mistura de uma estratégia jurídica e de operação de marketing. Quem encabeça a ação são os advogados Luis Paulo Belmonte, Admar Gonzaga e Karina Kufa, com a ajuda do publicitário Sérgio Lima. Não existem quadros fora da família Bolsonaro. Os integrantes da bancada do PSL que devem migrar para a sigla, como Carla Zambelli (SP), o príncipe Luiz Philippe (SP), Filipe Barros (PR), Carlos Jordy (RJ) e Daniel Silveira (RJ) são fenômenos da internet.

O empresário Paulo Skaf é a mais gritante exceção a este quadro, já que para ele parece reservada a vaga de candidato do bolsonarismo ao governo estadual em São Paulo. É o único aliancista que tem alguma força própria, não necessariamente eleitoral, para agregar ao presidente. No mais, as parcerias são operações de resgate a curto prazo, como a que se desenha agora para a prefeitura da capital. Os aliancistas cortejam o apresentador José Luiz Datena, mas essa é mais uma estratégia para chegar ao jornalista antes que outras forças políticas o façam. Um certo ceticismo permanece sobre a disposição de Datena em se candidatar. O que parece certo é que não interessa aos aliancistas patrocinar ninguém da direita pura e dura na eleição de São Paulo.

Não havendo Datena no horizonte, poderá até haver um pacto sutil entre o bolsonarismo e um nome de centro-esquerda, como o ex-governador Márcio França (PSB). Ele mesmo, o “Márcio Cuba”, como o acusou durante a campanha eleitoral João Doria. As pontes existem. Caso se concretize, será um movimento meramente tático. O que se busca é a derrota de Doria, de um modo que não fortaleça nem o PT, nem apoiadores futuros de Huck.

Um eventual sucesso de França - cenário atualmente pouco provável - seria especialmente amarga para o governador. Na campanha eleitoral de 2018 França foi um opositor público da privatização da Sabesp, a joia da coroa que Doria quer vender ainda em seu mandato. O principal ativo da Sabesp é o serviço de água e esgoto em São Paulo e o resultado da eleição municipal pode atrapalhar esta equação.

Passada a eleição, Bolsonaro se manteria no mesmo lugar em que está hoje, e Doria com suas pretensões seriamente comprometidas. Impedir o antagonista de crescer é a estratégia.

Guedes
Ficou nítido na manhã de ontem que há um descompasso entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Não apenas pareceu ter irritado o presidente o comentário desastroso de Guedes a respeito do suposto acesso que empregadas domésticas tiveram a viagens internacionais com o câmbio mais favorecido no passado, como também há indícios de visões diferentes em relação ao próprio desempenho da moeda brasileira. “Está um pouquinho alto o dólar”, disse o presidente cedo, durante o seu tradicional encontro com jornalistas na porta da Alvorada. Anteontem, em dia que o dólar teve sua quinta alta consecutiva e fechou a R$ 4,35, Guedes afirmou que a moeda americana estar em um patamar alto era “bom pra todo mundo”.

O ministro anda provocando problemas para Bolsonaro, o que não é habitual neste governo, mas não chega a ser inédito. A comparação de servidores públicos a parasitas, na semana passada, gerou um desgaste que ainda não se dissipou. O presidente foi obrigado agora a expor sua divergência com o ministro para dissociar a sua imagem à dele: “Pergunta para quem falou isso”, disse ao repórter que o abordou para repercutir a declaração do ministro na véspera. “Eu respondo pelos meus atos”, concluiu. A Bolsonaro pareceu melhor o risco de comentar sobre tema tão explosivo quanto o câmbio do que perder pontos junto a um eleitorado em que precisa avançar: o de pessoas de renda mais baixa que nos últimos anos tiveram alguma ascensão no padrão de consumo.

Na breve declaração, Bolsonaro frisou que não interfere na política cambial e de juros. Mas a simples menção ao tema já representa uma interferência. É curioso que, ao conversar com jornalistas, Bolsonaro tenha mencionado que “de vez em quando”, conversa com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. A instituição financeira anunciou 40 minutos depois desta declaração a venda de 20 mil contratos de swap cambial. O presidente entrou em um terreno perigoso ao comentar sobre o dólar e suas conversas com Campos Neto, mas a ação da autoridade monetária deixou patente que o erro original ao estimular especulações altistas partiu de Guedes na véspera.

*César Felício é editor de Política.


Fernando Luiz Abrucio: O desmonte do serviço público

Visão do governo Bolsonaro sobre a reforma administrativa está mais para o desmonte do que para a modernização do Estado em prol da cidadania

A democracia e o desenvolvimento dependem de um serviço público de qualidade e responsável perante a sociedade. Eis uma máxima da experiência internacional que abarca os países que combinam esses dois elementos. Mesmo com diferenças em alguns aspectos, vigora em todos eles um modelo baseado na profissionalização e responsabilização dos funcionários públicos. Se o Brasil almejar ser democrático e desenvolvido, precisa seguir esta trilha, o que vai significar fazer reformas em certas características da administração pública, sem que se perca o sentido nobre dessa função que, a despeito dos problemas existentes, tem sido essencial para melhorar a vida do país.

Mais uma vez, o Brasil realiza um daqueles debates estéreis baseados em visões dicotômicas de mundo. Não se deve nem defender um modelo meramente corporativista, e tampouco uma visão de que os funcionários públicos são uns parasitas. Qualquer ação nesse campo envolve um diagnóstico capaz de entender quais foram os avanços e os problemas que persistem.

Três elementos gerais podem ser destacados como marcas negativas na história do Estado brasileiro. O primeiro deles é o patrimonialismo. Esse fenômeno diz respeito à apropriação privada da coisa pública, podendo se manifestar na corrupção, na distribuição de empregos a amigos e parentes, bem como na criação de privilégios públicos a empresários ou categorias do funcionalismo público. A falta de transparência e de controles ajuda muito na manutenção desse modelo cartorial, que já se manifestou em governos de todos os espectros políticos, inclusive no atual, famoso por sua filhocracia.

A qualidade da gestão pública é outro tema relevante, envolvendo a capacidade de produzir melhores políticas públicas. Grande parte da máquina pública foi ineficiente ao longo da história, ao que se somava um sistema legal que aumentava os custos para a sociedade sem lhe dar os benefícios, como comprova a gigantesca legislação que procura regular todos os aspectos da vida dos cidadãos, favorecendo a pequena corrupção dos fiscais e os grupos que têm acesso privilegiado ao Estado.

Ter serviços públicos de qualidade não é, ressalte-se, apenas uma questão gerencial. Trata-se também de servir a quem mais precisa, num país cujas marcas da escravidão transformaram-se em desigualdade persistente no tempo. O problema é que a administração pública brasileira até 1988 não era para os pobres. Grande parte da população estava fora da escola e os hospitais só atendiam quem tinha carteira assinada.

O balanço das características gerais da administração pública tem como último elemento a democratização do Estado. Em poucas palavras, os cidadãos tinham pouco espaço para participar ou para fiscalizar as políticas públicas. E mesmo no caso de medidas embasadas por alguma modelagem técnica, prevalecia a tecnocracia, que decidia de cima para baixo e sem diálogo com a sociedade.
Mesmo com todos esses problemas, houve processos de modernização da gestão pública na trajetória do século XX, como a profissionalização iniciada por Vargas ou a criação de órgões extremamente inovadores e com grande impacto sobre os rumos do país, como a Embrapa, o Itamaraty e os escolas técnicas federais, para ficar só em alguns exemplos.

Além disso, houve importantes lideranças burocráticas que melhoraram o Estado em seu tempo, como foram os casos de Jesus Pereira Soares, Celso Furtado, Roberto Campos e Anisio Teixeira, novamente selecionando apenas alguns nomes de uma extensa lista que comprova que sem bons burocratas não há desenvolvimento e melhoria da sociedade.

Desde a Constituição de 1988, passando pela inovadora Reforma Bresser e ainda por uma série de inovações setoriais, a administração pública brasileira avançou bastante nos últimos 30 anos. Os serviços públicos chegaram aos cidadãos mais pobres, algo inédito na história do país. A palavra-chave aqui é universalização, no caso de escolas, de acesso à saúde, de renda básica para pessoas que vivem na pobreza, entre os principais direitos construídos a duras penas.

Claro que existe um longo caminho para melhorar a qualidade dos serviços públicos brasileiros. Só que não se pode esquecer que, sem ignorar os problemas, já há resultados em termos de indicadores sociais derivados dos novos equipamentos públicos, reduzindo a mortalidade infantil, aumentando a escolaridade e a expectativa de vida da população.

Parte disso veio de muitos funcionários públicos concursados, abnegados e anônimos, que garantem a vacinação da população ribeirinha da Amazônia e ensinam com prazer em áreas pobres e violentas, por vezes mudando a vida de crianças cujas famílias nunca sonharam em ter um filho com diploma.

A democratização completa esse ciclo de transformações da administração pública. Houve um avanço dos controles democráticos, por meio de conselhos de políticas públicas que se espalharam pelo país. Esse processo aproximou, em boa medida, os formuladores das políticas públicas dos reais beneficiários. Grupos que nunca tinham tido voz começaram a defender seus direitos - e efetivamente ganharam programas e acesso à dignidade cidadã.

Os avanços não mascaram os problemas da gestão pública do país. Um deles foi em grande medida resolvido no ano passado: o Brasil tinha um modelo de Previdência Pública completamente disparatado, muito distante do padrão existente nos países desenvolvidos. Certa vez, um especialista da Suécia, um país fortemente igualitário, me dissera num debate: “a Previdência Pública brasileira é uma homenagem à desigualdade”.

O capítulo da Previdência Pública ainda não acabou, porque falta resolvê-lo também nos Estados e, sobretudo, nos municípios. Há ainda uma agenda vinculada à questão dos recursos humanos que tem de ser enfrentada. Os salários iniciais das carreiras de Estado, especialmente no plano federal, são muito altos, com pouco avanço salarial ao longo de carreira, ao que se somam processos de promoção e benefícios por avaliações que são exemplos do pior corporativismo. Este caso não é só um problema fiscal, mas também de redução da motivação dos funcionários - se o rendimento inicial é próximo do final se reduz a disposição para melhorar - e de “accountability” perante a sociedade.

A ideia de avaliação e responsabilização do servidor público no Brasil ainda é uma quimera. O estágio probatório, cumprido nos primeiros anos de carreira, não serve para nada: nem para ensinar o novo funcionário nem para avaliar se ele deve continuar na administração pública. Depois disso, há pouquíssimas chances de servidores claramente incompetentes e inaptos serem demitidos. Na maior parte das democracias desenvolvidas, há processos muito bem estruturados de avaliação, com vários aspectos em questão (desempenho individual, coletivo, visão dos cidadãos, opinião dos pares etc.) e com grande direito de defesa para cada burocrata, e que levam regulamente à troca daqueles que não estão servindo bem à população. Isso é visto de forma natural e não como um escândalo e sequer como um “crime” do demitido.

Ao mesmo tempo que é preciso tornar a administração pública mais voltada para a melhoria do seu desempenho e para responder aos cidadãos, é igualmente necessário que as condições profissionais melhorem em parte do Estado brasileiro. Como mostram os rankings internacionais, professores ganham muito mal no Brasil. Faltam médicos nas áreas mais carentes do país. Funcionários do Incra, do Ibama e da Funai são cotidianamente ameaçados de morte, enquanto uma parcela de policiais militares brasileiros morre quando está fora do trabalho. Por isso, a precariedade precisa ser levada em conta quando se fala do funcionalismo em geral.

A fórmula ideal é ter um modelo de gestão pública que garanta a profissionalização do serviço público, combinando meritocracia e mecanismos de participação social, como também responsabilização e motivação dos servidores. Por esta razão, o que saiu até agora na imprensa sobre reforma administrativa, especialmente da discussão da Câmara, são temas importantes, mas que não abarcam todas as questões necessárias para a melhoria da administração pública.

Se é necessário, por um lado, racionalizar o funcionalismo federal, com excesso de carreiras e poucos estímulos ao aperfeiçoamento individual e coletivo, por outro lado tem de se reduzir o patrimonialismo indecente que ainda vigora na seleção para os altos cargos do Executivo. Várias dessas posições deveriam ter um comitê para avaliar os méritos dos indicados e processos de certificação que indicariam se aquela pessoa está apta à função. O uso desses mecanismos desfalcaria fortemente muitos dos ministérios do presidente Bolsonaro - em alguns casos, começando pelo próprio ministro.

Reformar a administração pública, ademais, é democratizar o Estado. Decerto que a saúde fiscal constitui um requisito para a boa gestão. Mas o serviço é do e para o público - daí vem a palavra. Sendo assim, as reformas necessárias no campo de recursos humanos não podem ser acompanhadas pela destruição dos conselhos de participação, nem pela redução dos gastos com saúde e educação, medidas que claramente estão na agenda atual do governo Bolsonaro, cuja visão está mais para o desmonte do que para a modernização do Estado em prol da cidadania.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP


Ribamar Oliveira: Prioridade deveria ser a PEC Emergencial

Reforma tributária, embora necessária, pode esperar

É difícil acreditar que a reforma tributária será aprovada neste ano, se ainda não se conhece sequer qual é a proposta do governo federal. Ontem, em reunião com secretários estaduais de Fazenda, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que, em duas semanas, “está chegando um pedaço” ao Congresso Nacional.

Outra dificuldade para acreditar na rápida aprovação da reforma tributária é que o ministro da Economia quer criar uma nova CPMF para desonerar a folha de pagamento das empresas, pois, com isso, ele acredita será possível criar condições para o rápido crescimento do emprego no país. O problema é que o presidente Jair Bolsonaro é contra a nova CPMF, qualquer que seja o seu novo nome, e os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), também são.

Mesmo o “pedaço” da proposta do governo a ser enviado causou polêmica entre os secretários estaduais de Fazenda. Guedes teria dito que vai propor um IVA (Imposto sobre Valor Adicionado) Dual, com a fusão dos tributos federais com o ICMS, ficando o ISS de fora. Os secretários querem a unificação de todos os tributos federais, estaduais e municipais em um único imposto sobre o consumo.

Guedes disse que o governo vai propor também alterações no PIS e na Cofins. Ontem, momentos antes de ser substituído na Casa Civil, o ministro Onyx Lorenzoni, afirmou que, pessoalmente, defendia tratar agora só a reforma dos impostos federais e “daqui a dois ou três anos fazemos uma reforma do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços [ICMS]”.

A proposta de reforma do PIS/Cofins está pronta, na Casa Civil, desde a gestão do ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy. Os governos não conseguem enviá-la ao Congresso, tal a resistência que ela enfrenta, pois eleva a carga tributária do setor de serviço. Os líderes partidários já se manifestaram contrários à votação apenas desta reforma.

Há um outro obstáculo que torna ainda mais difícil a aprovação de uma reforma tributária. A discussão está sendo feita em um momento em que o setor público brasileiro necessita ajustar as suas contas, que estão deficitárias desde 2014, principalmente as da União. A situação financeira de, pelo menos, uma dezena de Estados é calamitosa.

Quatorze Estados estão com nota C, e três, com nota D, segundo o Tesouro Nacional. As notas medem a capacidade dos Estados de pagarem suas dívidas. Aqueles que estão com nota C não podem obter aval do Tesouro para novos empréstimos. E os que têm nota D estão em situação falimentar. Em 2019, a União foi obrigada a honrar dívidas não pagas por Estados e municípios, das quais era avalista, no montante de R$ 8,35 bilhões. Vários Estados conseguiram liminar no Supremo Tribunal Federal (STF) para deixar de pagar seus débitos com a União.

O Brasil já viveu situação semelhante. Em 1995, ao assumir a Presidência da República, Fernando Henrique Cardoso encaminhou uma proposta de reforma tributária (PEC 175/95). A PEC foi relatada pelo falecido deputado piauiense Mussa Demes. Quando o parecer de Mussa estava pronto para ser votado e tinha o apoio do então governador de São Paulo, Mário Covas, mesmo com o seu Estado perdendo R$ 4,5 bilhões em receita, a então equipe econômica de FHC decidiu enviar ao Congresso uma nova proposta. E a reforma terminou não sendo votada.

Durante todo o processo de discussão da reforma, a carga tributária subiu muito. Ela passou de 29,7% do Produto Interno Bruto (PIB) em 1995 para 35,6% do PIB em 2002, segundo dados da Secretaria da Receita Federal. Isso mostra que a necessidade de ajustar as contas públicas predominou sobre a reforma.

A substancial melhora no resultado primário do setor público registrada em 2019 decorreu de receitas extraordinárias (não recorrentes), principalmente as obtidas com os leilões de petróleo.

Muito provavelmente, o déficit primário deste ano será pior do que o de 2019. A dívida pública bruta só caiu porque o BNDES continuou antecipando o pagamento dos empréstimos obtidos junto ao Tesouro Nacional, e o Banco Central realizou significativas vendas de reservas internacionais do país. O governo precisa registrar superávit primário a partir de 2023, pois, do contrário, a dívida pública bruta provavelmente voltará a crescer.

Um outro aspecto é ainda mais relevante. A Emenda Constitucional 95, que instituiu limites individualizados de despesas para os vários Poderes da República, é, atualmente, a viga mestra do cenário fiscal brasileiro. É difícil saber o que acontecerá, em termos de expectativas dos mercados, se o governo não conseguir sustentar o teto de gastos.

A preservação do teto por mais algum tempo é, portanto, uma questão central. E, para conseguir a façanha, o governo precisa que o Congresso aprove a proposta de emenda constitucional 186/2019, conhecida como PEC Emergencial. A proposta autoriza o governo a adotar uma série de medidas para controlar o crescimento das despesas obrigatórias. Sem a sua aprovação, o cenário fiscal irá se deteriorar. O Congresso deveria colocar foco na PEC 186, antes de analisar qualquer outra matéria.


Maria Cristina Fernandes: Um PhD em milícia na antessala de Bolsonaro

General assume a Casa Civil num momento em que a família Bolsonaro dá início a uma estratégia de vitimização por seu envolvimento com milícias

Foi a ida do ex-secretário da Previdência do Ministério da Economia, Rogério Marinho, para o Ministério do Desenvolvimento Regional que possibilitou ao presidente Jair Bolsonaro convidar o segundo general da hierarquia do Exército, o chefe do Estado-Maior Walter Souza Braga Netto, a ocupar a Casa Civil.

Colaborador de melhor trânsito no Congresso, de toda a Esplanada, Marinho tem interlocução com o ministro Paulo Guedes e habilidade para o jogo presidencial no Congresso e nas eleições municipais. Sem um partido para chamar de seu, o presidente vai tentar construir uma base municipal por dentro das legendas. Com uma pasta chave que comanda do Minha Casa Minha Vida às obras contra secas, Marinho atuará, de fato, como o ministro que vai tentar tocar a máquina governamental em sintonia com as demandas parlamentares. Está muito mais para a Casa Civil do que Braga Netto.

Parece ser outra a função a ser desempenhada pelo general. Junto com o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, e do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, Braga Netto formará o triunvirato de generais cariocas que trabalharam juntos no Rio e tocam de ouvido. Braga Netto foi chefe da Autoridade Pública Olímpica quando Ramos era chefe da 1ª divisão do Exército e subordinado ao então comandante militar do Leste, Azevedo e Silva.

O triunvirato é prestigiado num momento em que os militares, apesar de terem ganho a desejada reestruturação da carreira e de terem os seus projetos entre os mais salvaguardados dos investimentos federais, não esconderem mais o incômodo com os protocolos deste governo. Ao inaugurar o instituto que leva seu nome, em Brasília, o ex-comandante do Exército, general Eduardo Villas-Boas franqueou a palavra a um potencial adversário da reeleição do presidente, o apresentador Luciano Huck.

Se ainda não está claro como a articulação política pode vir a passar ao largo de um Palácio do Planalto comandado por dois generais da ativa, parecem mais evidentes os predicados de Braga Neto num dos temas que mais inquieta o presidente da República. O conhecimento adquirido pelo general no modo de operação do crime organizado concorre com o do ministro da Justiça e potencial adversário do presidente em 2022, Sérgio Moro.

A intimidade adquirida com o modo de operação da milícia fluminense durante os 12 meses em que foi interventor federal no Rio durante o governo Temer tornou Braga Netto um verdadeiro arquivo vivo do tema. Chega ao Palácio do Planalto num momento em que o presidente da República paga uma fatura elevada pela longa e profícua relação com as milícias.

Depois das homenagens prestadas em vida ao ex-capitão do Bope, Adriano da Nóbrega, a família silenciou sobre sua morte, no domingo, pela polícia baiana. Ao romper o silêncio ontem, o senador Flávio Bolsonaro escreveu no Twitter, em forma de denúncia, que o ex-capitão do Bope, Adriano da Nóbrega, teria sua cremação acelerada para que as evidências de seu assassinato fossem apagadas.

O senador sugere, dessa forma, que seria o maior interessado em que Adriano ainda estivesse vivo, desvinculando-se da ‘queima de arquivo’ levantada pelo advogado do ex-capitão. O senador deu início à sua estratégia de vitimização no mesmo dia em que foi protocolado no Conselho de Ética do Senado um pedido de quebra de decoro do seu mandato. O sucesso desse pedido esbarra na ocorrência dos fatos alegados em período anterior ao seu mandato e, principalmente, nas ambições do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) em obter o aval do Palácio do Planalto para mudar as regras constitucionais e se reeleger à Presidência da Casa na mesma legislatura.

É no Rio que está o maior cerco sobre o filho do presidente. A lupa sobre os inquéritos que correm no Estado está a cargo do procurador-geral da República, Augusto Aras, que monitora o trabalho do Ministério Público e da polícia civil do Rio. O procurador também manteve o pedido feito por sua antecessora, Raquel Dodge, para que a competência da investigação da morte da vereadora Marielle Franco passasse da polícia do Rio para a Polícia Federal.

Como a vinculação de Adriano da Nóbrega com a morte da vereadora já foi descartada pela polícia civil do Rio e pela própria Polícia Federal, restou ao deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) concluir que foi o fato de a investigação se avizinhar da família do presidente que despertou o interesse na federalização. A decisão está a cargo do Superior Tribunal de Justiça.

Se a tese da federalização ganhou força com a incompetência, ou má-fé, demonstrada por uma operação policial incapaz de resgatar com vida um foragido cercado, a transferência de competência para a Polícia Federal esbarra no desinteresse demonstrado pela instituição quando da elaboração da lista vip de foragidos cuja captura deveria ser prioritária.

Freixo se antecipou à estratégia de vitimização dos Bolsonaro iniciada com a operação policial a cargo de uma polícia comandada por um governador do PT (Rui Costa). Não cobra que Bolsonaro responda sobre a morte de Adriano, mas sobre sua vida. As investigações em curso indicam que, além de recheada de homenagens e de empregos a parentes, o ex-capitão manteve contas bancárias por onde passavam as ‘rachadinhas’ do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro.

É na Casa Civil de um governo cujo presidente é acossado por milicianos insepultos que aportará o austero Braga Netto. O general enfrentou forte resistência familiar para aceitar o cargo dada a memória de ameaças sofridas à época da intervenção militar do Rio.

A carreira do general não autoriza a interpretação de que seu conhecimento sobre o submundo do Rio se preste à cooptação ou que se submeta cegamente à missão de proteger o comandante em chefe em apuros. A única aposta que dá para fazer é que a nova leva de militares da Esplanada sentirá saudade dos tempos em que sua maior dor de cabeça era cortar os laços do governo com Olavo de Carvalho.


Cristiano Romero: Tão longe do Brasil e tão perto do poder

A ideia de estabilidade no emprego no serviço público é tão disseminada que os empregados de estatais gozam desse privilégio sem nenhum amparo na lei

Embora o governo Bolsonaro tenha demonstrado até agora pouco interesse na reforma administrativa, o tema ocupou o debate e é parte da agenda do Congresso Nacional. A reforma é necessária e a justificativa vai além da premente questão fiscal. No conceito mais amplo, de mudança radical na forma como o Estado brasileiro está estruturado, as mudanças não dizem respeito apenas aos servidores públicos, mas a todos os setores específicos da sociedade que se beneficiam do orçamento público, em detrimento dos interesses difusos.

A máquina pública brasileira não foi pensada para defender os interesses de quem não possui representação política em Brasília. Mas, mesmo quem tenha essa agenda - seja um político, seja um movimento, seja uma entidade da sociedade civil -, não é o ideal porque, na luta democrática, esses serão apenas mais um grupo de pressão. Distribuição de renda, acesso gratuito a serviços de saúde e educação, combate à pobreza e auxílio a indigentes, por exemplo, não deveriam ser bandeiras de grupos de pressão nem de partidos políticos, mas missões do Estado brasileiro em todas as esferas, como prescreve a Constituição de 1988.

As dezenas de milhões de brasileiros inalcançados pelos aspectos civilizadores da Constituição não deveriam depender nem de governantes sérios nem muito menos, portanto, de populistas. Nem sempre elegemos os melhores governantes e, por isso, boas políticas são descontinuadas. Populistas são perversos porque prometem o que não podem, dão agora o que não será mantido adiante, apenas para iludir os eleitores e manter-se no poder.

O correto é que as instituições do Estado atendam a todos de forma neutra, independente, automática, impessoal, desvinculada de qualquer propósito político. A reforma do Estado não se explica apenas pela necessidade de se atender melhor ao público, mas de mudar totalmente as prioridades da máquina estatal, de forma que suas missões precípuas sejam levar serviço público a quem não o tem, formar cidadãos, igualar oportunidades, reduzir as desigualdades, garantir segurança pública à maioria (que não dispõe de recursos para viver em condomínios), proteger brasileiros que vivem em áreas controladas por organizações criminosas e milícias, assegurar segurança alimentar a quem não a tem etc.

Cabe aos políticos, cada qual com sua orientação ideológica, defender um modelo de Estado, mas sem que lhe seja possível impedir o cumprimento do que está na Constituição. O Brasil é desigual porque o orçamento público, desde sempre, destina mais recursos aos ricos, aos grupos mais influentes, às elites de todo tipo. No orçamento de renúncia fiscal da União, superior a R$ 300 bilhões por ano, é possível ver a lista dos beneficiários e chegar à triste conclusão de que mesmo quem não precisa, como o titular desta coluna, representante da classe média, tem direito a vantagens que fazem muita falta à maioria pobre.

Políticos devem ser julgados por seus eleitores pelo que contribuem para o avanço do país como civilização, mas não porque, num dado momento, se apresentam como representantes dos pobres em Brasília. A rigor, essa categoria não existe. Os partidos de esquerda, por exemplo, defendem políticas que, na prática, concentram ainda mais a renda. Ao rejeitar, por exemplo, as reformas da Previdência e agora a administrativa, por causa de seus vínculos com sindicatos do funcionalismo federal, a esquerda impede a possibilidade de o Estado combater as desigualdades.

Nenhum governo, desde a redemocratização, propôs uma reforma do Estado que não discutisse somente ou tão somente o tamanho dos gastos com os servidores. Na verdade, o tema só aparece quando há urgência fiscal - foi assim nos governos Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e no atual. A questão fiscal tem o mérito de motivar a equipe econômica do governo federal, preocupada com o equilíbrio das contas públicas, e também prefeitos e governadores, em que a escassez de recursos é maior.

A Constituição, a despeito do mérito civilizador de muitos de seus dispositivos, criou incentivos errados no que diz respeito ao funcionamento do Estado. Talvez, o pior tenha sido assegurar a todos os servidores públicos estabilidade no emprego, e não apenas às carreiras típicas. A alegação é que, sem estabilidade, os funcionários estariam sujeitos a vicissitudes impostas por políticos, favorecendo a corrupção e o desvio do Estado de suas funções.

Se o objetivo era esse, a estabilidade não funcionou, afinal, escândalos de corrupção sucedem desde então com a participação de servidores e, portanto, sem que os malfeitos sejam prevenidos. A ideia de estabilidade no emprego no serviço público é tão disseminada que os empregados de estatais gozam desse privilégio sem nenhum amparo na lei. Quando um governo decide demiti-los, eles vão à Justiça e ganham o direito de voltar, não importando se a demissão foi por incompetência, falta ao trabalho, fechamento da empresa etc.

O argumento de que a indemissibilidade protege o patrimônio público é falso como uma nota de R$ 3. Na Petrobras, o enorme esquema de corrupção que desviou R$ 20 bilhões foi arquitetado e conduzido por funcionários de carreira. Logo, não é a exigência de concurso nem a estabilidade que dão ao serviço público garantia contra a malversação de recursos públicos e o desvio de suas missões. A mudança passa pela redefinição do papel do Estado não só na economia, mas em todos os aspectos da vida nacional.

Estáveis no emprego, recebendo salários bem mais altos (o que não é um mal em si), além de vantagens e direitos jamais vistos pela média dos trabalhadores do setor privado, os servidores públicos se tornaram, naturalmente, o maior obstáculo à reforma do Estado. Por que abririam mão de direitos? Este é o problema. Insulados em Brasília, onde a atividade econômica depende fundamentalmente do serviço público, os servidores dispõem de poder autóctone para criar benefícios, legislar em causa própria, estabelecer prioridades de gasto etc.

Se considerássemos São Paulo, centro financeiro e produtivo do país, a síntese do Brasil, seria possível dizer que Brasília é um cidade longe de São Paulo, mas muito perto do poder.

*Cristiano Romero é editor-executivo


Cláudio Gonçalves Couto: Bolsonarismo e lava-jatismo

Moro não teria como ser um limitador do autoritarismo de Bolsonaro, pois sua concepção da política é similar à do chefe

Quando o então juiz, Sergio Moro, foi convidado para o Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro, houve quem acreditasse que ele seria aquele capaz de colocar freios aos notórios ímpetos autoritários do presidente eleito. Moro era visto por esses otimistas como possível bastião do estado de direito num governo cuja liderança principal nunca lhe demonstrara apreço. O curioso otimismo talvez se justificasse se fosse Moro, ele mesmo, em sua carreira de magistrado, referência para a defesa do império da lei, dos direitos individuais e do devido processo legal. Contudo, quando se considera o que foi a Operação Lava-Jato, não é esse o quadro.

Conduções coercitivas a rodo, de pessoas que sequer sabiam que deveriam depor e, logo, nunca se negaram a fazê-lo; prisões preventivas a perder de vista, até que os presos, ainda não condenados, nem de alta periculosidade, decidissem confessar ou delatar algo; aceleração considerável de processos de determinados réus; condução das audiências de forma a intimidar os advogados de defesa; divulgação politicamente oportuna de informações relativas a processos - como a delação de Antonio Palocci, às vésperas do primeiro turno de 2018; grampos em escritório de advogados do réu; e, por último, mas não menos importante, o vazamento de um grampo telefônico tomado em momento não autorizado pelo próprio juiz, envolvendo autoridade fora do alcance de sua jurisdição - no caso, a presidente da República.

Algo foi esquecido? Provavelmente sim. Porém, tudo já era conhecido previamente ao anúncio do convite para o ministério e, portanto, antes também das revelações da Vaza-Jato pelo “The Intercept”, que demonstraram existir conluio do juiz com procuradores - estes últimos, sempre bom lembrar, parte do processo, não seu árbitro.

A ilusão de que Moro pudesse ser o dique às tendências autoritárias de Bolsonaro decorre da normalização do arbítrio na Lava-Jato, em nome do combate inclemente à chaga da corrupção. Ela explica a leniência de cortes superiores com excessos cometidos pela operação, como ficou claro na decisão do TRF-4 sobre abusos do juiz que a chefiava, em especial o vazamento do telefonema presidencial, irregularmente captado.

Para justificar a não punição de Moro por seus abusos, afirmou o desembargador relator do caso: “É sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da chamada operação ‘Lava-Jato’, sob a direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no Direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns”. Ainda complementou: “a ameaça permanente à continuidade das investigações da operação ‘Lava-Jato’, inclusive mediante sugestões de alterações na legislação, constitui, sem dúvida, uma situação inédita, a merecer um tratamento excepcional (...) as investigações e processos criminais da chamada operação ‘Lava-Jato’ constituem caso inédito, trazem problemas inéditos e exigem soluções inéditas”.

Trocando em miúdos: o ineditismo da situação permite uma justiça de exceção. Ocorre que a Operação Lava-Jato, que perdura por seis anos, rotinizou a exceção, normalizando-a. Moro e seus companheiros no Ministério Público foram artífices dessa normalização, coonestados pelo restante da hierarquia judicial, sob pressão da empolgação pública, do cansaço em relação à corrupção e do apoio acrítico, apaixonado ou mesmo cínico de segmentos importantes da imprensa. A normalização do Estado de Exceção, contudo, tem nome: chama-se ditadura.

Portanto, como esperar do heroico propulsor do Estado de Exceção judicial no país que se transformasse subitamente em freio limitador de um presidente de vocação autoritária? Seria de se supor, na verdade, exatamente o oposto: que Moro se convertesse naquele capaz de dar forma jurídica ao autoritarismo bolsonarista, desenhando seus contornos legais.

O pacote anticrime, consideravelmente corrigido pelo Congresso - mas que continha na versão originária, proposta pelo ministro, algo como o excludente de ilicitude de assassinatos cometidos sob “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” - é um exemplo de como dar forma legal ao arbítrio. Nesse caso, não se trata apenas da perseguição a corruptos e criminosos do colarinho branco, supostamente alvos preferenciais de Moro, mas de ações que dão ao Brasil a liderança mundial da letalidade policial, preferencialmente de jovens pobres e negros - sob elogios da família Bolsonaro e silêncio do ministro.

Essa convergência de propósitos é visível não apenas na lealdade de Moro ao projeto bolsonarista, antecipada por suas ações como juiz e pelo apoio público de sua esposa ao candidato de extrema direita na eleição presidencial. Ela se nota também na mistura de lavajatismo e bolsonarismo nos movimentos de base da nova direita extremista (como o movimento Nas Ruas); na ideia de que, em nome da “justiça”, o respeito a direitos fundamentais e ao devido processo é “mi-mi-mi”; na tentativa de criminalizar a imprensa, que revela impropriedades da atuação de agentes “da lei”; e na acusação a críticos e opositores de cumplicidade com malfeitorias.

Assim, a disputa intestina, entre Moro e Bolsonaro, não contrapõe concepções políticas significativamente distintas. Ambos têm estilos pessoais diferentes e conseguem apelar a públicos que se sobrepõem considerável, mas não completamente. A maior discrição e polidez do ex-magistrado, se lhe tira o carisma por um lado, amplia seu alcance por outro. Não ter vínculos obscuros com milicianos e que tais também é vantagem, pois lhe reduz as vulnerabilidades. Não à toa segue mais popular do que o chefe e com boa chance de lhe dar uma rasteira se for expelido. Por isso mesmo, para além das afinidades de fundo, o mais interessante para Bolsonaro é o manter vinculado a si. Para Moro, pode ser exatamente o oposto, sob o risco de ser tragado pelas confusões de um governo ao qual dá seu respaldo, mas com cujos problemas pode acabar se fundindo.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP


Cristian Klein: Menos um CPF para Bolsonaro

Morte de miliciano é seguida do silêncio do presidente e de Moro

De tão nebulosa e mal explicada, a relação entre a família Bolsonaro e a milícia parece um daqueles mistérios insondáveis, supostos assuntos de Estado que governos carimbam como “top secret”. Ao que tudo indica, o selo de alta confidencialidade dura enquanto durar a correlação de forças e a popularidade do bolsonarismo, por sinal pouco abalado pela proximidade do presidente com os grupos paramilitares que praticam extorsão em cada vez mais extensos territórios no Rio, ou fora dele. As mílicias - formadas por PMs, policiais civis, bombeiros - já foram “exportadas” para mais da metade dos Estados brasileiros. Mas é no Rio, e com o apoio do clã Bolsonaro, que cresceram e se aliaram ao poder político.

O presidente da República e seu filho mais velho já defenderam com ardor a existência dessas organizações criminosas que cobram os mais variados tipos de “pedágios” às populações ameaçadas e subjugadas. Da taxa de segurança a moradores e comerciantes aos botijões de gás comercializados com ágio; do transporte ilegal de vans ao fornecimento clandestino de TV por assinatura, internet e energia elétrica; da venda de imóveis irregulares à exploração de novos produtos e serviços como cestas básicas, consultas médicas, seguros de carro e recolhimento de lixo. Sobre estas regiões, já não se fala mais de Estado paralelo. A milícia é o próprio Estado. E tem suas relações institucionais construídas nos escombros de uma polícia civil e militar em sua face falida, corrupta e violenta.

Era dessa PM que vinha o ex-capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, morto numa troca de tiros com a polícia no fim de semana numa operação no interior da Bahia. Foragido há mais de um ano, Nóbrega - ou ‘capitão Adriano’ - foi apontado por seu próprio advogado, Paulo Emílio Catta Preta, como alguém que queria se entregar, mas temia ser morto, numa queima de arquivo.

Não é preciso fazer nenhuma ilação. Registre-se apenas a mudez que se seguiu desde domingo pela manhã por parte de Bolsonaro e de seu entorno. O presidente da República não teve o mesmo comportamento de quando era parlamentar, em 2005, e saiu em defesa de Nóbrega, em discurso na Câmara. À época Bolsonaro qualificou Nóbrega, que estava preso desde o ano anterior, como um “brilhante oficial” e criticou sua condenação pela morte do guardador de carros Leandro dos Santos Silva, que havia denunciado policiais.

A campanha pró-Nóbrega na família já tinha sido iniciada em condecorações patrocinadas pelo filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro. Então deputado estadual, Flávio propôs uma moção de louvor ao PM em 2003 e, dois anos depois, foi autor de nova homenagem na Assembleia Legislativa do Rio, concedendo a Adriano Nóbrega a Medalha Tiradentes, comenda mais importante da Casa, quando o policial já estava preso, sob a acusação de homicídio.

Com o histórico de tanta solidariedade, é de se perguntar por que Jair Bolsonaro ainda não decretou luto oficial de três dias pela morte do companheiro miliciano. A família preferiu o silêncio. O ministro da Justiça Sergio Moro, que, há quase duas semanas, havia excluído Nóbrega da lista dos criminosos mais procurados do país, também não se pronunciou.

Sobre bandidos que perdem a vida abatidos por policiais ou por cidadãos que agem em legítima defesa, os bolsonaristas costumam reagir de forma irônica: “Menos um CPF”. Acusado de vários assassinatos e de participar de um grupo de matadores de aluguel - o Escritório do Crime - o ‘capitão Adriano’ não foi alvo do mesmo sarcasmo.

O que gira em torno do personagem inspira respeito e cautela, dado seu potencial explosivo. Nóbrega não era apenas um dos inúmeros policiais homenageados ao longo dos anos pelos Bolsonaro - integrantes ou não da banda podre da corporação. Era alguém de confiança que havia indicado a mãe e a ex-mulher para trabalhar no gabinete de Flávio na Alerj, durante o período de 12 anos em que o ex-deputado praticou, segundo o Ministério Público do Rio, esquema de “rachadinha” no qual apropriou-se de parte do salário de quase uma centena de funcionários.

Apontado como o operador do suposto esquema ilegal de enriquecimento, o PM da reserva Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, serviu junto com Adriano Nóbrega no mesmo 18º Batalhão de Jacarepaguá, na zona oeste carioca. Em 2003, os dois se envolveram num homicídio ao fazer uma ronda na Cidade de Deus. Queiroz trabalhou no gabinete de Flávio, mas sua relação é com o pai Jair, de quem é amigo desde o início dos anos 1980.

O Brasil está numa democracia, as instituições estão alegadamente funcionando - tão bem quanto as escolas e os hospitais públicos - mas o sistema judicial não consegue desvendar informações, conexões e crimes que a sociedade vai naturalizando como insolúveis. O instituto da condução coercitiva já levou um mandatário da República a depor no aeroporto de Congonhas mas, hoje em desuso, não atinge Queiroz, o velho amigo de pesca de Bolsonaro.

O elo entre o presidente e Nóbrega ficou mais difícil de ser reconstituído graças a uma operação policial que, intencionalmente ou não, destruiu um arquivo vivo. Entre os maiores opositores de Bolsonaro e presidente da CPI das Milícias da Alerj em 2008, o deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ) argumenta que a grande questão sobre o ‘capitão Adriano’ são seus laços com a família Bolsonaro e menos com o assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol) e do motorista Anderson Gomes.

“A grande questão do Adriano é essa relação dele com a família Bolsonaro. Eles não foram criados juntos. Não são amigos de infância. Quando eles [da família Bolsonaro] resolvem ter tanta relação com o Adriano, o Adriano já tinha envolvimento com o crime. É preciso que se esclareça”, diz Freixo, para quem a morte do ex-PM não esfria o interesse pelo caso: “Isso atiça mais a curiosidade. O primeiro passo é saber o que tem nos 13 celulares encontrados com ele. Não tenho dúvida de que tem muita informação nesses telefones”.


Bruno Carazza: Luz e escuridão

Saga da Light demonstra aversão ao setor privado

Na última semana o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) concluiu a venda de R$ 22 bilhões de ações ordinárias da Petrobras. A estratégia da equipe econômica é se desfazer da participação em empresas consideradas “maduras”, atingindo assim o duplo objetivo de redirecionar a atuação do banco estatal e contribuir para o ajuste fiscal, por meio do repasse de dividendos à União. Antes da Petrobras, houve a venda de 34% do capital do frigorífico Marfrig e também a zeragem de sua posição na distribuidora de energia Light.

A venda de mais de 19 milhões de ações da Light pelo BNDES, aliás, encerra uma trajetória mais do que centenária de envolvimento e intervenção do governo na empresa. Constituída em 1899 em Toronto, no Canadá, como São Paulo Tramway, Light and Power Company, a empresa começou a atuar no Brasil em 1901 com a construção da usina hidrelétrica de Parnahyba, no rio Tietê. Em 1905, os mesmos sócios canadenses criaram a Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Company.

A presença da Light, como passou a ser conhecida, mudou a paisagem das duas maiores cidades brasileiras. Graças a seus investimentos, Rio e São Paulo migraram das carroças para o bonde elétrico e dos lampiões para a luz elétrica. A empresa obteve ainda a concessão dos serviços telefônicos nas duas capitais, e expandiu sua atuação para outras regiões e setores no país.

O crescimento da maior multinacional estrangeira no Brasil à época, porém, esteve longe de ser bem quisto. A empresa sofria constantes acusações de que suas tarifas eram extorsivas e geravam lucros extraordinários para serem remetidos à matriz. Ao lado do discurso nacionalista de políticos e intelectuais, veio o populismo tarifário que subsidiava o consumo em detrimento dos investimentos na expansão dos serviços. O sistema de bondes acabou ficando sucateado e, depois de um longo período de intervenção federal, seu braço telefônico, a CTB, foi estatizado em 1966.

Em meados da década de 1970 a situação da Light era complicada: seu prazo de concessão estava prestes a expirar, o crescimento gerado pelo milagre econômico exigia investimentos cada vez maiores para dar conta da demanda crescente por energia elétrica e o controle das tarifas deteriorava a receita da empresa. Nessas condições, os canadenses começaram a sinalizar que queriam deixar o país.

A grande questão era: quem compraria a empresa? Àquela época o país não dispunha de grupos econômicos com porte para arcarem sozinhos com a aquisição. Por outro lado, o mundo vivia a ressaca do primeiro choque do petróleo e o fluxo de investimentos para os países emergentes tinha secado. Só restava a opção da estatização, mas pairavam dúvidas se o governo, enfrentando uma grave crise fiscal e de balanço de pagamentos, teria divisas para bancar a operação.
Foi nesse cenário que surgiu uma proposta bastante original.

Concebida por Raphael de Almeida Magalhães, político e ex-diretor da Light, e pelo jurista José Luiz Bulhões Pedreira, a ideia era criar um arranjo societário e financeiro para, ao mesmo tempo, evitar a estatização da Light e, como bônus, catapultar o desenvolvimento do mercado de capitais no país.

Bulhões Pedreira, que ao lado do professor Alfredo Lamy Filho havia elaborado o projeto da Lei das Sociedades Anônimas, desenhou a arquitetura do negócio. Em linhas gerais, a ideia era constituir a Empresa Brasileira de Participações S.A (Embrapar), que teria o seu capital integralizado em partes iguais por um grupo de 20 das maiores empresas privadas nacionais. A Embrapar adquiriria o controle acionário da Light e pagaria o grupo canadense com os dividendos gerados num prazo de dez anos.

Para levantar os investimentos necessários para a conservação e melhoria da sua rede, a Embrapar lançaria ações e títulos nas bolsas do Rio e de São Paulo, e aí residiria a grande externalidade positiva da operação: o lançamento de papéis de uma empresa cujos sócios controladores eram os maiores empresários privados nacionais, lastreados num serviço que gerava receita estável, teria o potencial de popularizar o mercado de capitais brasileiro, pois se mostraria uma aplicação financeira muito mais rentável do que as velhas cadernetas de poupança.

A proposta foi bem recebida pelos donos canadenses e tinha o apoio dos ministros da Fazenda, Mario Henrique Simonsen, e das Minas e Energia, Shigeaki Ueki. Mas acontece que a velha política atravessou o caminho. O poderoso líder baiano Antonio Carlos Magalhães, então presidente da Eletrobras, bombardeou a proposta privada de todas as formas possíveis, de fake news plantadas na imprensa a relatórios negativos encaminhados ao presidente Ernesto Geisel. E o que seria uma solução genial, de mercado, para o problema, acabou constituindo mais um c apítulo do velho estatismo nacionalista brasileiro.

Em 29 de dezembro de 1978, os jornais estampavam nas suas capas: o governo federal decidira comprar a Light. Por US$ 1,14 bilhão (US$ 4,5 bilhões hoje), a Eletrobrás adquiria 83% do capital da empresa, tendo como justificativa a importância estratégica do setor de energia, “intrinsecamente ligada à segurança nacional”, conforme nota divulgada à imprensa. Pouco depois a Light foi repassada ao governo do estado do Rio de Janeiro, e após um longo período de sucateamento, foi privatizada em 21 de maio de 1996. A viabilização da transferência da empresa para o setor privado, porém, só foi concretizada por meio da participação do BNDES. A venda da participação do banco no mês passado, portanto, encerra definitivamente (será?) o ciclo de intervenção estatal na empresa.

A empolgação com a agenda econômica do governo e a queda nas taxas de juros vêm atraindo um contingente cada vez maior de pessoas para a bolsa de valores. Nos idos de 1976, a proposta de José Luiz Bulhões Pedreira e Raphael de Almeida Magalhães de criar a Embrapar tinha o objetivo de levar o pequeno investidor para o mercado de ações. São “apenas” 44 anos de atraso, em mais um capítulo da extensa lista de oportunidades perdidas em nossa história.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Valor: Livro de André Lara Resende reúne ensaios que criticam visão dominante da teoria econômica

André Lara Resende reúne, em livro, ensaios que criticam a visão dominante da teoria econômica: "Estávamos errados"

Por Diego Viana e Robinson Borges | Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

SÃO PAULO - Desde 2017, os artigos do economista André Lara Resende publicados no Valor têm sido alvo de controvérsias. Suas críticas à política de juros e à teoria macroeconômica que embasam decisões e análises no Brasil geram reações em outros economistas, provocando debates duradouros. Suas opiniões sobre a natureza da moeda e o peso da dívida pública vão na contramão das teorias mais tradicionais.

Em “Consenso e Contrassenso: Por uma Economia Não Dogmática”, livro lançado hoje pela Portfolio-Penguin, o economista retoma os artigos publicados no ano passado e vai além. Relembra a própria trajetória como pesquisador e investidor, sua participação na elaboração dos planos Cruzado e Real e na negociação da dívida externa. O título do livro é extraído do primeiro artigo publicado no ano passado, que tratava das transformações na macroeconomia desde a crise de 2008. Com seu subtítulo, “Déficit, Dívida e Previdência”, o ensaio anunciava que as relações entre o endividamento público e a evolução do déficit fiscal não ocorrem do modo como se costumava pensar.

Coautor dos artigos que introduziram a noção de inflação inercial e contribuíram para formular o Plano Real, o economista é crítico da política de juros implementada no país desde 1994. A Selic alta não contribuiu para segurar a inflação e ainda teve impacto na dívida pública e no baixo crescimento. Assim, a recente redução dos juros pelo Banco Central é vista como uma correção de rumos, embora tardia.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista de Lara Resende ao Valor:

Valor: No ano passado, seus artigos geraram uma cascata de respostas e réplicas. Como o senhor avalia o debate suscitado, em termos de qualidade e pertinência?

André Lara Resende: Interpreto isso como sinal de que tocaram num ponto nevrálgico. Como digo na introdução de meu novo livro, depois de dois anos de profunda recessão, 2015 e 2016, a economia brasileira continua estagnada. Enquanto a renda da China é hoje 18 vezes o que era há 40 anos, a brasileira não chega ao dobro do que era em 1979. A distância entre o Brasil e os países avançados não se reduziu. Pelo contrário, aumentou. Não foi possível superar o fosso que separa o Brasil rico e moderno do Brasil onde impera a miséria e a desesperança. Sem inflação e sem dívida externa, o país está paralisado, preso a uma armadilha ideológica imposta pelos cânones de uma teoria macroeconômica anacrônica.

Valor: Um dos pontos controversos de seus ensaios é a afirmação de que a restrição financeira do Estado é política e não econômica. Qual é o peso político-ideológico nessa questão?

Lara Resende: A questão de que um Estado emissor de moeda fiduciária não tem restrição financeira é de lógica. E não é novidade. Está em [John Maynard] Keynes. Enquanto a moeda era lastreada, metálica, obrigava o Estado a ter certa restrição. E toda vez que o Estado precisava, por questões de força maior - quase sempre em caso de guerra ou depois no caso de crises bancárias -, modificava a quantidade de lastro da moeda para emitir mais. Nos últimos anos, especialmente após a crise de 2008, houve uma obsessão com a ideia do equilíbrio orçamentário. Mas sempre foi política. Nos EUA, por exemplo, por anos o Partido Republicano foi obcecado com o desequilíbrio do orçamento fiscal. Enquanto o Partido Democrata foi mais tolerante. O que é impressionante é o dogmatismo com que a passou a ser defendida.

Valor: Como o senhor analisa essa questão?

Lara Resende: Como menciono num dos artigos do livro, chegou-se a afirmar a ideia de austeridade expansionista, o que é uma contradição em termos. Ao contrair o gasto fiscal, você faria a economia se expandir. Depois da irresponsabilidade com que os gastos fiscais foram feitos na gestão do PT, especialmente no [governo] Dilma e no segundo mandato do Lula, houve uma espécie de estresse pós-traumático. Qualquer coisa que se fale sobre aumentar gastos públicos é percebida como se fosse estapafúrdia. Na verdade, ter certa disciplina fiscal é sempre desejável. Em todos meus artigos sempre digo isso. Existe uma restrição efetiva, que é a capacidade instalada da economia e do emprego. Se começar a pressionar os limites, começa a pôr pressão, [provoca] desequilíbrio externo. Cria redução de superávit no balanço de pagamentos, balança comercial e, eventualmente, começa a ter pressões inflacionárias. Existem restrições? Existem, mas não é uma questão financeira, sempre e a qualquer custo, do equilíbrio fiscal e financeiro.

Valor: Para o senhor, essa visão traz efeitos para o Brasil, que não faria investimentos necessários?

Lara Resende: Em momentos como o Brasil de hoje, que está com muita capacidade ociosa, grande desemprego e profundas necessidades de gastos públicos - infraestrutura, saneamento, saúde, educação, segurança -, é fundamental poder fazer esses gastos. É melhor para a confiança e para atrair investimentos privados internos e externos do que a ideia de uma obsessão de equilibrar o orçamento a qualquer custo, no curto prazo.

Valor: O senhor argumenta haver uma espécie de retórica “científica” dos economistas para poder fazer um contrapeso ao poder de um Estado, demagogo, que estaria “livre para gastar demais”...

Lara Resende: Como digo no meu ensaio sobre a moeda e a política, a questão é que sempre houve uma tensão permanente. Ao reconhecer que o Estado emissor da moeda não tem restrição financeira, há sempre o risco de o Estado gastar de forma conspícua, favorecendo a própria corte, a aristocracia e seus ocupantes. O risco de o Estado gastar mal, ser um Estado corporativista, defendendo os interesses dos seus funcionários e dos donos do poder sempre existirá e é preciso controlá-la. Uma forma de controlá-la foi a ideia de que a moeda emitida pelo Estado tivesse lastro metálico. Mas isso criava “iliquidez”, o que era prejudicial para a economia. Sempre houve essa contradição. No século XX, para efeitos práticos, terminou o padrão-ouro, as moedas são fiduciárias, não tem mais como impor ao Estado essa restrição. Inventou-se então a teoria quantitativa da moeda, cujo grande defensor foi Milton Friedman, na Universidade de Chicago, dizendo: “Embora não haja necessidade do lastro para emitir moeda, não se pode emitir mais moeda do que o crescimento da renda nominal - a teoria quantitativa da moeda -, senão vai causar inflação. Isso nunca foi empiricamente correto, mas foi muito aceito.

Valor: A crise de 2008 teve um peso na revisão dessa teoria?

Lara Resende: Com o quantitative easing [afrouxamento monetário], a expansão monetária que todos os bancos centrais dos países desenvolvidos fizeram depois da crise de 2008, isso [a teoria dominante] foi completamente desmoralizado. Veste-se como uma coisa técnica, com cientificidade, uma restrição que é uma restrição exclusivamente política. Essa exigência do equilíbrio fiscal é contraproducente em momentos de recessão e em momentos em que há necessidade de investimentos em infraestrutura. É o caso do Brasil, que está com infraestrutura “colapsada”. Tudo o que falta ao Brasil são serviços públicos de qualidade, são gastos públicos e investimentos de qualidade, e o Brasil está de mãos atadas. Quando você diz que o Estado não tem restrição financeira, assusta aqueles que consideram que o Estado não pode fazer e nunca fará nada certo. Precisa restringir ao máximo o Estado.... E é música para os ouvidos daqueles que acham que o Estado nunca faz nada errado. A direita tem horror e a esquerda fica fascinada. Os dois não estão corretos. O Estado pode fazer coisas certas e coisas erradas.

ValorQual é o papel do Estado?

Lara Resende: Não há saída para o mundo contemporâneo sem um Estado competente e eficiente, produtivo, que entenda o espaço, que gaste e trabalhe a favor da população. O Estado é para defender o interesse público, o bem público, não o interesse corporativista dos seus ocupantes, os interesses eleitorais ou demagógicos dos donos do poder no momento. O fato de estarmos numa democracia representativa e de termos visto abuso de gasto do Estado não é razão para inventar restrição.

Valor: O senhor considera que moeda é um bem público indissociável do poder e das instituições, e não uma criação espontânea dos mercados?

Lara Resende: Para o [professor da London School of Economics] David Graeber, autor de “Debt”, o mito fundador da economia contemporânea é a ideia de que a moeda é uma criação espontânea dos mercados. Uma economia funcionando como uma economia de escambo é uma economia exatamente como a nossa, contemporânea, só que não tem moeda, só escambo. Então cria-se uma mercadoria que vira de aceitação geral, a moeda. O Graeber mostra que isso nunca foi verdade. Você só começa a criar a ideia de troca, de mercado, quando cria a moeda. E só se cria moeda quando tem um poder central: o Estado. Não existe mercado sem a moeda e não existe moeda sem Estado, logo não existe mercado sem Estado. O que cria mercado competitivo e competente, produtivo, é um Estado competente e com consciência da importância do mercado competitivo.

Valor: Ao falar do papel do Estado, o senhor considera que a democracia representativa precisa ser repensada?

Lara Resende: Tem de resolver o problema do Estado, um problema político. Como se organiza uma democracia representativa no mundo contemporâneo, com mídia social, internet? A democracia representativa no século XX, dos “founding fathers”, tinha a ideia de que o Estado contemporâneo tem que ser tocado pela elite, como sempre foi no mundo. Essa elite deixou de ser, no século XX, uma elite aristocrática, portanto de sangue, para ser uma elite de competência, mas é elite. Questões de Estado são complicadas demais para serem tocadas por assembleias populares. Então, a democracia é representativa. Você pode mudar entre diferentes grupos da elite, que estão representando interesses diferentes, ou visões de mundo ligeiramente diferentes sobre a sociedade, não podem ser muito diferentes senão a coisa não funciona, mas é o que acontece. Quando você desmonta essa estrutura e passa a ter uma ideia de caminhar em direção a uma democracia direta, “assembleísta”, cria os problemas que o mundo enfrenta. A defesa foi o Estado ser ocupado por tecnocráticos, a independência do Banco Central, a Comissão Europeia. Os políticos são eleitos, mas não mandam mais nada.

Valor: Qual é o efeito desse fenômeno?

Lara Resende: Hoje os eleitores percebem que elegem políticos que não mandam nada e, como eles não mandam nada, passaram a defender seus interesses corporativistas e, portanto, interesses corporativistas cada vez mais corruptos. Os eleitores ficam indignados com essa percepção, consciente ou inconscientemente, de que “a democracia está parecendo uma farsa”, e é essa tentação populista, da ideia de “contra”, que é o Trump nos Estados Unidos, contra o “pântano” de Washington, e no Brasil, que é o bolsonarismo, contra “o establishment político”, que é “corrupto”. “Nós é que vamos fazer isso diretamente, de uma forma autoritária, diretamente representando o povo.”

Valor: Na sua opinião, por que muitos economistas reagiram aos seus artigos da forma como fizeram?

Lara Resende: Primeiro, os economistas do “mainstream”, a visão dominante no Brasil, são fiscalistas. A ideia é fazer o ajuste fiscal e deixar que a confiança, os investimentos privados e os investimentos estrangeiros façam tudo o que for necessário para a economia. Isso é um liberalismo completamente equivocado. Eu me considero um liberal, mas isso é uma versão ingênua e profundamente equivocada de como funciona a economia. Segundo, minha crítica é muito profunda sobre a macroeconomia mainstream. Estou dizendo: toda a macroeconomia está construída sobre bases equivocadas. Isso é perturbador para economistas com essa formação, como a minha. Só que você tem de reconhecer: estávamos errados. Como os economistas, principalmente os macroeconomistas, se tornaram homens públicos - na verdade políticos, fazem política, embora pretendam estar fazendo ciência -, isso ameaça a legitimidade para se expressar na vida pública. A questão é: a macroeconomia estava errada. Circunstancialmente funcionou durante certo tempo.

Valor: O que mudou?

Lara Resende:Desde o fim do século passado ela não é mais adequada para explicar o funcionamento da economia. A economia hoje é de puro crédito, a visão de moeda creditícia é incompatível com a da teoria monetária do início do século passado. Existe, portanto, uma razão política e uma ameaça sobre a estrutura teórica da macroeconomia, que fundamenta a sua legitimidade de opinar na política.

Valor: Quando o crescimento começou a voltar nos EUA, o Fed reverteu o QE, mas a economia voltou a desacelerar e o portfólio do Fed subiu novamente. Em 2013, o senhor se referia ao QE como “um grande ponto de interrogação”. O que aprendemos com ele, além do fato de que o aumento da base monetária não traz inflação?

Lara Resende: O QE não provocou inflação, como previa a ortodoxia monetária, mas não foi capaz de estimular o crescimento. Para isso, seria necessário fazer uso de uma política fiscal keynesiana, reduzir impostos e expandir os investimentos públicos, sem preocupação com o equilíbrio orçamentário. Quando a taxa de juros está próxima de zero, o custo da dívida pública é insignificante. Investimentos públicos na infraestrutura e em outras áreas que estimulem a produtividade não correm o risco de elevar de forma permanente a relação da dívida com o PIB. Infelizmente, também nas economias avançadas, o dogma do equilíbrio fiscal prevaleceu. Quando o governo de Donald Trump, por outras razões, finalmente cortou os impostos, a recuperação da economia se consolidou e o desemprego chegou ao seu mínimo histórico, sem qualquer indício de inflação. A inflação é uma questão de expectativas coletivas. Uma vez ancoradas, são mais estáveis do que se imaginava.

Valor: No livro, o senhor também contesta a tese de que a dívida pública é um ônus a ser arcado pelas gerações futuras como muitos economistas advogam. Por quê?

Lara Resende: Isso é um equívoco lógico. Para ficar claro, a dívida pública é interna, não externa. Quem é o detentor da dívida pública interna? São os credores, o próprio país. Os devedores são aqueles que vão pagar, no futuro, os impostos, os contribuintes. Quem são os credores? São os detentores da dívida pública. Quem são os detentores da dívida pública? Os agentes superavitários. Então, existe um elemento distributivo na dívida pública. Quando a dívida pública é justificável? Se você emitiu dívida pública para fazer investimentos que beneficiam a todos, inclusive aos mais pobres, é razoável. Sempre serão os agentes superavitários que vão deter a dívida pública, e esses agentes superavitários tendem a ser um dos mais ricos nos países muito injustos, mas são fundações, todos os fundos de aposentadoria - que não necessariamente são superavitários; são poupadores, que detêm a dívida pública. O errado é perceber a dívida pública como ameaça, quando a dívida pública é uma dívida de nós com nós mesmos. Então, tem efeitos sobre como os gastos que foram financiados com a emissão dessa dívida pública são feitos. O mais importante é que sejam benfeitos, que beneficiem a produtividade e o bem-estar de todos, portanto os serviços públicos, investimento em infraestrutura, saúde, educação, segurança

Valor: Depois do efeito distributivo não pode ficar um ônus fiscal?

Lara Resende: Só haverá ônus fiscal, como disse num artigo, se a taxa de juros da dívida pública for muito superior à taxa de crescimento da economia. Se não for, não haverá ônus, o próprio crescimento resolve a questão do pagamento dos juros da dívida. Outra questão é: não há razão nenhuma para ter, por períodos prolongados, a taxa de juros real da dívida pública, a taxa básica, que é totalmente controlada pelo Banco Central, acima da taxa de crescimento da economia. Você não tem problema nenhum em emitir dívida pública, desde que você garanta que a taxa de juro real não será superior, por muito tempo, à taxa de crescimento da economia. Com isso, você não terá crescimento da razão dívida-PIB. Como hoje no mundo todo as taxas de juro são praticamente zero, a taxa real zero, até negativa em tantos países, e a taxa de crescimento, embora baixa, 1,5%, 2,5%, é muito superior, então não há restrição nenhuma para emissão de dívida pública.

Valor: Isso se aplica ao Brasil também?

Lara Resende: Isso vale para o Brasil também. Agora a taxa de juro no Brasil ainda é positiva, mas já vi duas entrevistas de gestores dizendo que o Banco Central está criando uma bolha. Qual é o problema? Se criar, corrija o mercado acionário. Bolha na bolsa brasileira, isso é irrelevante. Agora, a grande mídia tende a olhar, a só responder a essa visão, que é a visão da bolsa, a visão da Faria Lima. Essa visão é monolítica, sem um instante de reflexão.

Valor: O Brasil vivenciou, nos últimos anos, uma queda da inflação e dos juros. É duradoura? Como aponta no livro, a explicação para a inflação deve ser buscada no longo prazo; esta desinflação também reflete processos de longo prazo?

Lara Resende: O Banco Central, na gestão de Roberto Campos Neto, finalmente se deu conta do equívoco que era manter a taxa de juros básica nos níveis absurdamente altos em que foram mantidas desde o Plano Real. Sobretudo diante do desemprego e do alto nível de capacidade ociosa observados desde a recessão de 2014 e 2015, a política de juros do Banco Central era absolutamente injustificável. Tenho a impressão de que a alta taxa de juros apenas agravou o desequilíbrio fiscal e desestimulou o investimento, sem, já há muito anos, dar qualquer contribuição para o controle da inflação.

Valor: O senhor criticou a resposta do governo brasileiro à crise em 2008 como “oportunidade perdida para baixar os juros”. Corrigiu-se o erro daquele momento?

Lara Resende: Sim, corrigiu-se com mais de dez anos de atraso e com um altíssimo custo em termos de investimentos, do crescimento e do aumento da relação da dívida com o PIB.

Valor: Comentando o período prolongado de juros baixos no mundo desenvolvido, o ex-secretário do Tesouro americano Lawrence Summers se referiu a um “buraco negro dos juros”. Essa situação tende a se perpetuar?

Lara Resende: A convivência com juros muito baixos e até mesmo negativos é uma situação nova e inusitada. Não é o caso do Brasil, que, apesar da queda recente, ainda tem juros reais positivos. O experimento da expansão de reservas bancárias, ou seja, de emissão de moeda, o chamado QE, promovido pelos principais bancos centrais do mundo desenvolvido, sem que houvesse sinal de volta da inflação, comprovou quão equivocada estava a teoria monetária dominante. Qual o efeito a longo prazo de juros negativos e se vão continuar muito baixos por muito tempo é difícil dizer. Mas estou entre os que acreditam que os juros serão bem mais baixos no futuro do que foram no século passado.

Valor: A ideia de que a correlação entre juros e inflação é oposta ao que crê tradicionalmente a economia faz pensar na expectativa de inflação no Brasil, que voltou a subir no fim de 2019. Se a causalidade é inversa ao que se pensava, subir os juros para responder a uma eventual alta da inflação seria um erro?

Lara Resende: A conjectura, levantada originalmente [pelo economista] John Cochrane, de que a relação entre a taxa de juros básica e a inflação pudesse ser positiva, e não negativa como sempre supôs a teoria macroeconômica, não é tão estapafúrdia quanto pode parecer. Apesar de, no curto prazo, o juro alto desestimular a demanda e moderar as pressões inflacionárias, se mantido por muito tempo, induz os agentes a inferir que o BC, que é quem mais tem informação sobre a inflação futura, espera que ela seja alta. A taxa de juros básica, assim como a taxa de câmbio e os salários, seria, assim, um dos principais preços balizadores das expectativas de inflação. A inflação no Brasil acompanhou a queda da taxa de juros e as expectativas parecem ancoradas. Não há motivo para especular sobre uma eventual alta da taxa de juros apenas porque a inflação nos últimos meses do ano passado ficou ligeiramente acima do esperado.

Valor: Com a reforma da Previdência quase concluída, como ela se encaixa no que o senhor esperaria de uma reforma dessas?

Lara Resende: Com o envelhecimento da população e o aumento da expectativa de vida, o sistema previdenciário de repartição se torna deficitário e precisa ser revisto. O problema ocorre no mundo todo, não apenas no Brasil. Além de deficitária, a previdência brasileira é injusta, porque o funcionalismo público, em todos os níveis e nas diferentes esferas do Estado, tem aposentadorias incomparavelmente mais generosas do que o trabalhador do setor privado, que se aposenta pelo INSS, regido pelo RGPS [Regime Geral da Previdência Social]. A atual reforma, focalizada primordialmente no RGPS, além de não constituir uma solução definitiva, não enfrentou o corporativismo do funcionalismo. Manteve seus privilégios praticamente intactos.

Valor: O senhor foi um dos primeiros economistas brasileiros a demonstrar interesse pela Teoria Monetária Moderna (MMT). Poderia contar sobre como conheceu essa corrente?

Lara Resende: Apesar do nome, a MMT nada tem de nova. Recupera uma longa tradição na história da teoria da moeda, que Joseph Schumpeter, na sua “História da Análise Econômica”, chamou de teorias creditícias da moeda. A essência da moeda é ser uma unidade contábil de créditos e débitos entre os agentes da sociedade. A MMT recuperou as teorias creditícias da moeda e, por isso, não comete os equívocos dos que insistem em ver a moeda como mercadoria. É uma descrição muito mais realista do funcionamento dos bancos centrais e dos mercados financeiros num sistema de moeda fiduciária, como são todos os sistemas monetários contemporâneos.

Valor: Se gastos públicos, taxação e outras variáveis são cruciais, como no caso da MMT, então a macroeconomia começa a se parecer com um ramo da ciência política. É ilusório pensar a economia como um campo autônomo?

Lara Resende: É completamente equivocado pensar a economia como um campo autônomo. Até o século XIX a economia era um campo da filosofia. Foi a partir do fim do século XIX e o início do século XX que a teoria econômica se separou das demais ciências sociais e históricas. Adotou, então, a formulação e a metodologia que hoje lhe são características. O aparente rigor analítico lhe permitiu se arvorar como uma disciplina, mais do que independente, superior às demais ciências humanas. Basta um segundo de reflexão para concluir que questões como quanto e como tributar, onde e como investir recursos públicos, têm um inescapável componente político. Mas não apenas as questões tributárias e monetárias são eminentemente políticas, toda e qualquer questão econômica não pode ser analisada fora do seu contexto político e social.

Valor: O senhor sugere que, na última década, os bancos centrais fizeram política fiscal veladamente. E o senhor marca a diferença entre essa política fiscal e a que é feita pelo Executivo: são compras de ativos, não investimentos em infraestrutura ou transferências. Trata-se de uma transferência de soberania para os BCs?

Lara Resende: Quando os bancos centrais expandem a base monetária, como fizeram com o QE, para adquirir ativos, desalavancar os bancos e impedir o colapso do sistema financeiro, estão fazendo um misto de política fiscal e monetária. Estão financiando gastos públicos para adquirir ativos financeiros. Não salvaram apenas o sistema financeiro, mas provavelmente toda a economia mundial de um colapso sem precedentes. De toda forma, se é possível expandir gastos extraorçamento fiscal para uma emergência como essa, cabe sempre a pergunta: por que não também expandir gastos extraorçamentários para outras questões vitais que contribuam para o aumento da produtividade e do bem-estar? A exigência de que se equilibre o orçamento fiscal é uma restrição autoimposta que se justifica para evitar a tentação de gastos irresponsáveis, demagógicos e até mesmo corruptos, mas acaba sendo uma camisa de força que impede gastos plenamente justificáveis. Como definir tais gastos justificáveis e como evitar os injustificáveis? Não é uma questão simples, sobretudo nas democracias representativas, mas é algo que precisa ser urgentemente examinado. O custo do equilíbrio fiscal mantido a ferro e fogo, como se fosse um imperativo natural, muitas vezes é excessivo.

Valor: Qual é sua visão sobre o Green New Deal? Um programa de investimentos tão ambicioso é viável atualmente?

Lara Resende: Acho importante que seja discutido com seriedade.

Valor: Sobre os modelos DSGE [dinâmicos estocásticos de equilíbrio geral], o senhor comenta que, depois da crise, finalmente começou uma tentativa de introduzir neles a finança e a moeda. Quão longe foi esse esforço? A mudança provocou grandes transformações nos resultados e nas conclusões da macroeconomia?

Lara Resende: Com a grande crise financeira das economias desenvolvidas de 2008, o irrealismo dos modelos macroeconômicos, nos quais não havia moeda, nem sistema financeiro, ficou patente e se tornou insustentável. Houve, realmente, um esforço da teoria predominante para incorporar o sistema financeiro e tentar dar um toque de realismo aos modelos. Mas, como insistem em partir de uma concepção equivocada da moeda e a privilegiar a formalização matemática, os novos modelos acrescentaram muito pouco à capacidade de formulação de políticas públicas.

Valor: Há alguns anos, o senhor se lamentava que a macroeconomia tinha virado uma “área menor da matemática aplicada”, porque não incorporava problemas de ordem social e política. Isto está mudando?

Lara Resende: É verdade. A teoria macroeconômica, na busca de se equiparar às ciências da natureza, adotou uma excessiva formalização matemática. Levada ao paroxismo, a macroeconomia hoje ensinada aos alunos de doutorado nas principais universidades americanas, que ainda servem de referência acadêmica, perdeu toda a capacidade de representar a realidade complexa das questões econômicas que são indissociáveis de suas dimensões psicológicas, políticas e sociais. Tornou-se, de fato, uma área menor da matemática aplicada.


Ribamar Oliveira: Incentivos distorcidos na escolha da profissão

Governo acredita que medida contribuirá para melhoria alocativa na economia

Além de tornar a máquina estatal mais eficiente, para que preste melhores serviços aos cidadãos, a reforma administrativa a ser proposta pelo governo tem um outro objetivo que não é facilmente perceptível. Ela pretende corrigir os incentivos distorcidos dados aos trabalhadores na escolha de uma profissão, informa uma nota produzida pela Secretaria de Política Econômica (SPE), do Ministério da Economia, que será divulgada hoje.

O governo avalia que, atualmente, existe um prêmio salarial para o ingresso no setor público, que paga melhores salários do que o setor privado para ocupações semelhantes. Ao reduzir esse prêmio, o governo acredita que contribuirá para uma melhoria alocativa na economia.

O pressuposto é que a alocação dos talentos é direcionada de acordo com o retorno em cada ocupação. Uma economia com elevado nível de burocracia, observa a nota da SPE, tende a estimular ocupações orientadas por busca de renda (rent-seeking, no termo em inglês), em vez de busca pelo lucro (profit-seeking), que seria a recompensa do empreendedorismo e da produção.

“Ao invés de enviesar as escolhas de carreiras através do pagamento de um prêmio salarial artificial, a nova estrutura de salários e carreiras do setor público (que será proposta pela reforma administrativa) tornará os incentivos mais adequados à alocação dos talentos onde eles têm maior vocação e logo maior retorno”, diz a nota, intitulada “Redução do Misallocation para a Retomada da Produtividade Brasileira”.

A nota garante que “os impactos sobre o crescimento (com a redução do prêmio salarial do setor público) devem ser superlativos”. Ela cita um estudo feito pelos pesquisadores Tiago Cavalcanti, da Universidade de Cambridge, e Marcelo Santos, do Insper, o qual estima que a redução do prêmio salarial em seis pontos percentuais e o alinhamento das perspectivas de previdência entre o setor público e privado, conforme estabelecido pela reforma recentemente aprovada pelo Congresso Nacional, produziriam um aumento de 17% no Produto Interno Bruto (PIB) per capita a longo prazo no Brasil.

A SPE, em sua nota, apresenta 11 diferentes medidas e propostas para aumentar a eficiência alocativa dos recursos na economia. Segundo a SPE, “a redução do ‘misallocation’ (alocação ineficiente) é a estratégia central de política pública do governo para o aumento da produtividade”.

Em entrevista a este colunista, o secretário de Política Econômica, Adolfo Sachsida, garantiu que existe um problema sério de alocação de recursos na economia brasileira. Ele disse que o governo brasileiro gasta mal e direciona recursos para lugares menos eficientes, o que gera uma queda brutal na produtividade. E que é preciso corrigir isso com urgência. “A alocação ineficiente é pior do que queimar dinheiro”, afirmou.

Ele citou vários exemplos de alocação ineficiente, como as numerosas obras públicas inacabadas existentes no país, que, além de não poderem ser utilizadas, ainda custam recursos para serem conservadas, e alguns estádios que foram construídos para a Copa do Mundo de 2014 e continuam onerando os cofres públicos.

Em sua nota, a SPE formula uma definição que torna o conceito de “‘misallocation” mais fácil de ser entendido. “Se uma firma apresenta retorno menor que outras, e, ainda assim, recebe mais investimento, este está sendo alocado de forma ineficiente, configurando-se ‘misallocation’.”

A SPE observa que, entre os anos de 2010 e 2017, a produtividade da economia brasileira caiu, em média, 2,1% ao ano, acumulando uma queda de 13,9% no período. A produtividade pode ser resultado de inovações tecnológicas, de melhores condições de infraestrutura, e de capital humano. “Porém, nenhum desses aspectos mudou significativamente nos últimos dez anos. Assim, a explicação fundamental para esse movimento de queda da produtividade é a piora da ineficiência na alocação (misallocation) dos recursos da economia”, diz a nota.

A SPE cita a tese de doutorado do economista Rafael Vasconcelos, da Fundação Getulio Vargas (FGV), sobre essa questão. A tese indicou que a alocação ineficiente de recursos aumentou de forma dramática no Brasil desde 2006, o que, na avaliação da SPE, “fortalece o diagnóstico de que a perda de produtividade foi promovida por aumento da ‘misallocation’”.

Na mesma tese, o economista indica que há um espaço muito grande para o aumento da produtividade ao se eliminar falhas de mercado e/ou falhas de governo que promovam o “misallocation”. “Pode-se mais que dobrar a produtividade, e logo, o produto per capita, ao se eliminar tais ineficiências”, diz a nota da SPE.

Entre as 11 medidas e propostas para reduzir a “misallocation”, a nota cita a proposta de reforma tributária, que deve ser encaminhada ao Congresso pelo governo nas próximas semanas. A SPE explica que há uma variância substancial de alíquotas no sistema tributário brasileiro para firmas similares, ou entre setores, de forma a enviesar investimentos. Isto produz, segundo a nota, uma dispersão elevada e persistente da alocação dos recursos, o que configura um exemplo claro de perda de eficiência alocativa.

Há ainda no atual sistema tributário custos substanciais de conformidade e riscos judiciais intrínsecos ao sistema. “Tais características produzem perda de recursos em atividades não produtivas e estimulam comportamentos oportunistas para encontrar brechas no sistema tributário”, diz a nota. E acrescenta: “A reforma tributária buscará reduzir a variância de alíquotas, simplificar o sistema, reduzir riscos judiciais e eliminar parte dos custos de conformidade”.

A nota elenca ainda as medidas que já foram adotadas pelo governo na área do crédito (com a redução do crédito direcionado), a criação do “novo FGTS”, a proposta de extinção do seguro obrigatório DPVAT, a proposta de abertura comercial, entre outras. O objetivo da nota, segundo Sachsida, é estimular o debate sobre a atual alocação ineficiente de recursos na economia brasileira.


Maria Cristina Fernandes: Um laboratório de Brasil

Penúria fiscal vira semente do pragmatismo político

Presidente do terceiro maior sindicato do país, o dos professores do Rio Grande do Sul, Helenir Schürer, não mudou suas convicções contrárias ao pacote de reformas aprovado pelo governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), em tempo recorde, durante convocação extraordinária da Assembleia Legislativa. O pacote, no entanto, forçou o sindicato a negociar com o MDB uma emenda para mitigar perdas no plano de carreiras da categoria, modificado substancialmente pela primeira vez desde sua adoção durante a ditadura militar - “A estratégia foi a de reduzir danos. Fizemos o que foi possível ante um governo que tem 40 das 55 cadeiras da Assembleia”.

O desfecho é prenhe de sinais sobre as mudanças em curso no país. O PT chegou ao Palácio do Piratini quatro anos antes de tomar posse do Planalto e também foi de lá desalojado antes de o impeachment varrê-lo da capital federal. A bancarrota fiscal dos pampas teve início nos anos 1990 e atravessou governos do MDB, PT e PSDB sem que nenhum deles tenha sido capaz de estancar a sangria.

O buraco com o qual o atual governador assumiu o Estado só perde para o do Rio de sucessivas pilhagens. A penúria foi a semente do pragmatismo. Há cinco anos os servidores têm recebido salário parcelado até o último dia do mês seguinte. Depois de um 2019 de longas greves, o governador emplacou um pacote que extingue gratificações e promoções por tempo de serviço, prevê perda de cargo por avaliação periódica de desempenho e antecipa medida que está na PEC Emergencial no Congresso Nacional e permite ao servidor pedir redução de jornada - e de salário - de até 25%.

Líder do governo anterior, derrotado por Leite, o deputado Gabriel Souza (MDB) percebeu a brecha e negociou uma emenda com Helenir que amenizou a proposta e permitiu algum aumento salarial este ano. A esquerda se dividiu na votação. O PDT votou a favor, mas o PT (partido ao qual a presidente do sindicato é filiada) votou contra, bem como o PSOL.

O governador ainda conseguiu tirar da Constituição estadual o dispositivo que obriga a realização de plebiscito para a privatização de estatais sem que uma única bomba de gás lacrimogênio fosse lançada sobre a Praça Marechal Deodoro, que divide a Assembleia e a sede do governo.

A façanha, no entanto, não autoriza a suposição de que a política hoje se move por uma nova mentalidade em curso entre brasileiros dispostos a aceitar todos os sacrifícios para sair do buraco. Uma semana depois, o prefeito de Porto Alegre, o também tucano Nelson Marchezan Jr, perdeu de forma acachapante a votação de um arrojado projeto de mobilidade urbana na Câmara dos Vereadores.

A proposta amplia a participação dos mais ricos no subsídio ao transporte público. Substitui o vale por uma taxa a ser paga por todos os trabalhadores e não apenas por aqueles que dele se beneficiam.

Além disso, institui uma taxa sobre viagens por aplicativo, estabelece um pedágio urbano para carros de fora da cidade, e promove uma retirada gradual dos cobradores dos ônibus que circulam de madrugada, além de não repor os aposentados. Com isso, a municipalidade poderia conceder tarifa zero para trabalhadores com carteira assinada, tarifa social de menos de R$ 2 para os demais e de simbólico R$ 1 para estudantes.

A primeira fatia que foi a voto, a dos cobradores de ônibus, foi rejeitada por 23 votos a nove sob o pretexto de que causaria desemprego. O prefeito, que vive às turras com seu próprio vice, já havia sido derrotado em sua tentativa de aprovar um IPTU progressivo e, desta vez, não conseguiu apoio nem mesmo na sua base parlamentar. Colaborou para sua derrota não apenas o clima mais radicalizado na política municipal por conta das eleições de outubro como também a falta de diálogo de Marchezan com os vereadores.

O feito do Piratini terá repercussão não apenas dentro do partido do governador mas para a esquerda e para o governo Jair Bolsonaro. O arrojo e a capacidade de negociação de Leite já fazem sombra sobre seu colega paulista, João Doria, quadro incapaz de arrebanhar os votos até mesmo dos seus correligionários paulistas nas votações internas da legenda, como aquela que tentou impor punições às estripulias do deputado Aécio Neves.

A aprovação do pacote tampouco lustra a imagem petista, que jogou no colo do MDB a interlocução com o maior sindicato de sua base política e ainda votou contra a emenda negociada por sua presidente.

E, finalmente, a façanha farroupilha não traz conforto ao presidente Jair Bolsonaro por mostrar a viabilidade, na região que mais aprova seu governo, de gestões liberal-conservadoras que não endossam a porção aloprada do bolsonarismo. Leite declarou voto no presidente da República no segundo turno, mas diverge de temas caros ao bolsonarismo como a redução da maioridade penal e deseducação sexual nas escolas.

O governador gaúcho enfrenta o funcionalismo de maneira mais desabrida que Bolsonaro. O presidente da República fez minguar a menção à reforma administrativa na mensagem presidencial enviada ao Congresso esta semana. E o faz, em grande parte, pela bolha das redes sociais fora da qual parece se sentir inseguro. Aferição da Bites constata que, nos últimos 12 meses, o Google registrou 8,2 milhões de buscas para a expressão ‘concurso público’, principalmente nos Estados do Norte e Nordeste. A página Concursos Brasil, com notícias de aberturas de vagas no país, tem uma audiência mensal de 6,3 milhões de visitas.

Eduardo Leite tem apenas 34 anos, vem de um Estado limítrofe do país e ainda tem uma estrada longa e esburacada pela frente. Já foi capaz, no entanto, de mostrar que há vida na política e não apenas nos auditórios de TV e das redes sociais. É da política que terá que se valer se quiser resolver a maior pendência do seu pacote legislativo, a elevação da alíquota previdenciária para os brigadianos, nome que os gaúchos dão para os integrantes de sua polícia militar. Depois do que foi capaz de aprovar, se recuar ante a farda terá que se ver com a acusação de que fala grosso com os professores e fino com os policiais militares.


Cristiano Romero: Muito além da economia

Para oferecer mais democracia a quem mais necessita dela, o Estado brasileiro terá que passar por profunda e difícil reforma

O economista Luiz Guilherme Schymura é um liberal que gosta de discordar. À frente do Ibre, o mais antigo centro de estudos econômicos do país, não deixa a instituição funcionar como igreja. Bem pensado: ninguém vai à igreja no domingo para questionar o chefe da paróquia - quando a discórdia é grande, o sujeito muda de igreja ou funda a sua ou, o mais difícil, tenta reformá-la. Ademais, economia não é religião.

É enfadonho o debate que apenas repete o samba de uma nota só do pensamento hegemônico. E é lamentável, neste país, a recusa da maioria ao debate civilizado e civilizador. O que se observa aqui é a demolição intelectual prévia do outro, com o apoio automático de alguns “sacerdotes”. Por aqui, a desmoralização do interlocutor chama mais atenção do que o debate de ideias. Mas, no “país do futuro”, demoniza-se o outro por ter vinculação política com o partido A ou B ou por ter estudado em Harvard e não no MIT ou nascido em Juazeiro (BA) e não em Petrolina (PE), por torcer para o Fluminense e não para o Flamengo. Perde-se muito tempo na Ilha de Vera Cruz com pequenezas.

Além de promover o debate e a “disputa” de ideias, facilitar a emergência do contraditório, tirar colegas da zona de conforto e de lembrar a todos que economia não é ciência exata, Schymura põe suas próprias ideias para brigar, sem abrir mão de sua sólida formação liberal. Nas análises, introduz aspectos que a maioria de seus colegas releva por considerá-los imponderáveis. Ora, o pensamento não chegaria a lugar algum se não houvesse ousadia, sonho, utopia.

A ciência que mais sofre na tentativa de entender o Brasil é justamente a destinada a esta missão: a antropologia. Porque o Brasil é um imenso encontro de etnias marcado por uma infâmia chamada escravidão, com a qual convivemos oficialmente durante quase quatro séculos e que, por isso, é a nossa principal característica como sociedade, como advertiu Joaquim Nabuco há mais de um século.

O Brasil, na verdade, ainda não existe. Nossa singularidade - a diversidade étnica - é vista pelas elites colonizadas como um defeito de origem. Ora, o conceito vago que temos de nação, o que julgamos ser parte de alguma identidade, a nossa riqueza como povo novo, na acepção de Darcy Ribeiro, deriva justamente desse encontro de imigrantes com os povos que estavam aqui antes da sua chegada.

Onde entra a economia nessa conversa? Para Luiz Schymura, não basta olhar para os números das finanças públicas e constatar que, deficitários, impedem a economia de crescer mais rapidamente. Essa análise é fácil. O difícil é largar a calculadora um minutinho e procurar entender por que o governo - em todas as esferas - gasta mais do que arrecada e, o mais importante, por que faltam recursos para o que é essencial (formar cidadãos) e sobram para quem não precisa.

Quem disser que é por causa da corrupção, cuidado! A corrupção é um mal em si, mas não faz cócegas no buraco das contas públicas, que, em 2019, somou R$ 429 bilhões. Quem acha que uma explicação possível está na maneira como o Orçamento é formulado está no caminho certo. O Orçamento Geral da União (OGU) é um retrato do pacto que nos impede de ser uma nação.

O OGU mostra que a divisão dos recursos públicos privilegia os mais ricos, as elites de todo tipo (não só as econômicas e financeiras, mas também as sindicais, intelectuais e culturais), a burocracia estatal, as grandes empresas e as multinacionais (a automobilística, que há 70 anos alega ter prejuízo no Brasil, mas não sai daqui), enfim, os grupos de interesses específicos. É provável que, ao ler o Orçamento, alguns leitores constatem estar entre os beneficiários do regime que faz do nosso contrato social um dos mais injustos do planeta.

Pior do que criar para si próprio privilégios é ser beneficiário deles e calar-se. No primeiro caso, estão os “donos do poder”, os que legislam em causa própria em todas as instâncias do poder; no segundo, os cúmplices, que recebem riqueza imerecida do Estado. São tantos, mas tantos exemplos de privilégios, que a tarefa de identificá-los é um exercício de cidadania.

No debate, Schymura afirma: o brasileiro quer mais democracia. E clama por isso desde a segunda metade do século XX. Os 50 milhões de miseráveis atendidos pelo Bolsa Família; as dezenas de milhões da faixa acima à dos beneficiários do Bolsa Família; as dezenas de milhões dos menos pobres, mas com pouquíssimas chances de ascensão devido ao caráter concentrador de renda das políticas públicas; a maioria quer mais democracia.

A história nos últimos 70 anos é reflexo desse desejo, observa Schymura. Nesse período, o que vimos foi a disputa entre quem quer mais ou menos democracia. Em 1984, fomos às ruas exigir a volta do direito de eleger o presidente pelo voto direto. Em 1985, aprovamos o direito dos analfabetos votarem. Em 1988, promulgamos a Constituição que instituiu direitos civilizadores, como o acesso universal gratuito à saúde e à educação, o pagamento de aposentadoria a trabalhadores do campo, mesmo sem terem contribuído para o INSS, e o direito de os indigentes receberem um salário mínimo mensal.

A Carta Magna, registre-se, acabou com a censura e definiu qualquer forma de discriminação como crime, passível de punição (artigo 5º, inciso XLI). Defensores da economia de mercado deveriam entender que a democracia é o melhor regime para o florescimento do capitalismo. Milhões de brasileiros foram às ruas em 2013 exigir serviços públicos de qualidade, prova de que nossa democracia é manca num aspecto fundamental: oferecer oportunidades iguais a todos.

Assegurada pela Constituição, a liberdade de expressão é um pilar da democracia. A defesa da concorrência, por sua vez, é o alicerce da economia de mercado. A insatisfação com juros e preços altos e a baixa qualidade dos bens e serviços é crescente. Não há economia forte onde poucas empresas e bancos dominam o mercado. A existência de monopólios e oligopólios estatais e privados enfraquece a economia de mercado e, em última instância, a democracia, e pouco se fala disso no mercado.

A profunda e perigosa divisão que a sociedade vive nesta hora pode ser fruto da reação de setores da sociedade ao “mais democracia”. Não se deve, porém, confundir “mais democracia” com assistencialismo e populismo, práticas que sabotam a própria democracia. Para oferecer mais democracia, o Estado terá que passar por profunda reforma. Terá que acabar com o sistema de castas que distingue trabalhadores do setor privado de funcionários públicos; combater o patrimonialismo que faz com que burocratas ajam como donos dos serviços públicos; “estatizar” o Estado, impedindo que grupos empresariais influenciem em decisões do governo.

*Cristiano Romero é editor-executivo